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A RETIRADA DA LAGUNA - VISCONDE DE TAUNAY

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Academic year: 2021

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A RETIRADA DA LAGUNA - VISCONDE DE TAUNAY

A RETIRADA DA LAGUNA DE VISCONDE DE TAUNAY: O RELATO DE VIAGEM COMO FONTE LITERÁRIA. Tatyane Ap.Vanini Macedo

Partindo do princípio da imagem do Brasil no relato de viagem através de Pero Vaz de Caminha com A Carta, que tornou-se a certidão de nascimento do Brasil, podemos perceber que estornou-se relato tinha como interestornou-se atender os interestornou-ses da Coroa e que Caminha tinha como propósito, descrever as possibilidades de exploração. Sabe-se que a imagem do Brasil foi constituída a partir de imagens que os viajantes europeus construíram, através dos relatos de viagem, servindo de base para textos que foram escritos posteriormente.

Os testemunhos dos viajantes servem como objeto de estudo e como aparato crítico para compreender a história através dos fatos registrados através dos relatos de viagem e com isso conseguimos estudar a evolução da humanidade ao longo do tempo e entender culturas diversificadas. O único cuidado está sobre algumas descrições que às vezes podem ser fictícias ou então estar no modo de ‘’ver’’ daquele viajante. Porém esse modo de ver do viajante ajuda a construir a imagem do outro do ponto de vista que pode ser de fora como do próprio meio. Portanto pode-se considerar que a literatura de viagem pode ser com uma reescrita do real, só que com um foco nos contextos sociais e econômicos de cada época. Portanto, os relatos são os resultados de um estudo minucioso dos lugares em que os viajantes passam e é através dessas descrições que podemos analisar como eram feitas as explorações dos espaços desconhecidos.

Podemos analisar então, a perspectiva de Taunay em A Retirada da Laguna, onde se pode notar suas ações como cumpridor de uma tarefa militar que expôs sua idéia ao participar da campanha contra o Paraguai. Taunay observou o outro em um espaço desconhecido ‘’o sertão de Mato Grosso’’, e através dessa observação passou um conceito diferente do que era o Brasil no século XIX. O viajante Taunay, embora não seguisse um roteiro organizado da viagem, observa de fora, relata a realidade.

Desta forma constrói imagens fortes dos fatos vividos. Toda a imagem construída antes desse fato vivido por Taunay tem apenas a visão do Brasil litorâneo, caracterizado pela presença da Corte naquele local e através do relato ele consegue observar aspectos ainda não explorados e totalmente desconhecidos e usa da sua descrição com objetivo de informar.

Segundo Ilka Boaventura, ‘’ os relatos de viagem ao Brasil, enquanto fontes de informação permitem leituras inesgotáveis. É possível extrair delas inúmeras informações e impressões (op., cit., p.13). Em A Retirada da Laguna propus trabalhar o relato sistematizando a experiência da viagem em um lugar desconhecido, escrevendo uma nova imagem do Brasil e reafirmando essa escrita como documento literário que cada viajante construiu através dessas viagens.

Com Taunay em A Retirada da Laguna, vemos um ideal além dos aspectos científicos ou geográficos, que visava completar a história da nacionalidade brasileira. Vemos a experiência de uma viagem dentro de um acontecimento histórico em um lugar inexplorado, que é o sertão de Mato Grosso e é dentro desse lugar desconhecido que ocorrem as provações que dificultaram a batalha e marcam sua obra.

A palavra sertão na obra de Taunay é usada invariavelmente para nomear a região quase despovoada e inculta que ele percorreu desde Uberaba até a fronteira com o Paraguai, abrangendo, portanto, o sul das províncias de Goiás e Mato Grosso. Essa região segundo Taunay, exibe duas características contrastantes: é às vezes ‘’esplendorosa’’, outras ‘’inóspita’’

O Sertão Mato-Grossense aparece em sua obra como cenário por onde ocorreu um fato histórico, (Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai) e é através desse sertão que Taunay mostra a possível busca pelo desconhecido e o que se pode encontrar nem sempre é o que se imagina.

O relato de Taunay tem uma imagem forte e bem nítida do realmente se passou, o leitor se prense a cada linha, pois as provações vividas pelo corpo de exército foram bem marcantes e ele relata com o intuito de não esconder nada, não esquecendo que a obra é um relato misto do oficial com ficcional.

‘’Neste livro, escrito originalmente em francês, Visconde de Taunay (1843-1899) narra um episódio da Guerra do Paraguai, considerada a mais sangrenta da América do Sul. Seu tema são os sofrimentos e a derrota de uma pequena coluna brasileira, enviada ai sul de Mato Grosso para repelir dali o inimigo. Sem munição, cavalos e víveres, ela ousou uma incursão ao território paraguaio, mas foi logo obrigada a retroceder, enfrentando todo tipo de obstáculo- o maior deles, uma epidemia de cólera. Para sobreviver, os soldados válidos abandonaram à espada inimiga os companheiros doentes, que eles já não podiam

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transportar. Dos 1680 homens que invadiram o Paraguai, apenas 700 voltaram vivos para o Brasil. Ao narrar num estilo singelo o fracasso dessa expedição militar, Taunay nos leva a refletir sobre questões como heroísmo, honra e dever.

Essa nota introdutória de Sérgio Medeiros, 1997 da obra A Retirada da Laguna, nos indaga a pensar sobre as questões de heroísmo, honra e dever, pois o que levam homens a guerra com o intuito de lutar arriscando a vida? O sentimento patriota é aquele que é capaz de morrer pelo país, em busca de mudanças que possam transformar esse país em um lugar melhor. A guerra tem um sentimento próprio, uma vida que se propaga a cada míssel lançado e a cada corpo esparramado ao chão. Os homens se tornam bichos e se sujeitam a todos os tipos de riscos entre o maior de todos é dar a própria vida, Segundo o poeta e tradutor alemão 1Hans Magnus Enzensberger, ‘’ Os animais lutam, mas não fazem guerra. O homem é o único primata que planeja o extermínio dentro de sua própria espécie e o executa entusiasticamente e em grandes dimensões, a guerra é provavelmente uma conquista posterior. ’’ Na Retirada, Taunay trás a tentativa de algum acordo, mostra que o Brasil na sua oportunidade tentou negociar com os paraguaios, porém não teve uma boa resposta, apenas o insulto do Paraguai. Veremos a carta que o Brasil enviou aos paraguaios com o intuito de um acordo.

Aos Paraguaios:

A Expedição brasileira interpela-vos como amigos. Nosso objetivo não é levar a devastação, a miséria e as lágrimas ai vosso território. A invasão tanto do norte como di sul e de vossa república tem como único intuito reagir contra uma injusta agressão de nacionalidade. Será oportuno que um de vossos oficiais venha conversar conosco. Ele poderá retirar-se quando lhe for conveniente: bastará simplesmente manifestar tal desejo. O comandante da expedição compromete-se, por sua honra e pela santa religião que os dois povos professam, a garantir a segurança do homem generoso que depositar em nós esta confiança. Disparamos tiros de canhão como inimigos, agora desejamos tratar-vos como possíveis amigos. Apresentai-vos com a bandeira branca na mão e sereis recebidos com todas as atenções que as nações civilizadas embora em guerra, devem-se mutuamente. (TAUNAY, op., cit.,p.102)

A possível chance de um acordo de paz com o país vizinho só poderia funcionar se os mesmos tivessem o objetivo do mesmo acordo. O Brasil mostra em seu discurso o seu comprometimento com tal acordo baseados no código de honra como um sentimento humano, uma qualidade moral dos quais os brasileiros demonstram ter em seu discurso, pois a argumentação deve ter recursos dos quais visa comover, persuadir ou convencer, que não foi aceito pelos paraguaios que os envia uma resposta e um insulto a expedição brasileira, dizendo assim:

Ao comandante da expedição brasileira:

Os oficiais das tropas paraguaias estão sempre prontos para as comunicações que se lhes quiserem fazer; mas, no estado de guerra declarada que existe entre o império e a República, só poderemos tratar-vos com a espada desembainhada. Vossos tiros de canhão não nos atingem, e quando nos chegar a ordem para responder ao ultraje, há no Paraguai terreno ainda para as manobras do exército republicano.

Avança crânio pelado: Vem procurar a própria cova O general desafortunado. E haviam acrescentado:

Acreditam os brasileiros que estão em Conceição para as festas. Os nossos os receberão ali com baionetas e chumbo. (TAUNAY, op., cit. p.103)

O discurso paraguaio funciona como uma violência verbal em que o agressor se utiliza de palavras para agredir o outro, que foi desencadeada como conseqüência do fato ocorrido, então a literatura convida a uma análise que permite debater sobre o tema enfocado que nos dá a possibilidade de imaginar os motivos de tais manifestações, como a do acordo em nome da honra e da religião proposta pelo lado brasileiro e da rejeição e desafio que os paraguaios demonstraram para com o Brasil. O primeiro momento pode parecer assustador, a guerra em si é terrivelmente assustadora, e‘’vendo’’ isso através dos ‘’olhos’’ de Taunay, podemos ter uma vasta idéia do que realmente acontece nos bastidores de uma guerra. Esse confronto entre países ou regiões do mesmo país, é sempre ligado a uma disputa política, religiosa, expansão territorial, inveja, vontade de vingança ou até mesmo mostrar que um país é melhor que o outro.

