• Nenhum resultado encontrado

CONHECIMENTO ECOLÓGICO DOS PESCADORES E O MANEJO DE ESPÉCIES NO LAGO TEFÉ 1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "CONHECIMENTO ECOLÓGICO DOS PESCADORES E O MANEJO DE ESPÉCIES NO LAGO TEFÉ 1"

Copied!
11
0
0

Texto

(1)

CONHECIMENTO ECOLÓGICO DOS PESCADORES E O MANEJO DE ESPÉCIES NO LAGO TEFÉ1

Rônisson de Souza de Oliveira (IDSM/AM) Lucimara Almeida dos Santos (UEA-IDSM/AM) Nelissa Peralta (IDSM/AM) Resumo

Na Amazônia, a pesca é uma atividade histórica e de relevância econômica e nutricional. Nesse contexto encontram-se os pescadores produzindo e reproduzindo técnicas e conhecimentos tradicionais, eficazes para o manejo das espécies. Este trabalho tem como proposta a discussão sobre a atuação de pescadores no lago de Tefé, região do médio Solimões, Amazonas, essencialmente sobre como o seu conhecimento ecológico é aplicado ao mapeamento, divisão e uso dos territórios pesqueiros, às técnicas de captura, e ao manejo das espécies. Os pescadores detêm conhecimentos precisos sobre reprodução, migração, alimentação das espécies de peixe, o que é fundamental quando se mapeia um território para o uso. No lago de Tefé há uma divisão histórica das áreas de pesca, denominadas de lances. Existem atualmente 36 lances no lago de Tefé. O pescador geralmente recebe esse espaço como uma herança familiar, assim, é o responsável pelo cuidado da área, sua limpeza e detém o direito de uso por meio da manutenção de acordos com as comunidades próximas. A limpeza é feita no período de seca, especialmente nos locais de passagem de peixes, para que no período de cheia estejam acessíveis a pesca. Os lances ficam em frente ou próximos às comunidades, logo os seus donos entram em acordo com os comunitários: dividem o pescado ou utilizam 50% da mão de obra de pessoal das comunidades. Conhecimentos ecológicos também são aplicados às técnicas de captura, inclusive na criação de novos artefatos de pesca, como a escolhedeira. Este artefato foi criado por uma iniciativa dos pescadores e da diretoria da colônia de pescadores Z-4 no ano de 2004 para responder a um problema grave na pesca local que era a captura de peixes menores que não se adequavam às demandas do mercado e eram frequentemente descartados. Com a escolhedeira, o tamanho da malha da rede e a técnica de captura foram adequados para selecionar somente os peixes com determinado tamanho. O artefato foi criado a partir do conhecimento dos pescadores e para garantir o uso sustentável na pesca. Em síntese podemos considerar que, os pescadores usuários do lago Tefé fazem uso de seus conhecimentos ecológicos para melhor uso dos territórios, seja na questão de territorialidade, uso e conflito, seja nas técnicas de captura, visando o manejo adequado das espécies.

Palavras chave: pescadores, território, conhecimento ecológico. Introdução

Os pescadores no processo de interação com o ambiente, desde muito cedo, vão guardando em suas memórias mapas, formas de reprodução, de alimentação, migração

1

Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB.

(2)

das espécies que capturam. Isso se torna fundamental na eficácia da pesca, bem como nas formas de uso dos recursos naturais de forma sustentável. Nesse processo os pescadores são protagonistas, em suas áreas de pesca, pela dependência, experiência e interação com o ambiente. Os pescadores que fazem uso do lago de Tefé geralmente são moradores da cidade de Tefé, assim são considerados pescadores urbanos, para Lima (2004) tais pescadores são aqueles que moram na cidade, porém se deslocam para outros locais na busca por pescado, possuem pouco contato com as comunidades ribeirinhas, têm suas próprias embarcações e atuam nas calhas dos rios.

