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Pesquisa, ensino e assistência em dor orofacial

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Academic year: 2021

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Dor orofacial:

evolução e Desafios à oDontologia

José Tadeu Tesseroli de Siqueira

Sintoma ou doença? Eis o dilema da dor. Aprendemos que é um sintoma, mas parece que também pode ser uma doença. O enfoque principal durante a formação acadêmica é a dor aguda e pouco se discute sobre a dor crônica. Este capítulo discorre sobre esses temas, iniciando com o papel da cavidade oral e da face na história da dor humana. Também revê alguns tópicos históricos, como o panorama que envolvia os tratamentos dentários até o início do século XX e como o sofrimento vivido na extração dentária, por exemplo, motivou a procura, pelos dentistas, de alternativas para reduzir a dor do tratamento. Assim foi descoberta a anestesia por Horace Wells, em 1844. Esse dentista foi o primeiro anestesista da história e, curiosamente, ele foi seu próprio paciente. É possível que tenha percebido o impacto de sua descoberta sobre a humanidade, afinal, as cirurgias passaram a ser indolores. Após essa conquista extraordinária do controle da dor operatória, ainda persistia o enigma de algumas dores, como a dor fantasma do amputado. A dor continuou sendo alvo de estudo da comunidade científica internacional, que gradativamente mostrou novas e interessantes descobertas capazes de influenciar profissionais de diferentes áreas e países. Entre nós, essas mudanças ocorreram inicialmente em centros multidisciplinares de ensino público e em hospitais universitários, contribuindo para formar uma nova imagem sobre dor, particularmente sobre a dor crônica. O curso de Odontologia Hospitalar, de onde vem a experiência deste livro, contribuiu para incluir o cirurgião-dentista na equipe multidisciplinar e trouxe novos desafios, como a importância de internato e residência hospitalar em odontologia. No Brasil, o representante mais antigo da odontologia foi, possivelmente, Tiradentes, que, independentemente do seu saber científico, destacou-se pela sua participação social e capacidade de liderança. Em 1929, a dor em odontologia foi discutida em um congresso latino-americano realizado no Rio de Janeiro, durante o qual o professor Henrique Carlos Carpenter mostrou profundo conhecimento sobre o complexo fenômeno da dor e discutiu as incompreensíveis manifestações clínicas das odontalgias e neuralgias faciais. Ele solicitava que a Saúde Pública autorizasse o uso de medicamentos internos (analgésicos) pelos dentistas brasileiros. Isso demorou, mas aconteceu. Porém, hoje temos os medicamentos, mas continuamos nos defrontando com dores faciais persistentes. Do que precisamos ainda? Nesta década, houve a aprovação da especialidade Disfunção Temporomandibular e Dor Orofacial pelo Conselho Federal de Odontologia, fato que realça a importância e complexidade das dores faciais e, ao mesmo tempo, aumenta nossa responsabilidade nessa complexa área. Vivemos, portanto, novos tempos e desafios.

capítulo 1

pesquisa, ensino e assistência

em dor orofacial

1

Introdução

sintoma, ou a própria doença. Eis o enigma da dor!

Como diferenciar?

A complexidade desta tarefa é reforçada por ser a dor subjetiva, em qualquer uma das situações acima descritas, e por nem sempre estar acompanhada de sinais visíveis que esclareçam sua origem, como feridas, alteração de cor ou aumento de volume da área envolvida.

A linguagem básica da dor é o elo comum que une todos os profissionais da área da saúde, ou qualquer pessoa interessada nesse atraente e complexo assunto.

A

dor é corriqueiramente ensinada como sendo o

mais comum e relevante dos sintomas. Assim, so-mos treinados a procurar a doença que a provoca – pode ser uma cárie dentária, um tumor, uma fratura ou outra de inúmeras afecções possíveis e descritas na Classifica-ção Internacional de Doenças (CID-10). Mais recentemente descobriu-se que a dor pode ser a própria doença Assim, na clínica, ao aplicarmos os conceitos de Semiologia, descobrimos que temos de fazê-lo a partir da queixa co-mum, dor, que pode ser um mero, ou patognomônico,

p

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| siqueir a & teix eir

Além disso, a palavra “dor” tem um signifi cado que não se restringe apenas às áreas da saúde, estando presente também na fi losofi a, nas artes e na teologia. “Dor” faz parte do cotidiano da vida. Portanto, sempre é hora de reciclar conhecimentos e de discutir na prática clínica o signifi cado de ter dor.

por que estudar e tratar a dor?

Segundo o médico e professor John Bonica,1 um dos

pioneiros em aplicar na clínica o princípio da multidis-ciplinaridade no tratamento da dor:

como sempre, o tratamento da dor permanece uma das mais importantes preocupações da sociedade, e uma preocupação específi ca da comunidade científi ca e dos profi ssionais da saúde. esta importância deriva do fato de que dor aguda ou crônica afl ige milhões de pessoas anualmente; e em muitos pacientes com dores crônicas, e uma signifi cativa parcela daqueles com dor aguda, ela é inadequadamente aliviada. consequente­ mente dor é a mais frequente causa de sofrimento e incapacidade que compromete seriamente a qualidade de vida de milhões de pessoas ao redor do mundo. nos eua, 15 a 20% da população tem dor aguda, e entre 25 e 30% tem dor crônica.1

A sensação de que entendemos dor, por considerá-la sintoma comum para o diagnóstico de muitas doenças, não preenche toda a dimensão em que ela se expressa em cada paciente e no mesmo paciente ao longo dos anos. Também não explica a razão pela qual muitos pa-cientes não têm alívio da dor a despeito dos tratamen-tos recebidos e, tampouco, explica as alterações que ocorrem no indivíduo ou na sua vida, como alterações emocionais, depressão, distúrbios do sono ou perda do emprego.

Além disso, as “sequelas” da dor independem da extensão da lesão ou do local do corpo humano onde ela se instalou, não isentando, portanto, nenhum pro-fi ssional da área da saúde da sua responsabilidade de, no mínimo, entender a complexidade de tal fenômeno. Uma vez ciente de que a dor tem múltiplas dimensões, ele evita comentários depreciativos perante a queixa do paciente, pode agir mais rapidamente no sentido de compreender e encaminhar casos complexos de dor e, principalmente, não se prende ao mito de que a dor é “só” um sintoma e, portanto, deve ter uma relação de causa-efeito para poder ser explicada.

dor: a importância da patologia e da semiologia

Como a dor é, antes de mais nada, um sintoma, ela exige conhecimento de Patologia. Desta, decor-re a necessidade de sólida formação em Semiologia, indispensável ao diagnóstico das doenças. Tommasi2

lembra que:

um bom conhecimento da patologia nos permite com­ preender as doenças que afl igem nossos semelhantes, valoriza os sinais e sintomas e permite uma adequada formulação de hipóteses diagnósticas. enfi m, de uma forma ou de outra, é no conhecimento da patologia e semiologia que se fundamenta a identifi cação da doen­ ça – o diagnóstico.

Tratar dor exige sólida formação em Patologia e Se-miologia, mas não basta conhecer os componentes físi-cos da doença, ou a condição que a provoca. Existe um outro lado, ainda mal compreendido pela maioria dos profi ssionais da área da saúde, que engloba os aspectos emocional, cognitivo e comportamental dos pacientes com doenças crônicas; além disso, também existe o am-biente familiar, as condições de trabalho e o aspecto so-cial. Sem dúvida, a dor deve ser avaliada em um amplo aspecto biopsicossocial. As dores orofaciais não fogem a essa regra.3

É no conhecimento da patologia e da semiologia que se fundamenta a identifi cação da doença: o diagnóstico.

dor: experiência e metáfora com conteúdo biopsicossocial

O que fazer quando a dor, além de ser o sintoma, parece ser também a própria doença? Além do indis-pensável conhecimento de Patologia e Semiologia, teremos de ir além e conhecer melhor as repercussões da dor no organismo como um todo, tanto física como afetivamente. Afi nal, o quanto conhecemos dos nossos pacientes para compreendermos suas queixas de dor? Existem inúmeras variáveis que os tornam únicos, de tal forma que podemos ter a mesma doença, ou “dor”, em indivíduos diferentes, mas obter respostas distintas de tratamentos idênticos.4 Devemos estar preparados

para compreendê-los um pouco mais em suas queixas e angústias. “A resposta à dor nem sempre decorre da extensão da lesão, mas em grande parte do susto que a mesma causa ao doente”. Esta frase, pronunciada em 1996 por Wall,5 um dos pais das teorias modernas sobre

os mecanismos da dor, ajuda-nos a lembrar que tratamos doentes e não simplesmente um dente, uma articulação ou uma mera estrutura orgânica.