Em seu relato Taunay reuniu as possíveis provações vividas e anteriormente como foi posto até um acordo de paz surgiu, mas não obteve sucesso. Com isso o homem passa por situações diversas.

Dentre os inimigos paraguaios e todo aquele território desconhecido que os fizeram reféns, não foram às únicas dificuldades. As mudanças climáticas e também esteve presente e dificultou muito a disposição dos soldados. A causa do atraso foi uma horrível tempestade que caiu naquela mesma noite, às nove horas. As torrentes de chuva logo transformaram o solo em pântanos lamacentos. Estes fenômenos terríveis não são raros no Paraguai, mas até então nada havíamos presenciado nada parecido. Os relâmpagos que se cruzavam sem cessar, os raios que caíam de todos os lados, o vento furioso que arrancavam tendas e barracas, compunham um caos de horrores a que se mesclavam de vez enquanto os tiros de fuzil de nossas sentinelas contra os diabólicos inimigos que não deixavam,mesmo naquele momento, de nos assediar: noite interminável em que para nós tudo era imagem de destruição. À mercê de todas as cóleras da natureza, sem abrigo nem refúgios, os soldados seminus, escorrendo água, imersos até a cintura em correntes capazes de arrastá-los, ainda que se preocupavam em não deixar molhar os cartuchos. A manhã encontrou-nos nesta situação.(TAUNAY, op., cit. p.113)

A situação pelo qual se passava a tropa era um tanto aflitiva ou penosa, os fatores naturais passaram a ser mais um inimigo constante, mas o sentimento de amor a pátria de homens que procura servi-la cresce no peito como se fosse uma doença que domina a mente e coração dos quais esses homens só saem dali, mortos.

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A Retirada da Laguna mostra ao leitor todas essas provações e até onde foram os homens, que só pararam de lutar porque estavam ‘’mortos’’. Foi uma guerra que no meu ponto de vista, não teve derrota, ambos lutaram bravamente, cada um vestiu a farda e defendeu com honra os deveres propostos por ambos os países, que era o dever de defender cada um a sua pátria.

Outro ponto de provação na obra que chama muito atenção é a fome e as doenças, que foram os grandes causadores de mortes durante a guerra, além dos canhões, das armas, do território desconhecido. (imagine se não houvesse com os soldados brasileiros o Guia Lopes)

Um espetáculo repulsivo revelou-nos, neste lugar, o quanto era medonha a fome de nossos soldados. Ia-se abater um boi estafado, quase moribundo: ao redor do infeliz animal um círculo já se formara cada qual aguardando com ansiedade jatos de sangue, alguns para recolhê-lo numa vasilha e levá-lo, outros para bebê-lo ali mesmo, e, no momento oportuno, todos se lançaram a um só tempo, os mais distantes disputando com os mais próximos. Isto sucedia todos os dias. O açougueiro mal tinha tempo para cortar o animal e de certo modo já era preciso arrancar-lhes os pedaços das mãos para levá-los ao local da distribuição. Os restos, as vísceras, o próprio couro, tudo era despedaçado no ato e prontamente devorado, mal assado ou mal cozido: refeição odiosa que não podia deixar de dar origem a algumas epidemias. .(TAUNAY, op., cit. p.185)

A própria palavra guerra pode ser considerada como uma doença que surge rapidamente, que começa e termina de uma forma devastadora, a guerra quando não mata a pessoa, deixam seqüelas graves, a guerra é uma experiência desumana que destrói lugares, famílias e cria um sentimento de ódio entre as pessoas.

A cólera foi uma das doenças nos dois sentidos da palavra que mais perseguiu e fizeram que muitos soldados ficassem para trás, pois os outros não tinham condições de seguir com dos doentes. A cólera agia como a própria doença em si, que é uma infecção contagiosa causada por água ou alimentos contaminados pela bactéria Cholerae, que causa vômitos e diarréias desidratando a pessoa e levando-a a morte.

‘’A cólera, entretanto, longe de diminuir, atacava-nos com redobra violência, aumentava o número de doentes, e temíamos que, quando o rio baixasse a podendo dar vau, não nos restasse outra alternativa senão abandonar um segundo grupo de moribundos à mercê do inimigo impiedoso....(TAUNAY, op., cit. p.221)

A cólera também teve o impulso violento de ir contra o inimigo, cólera no sentido de raiva, fúria e indignação e apesar de tanta zanga houve momentos de pena para com dos doentes que ficaram para trás e que poderiam cair em mãos inimigas, daí surge o sentimento de compaixão pelos amigos de farda que honram até o último momento a obrigação moral determinada pela pátria-mãe.

Deixamos ao inimigo mais de 130 coléricos, com a proteção de um mero apelo à sua generosidade, por meio destas palavras traçadas em letras graúdas num cartaz fixado a um tronco: ‘’Compaixão para os coléricos!’’(TAUNAY, op., cit. p.210, grifo meu)

Todo esse relato de Taunay e as provações vividas pelo corpo de exército brasileiro no sertão de Mato Grosso possibilitam rever fatos que se transformam em acontecimentos da memória nacional, tomados por lugar de significação e do estabelecimento da identidade nacional.

Observo em A Retirada da Laguna, a busca pelo sentido de amor à pátria e toda a construção de imagem de um Brasil interior que se queria mais conhecido para os propósitos imperiais.

Ao estudar as impressões de sertão de uma região desconhecida e quase despovoada, como foi relatada, percebe-se que o sertão pode ser muito mais do que uma região sem vida e distante. Para Taunay o sertão de Mato Grosso, desconhecido por estar longe dos domínios da Corte, tinha duas impressões: de esplendor e de dor. De um lado, o maravilhamento pela beleza plástica que conseguiu gravar em suas descrições e narrativas; por outro, a destruição e a morte de um grupo de jovens levados pelo sentimento pátrio e pela necessidade de demonstrar o valor humano mais caro no momento de construção da idéia de Nação. Para demonstrar essa ambigüidade de sentimentos, Taunay cria tipos ficcionais com base na observação atenta, na anotação e na capacidade de gravar na memória a experiência vivida. Mostra o sertanejo como um homem forte e com pensamento rápido, sem deixar aquela característica de homem ignorante e rude. Desta forma, embora não totalmente, procura imprimir certo afastamento do estereótipo que historicamente, marcou a literatura dita ‘regional’. Por isso, sua literatura contribui para criar novas formas de pensar o interior do Brasil, fornecendo material para compreensão do local e da cultura dos povos a partir de outras perspectivas.

No relato, Taunay traduz os princípios de heroísmo a partir das provações vividas pelos homens durante a guerra. A Retirada da Laguna representa para o leitor a capacidade de superação do brasileiro que só sucumbe com a morte. Assim, observam-se também os discursos que mostram como cada país se comporta diante de tal fato.

Dessa forma, conclui-se que o estudo realizado sobre a obra, é uma forma de refletir sobre o diário de viagem como fonte literária. Os registros das experiências vivenciais contribuem para pensar a forma como se construíram imagens de um Brasil desconhecido e a possibilidade que tal obra nos dá de compreender sentimentos de amor à pátria e seus desdobramentos, que são fundamentais para reconhecer os processos identitários nacionais.

http://www.antroposmoderno.com/antro-articulo.php?id_articulo=1321

A Retirada da Laguna – épico às avessas

Rodrigo Gurgel Alfredo Maria Adriano d'Escragnolle Taunay, o visconde de Taunay, ao analisar seu romance Inocência, foi um dândi. Filho de uma das mais ilustres famílias instaladas no Rio de Janeiro durante o Segundo Império, na qual se uniram artistas e descendentes da aristocracia francesa, ele protagonizou dois episódios, dentre outros, que muito revelam da sua personalidade, ambos salientados por Sergio Medeiros na introdução que escreveu para sua tradução de A Retirada da Laguna (Editora Cia. das

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Letras) e nos excertos, das Memórias do visconde, que selecionou para o Apêndice do mesmo volume. No primeiro episódio, depois de entrar para o Exército, em 1861, Taunay se recusa a cortar os cabelos à escovinha, preferindo mantê-los longos e encaracolados, no que foi protegido por um superior. Anos mais tarde, durante a tomada de Peribebuí, no final da Guerra do Paraguai – quando ocupava o posto de secretário do estado-maior do conde d’Eu, substituto de Caxias no comando das forças brasileiras –, ao invadirem uma das residências de Solano López, o escritor é avisado de que há um piano no local. Descoberto o instrumento, nada o impede de gozar seu prazer:

Achei, com efeito, o desejado instrumento, bastante bom e afinado até, e pus-me logo a tocar, embora triste espetáculo ao lado me ficasse: o cadáver de infeliz paraguaio, morto durante o bombardeio da manhã, por uma granada que furara o teto da casa e lhe arrebentara bem em cima.