Os pescadores urbanos - sobre os quais discutiremos as ações nesse trabalho - são associados à Colônia Z-4 de Tefé e atuam na área urbana do município, em específico no lago de Tefé, em área da Floresta Nacional (FLONA) de Tefé e no complexo de lagos do Pantaleão, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã (RDSA). As atividades de pesca são realizadas nessas áreas rurais e os produtos são comercializados na cidade de Tefé. Os pescadores possuem tempo de atividade de pesca diferenciado, isso tem relação direta na divisão de afazeres, pois suas técnicas envolvem experiência, conhecimento, objetos e corpo.

O referencial que utilizamos para discutir os dados, se pauta na antropologia, com as categorias de domínio-maestria, conhecimento tradicional, técnicas de captura e de corpo, educação da atenção e manejo de recursos naturais. Para tanto, os principais autores utilizados foram: Fausto (2008), Furtado (1993), Mauss (2003), Gonçalves (2007) Carneiro da Cunha (2007, 2009), Sautchuk (2007), Ingold (2000/2010) Peralta (2012), Ferreira et al (2015). O ponto inicial de toda a discussão se pauta na questão do pescador como um agente de conhecimento prático, estruturado pela experiência e pela educação da atenção, conhecimento este que direciona as formas de uso dos recursos naturais.

A pesca é uma atividade, que exige habilidade e isso requer o envolvimento prático, desenvolvido pelos pescadores pela interação com o ambiente e entre as gerações, o que gera a circulação de conhecimento. Nesse sentido, as questões levantadas em campo foram direcionadas a esses pontos citados acima, com acompanhamento em áreas de pesca, entrevistas com pescadores e com e ex-coordenadora da Colônia de pescadores

(3)

Z-4 de Tefé, Ana Cláudia Torres2, para compreendermos em específico as estratégias de organização das áreas de pesca no lago de Tefé.

A organização da atividade da pesca é um dos pontos importantes para uma pescaria eficiente. Nesse aspecto os pescadores não exercem as atividades de forma uniforme, isto porque há uma divisão de trabalho que corresponde às habilidades e especialidades do pescador, adquiridas com o tempo de experiência. Ao acompanhar a atividade dos pescadores na área do Pantaleão, uma das autoras percebeu que havia a divisão do trabalho tanto na embarcação quanto na atividade da pesca, divisões que tinham relação direta com as técnicas de captura. Dentre as classificações identificadas estão: comboiador, proeiro, largador, popeiro, puxador de tralha, puxador de cortiço, cambiteiro e gelador. Na atividade com uso de rede - denominada de malhadeira pelos pescadores - essa divisão destacada acima é bem visível.

Na pesca com a rede malhadeira, os pescadores identificam os peixes e reconhecem o local certo para lanceá-los, ou seja, capturá-los. Enquanto o proeiro e o popeiro conduzem a canoa, o largador coloca a rede na água. O apetrecho é estreito, com média de 2,5m de altura, direcionado exatamente para o tipo de ambiente e espécie a ser capturada. O lance é feito próximo à margem do rio. Todo o material é colocado na água e ambas as pontas são amarradas em varas. Alguns pescadores entram no lance a bordo das canoas e batem na água com o remo ou usam o barulho do motor-rabeta, com o intuito de espantar os peixes, para que venham a se emalhar na rede. Nesse processo estão presentes a divisão do trabalho e as técnicas de captura com uso de apetrechos modernos.

Os pescadores demonstram conhecimentos precisos sobre suas áreas de pesca, com isso são capazes de articular técnicas e formas de manejo dos recursos pesqueiros. Tal conhecimento muitas vezes não tem devido reconhecimento, porém se faz presente na vida cotidiana dos moradores ribeirinhos da Amazônia e são fundamentais inclusive nas práticas das instituições locais. A atuação dos pescadores urbanos de Tefé na área da FLONA de Tefé, por exemplo, foi importante para definição e divisão de áreas de uso e de apetrechos, como veremos a seguir.