Por essa razão, a defi nição mais difundida sobre dor (leia a seguir) foi encontrada após longas discussões e ainda hoje é motivo de controvérsias na International Association for the Study of Pain (IASP).6 O capítulo

brasileiro da IASP chama-se Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED).

Dor: é uma experiência sensitiva e emocional desagra­ dável que resulta em dano real ou potencial dos teci­ dos, ou é descrita em tais termos.6

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Dores

orof

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Nessa definição da IASP fica evidente a necessidade de compreender que dor é uma experiência cuja per-cepção é individual e multidimensional no cérebro da pessoa que dela sofre.7 A persistência da dor ao longo

do tempo merece atenção, bem como o entendimen-to da doença envolvida. Portanentendimen-to, é importante reco-nhecer duas dimensões simultâneas ao avaliar e tratar pacientes com dor: duração da dor (tempo) e doença envolvida (patologia).8 Daí surgiram os conceitos de

dor aguda e dor crônica, que se baseiam principalmen-te no principalmen-tempo de dor, embora existam outras caracprincipalmen-terís- caracterís-ticas que as distinguem. A dor crônica é um fenômeno que se mostrou diferente da dor aguda.6 Este é o grande

desafio atual: conhecer o fenômeno da dor crônica vai além de conhecer o estímulo que a provoca ou que a iniciou.

A dor aguda está relacionada claramente à lesão tecidual e ao processo inflamatório, enquanto na dor crônica não existe uma clara ligação entre ela e a lesão tecidual ou a inflamação, e ela persiste após a cicatriza-ção do tecidual, quando há história de traumatismo ou lesão.9 Na dor aguda, a dor é o sintoma de uma doença

ou lesão tecidual, enquanto na dor crônica a própria dor pode ser a doença.10 A compreensão dessas

dife-renças levou à adoção de um modelo conceptual de dor que considere sua multidimensionalidade: o modelo biopsicossocial.

Tal modelo entende a dor como uma verdadeira metáfora e a lesão tecidual pode ser só o fator inicial; entretanto, sua percepção no cérebro depende de um sistema nervoso apto e susceptível a mudanças neuro-plásticas; ela gera sofrimento, e o doente, que nem sem-pre encontra alívio e explicação para os seus sintomas, acaba passando por muitas consultas, profissionais ou tratamentos diferentes.11 Esse é o todo da dor,

princi-palmente da persistente ou crônica, na qual o risco de iatrogenia é muito alto.

Modelo conceitual, multidimensional de dor:11 noci­ cepção, dor, sofrimento e comportamento doloroso.

Boca / face: onde as expressões de dor e sofrimento se misturam

A face, incluindo a boca, forma uma região extrema-mente complexa do ponto de vista anatomofisiológico. Ela é indispensável para as atividades cotidianas, como o comer e o falar, e é, em parte, a essência da nossa humanidade, pois é através dela que transmitimos sen-timentos e emoções: ela nos permite sorrir; ver, beijar, cheirar, saborear e também chorar pela dor.12

A importância dessas estruturas para a sobrevivência é realçada pelos diversos reflexos que permitem a inte-gração das suas funções, além da enorme e reconhecida sensibilidade decorrente da sua extensa representação no córtex cerebral.13 Muitas doen ças manifestam-se

primária ou secundariamente nos tecidos da cavidade

oral; ela também sedia uma microbiota abundante, com a qual vive em simbiose, e auxilia na defesa do orga-nismo. O risco de infecções na cavidade oral aumenta a possibilidade de bacteremia, com risco iminente aos indivíduos susceptíveis à infecção, como é o caso de pa-cientes susceptíveis à endocardite bacteriana.14

Curiosamente, a face é exatamente a região do cor-po humano em que ocorre a expressão do sofrimento. E o sofrimento, expresso pelo choro, mistura-se, inúmeras vezes, com a própria fonte física da dor. Assim, dores comuns aos seres humanos, como de dente, de gargan-ta, das aftas fazem parte do nosso cotidiano e, de tão conhecidas, nem sempre são entendidas e, muitas vezes, causam surpresa quando se manifestam de forma atípi-ca. Dessas dores, as de dente assumem, seguramente, posição de liderança quando se fala em dores orofaciais, seja pelas suas características fisipatológicas, pelo so-frimento que causam ou pela variabilidade clínica com que se manifestam. A história humana documentou, em um misto de comédia e drama, o sofrimento causado por essa dor corriqueira. Artistas europeus, entre outros, deixaram quadros que mostram como eram realizados os tratamentos dentários na Europa, os quais certamen-te não eram muito diferencertamen-tes dos realizados no Brasil dos tempos de Tiradentes (Fig. 1.1 A-B).

Figura 1.1. o cirurgião­barbeiro

na europa e no Brasil. a. Qua­ dro do período renascentista que mostra o ambiente em que eram realizadas as extrações dentárias e realça o sofrimento decorrente dessa pequena cirurgia. observe a “mesa cirúrgica” e o desespero do doente; aparentemente seu braço direito está amarrado enquanto o esquerdo está contido pelo “sa­ camuelas”, “el sacamuelas” de theodor romboutus (1597­1637), e exposto no Museu do prado em Madrid. B. curiosamente, o primeiro “sacamuelas” brasileiro co­ nhecido foi Joaquim José da silva Xavier, o tiradentes. esse apelido virou nome próprio, e uma breve consulta à internet mostra cerca de 3,8 milhões de possibilidades de consulta, em diversos idiomas. fonte: ojugas.15

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siqueir

a

&

teix

eir dor em odontologIa: da dor de dente

ao soFrImento do tratamento

O sofrimento milenar, físico e emocional, causado pela dor de dente, ou pelo seu tratamento, criou mitos que se estendem até os nossos dias, pois, ao contrário do que ocorria em cirurgias de braços ou pernas, o uso de anestesia por isquemia ou por congelamento não era, evidentemente, capaz de permitir a extração indolor de dentes. Com um agravante, pois possivelmente o nú-mero de extrações dentárias foi superior ao de outros procedimentos cirúrgicos na área médica ao longo da história humana, e antes da descoberta da anestesia.16

a descoberta da anestesia geral

Dor e sofrimento tornaram-se o terror de pacientes que necessitavam tratar seus dentes. Assim, a anestesia geral foi a grande descoberta, ao possibilitar tratamen-tos e cirurgias dentárias indolores. A descoberta e o uso pioneiro do óxido nitroso e do éter como agentes anestésicos em cirurgia pelos cirurgiões-dentistas Ho-race Wells e Thomas Green Morton, respectivamen-te, é, sem dúvida, um marco na História da odontologia e do controle da dor.17 Esses homens são lembrados

como grandes benfeitores da humanidade e, curiosa-mente, foram os primeiros anestesistas (Fig. 1.2 A-B). Outro grande avanço no controle e tratamento da dor em odontologia ocorreu com a descoberta da anestesia

a

B

Figura 1.2. luta contra a dor. a. Horace Wells é considerado

o descobridor da anestesia. B. esta pintura do século XiX retra­ ta a histórica cirurgia realizada sob anestesia geral (éter), apli­ cada por outro cirurgião­den­ tista, thomas green Morton. É um marco histórico no combate à dor humana que identifica a participação da odontologia no controle da dor. “primeira operação em éter”, Biblioteca Médica de Boston, 1881, por robert c. Hinckley.

fonte: rings.17

local, que mudou o panorama do atendimento odon-tológico, possibilitando o controle da dor transope-ratória, a agilização dos tratamentos e a redução do sofrimento deles decorrentes. Ela é a grande arma do cirurgião-dentista no combate à dor, embora necessite ser mais explorada como método eficiente de diagnós-tico em dor difusa, ou referida, e também como método de tratamento da dor crônica. A angústia, a ansiedade e o medo gerados pelos tratamentos odontológicos são típicos constituintes do componente afetivo-compor-tamental que acompanha a dor aguda ou a expectativa de dor.18,19 A tranquilização do paciente, juntamente

com o controle da dor operatória, reduz a resposta neurovegetativa, típica do estresse emocional, que é, inegavelmente, um dos responsáveis por algumas das mais frequentes complicações sistêmicas observadas em cirurgias ou procedimentos odontológicos. Um bom exemplo é a lipotimia.

dor em odontologia no Brasil

No Brasil, relatos pioneiros sobre a dificuldade no diagnóstico e tratamento da dor em odontologia en-contram-se nos livros do III Congresso Odontológico Latino-Americano, realizado no Rio de Janeiro, em 1929.20 Naquela oportunidade o Professor Henrique

Carlos Carpenter, da Faculdade de Odontologia da Universidade do Rio de Janeiro, relatava as dificulda-des clínicas para o diagnóstico das neuralgias faciais e realçava o papel do dente como fonte de dor referida à cabeça. O professor apresentou em sua tese ilustrações publicadas pelo médico neurologista inglês Dr. Henry Head, que mostravam mapas de irradiação das dores de dente à cabeça e ao pescoço (Fig. 1.3 A-B). Esses ma-pas foram publicados originalmente em 1894 e o Dr. Carpenter realçava sua importância clínica, a despeito das controvérsias, pois esse conhecimento era raro na época. Além disso, ele citava as alterações emocionais comuns aos pacientes com dor. Justificava, dessa forma, a necessidade de receitar medicamentos de uso interno para o tratamento da dor em odontologia – procedimen-to que era vedado ao cirurgião-den tista pelo Ministério da Saúde Pública do Brasil.20 “A Dôr em Odontologia”

foi a These por ele apresentada.