O desgraçado estava sem cabeça. Não foi senão depois de bastante tempo que pude fazer remover dali, aquela fúnebre [companhia], tocando, diletante, com grande ardor, talvez mais de duas horas seguidamente.

Assim festejei a tomada de Peribebuí.

Foi esse janota, contudo – em meio aos ataques dos paraguaios, preocupava-se apenas com a possibilidade de uma bala lhe arrancar um braço, o que o impediria de tocar piano, ou marcar seu rosto com uma cicatriz “honrosa, decerto, mas contrária às regras da plástica” –, quem escreveu A Retirada da Laguna, belo e instigante relato de guerra, obra bem superior ao seu mais famoso romance, Inocência, e que se iguala à melhor prosa surgida no Brasil até hoje.

Pergunto-me, aliás, por qual motivo A Retirada da Laguna não é lido na maioria das escolas. Será porque a obra foi escrita em francês? Ora, a língua, neste caso, revelou-se uma escolha feliz, pois libertou Taunay da necessidade, que muitos autores desgraçadamente impõem a si mesmos, de só escrever como literatos em dia com as influências estéticas de seu tempo. Assim, livre dessas injunções estúpidas, o escritor libertou-se também do pernosticismo e da verbosidade – fartamente encontrados emInocência –, transformando sua narrativa de guerra numa obra magnífica, retrato da campanha militar fadada desde o início ao fracasso, mas empreendida com aquele patriotismo típico “dos crimes e das loucuras das nacionalidades”, apenas para lembrar Euclides da Cunha, ele também denunciante dos abusos cometidos pelo Estado brasileiro.

Mas talvez haja outra razão para A Retirada da Laguna não ser adotado nos colégios: na opinião de muitos, o fato de o livro não ser obra de ficção justifica o desprezo. À parte a obscenidade desse critério – que, se obedecido ao pé da letra, repeliria tambémOs sertões –, típico da nossa época confusa, na qual há um evidente deficit de discernimento entre os educadores, devemos salientar que o livro de Taunay – apesar de ele o considerar uma “narrativa que não aspira a outros méritos senão aqueles dos próprios fatos relatados” – está longe de se prender exclusivamente à verdade histórica: rápida leitura da bibliografia mais atualizada sobre a Guerra do Paraguai mostra que sobram licenças poéticas na obra.

Haveria, ainda, um terceiro motivo? Creio que sim. Por que mostrar aos jovens um acontecimento da história nacional destituído de glória? Por que lembrar a página que só não está esquecida graças a Taunay? O silêncio não seria um comportamento mais adequado? E, quem sabe, a vergonha?

É exatamente a partir dessas perguntas que devemos começar nossa análise de A Retirada da Laguna. Limites físicos e éticos

Que ninguém espere de Taunay um livro semelhante ao Servidão e grandeza militares, de Alfred de Vigny, ou ao Anábase, de Xenofonte. Nosso autor não está interessado em novelar fatos da campanha contra o Paraguai – e, muito menos, em escrever um épico no qual ele próprio ocupe papel predominante. Não. O jovem engenheiro militar e futuro visconde não organiza as forças do exército brasileiro, não assume o comando da retaguarda na expedição de volta ao Brasil, não propõe rotas, não pratica gestos de coragem – e não ouviremos os soldados gritando, com alegria, “Thálassa! Thálassa!” (“O mar! O mar!”, palavras imortalizadas por Xenofonte, ao descrever a reação dos gregos quando, depois de longa peregrinação, chegam ao Ponto Euxino).

Em A Retirada da Laguna, não estamos no mundo dos heróis. Os soldados brasileiros tornam-se sombras quando comparados a Aquiles ou Ájax – e jamais obedecem, portanto, à breve e perfeita definição do herói que Emil Staiger nos deixou: “A honra o obriga e o prazer da luta o atrai”. As cenas de nobreza são raras; a possibilidade de realizar gestos marcantes, heroicos, nem sempre é aproveitada; e se há grandeza de caráter ou audácia, essas qualidades estão restritas praticamente a um só personagem: o guia José Francisco Lopes.

Épico às avessas, narrativa em permanente tensão, A Retirada da Laguna desmistifica a guerra, pois vencer, nesse caso, significou apenas continuar vivendo. Salvo as primeiras e inexpressivas escaramuças contra os paraguaios, não há conquistas a exaltar. Depois de 35 dias de recuo da tropa, a glória alcançada pelos que restaram – apenas setecentos sobreviveram, dos 1.680 que haviam invadido o Paraguai – resume-se à resistência contra os ataques do inimigo e ao prêmio de não terem sucumbido à fome, aos sucessivos incêndios provocados pelos paraguaios e ao cólera.

Ninguém disputa o prestígio do comando nessa história. Nenhum soldado merecerá um epíteto capaz de imortalizá-lo. E se nos basearmos no depoimento de Taunay, Carlos de Moraes Camisão, o comandante da coluna, deveria ser lembrado como Camisão, o Indeciso – ou, se preferirem um qualificativo mais literário, Camisão, o Perplexo.

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De fato, é surpreendente que Taunay, apesar de jovem e fiel às tradições de sua família, merecedora da amizade pessoal de Pedro II, não tenha se vergado ao patriotismo cego ou à exaltação de uma campanha na qual os principais personagens são os pântanos, as doenças, a estafa e a escassez de víveres. Ao preferir nos deixar um relato intenso sobre os limites físicos e éticos do homem posto à prova em situações extremas, e sobre a perturbadora forma de loucura que se repete em todas as guerras, tomou uma decisão digna de ser celebrada.

Ironia e sobriedade

Os augúrios não se mostraram bons desde o começo. Quando as Memórias de Taunay foram publicadas – postumamente, em 1948, cinquenta anos após sua morte, conforme o que determinara –, ficamos conhecendo esta passagem, ocorrida enquanto a tropa, a caminho do Mato Grosso, permaneceu dois meses em Campinas, no Estado de São Paulo:

Findo o banquete, às onze horas da noite, déramos um passeio [...], e os ditos de espírito mais ou menos felizes não cessavam, sobrelevando a todos o velho Prudente Pires Monteiro, cuja verve era inesgotável.

Nisso cruzou os céus brilhantíssimo bólide, que iluminou de repente todos os espaços. Houve um instante de estupefação. – Lá vai a expedição de Mato Grosso! – gritou o Rosen com o seu entusiasmo escandinavo.

Palavras não eram ditas, e o bólide arrebentou com um jato de luz enorme, a que sucederam intensíssimas trevas, deixando a todos nós conturbados e apreensivos.

A desorganização, somada ao completo desconhecimento das características geográficas das regiões a serem percorridas, fizeram com que as piores profecias se cumprissem. Antes mesmo de adentrar território paraguaio, quase dois anos depois da partida do Rio de Janeiro, percorridos mais de 2 mil quilômetros a pé, com as peças de artilharia puxadas por bois, um terço dos homens já estava morto:

Destituído de qualquer valor estratégico, o acampamento de Coxim encontrava-se pelo menos a uma altitude que lhe garantia salubridade. Contudo, quando a enchente tomou os arredores e o isolou, a tropa sofreu ali cruéis privações, inclusive fome. Após longas hesitações, foi necessário, enfim, aventurarmo-nos pelos pântanos pestilentos situados ao pé da serra; a coluna ficou exposta inicialmente às febres, e uma das primeiras vítimas foi seu infeliz chefe, que expirou às margens do rio Negro; em seguida, arrastou-se depois penosamente até o povoado de Miranda.

Ali, uma epidemia climatérica de um novo tipo, a paralisia reflexa [beribéri], continuou a dizimar a tropa. O que avulta, portanto, desde o início, são as decisões sempre contrárias ao bom senso.