Criação de uma escolhedeira

2

(4)

A escolhedeira, como o próprio nome já diz, é um apetrecho criado e usado por pescadores de Tefé em suas áreas de pesca, para escolher, ou selecionar o peixe com tamanho específico. O desenvolvimento desse apetrecho foi uma iniciativa da Colônia de Pescadores Z-4 de Tefé, junto com os próprios pescadores, a partir de uma pressão institucional do IBAMA que visava extinguir a pesca comercial no lago de Tefé. De acordo com Ana Cláudia Torres, que atuava junto a Colônia de Pescadores Z-4 de Tefé, o processo se iniciou,

[...] em 2004, quando começou a serem realizadas ações mais efetivas, na época ainda pelo IBAMA, nessa área da FLONA, chegou um gestor e iniciou as atividades de verificar em que ponto que estava a gestão da área, os levantamentos que haviam sido feitos, o zoneamento da área, então ele tomou conhecimento da existência dos lances e a primeira reação que ele teve era de insatisfação: ah não pode haver pesca comercial, dentro dessa área, porque é uma unidade de Conservação, não tem plano de manejo, então enquanto não tiver plano de manejo à gente vai suspender a pesca comercial (ENTREVISTA, ANA CLÁUDIA, 2015).

A partir daí a Colônia Z-4 de Tefé se mobilizou contra a proibição da pesca comercial, pois a experiência de todos os pescadores e coordenadores da Colônia indicava que a produção pesqueira do lago de Tefé sempre foi fundamental para o abastecimento do mercado de Tefé e para a geração de recursos econômicos para os pescadores. No entanto, existiam vários problemas na forma como os recursos pesqueiros eram utilizados no lago de Tefé. Primeiro não havia registro ou controle de quem pescava. Segundo Ana Claudia, adentravam no lago barcos de pesca de Tefé, Manaus, Manacapuru, Iranduba, Santarém, dentre outros. Além disso, não havia seletividade na captura, ou seja, as redes eram lançadas nos cardumes e peixes de todos os tamanhos eram capturados. Finalmente, a produção era muitas vezes desperdiçada pelos,pescadores que descartavam a produção caso avistassem cardumes de outras espécies com valor maior no mercado.

Nessa conjuntura, a Colônia Z-4 primeiramente busca alternativas para limitar a entrada de barcos de grande porte:

aí a primeira normativa foi tentar afastar as grandes embarcações, desses grandes centros urbanos [Manaus e Santarém, por exemplo] limitando a capacidade, a característica dos barcos para fazer uso dessa área. Então foram definidas as [características] de embarcação para fazer uso: elas deveriam ter 07 toneladas de capacidade líquida, capacidade de caixa e o que equivaleria a 10 toneladas bruta/embarcação e isso é possível monitorar através do documento da própria embarcação, seja na filiação na capitania através do

(5)

título de inscrição, seja através do RGP3 que é emitido atualmente pelo Ministério da Pesca. Então esses dois documentos vem trazendo essas informações, sobre tonelada bruta e tonelada líquida, com isso seria mais fácil fazer esse monitoramento[...](ENTREVISTA, ANA CLÁUDIA, 2015). Outra medida foi mostrar com dados quantitativos que, a produção do pescado era fundamental para o consumo local, assim,

[...] um dos compromissos assumidos pela Z4, em 2004, foi monitorar a produção, para de fato conseguir provar, através de dados de produção, o quanto era produzido nessa área, e quanto isto iria impactar no abastecimento do mercado local, caso a pesca fosse suspensa. E aí foi feito um monitoramento de 10 meses de janeiro a outubro, de 2004, e aí que foi adotado um formulário, que a gente passou a chamar de orientação de pesca, que registra os dados da embarcação como: RGP, proprietário da embarcação, encarregado, a equipe de pescadores que compunha aquela tripulação do barco né!? E aí listando as principais espécies comerciais que normalmente são encontradas, aqui dentro da área da Flona4, e aí com o compromisso do pescador receber essa orientação e ao término no período da temporada de pesca, do período de pesca dele, da viagem, ele retornar tendo registrado quanto ele produziu de cada espécie, pra que a gente pudesse ter um dado de produção e aí ao final dos dez meses, já tinha ultrapassado 200 toneladas de pescado. Depois reunimos com o pessoal do IBAMA. Meio que ficaram convencidos de que realmente era uma área importante[...](ENTREVISTA, ANA CLÁUDIA, 2015).