Passaram-se 22 anos até o cirurgião-dentista brasi-leiro ter reconhecido esse direito legal de prescrever medicamentos de uso interno. Porém, só mais tarde, no dia 24 de agosto de 1966, é que o exercício profissional da odontologia foi regulamentado no Brasil pela lei de Nº 5.081, a mesma que vigora nos dias atuais. Lon-ga jornada para regulamentar uma profissão que exerce atividade clínica, faz diagnóstico, realiza tratamentos e atua em doenças de origem local e sistêmica ocorridas na boca; isso sem considerar as diferentes interações médicas e os níveis de complexidade que atualmente também são exigências do Sistema Único de Saúde Bra-sileiro – SUS.3 Crenças, ignorância e ambições pessoais

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Dores

orof

aciais

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Figura 1.3. os esquemas exemplificam os mapas de espalhamento

das dores dentais à cabeça e ao pescoço (foram descritos pelo neurologista inglês Dr. Henry Head e publicados originalmente em 1894). os mapas faciais das dores de dente fazem parte da these apresentada pelo professor Henrique carlos carpenter, que dis­ correu sobre o tema “a Dôr em odontologia”, em que relatava sua experiência com essas intrigantes dores e reinvidicava aos órgãos públicos brasileiros a liberação da prescrição de medicamentos de uso interno pelo cirurgião­dentista brasileiro.

fonte: carpenter.20 foram e são motivações que insistem em minimizar o

papel da Patologia Dental na Patologia Geral. Feliz-mente esse panorama está mudando gradual Feliz-mente no Brasil.

dor na Face: Integrando a Boca ao corpo

Dores desse segmento corpóreo são motivos fre-quentes de procura por atendimento à saúde, tanto mé-dico como odontológico. Entre elas, a dor de dente é a mais comum e provavelmente uma das mais conhecidas da humanidade. Se considerarmos os gastos que envol-vem o tratamento da dor de dente, decorrentes de faltas ao trabalho ou à escola, da necessidade de medicamen-tos ou da adequação dos serviços de saúde pública para

esse atendimento, verificamos que essa dor tem grande impacto sobre o indivíduo, a família e o estado. Além disso, se atualmente a medicina e a ciência lutam para melhorar a qualidade e o tempo de vida das pessoas, estas necessitam de saúde oral compatível com esse ob-jetivo.

Infelizmente, doenças da boca, como a cárie dentá-ria e a doença periodontal, são mais comuns nas popu-lações mais carentes e ainda motivo de preocupação por parte do poder público e de organizações como a Orga-nização Mundial da Saúde (OMS). Se considerarmos os riscos aumentados de morbidade e até de mortalidade das infecções agudas ou crônicas de origem odontogê-nica, então vemos que a dor de dente é a ponta do iceberg de um problema de saúde pública que deve ser enfren-tado com realismo.

As dores de dente representam sintomas agudos de doenças bem conhecidas e comuns, e curiosamente, se assemelham a outras dores que são verdadeiras doenças crônicas que acompanharão o indivíduo que a sente por toda a vida – como é o caso da neuralgia do trigêmeo que, de tão forte, pode levar ao suicídio no desespero das crises.

Junto com câncer de boca, dores irradiadas à face, síndrome da ardência bucal, dor muscular mastigatória e disfunção da articulação temporomandibular (ATM), as dores de dente, típicas e atípicas, representam um universo que pode ser mais bem compreendido na atua-lidade, mas que exige integração de diversas disciplinas para a formação profissional.

dores crônicas da boca e da face

Atualmente, a odontologia defronta-se com outro desafio: o tratamento e o controle das dores crônicas da boca e da face, predominantemente as que envolvem a dinâmica do aparelho mastigatório e aquelas decor-rentes de procedimentos cirúrgicos ou de traumatismos. Nesta área, a odontologia participa ativamente do tra-tamento das dores orofaciais e de muitas cefaleias se-cundárias decorrentes de doenças localizadas na boca ou na face. Estudos epidemiológicos demonstram a alta prevalência das dores orofaciais na população em geral, iniciando pelas dores de dente e estendendo-se às dores musculoesqueléticas do aparelho mastigatório.21-23 No a

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| siqueir a & teix eir Inflamatória x Neuropática Aguda x Crônica DTM ATM Infecções Neuralgias Odontalgias Cefaleias primárias Tumores Dores referidas Sistêmicas Locais

Figura 1.4. Momento histórico atual vivido pela odontologia na

luta contra a dor: o atendimento de pacientes com dores orofa­ ciais crônicas, incluindo dores persistentes orais e faciais, além de cefaleias secundárias originárias do aparelho mastigatório. É a participação do cirurgião­dentista na equipe multidisciplinar de dor. esta cabeça de mulher é parte da escultura “afrodite” do es­ cultor grego praxíteles (330 a.c.), que teve como modelo a cortesã, famosa na época, frineia. a escultura simboliza histórico e revo­ lucionário período na evolução das artes. ela foi escolhida já como símbolo dessa nova fase da odontologia brasileira e mundial, em que a boca é integrada ao corpo, e a dor na face, além de expressar lesão física, também é expressão da pessoa que sofre e do contexto biopsicossocial em que vive.

fonte: grande enciclopédia larousse cultural.26 Brasil, a dor de dente foi apontada por cerca de 40%

dos entrevistados quando perguntados sobre as dores que sentiram.24 Em relação a outras dores, a dor facial

ocorreu em 12% da população estudada, a lombalgia em 41%, as cefaleias em 26%, a dor abdominal em 16% e dor torácica em 12%.25

O cirurgião-dentista, frequentemente, é o primeiro profi ssional procurado por pacientes com dor na boca e deve se preparar para assumir tal responsabilidade. Ela inclui necessidade de diagnóstico preciso e encaminha-mento desses doentes. É a interdisciplinaridade. Como acontece no diagnóstico e prevenção do câncer bucal, o cirurgião-dentista faz parte da linha de frente também no diagnóstico precoce da dor e da prevenção da dor crônica da face, considerando-se que muitos doentes relatam ao especialista longas histórias de tratamentos dentários ou cirurgias orais.

a exemplo do seu papel no diagnóstico e prevenção do câncer bucal, o cirurgião­dentista faz parte da linha de frente no diagnóstico precoce da dor e da prevenção da dor crônica da face, pois, normalmente, é o primeiro profi ssional a ser consultado por doentes com dores faciais. Neste sentido, é indispensável sua participação nas equipes multidisciplinares de dor, particularmente nas queixas relacionadas ao segmento cefálico.

Sem dúvida, um outro papel incorpora-se à atividade profi ssional rotineira do cirurgião-dentista, que é o con-trole e a prevenção da dor crônica da face e de cefaleias secundárias de origem odontológica. Surgem outras ne-cessidades, como adequar o ensino de graduação e de pós-graduação às necessidades clínicas dos pacientes e aprimorar o relacionamento multiprofi ssional responsá-vel. Além disso, no diagnóstico diferencial de cefaleias e dores craniofaciais ou cervicais fi ca mais evidente a necessidade da participação do cirurgião-dentista, que contribui identifi cando e tratando as doenças da boca pertinentes à sua atividade profi ssional.