Quando o coronel Carlos de Moraes Camisão assume o comando, as procrastinações ganham características dramáticas, pois o militar carrega o estigma da covardia. Além do falatório que colocava em dúvida sua capacidade de iniciativa, um soneto circulara à época da invasão paraguaia de Corumbá, denunciando a pusilanimidade não apenas de Camisão, mas de todos os chefes militares. O coronel, portanto, guiava-se não só pelo dever, mas pelo desejo de, a qualquer custo, limpar sua honra. Sem recursos para a ofensiva, pressionado pelas ordens superiores, dividido, estrangulado pelos dilemas que, ao invés de reforçarem as possíveis qualidades do estrategista, transformam-no numa figura hesitante e angustiada, Camisão é o próprio anti-herói:

Um comentário depreciativo feito a seu respeito, e que lhe tinha sido imprudentemente repetido, contribuiu mais ainda para torná-lo inflexível e surdo a tudo que parecesse desviá-lo do projeto de invasão. Certamente não ignorava as dificuldades, mas via os soldados cheios de entusiasmo e prontos para a luta; gabava-se de estar realizando com eles grandes feitos; adestrava-os nas manobras com exercícios assíduos; sob seu comando, eram realizados combates simulados nos quais a artilharia desempenhava seu ruidoso papel, e desta agitação geral resultava um arrebatamento de que ele próprio compartilhava; contudo, às vezes também se mostrava consciente de que só dispunha da vanguarda de um exército em operação; era obrigado a aceitar este fato. Suas hesitações ressurgiam então, e, quando chegava o dia fixado por ele próprio para a partida, encontrava sempre algum pretexto para adiá-la, mesmo que devesse invocar razões que rejeitara na véspera. Ora afirmava, em ofício ao ministro, que nada poderia empreender sem cavalaria, ora afirmava que podia dispensá-la: dolorosos combates entre a autoridade da razão serena e as aspirações de seu orgulho ferido.

Com esse estilo sóbrio, Taunay nos mostrará não apenas suas habilidades de psicologista, mas como os governos, sob o manto do patriotismo, podem conduzir seus cidadãos à humilhação e à morte. De fato, a lógica será derrotada do começo ao fim da campanha. Quando se anuncia a partida para Nioaque, a tropa não dispõe de gado suficiente para se alimentar. Transposta uma légua, novamente acampados, Camisão acorda de seu torpor e mostra-se “agitado”, pois, como previsto, não há carne para as refeições. Poucos dias depois, advertidos pela retaguarda de que esta não teria como garantir o abastecimento da coluna, a crise se instala. Reunida a comissão de engenheiros, três membros descrevem a grave situação em que se encontram e vaticinam a retirada; outros dois invocam a glória e o devotamento de “filhos do Brasil”. Contudo, enquanto as partes discutem, o inesperado ocorre:

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Neste instante sobreveio um daqueles incidentes que, intrometendo-se no arranjo das coisas humanas, determinam-lhes o curso. Instado por nosso comandante, o infatigável Lopes tinha ido buscar em sua fazenda um novo rebanho, que adentrou o acampamento não sem tumulto, respondendo o mugido dos animais aos clamores dos peões e vaqueiros.

A decisão, enfim, estava tomada, tal como outrora em Roma suspendiam-se ou aceleravam-se expedições militares de acordo com os gemidos das vítimas ou os gritos dos frangos sagrados.

A ironia do último parágrafo não se resume a uma saborosa decisão de estilo, mas personifica a censura tardia de Taunay, pois, a partir daquele momento, graças aos berros de algumas reses, centenas de homens estavam condenados à morte.

Os absurdos, entretanto, não param por aí. No primeiro encontro com o inimigo, quando a tropa acredita que investirá sobre os paraguaios, Camisão não dá a ordem, e os dois exércitos ficam se observando a pouca distância. A cavalaria paraguaia, depois de alguns minutos, desmonta e senta-se à sombra de algumas árvores. A narrativa de Taunay, irônica, é plena de justificada indignação, principalmente depois que o autor conhece o motivo da paralisia brasileira:

Provinha de seus [de Camisão] próprios escrúpulos: estávamos na Sexta-Feira Santa, e a iniciativa de uma ação sangrenta no dia da morte do Salvador repugnava a um coração religioso como o do nosso chefe, escravo de todos os nobres sentimentos e propenso a exagerá-los até a contradição [...].

As relações de Taunay com Camisão, apesar de cordiais, foram decepcionantes para o jovem. Ao chegarem ao rio Apa, fronteira entre Brasil e Paraguai, o superior decide fazer o gesto que, acredita, marcará a campanha. Taunay, implacável, não só descreve a cena como se risse à socapa, mas omite dos leitores, afirmando o contrário, exatamente o que Camisão pretendia deixar gravado nos anais da história:

O coronel, ao chegar, pediu que lhe dessem um pouco de água, da própria água do Apa, e, ou porque vagas reminiscências históricas a respeito de rios famosos despertassem em sua memória, ou porque, após seu espírito passar por tantas agitações, experimentasse ele uma espécie de excitação febril, disse sorrindo: “Vejamos a que horas provamos a água deste rio”. Olhou o relógio, bebeu e acrescentou num tom jovial: “Gostaria que este incidente ficasse consignado na história da expedição, se algum dia ela for escrita”. Parecia desejar que lhe prometêssemos isto; em nome de todos, o próprio autor deste relato comprometeu-se a assim proceder, e o cumpre hoje com uma exatidão religiosa, pois a morte, da qual nosso chefe estava tão próximo, sabe, por sua própria natureza enigmática, enobrecer tudo, absolver tudo e tudo consagrar.

Sim, o período termina com o perdão de Taunay ao superior que falhou – e seguirá falhando – inúmeras vezes, mas ao início jocoso ele acrescenta um ludíbrio, sua delicada vingança: afinal, a que horas o coronel provou a água do seu Rubicão?

Quando dizemos que o estilo de Taunay é sóbrio, queremos salientar seu surpreendente desprezo da retórica, dos floreios, dos atavios da linguagem, tão comuns nos seus romances e em toda a literatura brasileira. Compare-se, por exemplo, o primeiro capítulo de Inocência, no qual nosso autor se desdobra em tecer ornamentos vazios para descrever a natureza, com a narração desta tempestade:

A causa do atraso foi uma horrível tempestade que caiu naquela mesma noite, às nove horas. As torrentes de chuva logo transformaram o solo em pântanos lamacentos. Estes fenômenos terríveis não são raros no Paraguai, mas até então não havíamos presenciado nada parecido. Os relâmpagos que se cruzavam sem cessar, os raios que caíam de todos os lados, o vento furioso que arrancava tendas e barracas, compunham um caos de horrores a que se mesclavam de quando em quando os tiros de fuzil de nossas sentinelas contra os diabólicos inimigos, que não deixavam, mesmo naquele momento, de nos assediar: noite interminável em que para nós tudo era imagem de destruição. À mercê de todas as cóleras da natureza, sem abrigo nem refúgios, os soldados seminus, escorrendo água, imersos até a cintura em correntes capazes de arrastá-los, ainda se preocupavam em não deixar molhar os cartuchos. A manhã encontrou-nos nesta situação.

Nada escapa à observação de Taunay. Ele poderia ter deixado à posteridade um relatório frio e impessoal, em que os homens fossem peças desprezíveis na estratégia comandada por um monarca sapientíssimo, mas preferiu entregar-se, com equilíbrio, à emoção inspirada pelo desastre:

Caía a noite; havia um magnífico luar, cuja calma contrastava com os clarões sinistros de alguns finais de incêndios que erravam pelo campo. Quando nossos clarins deram afinal o toque de descansar, também os dos paraguaios soaram ao longe, como um eco zombeteiro. Tudo parecia insultar nossas mazelas: a fome trouxe-nos todas as suas torturas, e seu triste prelúdio é um desânimo que aniquila coragem e vontade. Carecíamos de tudo, o despojamento era completo: vestíamos todos farrapos, oficiais e soldados, mas a privação de calçados era, em razão do hábito, muito menos penosa a estes do que aos primeiros, cujos pés estavam inchados e feridos.

A este trecho de lirismo e derrota podemos acrescentar vários outros, cada um com sua simetria – ou seu horror – particular: [...] Ia-se abater um boi estafado, quase moribundo: ao redor do infeliz animal um círculo já se formara, cada qual aguardando com ansiedade os jatos de sangue, alguns para recolhê-lo numa vasilha e levá-lo, outros para bebê-lo ali mesmo, e, no momento oportuno, todos se lançaram a um só tempo, os mais distantes disputando com os mais próximos. Isto sucedia todos os dias. O

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açougueiro mal tinha tempo de cortar o animal e de certo modo já era preciso arrancar-lhes os pedaços das mãos para levá-los ao local de distribuição. Os restos, as vísceras, o próprio couro, tudo era despedaçado no ato e prontamente devorado, mal assado ou mal cozido [...].

Mas Taunay também sabe descrever cenas menos grandiosas, menos dramáticas, nas quais alguns poucos gestos, contidos, podem exprimir toda uma tradição familiar. A esposa e os filhos do guia José Francisco Lopes haviam sido sequestrados pelos paraguaios. Um dos jovens, contudo, escapa e chega ao acampamento brasileiro. Horas mais tarde, quando o pai retorna com um dos batalhões, o encontro acontece:

Nosso guia havia sido informado da grande novidade ao passar pelas sentinelas avançadas. Pálido, olhos úmidos, aproximou-se do filho, que o aguardava respeitosamente, o chapéu na mão. Sem descer do cavalo, o velho estendeu-lhe a mão direita, que o filho beijou; depois, abençoou-o e seguiu sem dizer uma única palavra.