O monitoramento mostrou que o pescado oriundo da região da FLONA era fundamental para o abastecimento local, possibilitando o acesso legal dos pescadores às áreas de pesca no lago de Tefé. Entretanto, nem todos os problemas estavam amenizados, ainda era preciso pensar em uma forma de pescar sem desperdício dos peixes que não se enquadravam no tamanho estipulado pelo mercado. Assim, pescadores e coordenadores da Colônia começaram a discutir,

se existia uma técnica ou um apetrecho que pudesse evitar essa mortandade de peixe [que não seria vendido], porque a seleção era feita quando o peixe era embarcado. As redes que são utilizadas para o cerco são as redes de malha miúda. Os pescadores utilizavam essa redes, cercavam o todo e apertavam, embarcavam aquela produção, selecionavam na canoa e aquilo que não passava na seleção, no tamanho era despejado. Aí já existia alguns poucos pescadores que usavam uma malha específica para uma determinadoa..., espécie alvo naquele cardume. Isso meio que foi sendo discutido e aprimorado, então daí que saiu o apetrecho definido como

escolhedeira, que é uma rede, mas com a malha específica para espécie alvo

daquele cardume que você pretende capturar. Então, eles continuam usando a rede miúda, mas só para o cerco, eles não apertam o peixe e aí colocam outra, por dentro, quando vai haver a seleção com as malhas maiores, permite que os menores passem, então eles conseguem depois de emalhado, já ter a

3 Registro Geral da Atividade Pesqueira. 4 Floresta Nacional de Tefé.

(6)

produção que eles esperam, liberar a rede por fora e permitir que os outros que não forem malhados seguirem o seu caminho [...](ENTREVISTA, ANA CLÁUDIA, 2015).

A escolhedeira foi pensada e é usada para escolher, ou seja, selecionar os peixes. O instrumento foi criado e sua prática difundida pelos pescadores a partir da sua percepção de que os recursos precisavam ser mais bem utilizados. Por isso desenvolveram a técnica de escolher com um apetrecho usado dentro da água, possibilitando a vida e o crescimento dos peixes não adequados para venda. É importante perceber que alguns pescadores já tinham dimensão do problema da seleção do peixe somente depois de capturado. Alguns utilizavam redes com malhas grandes para capturar espécie e tamanho específico. Portanto, para esse fim o conhecimento dos pescadores foi fundamental no desenvolvimento de uma técnica que faz uso do ambiente de forma sustentável, se tornando norma entre os pescadores do lago de Tefé.

Os donos do lugar e as regras de uso

O entendimento de como os pescadores estabelecem as relações de uso, dos ambientes de pesca é fundamental. Na Flona de Tefé existe uma regra de uso do lago, que historicamente fez parte da organização social da Amazônia, que é o direito de uso sobre um território pelo cuidado que se tem com o mesmo.

Os denominados lances são os locais onde os pescadores fazem suas pescarias no decorrer do ano. Cada lance no lago de Tefé tem seu dono, que são majoritariamente pescadores urbanos. Alguns lances no lago de Tefé estão localizados em frente ou próximos a comunidades. Porém, a pesca em grande escala não faz parte de economia local entre essas pequenas comunidades rurais. Os donos de lance são provenientes da cidade de Tefé que estabelecem acordos e regras de uso com os moradores locais, como será explicado posteriormente.

A escolha dos lances faz parte das estratégias de pesca dos pescadores urbanos. A escolha obviamente não é aleatória: o pescador identifica onde ficam ou onde é rota dos peixes.