Este é um momento histórico vivido pela odontologia na batalha contra a dor: o atendimento de pacientes com

dores orofaciais crônicas, incluindo as dores persistentes

orofaciais e as cefaleias secundárias originárias no apare-lho mastigatório. É a participação do cirurgião-dentista na equipe multidisciplinar de dor. A escolha da escultura de Praxíteles, "Afrodite", simboliza este empolgante ins-tante brasileiro da luta contra a dor (Fig. 1.4).

dor oroFacIal / BucoFacIal

Genericamente, a denominação dor orofacial re-fere-se às condições álgicas relacionadas às estruturas da boca e da face propriamente dita. Entretanto, tanto estruturas do crânio como do pescoço também podem causar dores faciais.

De acordo com a Academia Americana de Dor Orofacial,27,28 o campo de atua ção nessa área inclui as

condições álgicas decorrentes dos diferentes tecidos da cabeça e do pescoço, incluindo todas as estruturas que formam a cavidade oral. O diagnóstico diferencial abran-ge grande número de doenças ou afecções que afetam, primária ou secundariamente, esse segmento corpóreo. Portanto, dor orofacial pode ser o principal sintoma das ínúmeras doenças que acometem diretamente as es-truturas orofaciais; mas também pode ser o sintoma de doenças alojadas nas regiões adjacentes da cabeça e do pescoço, ou em regiões mais distantes, como do tórax e do abdome, quando provocam dores referidas. Todas as potenciais fontes de dores orofaciais podem cruzar as fronteiras de muitas disciplinas médicas ou odontológi-cas, o que faz com que a abordagem interdisciplinar seja frequentemente necessária para estabelecer tanto o seu diagnóstico quanto o seu tratamento.29-32

As dores provenientes da boca passaram a receber atenção a partir da segunda metade do século XX, quan-do se iniciou o estuquan-do aprofundaquan-do da quan-dor de dente, de seu tratamento e dos aspectos emocionais envolvidos. É possível que a existência da odontologia como profi s-são independente da medicina causasse a impress-são de que não é uma profi ssão da área da saúde, e que apenas

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conservava e repunha dentes. Esse pensamento ainda existe nos dias atuais. Por outro lado, a responsabili-dade de estudar os dentes permitiu o reconhecimento gradativo e científico de que eles fazem parte do ser vivo e a ele estão incorporados, e as doenças corriquei-ras da boca, como os focos infecciosos odontogênicos e a própria dor de dente têm implicações locais e dis-tantes, e comprometem, evidentemente, a saúde. Além disso, inúmeras doenças sistêmicas podem manifestar-se primária ou secundariamente na boca. O estudo da dor orofacial aproximou inevitavelmente os profissionais de diferentes áreas da saúde, e, com o tempo, percebeu-se a complexidade desse segmento do corpo humano.

O estudo da dor na boca:

Possibilitou o reconhecimento gradativo e

científi-•

co de que os dentes fazem parte do ser vivo e a ele estão incorporados. Doenças corriqueiras da boca, como a cárie e a doença periodontal, têm implica-ções locais e distantes, e comprometem, evidente-mente, a saúde do indivíduo.

Permitiu compreender que nem toda dor de dente é

de origem dentária, pois doenças como a neuralgia do trigêmeo, tumores, leucemia ou a artrite reuma-toide também podem afetar a boca e os dentes. Levou ao estudo das dores da boca e da face,

inte-•

grando a boca ao corpo e contribuindo para integrar profissionais de diferentes áreas da saúde, levando-os a entender melhor os pacientes com dor crônica ou persistente nessa região do corpo.

Em 1974, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos da América reuniu, pela primeira vez, clínicos e cientistas de várias profissões da área da saúde para um significativo simpósio sobre as dores orais e faciais.33 É

grande a multiplicidade de fontes potenciais de dores orofaciais e envolvem os diversos tipos de tecidos que formam essa região. Ver Figura 1.5.

Estudo recente sobre a formação profissional de den-tistas e médicos brasileiros que tratam pacientes com dor crônica na região facial mostrou que os currículos precisam ser uniformizados de modo a contemplar a complexidade da área, pois, independentemente do tra-tamento pertinente a cada especialidade ou profissão, é necessário o reconhecimento das condições álgicas que afetam a cabeça e podem se manifestar como dor orofa-cial.32 Portanto, o atendimento de pacientes com dores

orofaciais indica a necessidade de conhecer, além de Anatomia e Fisiologia, também os aspectos psicológicos envolvidos; obriga a conhecer o diagnóstico diferencial entre condições, síndromes ou doenças que causam dor na região cefálica, incluindo a possibilidade das dores referidas e, finalmente, exige que o profissional, na fase de tratamento, esteja familiarizado com as diferentes terapêuticas existentes, indicações e contraindicações, incluindo formação sólida em farmacologia, fisiotera-pias e abordagem multidisciplinar, quando necessário.34

Ver Quadro 1.1.

Quadro 1.1. Dor orofacial (aguda / crônica)

1. alveolodentárias, destacando-se as odontalgias,

principalmente as difusas e que se manifestam como dor facial ou cefaleias secundárias.

2. musculoesqueléticas, destacando-se as Disfunções

Temporomandibulares (DTM), mas sem esquecer os tumores e as infecções.

3. neuropáticas, são comuns na face e algumas

delas são odontalgias não odontogênicas, como a neuralgia idiopática do trigêmeo. A síndrome da ardência bucal e dor facial atípica também entram neste grupo.

4. neurovasculares, algumas cefaleias manifestam-se

na face, como as cefaleias em salvas. Também são causas de odontalgias não odontogênicas.

5. psiquiátricas/psicológicas, estas são apenas

citadas, porém devem ser consideradas no diagnóstico diferencial.

6. dores referidas à face são condições que podem

indicar risco à vida, como o infarto agudo do miocárdio e o câncer.

dor orofacial: da disfunção da atm à dor crônica

A denominação “dor orofacial” tornou-se popular entre os cirurgiões-dentistas e os profissionais da área da saúde envolvidos no tratamento da dor. Ela é ampla-mente divulgada na literatura científica internacional e inclui o segmento odontológico, no qual se destacam as odontalgias e as históricas disfunções da articulação tem-poromandibular como condições muito prevalentes na população geral.21,30 As disfunções da ATM tornaram-se

tão populares que muitas vezes são usadas praticamente como sinônimo de dor orofacial, o que certamente é

Figura 1.5. Desenho esquemático da cabeça mostrando as

potenciais fontes de dores orofaciais.

Dor orofacial: alveolodentárias musculoesqueléticas neuropáticas neurovasculares psiquiátricas/psicológicas dores referidas

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inadequado, já que o capítulo da dor orofacial engloba, como vimos anteriormente, grande variedade de condi-ções álgicas. Estudos clínicos com dores persistentes da face mostram que a falta de diagnóstico preciso é uma das principais causas de insucesso nos tratamentos, os quais são frequentemente dirigidos a uma causa única, muitas vezes atribuída às disfunções da ATM.35

O conceito atual de dores musculoesqueléticas mastigatórias ultrapassa os limites convencionais das antigas disfunções da ATM, ou seja, de disfunção da ar-ticulação temporomandibular propriamente dita. Essa denominação engloba diversas anormalidades de natu-reza musculoesquelética que afetam a função mandi-bular e podem causar dor. Gradativamente, a literatura científica mostra evidências de que essas disfunções, na existência de dor, necessitam ser avaliadas no contexto “dor” tanto ou mais que no contexto “disfunção”,36,37

que a dor é a experiência complexa e o motivo princi-pal que leva o paciente à procura de assistência à saúde. Este representativo grupo de dores musculoesqueléti-cas da face deve ser incorporado às dores orofaciais de acordo com critérios que permitam identificá-lo e dife-renciá-lo das demais condições álgicas que acometem a face. Existem inúmeras doenças, locais ou sistêmicas, que afetam o complexo maxilomandibular e que devem ser incluídas no diagnóstico diferencial das dores oro-faciais, como cefaleias primárias, cervicalgias e doenças cardíacas.