Esse fazendeiro austero – que Taunay compara ao personagem Olho de Falcão, do romance O último dos moicanos –, verdadeiro patriarca, desempenha papel-chave na narrativa. Herói falível, movido mais pelo desejo de libertar seus familiares do que pelo patriotismo, sem ele a tropa jamais concluiria a retirada. Atacado pelo cólera, Lopes agarra-se à vida até cumprir o que prometera: levar a coluna de volta ao território brasileiro e abrigá-la em segurança na sua própria fazenda. Assim que se aproximam da sede da propriedade, o velho guia, seguindo os antigos guerreiros épicos, parte rumo ao Hades.

Morte em nada semelhante à do coronel Camisão, melancólica, destituída de proeza ou enlevo:

Em 29 de maio ficou evidente que chegara o fim do coronel. Várias vezes o sofrimento vencera a dignidade que ele tanto prezava: “Como dizem que a água é mortal”, exclamava, “deem-me um pouco, porque estou morrendo logo!”. E caiu num estado de torpor e sonolência; seu corpo cobriu-se de manchas violáceas. Às sete e meia, num esforço supremo, levantou-se do couro em que estava deitado, apoiou-se no capitão Lago e perguntou-lhe onde estava a coluna, repetindo mais uma vez que a salvara; depois, voltando os olhos já vidrados para seu ordenança, exclamou em tom de comando: “Salvador, dê-me a espada e o revólver”. Tentou afivelar o cinturão, mas, caindo, murmurou: “Que as forças prossigam; irei descansar”. E expirou.

Desalento e esperança

Voltemos, por um instante, às perguntas que deixamos sem resposta. Se não há glória n’A Retirada da Laguna, por que sua leitura seria proveitosa? Porque a desdita é o fado dos homens na Terra e, os gregos nos ensinaram, há algo de essencialmente positivo em toda tragédia: quando a vida nos coloca frente à frente com sua face mais terrível, acordamos para a nossa própria insignificância, o que não nos deve levar à resignação, mas à consciência, infelizmente muitas vezes fortuita, de que o mal não deve prevalecer sobre o bem, ainda que este pareça ser o costume. Como disse Virgílio, fiel leitor de Homero,

Felix qui potuit rerum cognoscere causas, atque metus omnis et inexorabile fatum

subiecit pedibus strepitumque Acherontis avari.

[Feliz aquele que pôde conhecer as causas das coisas e sujeitou aos seus pés os medos todos e o fado inexorável e o estrépito do voraz Aqueronte.]

Em termos de literatura, não, não se trata de uma catarse – experiência sempre duvidosa –, mas de acordar para a realidade na qual vivemos: em meio à perfídia e à loucura, se há lugar para o desalento, há também – e principalmente – para a esperança. E não pode haver maior e melhor ambiguidade do que esta, a de um jovem escritor, testemunha de ódios, misérias e desacertos, que utiliza as piores características humanas para criar um clássico da literatura.

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O TEATRO DE MACHADO DE ASSIS: LEITURA OU REPRESENTAÇÃO?

Prof. Ms. Marcelo José da SILVAi (FACINOR, PG/UEL)

Resumo:

O período de 1850 – 1870 representa um dos momentos mais fecundos do teatro brasileiro. Nesse contexto, Machado de Assis colabora com a publicação de diversas obras dramáticas, apesar da crítica de Quintino Bocaiúva de que o drama machadiano destinava-se à leitura e não a representação (comentário que ecoa na crítica contemporânea). Nesse artigo, analisamos a peça Quase ministro, ancorados em Carlson (1997) a fim de destacar elementos cênicos presentes na peça.

Palavras-chave: Machado de Assis, literatura dramática, Quase ministro. Introdução

O período de 1850 a 1870 marca um dos momentos de maior pujança do teatro brasileiro. Se não pela qualidade das obras produzidas, ao menos pela quantidade de autores que se dedicaram a ele. Tendo José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo como as principais figuras do teatro, escritores como Quintino Bocaiúva, Aquiles Varejão, França Júnior, Agrário de Meneses, Pinheiro Guimarães dentre outros, também se dedicaram ao mundo dos espetáculos. Como se não bastasse a profusão de escritores, a produção dramática foi ainda favorecida pela receptividade por parte da audiência e pela atmosfera intelectual e literária do período. Dentre os autores que se dedicaram à dramaturgia destacamos aqui a presença do escritor Joaquim Maria Machado de Assis. Aclamado por Veríssimo (s/d, s/n) como “a mais alta expressão do nosso gênero literário, a mais eminente figura da nossa literatura”, Machado de Assis relaciona-se ao gênero dramático como censor teatral, crítico do Conservatório Dramático Brasileiro e comediógrafo, sendo a última atividade nosso interesse neste artigo.

Influenciado pelo momento e pelo gosto que nutria pelo teatro, Machado de Assis inicia sua produção dramática com a publicação da comédia Hoje avental, amanhã luva (1860), seguida pela peça Desencantos (1861). Em 1862, duas peças de sua autoria, O caminho da porta e O protocolo, foram encenadas pelo Ateneu Dramático, enquanto a peça Quase ministro foi representada em um sarau lítero-musical, em 22 de novembro, na casa de alguns amigos na rua da Quitanda.

Em 1863 é lançado O Teatro de Machado de Assis contendo as duas peças encenadas no ano anterior pelo Ateneu, acompanhadas pela carta enviada por Machado de Assis à Quintino Bocaiúva e da resposta obtida. Na carta, Machado de Assis comenta seu fazer teatral e pede que o amigo Bocaiúva avalie as peças escritas. Na epistola é possível conhecer sua pretensão em relação à dramaturgia: a alta comédia, ao teatro como fonte moralizadora que se contrapunha ao teatro como diversão das massas:

Tenho o teatro por coisa muito séria, e as minhas forças por coisa muito insuficiente; penso que as qualidades necessárias ao autor dramático desenvolvem- se e apuram-se com o tempo e o trabalho; cuido que é melhor tatear para achar; é o que procurei e procuro fazer. Caminhar destes simples grupos de cenas – à comédia de maior alcance, onde o estudo dos caracteres seja consciencioso e acurado, onde a observação da sociedade se case ao conhecimento prático das condições do gênero – eis uma ambição própria de ânimo juvenil, e que tenho a imodéstia de confessar. (ASSIS, 2003 p. 7)

Em resposta à missiva, Bocaiúva o faz imparcialmente, como pede o amigo. Iniciando com frases de incentivo, passa em seguida com franqueza e lealdade a expor suas considerações e classifica as peças de Machado de Assis como “ensaio”, “experiência”, “ginástica de estilo”, “valiosas como artefatos literários” e finaliza informando que “a obra dramática de Machado de Assis, é para ser lida e não representada” (ASSIS, 2003, p.126-7). O veredicto de Bocaiúva sela o destino do comediógrafo Machado de Assis. O juízo do amigo e crítico ecoa em Veríssimo ao afirmar que a obra dramática machadiana é “excelente como literatura amena para deleitar-nos uma hora, mas sem a ação, a força, a emoção que deve trazer a obra teatral” (s/d, s/n) e repercute na crítica atual.

Apesar do julgamento considerado rigoroso, Machado de Assis deu continuidade à sua produção dramática em que pode exercitar seu estilo refinado e apesar da crítica que aponta em suas peças um investimento retórico maior que o investimento cênico, ele produziu obras que encantam pelo fino trato dispensado à ironia e ao riso, seguindo sua tendência natural ao humor que pode ser percebido em alguns de seus contos e romances posteriores.

Nas palavras de Veríssimo o reconhecimento pela perseverança e dedicação de Machado ao gênero dramático: “ao contrário de alguns notáveis escritores nossos que começaram pelas suas melhores obras e como que nelas se esgotaram, tem Machado de Assis uma marcha ascendente. Cada obra sua é um progresso sobre a anterior” (s/d, s/n).

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Pontes (1960, p.13) por sua vez afirma: “Machado atingiu seu momento melhor na metade da carreira de dramaturgo, tendo repetido erros das primeiras peças nas últimas, sem contudo ter voltado ao primarismo inicial”.

Na classificação feita por Pontes, o grupo que compõe o ponto alto da dramaturgia machadiana é composto pelas peças Quase ministro e Lição de botânica. Não nos propomos neste trabalho discorrer sobre a classificação apresentada. Ao analisarmos a comédia Quase ministro, procuraremos, de acordo com Carlson (1997), explicitar elementos do drama, especificamente da comédia, que juntamente com as características do autor compõem a peça.