A odontologia, qualquer que seja sua especialidade, tem implícita em sua atividade a prevenção e a cura das doenças de origem bucodental, bem como a restauração da função mandibular. Nesse contexto, os conhecimen-tos sobre oclusão dentária e ATM são indispensáveis para o cirurgião-dentista, clínico ou especialista, inde-pendentemente se é cirurgião, periodontista, endodon-tista, protesista ou ortodontista. Esses conceitos já fo-ram plenamente salientados e defendidos por diversos profissionais.38,39

A tarefa de cuidar do aparelho mastigatório, da oclu-são dentária ou da ATM pertence essencialmente ao cirurgião-dentista, porém, independentemente dos as-pectos estruturais envolvidos, quando há queixa de dor, ela pode ser o diferencial ou o complicador dessa tarefa. Devemos estar preparados para compreender que dor é fenômeno complexo, o qual precisa ser entendido e que, mesmo sendo as disfunções mandibulares muito frequentes, existem outras condições dolorosas da face que as simulam, como dores referidas da própria face, do crânio, do tórax e até do abdome. Devemos ainda compreender que existem dores somáticas, neuropáti-cas e por transtornos psiquiátricos e que, embora seja a dor o sintoma essencial à proteção da vida, sentinela que nos alerta, ela pode se tornar a própria doença;40

que também existe a dor do câncer, a qual pode ser a manifestação inicial da doença e, como inúmeras vezes somos os primeiros profissionais a atender o paciente, nossa responsabilidade frente ao diagnóstico precoce e

rápido encaminhamento é absolutamente indispensável para o seu prognóstico.

Acima de tudo devemos compreender que essa enti-dade “disfunção de ATM” ou “disfunção temporomandi-bular” será gradativamente substituída pelas afecções ou doenças que causam dor e disfunção mandibular, e que esta é mais uma consequência do que uma causa de dor. Portanto, a variabilidade desses problemas que acarretam dor e disfunção mandibular exigirá conhecimento amplo, tanto das bases neurobiológicas da dor, como de critérios diagnósticos e de terapêutica em dor, seja oclusal, ortopé-dica, fisiátrica, farmacológica, cirúrgica ou psicológica.

níveis de complexidade em dor orofacial

A dor crônica e as diversas condições de dor deve-riam ser avaliadas em um contexto de níveis de com-plexidade, o que permitiria um melhor prognóstico a cada caso, individualmente, e também para que o clíni-co identifique seus limites e as necessidades de encami-nhamento e de interconsultas, assim como preconiza o Sistema Único de Saúde (SUS) adotado pelo Brasil. Ver na Figura 1.6 as sugestões sobre níveis de complexidade em dor orofacial.3

desaFIos da odontologIa na área de dor Se inicialmente a dor decorrente de doenças dos den-tes foi o foco primário da atenção odontológica, em um segundo momento as doenças e disfunções relacionadas à articulação temporomandibular passaram a se destacar pela sua prevalência e importância clínica. Entretan-to, vivemos um momento em que as necessidades dos pacientes vão além. Dores crônicas, como a síndrome da ardência bucal, as dores neuropáticas e a dor facial persistente, são outros exemplos do dia a dia, e, embora pouco prevalentes, têm grande impacto biopsicossocial. Outro grande desafio à profissão odontológica é o que diz respeito aos pacientes com necessidades especiais (morbidades associadas) e que sentem dor orofacial. Fi-nalmente, um grupo especial exige atenção odontológi-ca: são os pacientes com câncer de cabeça e pescoço.

A seguir serão relacionadas diversas situações da clí-nica odontológica que constituem o universo da dor em odontologia.41

Controle da dor

a. transoperatória: pode ser

conse-guido convenientemente por meio das técnicas de anestesia local, lembrando que há pacientes gene-ticamente susceptíveis à dor e não sabemos exata-mente quem são eles. A prevenção da dor aguda pode ser medida de prevenção da dor crônica. Es-tudos genéticos experimentais apontam que há sus-ceptibilidade individual à dor e espera-se que, em um futuro próximo, possamos saber previamente à cirurgia quem são esses pacientes.42

Controle do medo e da ansiedade:

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Dores

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por meios seguros, capazes de minimizar os efeitos emocionais gerados pelo atendimento odontológi-co, ou pela simples expectativa do mesmo. A tran-quilização dos pacientes pode ser realizada no pré, pós e transoperatório. Medidas que tranquilizem o paciente na fase pré-operatória podem contribuir para a redução das dores trans e pós-operatórias. Não se justifi ca que em cirurgias eletivas sob anes-tesia local o paciente ainda sofra física e mental-mente como no passado remoto. Historicamental-mente o cirurgião-dentista descobriu a anestesia geral, e no Brasil fi nalmente está regulamentado o uso do óxido nitroso em consultório odontológico. É rele-vante lembrar que o controle da dor e da ansiedade foi responsável pela incorporação de medicação de uso interno, incluindo os ansiolíticos, no receituário da odontologia – o que pressupõe a necessidade de educação profi ssional para a aplicação desses conhe-cimentos na clínica. O estudo da farmacologia e o preparo para aplicação de procedimentos de emer-gência são indispensáveis para enfrentar eventuais intercorrências.16 As técnicas de sedação e analgesia

exigem treinamento especializado e, dependendo da condição clínica do doente, devem ser realizadas por um médico-anestesista.

A Divisão de Odontologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP) desen-volveu pioneiramente grande experiência neste tipo de técnica, principalmente no atendimento odonto-pediátrico de pacientes pouco cooperativos devido a distúrbios neurológicos, a alto grau de ansiedade ou a outros distúrbios comportamentais. A analgesia

ambulatorial através da cetamina iniciou-se com a necessidade cirúrgica de eliminação de focos dentá-rios em crianças que deveriam se submeter a cirurgias cardíacas e corriam risco de infecção focal de origem dentária. Esta técnica foi introduzida por Cromberg, em 1975.43 Considerando-se a demanda por

atendi-mento odontológico sob anestesia geral, o custo/be-nefício decorrente da analgesia ambulatorial é mais interessante, evidenciando a importância da técnica em um país carente economicamente e com enorme fi la de doen tes esperando por tratamento odontoló-gico. Na analgesia ambulatorial a equipe pode ser composta por odontopediatras e médico-anestesista especializado neste tipo de atendimento. O consul-tório deve estar em condições que permitam segu-rança ao paciente no transcorrer do procedimento operatório. Além disso, os membros dessa equipe multidisciplinar devem ter treinamento adequado para avaliação e preparo pré, trans e pós-operatório do doente, ressalvando-se, evidentemente, a autono-mia das respectivas áreas, de acordo com sua atuação e competências profi ssionais.44

Em 2004, após discussão entre os Conselhos Fede-rais de Odontologia e Medicina, foi regulamentado o uso pelo cirurgião-dentista brasileiro da sedação por meio do óxido nitroso.

O

c. diagnóstico da dor de dente referida à cabeça e ao pescoço: ainda é um grande desafi o clínico e

exige avaliação meticulosa que inclui semiotécnica refi nada, se possível alicerçada pelo conhecimento da fi siopatologia da dor e pelos critérios para o diag-nóstico diferencial de odontalgias (patogênese). O espalhamento de algumas dessas dores às regiões

Figura 1.6. nesta escada são apresentadas as sugestões de níveis de complexidade de dor orofacial e necessidade de tratamento. este es­

quema para o tratamento da dor foi elaborado para ser adaptado aos níveis de complexidade do sistema Único de saúde (sus) brasileiro. fonte: siqueira.3

Dor persistente/crônica: Dor refratária, procedimentos complexos, alta tecnologia Dor persistente/crônica: dente, pós-trauma, miofascial, “dor facial atípica”, neuropática, DTM, ardência bucal, câncer Dor aguda:

Endodontia, dentística, pós-cirúrgica, ATM, DTM, periodontal, infecções

Dor aguda: Cáries, pulpite, periodontite,

Pós-cirúrgica/procedimentos/DTM Clínico geral

Dor em odontologia: níveis de complexidade

Especialidades Odontológicas Especialista dor/ Centro de dor Centro de dor

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adjacentes da face, crânio e pescoço produz grande confusão e indecisões. Nas dores de dente difusas, o doente assusta-se de tal forma com a intensidade da dor que normalmente procura atendimento em pron-to-socorro de hospitais gerais. A grande dificuldade nesses casos é o diagnóstico, pois o tratamento é rela-tivamente tranquilo. O desafio do cirurgião-dentista na área de dor orofacial inicia-se pelo diagnóstico da dor de dente difusa, principalmente das pulpites, que eventualmente causam cefaleias secundárias.35 Terapêutica da

d. dor aguda (inflamatória):

indepen-dentemente de sua origem, pressupõe conhecimen-to dos mecanismos da dor, do processo inflamatório e de farmacologia aplicada. É imprescindível que o cirurgião-dentista conheça as várias classes de fárma-cos utilizados para o tratamento da dor e saiba como aplicá-los em cada caso; a situação mais comum de-corre da dor pós-operatória e sabe-se que seu contro-le incompcontro-leto, além do sofrimento que gera, pode ser causa de cronificação da dor. A experiência clínica e os dados da literatura científica sugerem que os pro-fissionais se preocupem mais com este aspecto.45 Ver

Capítulo 36.

Dor crônica orofacial/

e. cefaleias secundárias/dor pós-operatória persistente: a exemplo da dor

mio-fascial mastigatória, da síndrome da ardência bucal (SAB), das neuralgias e neuropatias orofaciais, da odontalgia atípica/dor facial atípica e da dor no cân-cer, pressupõem um largo espectro de conhecimentos que vai desde o conhecimento da fisiopatologia da dor até os mecanismos biopsicossociais envolvidos no comportamento de dor do paciente. É indispensável que o cirurgião-dentista conheça, no mínimo, as prin-cipais causas de dores craniofaciais para estabelecer o diagnóstico diferencial. Deve-se lembrar, também, que ao lado do diagnóstico físico deve existir uma ava-liação comportamental do doente. Medicamentos não convencionalmente usados na odontologia brasileira, embora de prescrição legal, começam a fazer parte do receituário do cirurgião-dentista, a exemplo dos antidepressivos tricíclicos e dos anticonvulsivantes, preconizados em pacientes com dor crônica. Equipe multidisciplinar para o controle da dor crônica pode ser indispensável para alguns doentes. Esta distinção deve ser feita, inclusive, para determinar as limitações clínicas do profissional, a necessidade de interconsul-tas e o encaminhamento do doente.19,28,30,46

Dor e cuidados paliativos no paciente com câncer

f.

de cabeça e pescoço: nos últimos anos, aumentaram

os esforços da odontologia para identificar o câncer de boca. Entretanto, quando a dor é o sintoma do câncer ainda não identificado nem sempre o diagnós-tico é rápido ou mesmo há suspeita da doença. Além disso, o câncer de cabeça e de pescoço, incluindo o de boca, são os que causam maior dor. Portanto, além dos tratamentos do próprio câncer pela equipe médica, o controle de doenças bucais é fundamental.

Então, a odontologia participa com medidas preven-tivas, curativas e paliapreven-tivas, a fim de proporcionar uma melhor qualidade de vida ao paciente.47 Ver os

capítulos da Parte 10.

tratamento da dor: da étIca à relação cIrurgIão-dentIsta / pacIente

O código de ética odontológico contempla os diver-sos aspectos que envolvem a pesquisa científica incluin-do o consentimento livre e esclareciincluin-do incluin-do paciente, ou de seu representante legal, além de transplantes de órgãos.48 Todavia, o universo da pesquisa nem sempre

corresponde à atividade clínica, a qual envolve decisões diárias. Quando o paciente apresenta dor, as decisões profissionais defrontam-se com vários desafios: primei-ro, com a própria complexidade do fenômeno doloroso; depois, com a individualidade do sujeito que a sofre e, ainda, com o próprio conceito de ética pelo profissio-nal. Neste sentido, podem existir julgamentos empíri-cos que afetam as decisões profissionais e nem sempre são favoráveis aos pacientes.

A International Association for the Study of Pain (IASP) discute os aspectos éticos que envolvem a dor na clínica e na pesquisa.34 Entre os conceitos filosóficos

dessa relação é fundamental ao profissional da saúde re-lembrar a necessidade de:

Distinguir os aspectos subjetivos da dor dos aspec-1.

tos objetivos obtidos na avaliação da dor. Distinguir entre dor e sofrimento. 2.

Entender que existem diferenças individuais e de 3.

grupos no que concerne à intensidade e ao signifi-cado da dor.

Entre as obrigações éticas destacam-se:

Respeitar as culturas individuais, lembrar dos direitos 1.

humanos básicos e da responsabilidade profissional. Entender o significado moral do sofrimento desne-2.

cessário por dor.

Entender que dor moderada a excruciante provoca 3.

danos físicos e psicológicos. Obedecer aos princí-pios da beneficência (caridade) e da não maleficên-cia (não provocar dano).

Ter consciência de que a dor agride a dignidade 4.

humana; e que a dor iatrogênica, de certa forma, compara-se à dor das vítimas de tortura.

Entender o princípio de justiça no manejo e pesqui-5.

sa em dor.

Quando o paciente decide-se por fazer uma cirur-gia odontológica eletiva, como é o caso de cirurcirur-gia de implantes de titânio, de terceiros molares e da cirur-gia ortognática, ou procedimentos menos invasivos, como o tratamento de canal, uma restauração ou uma prótese dentária, ele nem sempre conta com riscos e

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nem sempre imagina a possibilidade de complicações, como a lesão de nervo ou a chance de ficar com dor pós-cirúrgica persistente. Se a cirurgia na boca é de um tumor, ou de uma fratura, ela é necessária e, psico-logicamente, as complicações serão mais aceitas, pois há risco potencial à vida. As cirurgias orais têm risco mínimo a médio, em sua maioria, desde que a condi-ção clínica do paciente seja boa. Infelizmente há uma tendência de minimização dos riscos pelo cirurgião-dentista, de modo que o paciente em geral não recebe as informações a respeito dos riscos cirúrgicos e de suas sequelas, o que em muito contribui para a insatis-fação dos pacientes e para a deterioração das relações profissional/paciente.3 No capítulo sobre dor orofacial

persistente, a qual surge após procedimentos odonto-lógicos ou cirúrgicos da boca, discute-se amplamente aspectos pouco conhecidos pelo cirurgião-dentista, como a dor neuropática, cujo tratamento é prolon-gado e varia do simples ao complexo. Embora sejam casos menos comuns, eles são muito incapacitantes e deveriam ser reconhecidos pelos profissionais envolvi-dos no tratamento da dor.

O professor Gino Emílio Lasco, um dos grandes representantes da cirurgia bucomaxilofacial no Brasil, sempre lembrava aos seus alunos: “Em casos de riscos ci-rúrgicos, esclareçam detalhadamente seus doentes antes da cirurgia; assim eles não atribuirão a erros as eventuais complicações que apareçam”.3

Inúmeras vezes discutimos sobre dor, mas nem sem-pre é ela o alvo do problema. Insatisfações e frustrações de expectativas aborrecem as pessoas. A odontologia rea liza procedimentos invasivos, biológica e psicologi-camente, com riscos potenciais que não deveriam ser mi-nimizados ou deixados de ser apresentados ao paciente. Apresentar o prognóstico e as informações necessárias exige preparo profissional primoroso, mas torna menos estressante e mais humano o relacionamento entre ci-rurgiões-dentistas e seus pacientes, particularmente em procedimentos cirúrgicos.3

treInamento proFIssIonal em dor: educação contInuada

Atualmente, preparar os profissionais da saúde para abordar pacientes com queixas de dor é um desafio en-frentado por associações internacionais e instituições de ensino em inúmeros países, havendo várias sugestões de programas curriculares.34,49,50 O cirurgião-dentista,

clínico ou especialista, convive com as queixas de dor de seus pacientes e não pode se eximir dessa responsa-bilidade. Considere queixas comuns como odontalgias, sensibilidade dentinária, aftas e disfunções da ATM. Talvez não exista uma única pessoa no mundo que, pelo menos uma vez na vida, não tenha tido uma dessas quei-xas ou que continua a tê-la a despeito dos tratamentos. Esse desafio também é nosso.40

Entidades internacionais como a International Asso-ciation for the Study of Pain (IASP); a Sociedade Brasi-leira para o Estudo da Dor (SBED); a Academia Ameri-cana de Dor Orofacial (AAOP – American Academy of Orofacial Pain); a Academia Brasileira de Fisiopatologia Crânio-Oro-Cervical (ABFCOC); a Sociedade Brasi-leira de Dor Orofacial e ATM (SOBRAD); o Departa-mento de DTM e Dor Orofacial da Associação Paulista de Cirurgiões-Dentistas (APCD) e o Centro Multidis-ciplinar de Dor do Hospital das Clínicas de São Paulo são exemplos do interesse que desperta o tema dor em todos os profissionais da área da saúde. Recentemente a Academia Americana de Dor Orofacial publicou as bases para a formação do cirurgião-dentista que atuará em dor orofacial.51 Ver Figura 1.7.