A obra Quase Ministro e a carpintaria teatral

A peça, composta em um ato, foi escrita para ser representada por oito personagens. Luciano Martins, o deputado e provável futuro ministro; Doutor Silveira, o primo aficionado por cavalos; José Pacheco, o escritor e pseudo analista político; Carlos Bastos, o poeta; Mateus, o inventor; Luis Pereira, o pretenso compadre; Muller, o diretor de teatro lírico; e Agapito, amigo de Martins e Silveira e intermediador de Muller. Como informa o autor, a peça foi escrita para ser representada entre amigos em um sarau, o que explica a ausência de uma personagem feminina.

Resumidamente a obra apresenta a seguinte fábula: Com a morte de um dos ocupantes do ministério corre o boato na cidade de que Martins seria convidado para ocupar a vaga existente. Silveira é o primeiro a chegar à casa do primo, a princípio, para falar sobre a queda que sofreu enquanto cavalgava. Martins o informa sobre os rumores e mostra certeza da efetivação do convite. Em seguida surge Pacheco, o escritor, e anuncia que a situação que se apresenta já estava prevista em um de seus artigos escritos anteriormente. Após breve discussão sobre política, ele sugere que Martins aceite o convite e se propõe a escrever sobre o momento, tornando-se assim o porta-voz do novo ministro.

Bastos, o poeta filho das musas, chega trazendo uma ode em homenagem à Martins. Ao saber que Pacheco voltará para o jantar convida-se a permanecer para que possa oferecer a sobremesa literária, a leitura da ode. Martins ainda recebe Mateus que lhe apresenta sua mais recente invenção. Uma peça de artilharia, em suas palavras, extremamente importante para o país. Apesar de ter recebido propostas de outros países, diz ter resolvido, por amor à pátria, a materializar seu inventono Brasil e tudo o que precisa é de um pequeno subsídio, e para isso conta com a ajuda do novo ministro.

Martins, cansado de esperar pela formalização do convite resolve sair em busca de informações. Silveira fica na casa do primo com os visitantes e recebe Pereira. A intenção deste é oferecer um jantar em homenagem ao novo ministro. No decorrer da conversa revela que na ocasião oferecerá um de seus filhos para que Martins o batize, tornando-se deste modo, compadre do ministro.

Os últimos a chegarem são Agapito e Müller. A Agapito, na condição de eleitor do partido de Martins e namorado da prima-dona do espetáculo, cumpre a função de apresentar Müller que busca uma subvenção oficial junto ao novo ministro para a montagem de um espetáculo lírico. O desfecho da trama ocorre com o retorno de Martins e o anúncio de que os rumores não passavam de boatos e que o novo ministério já estava composto, sem sua presença. Ao saber disso todos se vão à procura do novo ministro, ficando apenas Martins e Silveira que comentam o oportunismo dos demais.

Apesar de ter sido acusado de escrever para o teatro uma comédia centrada na linguagem, do mesmo modo que as peças francesas de Alfred Musset, Quase ministro não depende apenas das qualidades literárias de Machado de Assis para ter seu valor reconhecido. Ao procedermos à análise da comédia em questão, verificamos a preocupação do autor com a carpintaria do teatro, com a construção cênica, com indicações precisas das falas e localização dos personagens, indicando que almejava ver suas peças no tablado.

A esse respeito, gostaríamos de enfatizar a preocupação com o número de personagens em cena na peça analisada. Segundo Horácio (68-5 a.C.) (apud CARLSON, 1997, p.23), em sua obra Ars Poética, o número de personagens que falam não deve ultrapassar três no palco ao mesmo tempo. Coincidentemente, ou cuidadosamente estudado, já que essa peça foi escrita para ser representada, até a cena X, Machado segue a risca essa indicação. Nas cenas que se seguem o número de personagens aumenta, porém, ele encontra respaldo na afirmação de Charles Estierne: (apud CARLSON, 1997, p.67) “ninguém poderia permanecer em cena se não precisasse falar ou ouvir”. É justamente essa a função das personagens no tablado, pois neste momento, a peça se encaminha para seu desfecho, o momento onde todos saberão da escolha do novo ministério e que Martins não fará parte dele.

O desenho dos caracteres, ou a preocupação com a maneira como os personagens são descritos, é outro fator coincidente com a teoria do teatro. Na cena I, nas primeiras falas de Silveira, a platéia já é capaz de perceber o seu caráter irônico, a sua tendência ao exagero, sua paixão por cavalos e seu senso de oportunismo, embora ainda bastante velado:

SILVEIRA (entrando) – Primo Martins, abraça este ressuscitado! (ASSIS, 2003, p.239) SILVEIRA – Ah! Mas as comoções... E as folhas amanhã contando o fato: “DESASTRE. – Ontem, o jovem e estimado Dr. Silveira Borges, primo do talentoso deputado Luciano Alberto Martins, escapou de morrer... etc.” Só isto! (ASSIS, 2003, p.240-1)

Os tipos utilizados para compor a peça são os mesmos encontrados no fragmento conhecido como Tractatus coislinianus de autoria e época incertas. Segundo o tractatus, a comédia é compreendida por “bufões (atores encarregados

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de fazer rir o público com mímicas, caretas e trejeitos), eirons (personagens irônicos) e impostores, caracterizando-se a linguagem como comum e popular”. Na cena II, no diálogo entre Martins, o quase ministro, Pacheco, o escritor e Silveira, o primo, têm-se a explicitação do impostor e do irônico:

PACHECO - Então que me diz à situação? Que me diz à Situação? Eu já previa isto. Não sei se teve a bondade de ler uns artigos meus assinados – Armand Carrel. Tudo o que acontece hoje está lá anunciado. Leia-os, e verá. Não sei se os leu?

MARTINS – Tenho uma vaga idéia.

PACHECO – Ah! Pois então há de lembrar-se de um dele, creio que é o IV, não é o V. Pois nesse artigo está previsto o que acontece hoje, tim tim por tim tim.

SILVEIRA – Então V. S. é profeta?

PACHECO – Em política ser lógico é ser profeta.(...) (ASSIS, 2003, p.243-4)

Pacheco, com o intuito de demonstrar conhecimento no campo político, faz freqüentes menções aos seus artigos, em especial ao artigo V. Martins, como se soubesse da não existência de tais artigos, concorda que irá lê-los. “Estas coisas devem ser lidas muitas vezes”. (ASSIS, 2003, p.246)

Entretanto, a ironia explícita nesta cena fica a cargo do primo do suposto futuro ministro, que após ouvir elogios de Pacheco em relação aos seus próprios artigos que mais se assemelham a previsões mediúnicas a respeito de política e economia, dispara:

SILVEIRA – (...) Por que não se propõe a uma cadeira no parlamento? PACHECO – Tenho meu amor próprio, espero que ma ofereçam.

SILVEIRA – Talvez receiem ofende-lo. PACHECO – Ofender-me.

SILVEIRA – Sim, a sua modéstia...

PACHECO – Ah! Modesto sou, mas não ficarei zangado.

SILVEIRA – Se lhe oferecerem uma cadeira... está bom. Eu também não; nem ninguém. Mas acho que se devia propor. Fazer um manifesto, juntar os seus artigos, sem faltar o V. (ASSIS, 2003, p.247-8).

Do mesmo modo, nas cenas subseqüentes esses tipos se farão presentes. Na cena IV, ao ouvir Bastos, o poeta apresenta-se como filho das musas. Silveira, que para livrar seu primo Martins de Pacheco na cena anterior utilizou do expediente de introduzir na conversa entre os dois o seu assunto preferido, cavalos, sente que não poderá fazer o mesmo agora, já que por ser primo das musas, o poeta deve conhecer Pégaso.

Utilizando um discurso poético, impregnado da cultura clássica greco-latina, Bastos ao se oferecer para a leitura uma ode escrita em homenagem a Martins nos revela seu caráter bajulador.

BASTOS - (...) É que, na verdade, quando um ministério sobe ao poder, há razões para acreditar que fará a felicidade da nação. Mas nenhum a fez; este há de ser exceção: V. Exa. está nele e há de obrar de modo que mereça as bênçãos do futuro. Ah! Os poetas são um tanto profetas. (ASSIS, 2003. p.257)

Na cena VII, o embate se dá entre Mateus, o inventor, e Martins. Da mesma forma que os anteriores, Mateus glorifica Martins e ressalta de modo exagerado suas qualidades. Objetivando um privilégio pela sua invenção, informa:

MATEUS – (...) Devo acrescentar que alguns ingleses, alemães e americanos, que, não sei como, souberam deste invento, já me propuseram, ou a venda dele, ou uma carta de naturalização nos respectivos países, mas eu amo a minha pátria e os meus ministros. (ASSIS, 2003, p.262)

A ironia fica novamente a cargo de Silveira, que na expectativa de apressar a saída de Mateus após um pedante esclarecimento sobre sua invenção, pergunta: “Então V. S. inventou alguma coisa? Não foi a pólvora?” (ASSIS, 2003, p.264), obviamente isso dito diante de uma platéia formada por pessoas cultas, despertaria o mais franco riso.

Em seguida é a vez de Pereira oferecer um jantar ao “ministro mais simpático”. Qual seria o objetivo de Pereira? Logo após a oferenda, o motivo é revelado. A cada novo ministério, um filho

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entrelinhas.

A crítica desenvolvida por Machado, representando a relação entre o homem público e o poder que o cargo lhe confere, não se restringe àqueles que se aproximam para obter benefícios pessoais diretos, atinge também aqueles que se colocam na posição de mediador. É o que ocorre com Agapito ao apresentar o Sr. Müller, solicitante de uma subvenção do ministério para contratar o teatro lírico. No decorrer do discurso, após apresentadas as razões para demonstrar a necessidade de um teatro lírico, sua real motivação é descoberta.

SILVEIRA – Não contesto nenhuma dessas razões, mas meu primo, se for efetivamente ministro, não aceitará semelhante proposta.

AGAPITO – Deve aceitar, mais ainda, se és meu amigo, deves interceder pelo Sr. Muller. SILVEIRA – Por quê?

AGAPITO – (baixo a Silveira) Filho, eu namoro a prima-dona. (alto) Se me perguntarem quem é a prima-dona, não saberei responder, é um anjo e um diabo; é a mulher que resume as duas naturezas, mas a mulher perfeita, completa, única. Que olhos! Que porte! Que donaire! Que pé! Que voz!

SILVEIRA – Também a voz? (ASSIS, 2003, p.270-1)

É necessário ainda em nossa análise chamar a atenção para Martins, o suposto futuro ministro. Sua conduta, se não repreensível, pode ser ao menos classificada como duvidosa. Apesar de tratar- se do personagem ao redor do qual os demais se movimentam, ele não escapa à crítica de Machado. Se a princípio pensamos nos demais personagens como aproveitadores a espera de uma oportunidade, aqueles que querem tirar proveito da situação, Martins representa o político que se coloca em posição de receber elogios e bajulação. Mais que retratar os interesseiros atraídos pelo poder, Machado tece uma crítica ao sistema de poder que envolve as relações políticas na República.

No percurso do personagem, na cena I, quando Silveira lhe pergunta se “estava ministro”, ele responde “quase”, e ainda alimenta as expectativas do primo demonstrando acreditar que seria convidado. Na cena II, quando Pacheco lhe pergunta se fora chamado para o ministério, simplesmente responde: “não estou decidido”, como se a decisão devesse partir dele. Essa pretensa ‘indecisão’ ainda aparece outras vezes na peça. Ora, se ainda não havia sido convidado seria mais digno dizer a verdade, entretanto, ele age durante toda a peça como se o convite fosse algo concreto. A conduta de Martins é a de quem está certo de que o convite será efetivado.

O inesperado, a contradição de algo que é dado como certo, a certeza não concretizada, causando a decepção, é catalogada no Tractatus (apud CARLSON, 1977, p.22) como motivo de riso na comédia. Nesse sentido, a distância entre comédia e tragédia se estreita. O que poderia ser considerado trágico na peça é retratado de maneira cômica através do exagero do trágico, tornando assim a comédia uma paródia da tragédia. Visão essa compartilhada por Affonso Romano de Sant’Anna em sua obra paródia, paráfrase & cia.

Para finalizarmos os tipos de caracteres mencionados, convocamos a imagem do bufão. E como bufanismos estamos considerando as tiradas que permeiam a peça, quando o autor indica como deve proceder o ator, seguida de uma frase geralmente cômica, que se a cargo de alguém que lhe possa representar a altura das qualidades machadianas revelar-se-ão fortemente risíveis, como as presentes nos excertos abaixo, dentre outros:

SILVEIRA – (à parte) Que maçante! (ASSIS, 2003, p.246) (...) MARTINS – (baixo a Silveira) Será tolo ou velhaco?

SILVEIRA – (baixo) Uma e outra coisa. (ASSIS, 2003, p.247) (...) BASTOS – Pois não! (à parte) Que remédio! (ASSIS, 2003, p.259) (...)

MARTINS – Muito obrigado. (à parte) É sempre a mesma cantilena. (ASSIS, 2003, p.260) Em Quase ministro, a leitura superficial e desatenta da peça pode deixar o leitor com uma idéia equivocada a respeito da obra e levá-lo a reproduzir o mesmo julgamento de Faria (ASSIS, 2003, p. XXII) em relação a obra: “a ação da comédia limita-se a esse desfile de tipos ridículos”.

Se a princípio a ação parece despretensiosa e pouco desenvolvida, as palavras enredadas nos discursos das personagens construirão uma ação paralela cuja manifestação dar-se-á no nível textual. Deste modo a língua, o chiste, o brilho do raciocínio rápido, o uso de homônimos, garrulice e ambigüidades constituirão o motivo do riso, compensando de certo modo as ações rarefeitas.

O ponto alto da comédia em questão é percebido nas cenas finais. Com Silveira fazendo as honras da casa enquanto Martins sai em busca de notícias sobre a pasta que esperava assumir no novo ministério, temos no palco a

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reunião de todos os especuladores. Não são poupados elogios a Martins, e tudo é feito de forma exagerada, proporcionando um contraste com a ação preparada pelo autor para a próxima cena. Com a chegada de Martins, os bajuladores se agitam e ele já na condição de ex-futuro ministro transmite a notícia, mantendo em sua fala a expectativa criada. Ao invés de dizer diretamente que não era o ministro, pronuncia a frase: “Agradeço a simpatia; mas o boato que correu hoje, desde manhã, é falso... O ministério está completo sem mim” (ASSIS, 2003, p.277).

Não se afastando de seu conceito de teatro com função moralizadora, cujo objetivo é ao mesmo tempo agradar e ser útil, Machado apresenta uma pequena história de fundo moral onde abertamente tece críticas à sociedade que acolhe e ao mesmo tempo afasta de acordo com seus interesses e finaliza a peça com Silveira resumindo o acontecido.

MARTINS – Que me dizes a isto?

SILVEIRA – Que hei de dizer! Estava a surgir... dobraram o joelho: repararam que era uma aurora boreal, voltaram a costas e lá se vão em busca do sol... São especuladores!

MARTINS – Deus te livre destes e de outros... (ASSIS, 2003, p.278-9)

A peça Quase ministro se encaixa nas características do teatro realista da segunda metade do século XIX ao abordar um tema relacionado à realidade. Com a utilização de uma linguagem política Machado discute a sordidez dos interesses da sociedade, satiriza o poder do homem publico e critica o comportamento burguês e das instituições sociais com pinceladas de moralidade.

Conclusão

Caracterizar a obra dramática de Machado de Assis como “provérbios franceses” por dar mais importância ao diálogo em detrimento à ação, não significa que não seja representável. Cícero (106-

43 a.C.) segundo Carlson (1997, p.22) buscava estimular o riso nos ouvintes por meio da linguagem. Diante de tantas características próprias do teatro que estão presentes na obra Quase ministro, e estendendo essas descobertas às demais peças, não se pode afirmar que a dramaturgia de Machado de Assis destina-se a leitura e deva ficar restrita ao âmbito da literatura dramática. A exemplo de O protocolo e O caminho da porta, a obra Quase ministro já passou pela prova de palco com sinais de ter sido bem recebida pelo público.

Alfred Musset, poeta francês, apontado pela crítica como modelo de teatro para Machado, é o mais distinto representante do que ficou conhecido como “provérbios franceses”, e nem por isso suas peças deixaram de ser representadas ou o autor deixou de ser reconhecido como talvez o dramaturgo mais significante da primeira metade do século XIX.

Críticas negativas a obra dramática machadiana somente são justificáveis se comparadas com suas obras posteriores em outros gêneros. Através de sua crítica teatral podemos conhecer o que ele almejava para o teatro, em especial ao teatro brasileiro, e verificar que ele não se distanciou de seus objetivos e do que foi produzido no campo do teatro em sua época. Estender a crítica feita por Quintino Bocaiúva a toda a obra dramática de Machado de Assis demonstra superficialidade e imparcialidade de julgamento.

i Marcelo José da SILVA, Prof. Ms.