Existem sugestões de currículos mínimos para for-mar profissionais da área de saúde na abordagem dos pacientes com dor, seja na graduação ou na pós-gradua-ção.34 Torna-se necessária no Brasil uma ampla discussão

para uniformização de termos, condutas e programas, pois inúmeras faculdades de odontologia, geralmente de forma independente, enfocam as matérias básicas e as disciplinas técnicas (especialidades odontológicas) nos pacientes com anormalidades de oclusão dental. A disfunção temporomandibular é abordada nas disci-plinas de oclusão, mais comumente dentro da Prótese dentária, mas também pela Ortodontia e eventualmen-te pela Cirurgia Oral. Essas disciplinas normalmeneventualmen-te têm enfoques próprios e independentes, e, do ponto de vista técnico, é importante essa abordagem, pois são nas disciplinas que os alunos aprendem e se preparam para seu desempenho operatório (técnico) na odonto-logia. Por exemplo, técnicas de reabilitação oral são ensinadas pela Prótese; os tratamentos da anquilose e da luxação da ATM são bem abordados pela Cirurgia Oral e as anormalidades do crescimento maxiloman-dibular e da ATM são matérias básicas da Ortodontia

Figura 1.7. placa enviada pela american academy of orofacial

pain (aaop) à associação paulista de cirurgiões­Dentistas (apcD) comemorativa à participação do grupo de estudos em Dor orofa­ cial na aprovação, pelo conselho federal de odontologia, da nova especialidade Disfunção temporomandibular e Dor orofacial, cujo objetivo é o de preparar cirurgiões­dentistas para a difícil tarefa de diagnosticar e tratar doentes com dor crônica.

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e da Ortopedia dos Maxilares. O interessante é que a odontologia, em si uma especialidade, gira, direta ou indiretamente, em torno da oclusão dentária e do apa-relho mastigatório, conhecimentos que são a base da profi ssão. Ninguém deve se considerar isento ou ter exclusividade sobre conhecimentos indispensáveis ao exercício de sua profi ssão.

Felizmente, a par das técnicas avançadas e comple-xas, usadas pela odontologia, chegamos a uma fase de transição sobre as relações da oclusão com as DTM, a partir da experiência adquirida nos últimos anos e de evidências científi cas sobre o tema. Estudos em diver-sas áreas da odontologia apontam para a necessidade de que o enfoque oclusal indispensável ao tratamen-to do paciente seja complementado pelo entendimentratamen-to do contexto neural em que ocorrem as funções orais e mandibulares.7,32,52-55

a odontologia, como especialidade, gira em torno, direta ou indiretamente, da oclusão dental e do aparelho mastigatório. esses conhecimentos são indispensáveis ao cirur gião­

­den tista. ninguém deve se considerar isento ou ter exclusividade de conhecimento básico e indispensável à sua profi ssão. De qualquer forma, a razão principal da procura pela assistência médico-odontológica no momento atual chama-se dor, e, sem dúvida, merecerá sempre nosso enfoque, pelo menos no princípio. Revisão cur-ricular para integração das diferentes disciplinas é ne-cessária. Os conhecimentos básicos sobre os mecanis-mos neurais da dor orofacial, a sua fi siopatologia e os fatores psicossociais envolvidos devem fazer parte da formação nuclear dos profi ssionais da odontologia. Os conhecimentos sobre a complexidade do fenômeno dor são comuns e aplicáveis a todas as áreas clínicas: clínica odontológica geral, endodontia, periodontia, ortodon-tia, prótese, semiologia, cirurgia, odontopediatria e na própria dor orofacial.

não há necessidade de ser especialista em dor. Mas, havendo este desejo, o profi ssional deve estar apto para enfrentar e conhecer um vasto campo, que envolve amplos conhecimentos básicos e clínicos, em toda a odontologia e nas matérias afi ns, particularmente no que tange à dor crônica.

os centros unIversItárIos de tratamento da dor na Formação proFIssIonal

A dor, como sintoma primário de grande número de doenças, deve ser conhecimento indispensável a todos

os profi ssionais da área de saúde. Na odontologia, esta afi rmação aplica-se a todas as áreas. Entretanto, a expe-riência clínica e inúmeros relatos da literatura mostram que há consenso quanto às difi culdades de abordagem dos doentes com dor orofacial crônica. Para tentar sa-ná-las, atualmente existem cursos regulares e de espe-cialização odontológica em dor que preparam os pro-fi ssionais interessados nessa tarefa. Com esses cursos, espera-se a redução de erros e iatrogenias e a agilização do encaminhamento adequado desses pacientes, pois o convívio e treinamento em equipes multidisciplinares de dor crônica trariam a experiência indispensável so-bre dor, doenças e doentes.

Do anteriormente exposto depreende-se que a par-ticipação do cirurgião-dentista em equipe multidiscipli-nar de dor pressupõe os seguintes conhecimentos:

Tópicos da equipe multiprofi ssional para trata-mento da dor:

Linguagem comum a todos os membros da equipe: a.

dor.

Modelo conceitual de dor: do biomédico ao biopsi-b.

cossocial.

Anatomia, Fisiologia, Patologia e Semiologia. c.

Síndromes álgicas que acometem cabeça e pescoço. d.

Princípios gerais do tratamento da dor, incluindo a e.

Farmacologia.

Para atingir tais objetivos é necessário que haja edu-cação continuada em dor; prática clínica em equipes es-pecializadas em dor, principalmente em dor crônica, e discussões interdisciplinares de casos clínicos de dor.

a manutenção das responsabilidades individuais obriga o profi ssional a preparar­se para tomar decisões que não prejudiquem o doente, não confundam os membros da equipe multidisciplinar e não comprometam os aspectos éticos envolvidos.

o cIrurgIão-dentIsta na eQuIpe multIdIscIplInar de dor

A conduta clínica do cirurgião-dentista que se pro-põe a atender e tratar pacientes com dor persistente ou crônica depende muito de sua formação nessa área. Ela exige sólida formação interdisciplinar e, a exemplo da cirurgia bucomaxilofacial, a presença do dentista nos hospitais permite a resolução dos problemas pertinentes à odontologia e lhe dá enorme experiência clínica, seja pela variedade de problemas com os quais se defron-ta, seja pela complexidade desses problemas, ou, ainda, pela convivência multidisciplinar. Os conceitos científi -cos que embasam o atendimento de pacientes com dor solidifi cam-se durante a vivência clínica hospitalar, em meio a profi ssionais treinados para esse fi m.

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Sob esse enfoque, Dor Orofacial é outra área que exi-ge a presença do cirurgião-dentista no hospital. A face é ocupada em grande parte pelo aparelho mastigatório; além disso, muitas doenças bucodentais causam dor, di-versas cefaleias secundárias são de origem odontológica e muitos pacientes têm dores mistas que necessitam de abordagem interdisciplinar. A complexidade da face é exemplifi cada pela própria representação dela no córtex cerebral, seja a parte sensitiva ou a motora. Além disso, o sistema trigeminal inerva estruturas intra e extracranianas, o que poderia explicar a difi culdade de diagnóstico das dores craniofaciais. Queixas banais como aftas, traumatis-mo de prótese dentária ou queitraumatis-mor oral podem aparentar exagero, mas são explicáveis dentro desse contexto.

o aperfeiçoamento em odontologia Hospitalar pode funcionar como “residência odontológica hospitalar”. seu objetivo é a prática clínica no ambiente multidisciplinar próprio do hospital, vendo o doente em sua globalidade e necessidades. Desta forma, além de exercitar o diagnóstico, ele aprende a considerar os riscos e os benefícios de sua terapêutica nos diferentes níveis de complexidade do doente. O médico e os demais profi ssionais da área da saúde envolvidos no tratamento da dor entendem e reconhe-cem a necessidade da participação do cirurgião-dentista na equipe multidisciplinar, particularmente nas cefaleias e algias craniofaciais. Esse convívio é perfeitamente possível, como demonstra a experiência clínica, pois facilita o estudo e o conhecimento da fi siopatologia da dor e de sua complexidade; permite reconhecer que as demais regiões do corpo humano podem ter manifes-tações clínicas semelhantes à da boca/face e permite, principalmente, despertar a consciência de que cada um é parte desse universo. Assim, cada profi ssional trata criteriosamente o que é de sua alçada e encaminha cor-retamente o que não é. Quem ganha é o paciente, que não tem "dono", mas se entrega e confi a imensamente em quem o atende. E ganhamos todos nós, pois apren-demos e mantemos o respeito mútuo.

odontologIa HospItalar: a saúde Bucal no contexto da saúde geral

O exercício da odontologia em âmbito hospitalar no Brasil recebe a denominação genérica de Odontologia Hospitalar. Pereira56 defi niu a Odontologia Hospitalar

“como o ramo da odontologia que visa ao entrosamento com especialidades médicas, tendo por objetivo ofere-cer atendimento de alto nível, em condições de segu-rança, contando com o apoio efetivo do corpo clínico do hospital”.

A experiência dos útimos 70 anos nas áreas de ci-rurgia bucomaxilofacial, dor orofacial e pacientes com

necessidades especiais, e as próprias exigências atuais do Sistema Único de Saúde (SUS), sinalizam para a evo-lução do conceito de Odontologia Hospitalar e para mudanças na formação do cirurgião-dentista. O treina-mento hospitalar mínimo durante o período de gradua-ção em odontologia seria altamente recomendável, pois Odontologia Hospitalar é, na verdade, a nossa odontolo-gia, generalista ou especializada, sendo realizada dentro do hospital. Em geral, a imagem que essa denominação passa aos profi ssionais da área da saúde, e aos próprios dentistas, é a de que ela se refere exclusivamente à cirur-gia bucomaxilofacial, mas essa é uma visão limitada. A odontologia é indispensável em hospitais gerais, e prin-cipalmente nos de ensino, sejam públicos ou privados, quer para ajudar no diagnóstico diferencial de doenças da cavidade oral e dos maxilares, quer para realizar o tratamento específi co de doenças que afetam primária, ou secundariamente, os dentes e as áreas anexas. Além disso, os doentes internados podem apresentar dores e infecções dentárias que exijam atendimento imediato; a morbidade desses problemas de saúde estende-se a riscos à saúde geral, como ocorre nas infecções focais, a exem-plo da endocardite bacteriana. O doente internado pode apresentar alto risco em procedimentos odontológicos corriqueiros, devido ao nível de complexidade da doen-ça sistêmica que motivou sua internação. Atender esses pacientes exige recursos hospitalates, humanos e técni-cos altamente especializados. Alguns desses pacientes, mesmo após a alta hospitalar, necessitam de acompanha-mento permanente pelas equipes treinadas do próprio hospital; outros, dependendo do nível de complexidade da doença, podem ser devidamente orientados, e, des-se modo, receber tratamento nos consultórios dentários particulares. É evidente que os dentistas que atendem tais pacientes deveriam receber capacitação mínima, e o treinamento e a vivência em uma residência odontológi-ca hospitalar seriam muito benéfi cos nesse sentido.

a experiência dos útimos 25 anos na área de odontologia Hospitalar no Hospital das clínicas de são paulo e as próprias exigências atuais do sistema Único de saúde (sus) sinalizam para a evolução do conceito tradicional de isolamento do dentista entre as quatro paredes do consultório, apontando para a necessidade de mudança na sua formação clínica e humanista. o desafi o de criar regimes de internato ou de residência hospitalar odontológica ainda assusta, mas é a forma de adequar recursos humanos visando ao nível de complexidade das doenças e dos doentes.

odontologia Hospitalar: integração no contexto de saúde pública

Nos Estados Unidos da América, a área da Medici-na Oral é a que corresponde à Odontologia Hospitalar

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brasileira, mas, no contexto em que é realizada a nossa Odontologia Hospitalar, ela não deveria ter a conota-ção de especialidade, pois todas as especialidades odon-tológicas têm vantagem no atendimento do paciente hospitalar. A nosso ver, a Odontologia Hospitalar é o complemento da graduação, em ambiente multidiscipli-nar e em diversos níveis de complexidade. A importân-cia dos programas de aprimoramento, estágio ou resi-dência hospitalar para o cirurgião-dentista decorre da experiência profissional que terá no ambiente em que conviverá com os doentes e com os demais profissionais da área da saúde; vivência do contexto em que se discu-tem e tratam doentes e doenças, além da observação e participação nas dificuldades inerentes aos tratamentos desses doentes complexos.

No ambiente hospitalar, o dentista se defronta, na prática, com as mais variadas situações e doenças, en-riquecendo sua formação, independentemente de sua especialidade, pois ele se prepara para tratar as doen-ças bucodentais no contexto da saúde geral, na qual o objetivo primário é conhecer o doente, para que possa atendê-lo de acordo com o prognóstico determinado pela sua doença, ciente dos riscos e benefícios que o tratamento trará à condição clínica sistêmica. Períodos de estágio ou residência profissional em Odontologia Hospitalar objetivam dar ao profissional a prática de que ele precisa para compreender seu paciente durante quaisquer tratamentos dentários, principalmente quan-do estará isolaquan-do em seu consultório. Também o prepa-ram para avaliar mais rapidamente os riscos e benefícios dos tratamentos sugeridos.

experiência brasileira da odontologia Hospitalar no ensino da dor

A experiência em Dor e Disfunção Temporomandi-bular e Dor Orofacial descrita neste livro solidificou- -se na atividade exercida no Hospital das Clínicas de São Paulo, onde existe o Centro Interdisciplinar de Dor, idealizado em 1974, no Departamento de Neuro-logia, e oficializado em 1979. Com o passar do tempo, as atividades do Centro de Dor ampliaram-se de for-ma interdisciplinar, permitindo a aglutinação de pro-fissionais de diferentes áreas interessados no estudo e tratamento da dor.57 Especificamente na Divisão de

Odontologia, o estudo da dor iniciou-se com o atendi-mento de pacientes com disfunção de ATM, em 1980, como atividade voluntária do autor em Cirurgia Oral, a convite do Dr. Clóvis de Almeida, então diretor. Em 1984, a Dra. Conceição da Glória Motta incorporou essa atividade à rotina do Grupo da Cirurgia Oral, que era uma das três equipes que compunham a Divisão de Odontologia do Instituto Central. Esse subgrupo foi nomeado Grupo de ATM. Em 1986 foi realizado o I Curso de Dor Facial pela Divisão de Odontolo-gia, já então de natureza multidisciplinar, englobando

odontologia, neurologia, oftalmologia e otorrinolarin-gologia. No I Encontro de Odontologia Hospitalar do Hospi tal das Clínicas de São Paulo, foi realizado o Curso Multidisciplinar de Dor Facial. Em 1988, quando foi criada a Liga de Cefaleia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo,57 também

foi incluída a odontologia com a participação de um cirurgião-dentista. Posteriormente, em 1991, motiva-do pela experiência clínica adquirida, e também pelas necessidades crescentes devido à complexidade dos problemas, o Grupo de ATM passou a chamar-se Gru-po de Estudos em Dor Orofacial e ATM. Finalmente, em 1997, a Dra. Eliane Barbosa Prado, então diretora da Divisão de Odontologia do Instituto Central, des-vinculou o Grupo da Dor Orofacial/ATM da Cirurgia Oral, transformando-o em uma das três equipes da Divisão de Odontologia do Instituto Central do Hos-pital das Clínicas (ICHC) ICHC. A denominação pas-sou a ser Equipe de Dor Orofacial / ATM (EDOF/HC). Atualmente essa equipe é integrada ao Centro de Dor da Divisão de Neurologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, fato que favorece a interdisciplinaridade e propicia o estudo de casos complexos de dor, aprovei-tando o potencial tecnológico e humano disponível na instituição. Esse entrosamento permitiu a elaboração de muitos estudos, os quais culminaram em protocolos de abordagem e tratamento da dor orofacial, apresen-tados ao longo deste livro.

Possivelmente, este foi o primeiro serviço odonto-lógico em hospital universitário brasileiro com o obje-tivo de formar cirurgiões-dentistas, em regime de resi-dência, capazes de abordar as mais diversas condições álgicas da boca e da face, em atuação multidisciplinar, e que englobasse o tripé: pesquisa, ensino e assistên-cia, nos diversos níveis de complexidade exigidos pelo SUS.

No Curso de Aprimoramento em Odontologia Hos-pitalar do HC/FMUSP, em modelo de residência, to-dos os aprimoranto-dos (estagiários, residentes) recebem 96 horas de ensino e treinamento em dor orofacial no 1º ano do curso. Já no 2º ano, os alunos da Divisão de Odontologia do ICHC recebem 460 horas, enquanto os alunos da área específica de Dor Orofacial recebem cerca de 2.000 horas e passam por diversas clínicas que abordam a dor nesse complexo hospitalar.

Desde 2003, existe uma a duas vagas para a área de Dor Orofacial, tendo sido formados nesse período nove cirurgiões-dentistas, com treinamento em período inte-gral de dois anos em um total de cerca de 4.000 horas. Em 2010 foi aprovada a Residência em Odontologia Hospitalar do HC/FMUSP, com oito vagas, sendo uma para Dor Orofacial, em período integral de dois anos, com cerca de 3.600 horas. Certamente é um programa inédito e que contempla a complexidade das dores oro-faciais e disfunções mandibulares, preparando jovens cirurgiões-dentistas para esse desafio (Quadro 1.2).

Referências

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