Faculdade Intermunicipal do Noroeste do Paraná (FACINOR) Doutorando na Universidade Estadual de Londrina marcelojosilva@ig.com.br

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AMOR - CLARICE LISPECTOR

ANÁLISE DO CONTO "AMOR" DE CLARICE LISPECTOR

Jean Pires de Azevedo Gonçalves INTRODUÇÃO

O conto selecionado para a elaboração deste trabalho foi “Amor”, texto que compõe a obra “Laços de Família”, de autoria da consagrada escritora Clarice Lispector. O texto em questão parece bastante apropriado para tecer algumas associações preliminares a respeito da biografia da autora, pois a personagem protagonista, Ana, é uma mulher, casada, mãe de família, dona de casa, situação por vezes similar à da própria Clarice. Não seria então de todo equivocado especular se a autora tenha se inspirado, ao escrever o conto “Amor”, em reflexões suscitadas de sua experiência cotidiana. Porém, seria igualmente equivocado estabelecer uma ligação direta entre o conto e a vida da autora. Na verdade, trata-se de uma obra de ficção e por isso a liberdade artística deve ser preservada até mesmo para não comprometer o valor literário indiscutível de toda a produção literária de Clarice Lispector que é independente da vida pessoal da escritora. O livro “Laços de família” foi publicado nos anos de 1960, e evidentemente está imbuído de características que marcaram os meados do século XX. Talvez, as nuances culturais mais notáveis deste período foram as influências da filosofia existencialista, cuja reflexão filosófica apoiava-se na busca de um sentido autêntico da vida, pressupondo-se a precedência da existência, marcada inerentemente pela liberdade, em relação às formas sociais impostas pela cotidianidade. A procura desta autenticidade implicava uma renúncia aos arquétipos de conduta pré-estabelecidos por determinações culturais e político-econômicas da sociedade e a aceitação incondicional da liberdade, da qual todos os seres humanos estavam condenados. Todavia, conforme ditava o existencialismo, tomar as rédeas da existência exigia responsabilidade e um compromisso moral sujeito a embates profundos com valores definidos socialmente e, consequentemente, a represálias vindas do status quo. Dito de outro modo, assumir o sentido da vida, o da liberdade, não seria tarefa fácil, e, por isso, a verdadeira existência, livre de dissimulações e artificialismos, deveria provocar mal-estar, vertigem, náusea etc. Neste contexto, e feitas estas considerações pertinentes ao conto “Amor” e ao cenário cultural da época, é possível pensar uma influência da filosofia formulada por Sartre, Simone de Beauvoir e outros, na obra de Clarice, embora fosse temerário considerar a autora como adepta do existencialismo. A verdade é que filosofia existencialista marcou profundamente a geração de intelectuais contemporâneos de Clarice. A própria autora chegou a declarar as seguintes palavras: “Passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente” (Clarice Lispector). Neste sentido, alguns aspectos biográficos são importantes. Clarice nasceu na Ucrânia, em 1920, de origem de família judia, radicalizou-se no Brasil ainda quando era criança. Em 1943, forma-se na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, e casa-se, em 44, com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem tem dois filhos, Pedro e Paulo. No ano de 1959, separa-se de Maury, algo impensável para a época. Fato que demonstra que Clarice não aceitava as imposições sociais por mero conformismo, e estava disposta a enfrentar os preconceitos de seu tempo. Interpretamos que sua produção literária é bem um reflexo de sua vida. Autora de uma vasta obra que vai desde romances, contos, crônicas e até literatura infantil, Clarice é uma das escritoras mais renomadas e importantes da literatura brasileira.

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a) O conto “Amor” segue o estilo de Clarice Lispector, tendo por características principais paradoxos, metáforas e epifanias. Trata-se de mostrar de como uma realidade banal e aparentemente estável podem aflorar situações altamente perturbadoras e que põe em xeque a normalidade da vida cotidiana, ao desestruturar toda a aparente estabilidade anterior. A vida da protagonista Ana poderia ser descrita como igual à realidade de tantas outras mulheres – provavelmente da classe média alta – de seu tempo. Sua realidade é preenchida por referenciais de uma típica dona de casa que divide seu tempo em cuidar dos filhos, do marido, das compras, da cozinha, do fogão, da cortinas, do tanque de lavar roupa, etc. Clarice compara tal atividade a de um lavrador. “Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas” (p. 19). A metáfora do lavrador sinaliza muito bem a posição central que ocupa Ana em cultivar ou administrar o tempo que ata os laços de sua família. Neste sentido, assim como o trabalho do agricultor é o de preparar o terreno, esperar a estação apropriada, lançar as sementes, aguardar o germinar, regar e colher, assim também é o papel que a sociedade espera de uma boa dona de casa e que, ao que tudo indica, Ana cumpre muito bem. De fato, e se nos fosse permitido uma pequena incursão pela psicanálise, até mesmo a sua libido que poderia ser sublimada em dotes artísticos, no caso de Ana, é sublimado na arte dos afazeres doméstico. Assim, toda uma suposta potencialidade insondável é abafada e canalizada para fins em que o lar é o centro. Pode se dizer até que a vida da personagem é invertida, como numa metonímia, quando a parte de ser uma dona de casa toma lugar do todo, isto é, do seu ser (seu passado, presente e futuro). Porém, assim como na agricultura há estações do ano em que um frio rigoroso ou uma chuva de granizo podem pôr a plantação a perder, Ana também tem suas horas perigosas. Estas horas ou momentos – o período da tarde – são justamente quando os filhos estão na escola, o marido, no trabalho, e a casa, limpa. Neste sentido, se em sua vida não houvesse espaço para ser preenchido com algum cuidado da casa, perderia todo o sentido. E isso ocorria nestas horas da tarde, em que ela busca completar com atividades que denotam significados sempre referentes à família. Logo, a rotina de Ana resume-se a um ciclo determinado por funções relacionadas ao zelo do lar, da família.

Numa bela tarde, esta realidade é posta em cheque quando Ana volta das compras e toma um bonde para chegar à sua casa. No bonde, a figura de um homem cego mascando chicletes abala todo o equilíbrio tênue de seu mundo, estritamente organizado, e deflagra uma situação perturbadora, que provoca um terrível horror e um irremediável mal-estar diante da suspensão de seus referenciais. De repente, o mundo exterior se torna ameaçador e estranho, hostil. Situação que vai crescendo como uma bola de neve, e é tão constrangedora que o saco de tricô, onde estavam colocadas as compras, caem do colo de Ana com a arrancada do bonde, quebrando os ovos. Esta metáfora, dos ovos, é extremamente importante no conto, pois é um momento que simboliza uma ruptura, uma quebra da normalidade do pequeno mundo de Ana. O ovo é a sua vida: um mundo fechado, em si mesmado, mole por dentro e envolto por uma casca dura, mas frágil, quebradiça; e aquilo que poderia ter nascido fora abortado. Ao se partir a casca, como uma caixa de Pandora, o mundo real se mostra extremamente complexo, onde seres mais estranhos surgem inesperadamente, levando Ana a uma crise existencial. Esta metáfora será retomada quando Ana se depara diante de “ostras”, prato que ela apreciava. Ana sente um fascínio pela ostra ao mesmo tempo em que tem nojo. Pode-se inferir daí que o mundo imerso em que a protagonista está submersa lhe causa repugnância porque foi recalcado violentamente e nada mais é que o mundo exterior. Paradoxo! Este mundo é seu próprio espelho: a assustadora realidade externa. Quando o ovo cai e se quebra e a clara e gema escorrem para fora, é como se o mundo de Ana viesse à tona, à luz do dia. Como se descobrisse a si mesma. “Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava” (p. 27). De certa forma, há uma transformação ou um renascimento, ao atingir esse ponto crítico de ruptura. “O que chamava de crise viera afinal” (p. 23). Ou seja, a vida real, a verdade crua, entra com veemência em seu ser. “Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse” (p.23). Nesta tarde, não pôde evitar: explodiu. Sem dúvida, a “descoberta” – através do cego e dos acontecimentos da tarde – de que o mundo não era perfeito e artificial, mas repleto de dor e de angústia, lançou-a diante de sua própria existência, ou, para falar como o filósofo, da condição de ser-no-mundo. Aqui a referência ao existencialismo não poderia ser mais explicita. Vejamos: “E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca” (p. 23). Imersa nesta náusea, Ana perde o ponto e acaba num jardim. Novamente, o jardim representa uma metáfora: a do mundo que está fora da crosta. Nele habitam seres que não são familiares e estranhos, como o gato, pardais, aranhas; além disso, frutas pretas, doce como o mel, mancham o banco, o chão, com uma cor roxa. Há uma beleza nesse terrível mundo exterior. O mundo fora da crosta é semelhante a uma noite, liquida e suja, mas saborosa, doce. “A crueza do mundo era tranquila” (p. 25). Aliás, mundo que era esmagado se ousasse invadir a pureza, o asseio, o esmero de seu lar, como a insignificante formiga na cozinha limpa. A vida, sem a segurança dos referenciais cuidadosamente preservados em sua rotina, causa repulsa, pois se assemelha a insetos e aranhas e tem a consistência gosmenta, apodrecida. No entanto, é sensível, apetitoso, comestível. “Ao mesmo tempo que imaginário – era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas” (p. 25). A metáfora do gosto é muito presente no conto e pode ser interpretada como a substância que alimenta e que é deliciosa, apesar de insuportável. Todavia, este mundo está

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