[...] são pontos estratégicos, distribuídos a margem dos lagos, onde o peixe necessariamente tem que passar, onde é o trajeto do cardume e aí esses locais de lance normalmente eles têm uma, meio que uma ressaca, uma entrada, onde o peixe passa por ali e quando são fixadas as redes, eles acabam entrando nessas redes que é quando fecham o cerco, então por isso que o nome dado para essas áreas são lances (ENTREVISTA, ANA CLÁUDIA, 2015).

(7)

Begossi (2004) faz a seguinte classificação área de pesca espaço aquático usado na pesca por diversos indivíduos ou por uma comunidade; pontos de pesca locais específicos, ou microáreas onde é realizado a pescaria e pesqueiro onde há alguma forma de apropriação, regra de uso ou conflito, um território em sentido ecológico. Para o caso de Tefé, se enquadra a terceira classificação, pois como são parte das áreas de uso, ou do espaço aquático usado pelos pescadores (BEGOSSI, 2004) e “quando há conflito no uso de algum pesqueiro, ou quando há alguma regra com relação ao uso de determinado pesqueiro, podemos supor que se trata então de um território” (p. 225). A distribuição, ou aquisição desses locais é histórica:

Tradicionalmente, não só aí no lago de Tefé, como em toda essa região a gente encontra, aqueles que se dizem proprietários de uma determinada área ou determinado local, isso acontece tanto em áreas de várzea, como em área de terra firme, não é!? E nessa área aqui da Flona não é diferente, então tem alguns locais que tradicionalmente sempre foram ocupados, digamos assim, tidos como de posse de uma família, não é!? Então, principalmente aqui, porque a cultura de pesca é muito grande, nessa região, e aí nessas áreas dos

lances tem algumas famílias que foi passando de geração para a geração,

meio que a posse, ainda que informal né!? (ENTREVISTA, ANA CLÁUDIA, 2015).

O direito de uso perpassa por questões ligadas a residência e permanência no território, nas relações de parentesco, de vizinhança e respeito mútuo. No entanto, como deixa claro Begossi, territorialidade é uma forma de controlar espaço e recursos e isso de certa forma envolve tensão, conflito e gastos. Os lances, do lago de Tefé, que pertencem a pescadores urbanos e estão próximos a alguma comunidade passam por processo de acordo entre o dono e os comunitários. Assim, como

eles são fixos, alguns ficam no porto das comunidades, ou as comunidades foram sendo formadas depois, a medida que esses lances já existiam, outros a comunidade veio primeiro e os lances vieram depois. Então assim, não deixa de ser uma combinação de direito de uso, no caso quando o lance tá no porto da comunidade. Tem que ter a concordância da comunidade pra que aconteça a pesca. Segundo a legislação [a comunidade] tem toda uma área que deve ser respeitada, pra questão de subsistência. Então acaba que para realizar a pesca, precisa nessa negociação com a comunidade e essas negociações vão desde a contribuição em pescado durante o período em que a pesca está ocorrendo, nesse lance né!? Até envolvimento de pelo menos 50% da equipe de pesca, seja daquela comunidade, de forma a garantir o envolvimento e a renda para algumas famílias (ENTREVISTA, ANA CLÁUDIA, 2015). Quando o lance é próximo a comunidade a determinação do direito de uso já envolve outros direitos, como o direito de posse atribuído àqueles que mantém a residência no território. A.ssim, os acordos são feitos entre o dono e a comunidade para

(8)

que todos tenham parte nos recursos extraídos naquele lance. Para Begossi (2004, p. 226) “com relação à aplicação do conceito de territorialidade as populações humanas, vale lembrar que conflitos são muitas vezes solucionados mediante acordos ou regras, informais ou formais ou apenas hábitos culturais ou leis costumeiras (costumary laws)”. Os pescadores não são donos por acaso, como já destacado - eles se empenham no zelo e cuidado com o ambiente:

Quando tá seco, essa parte toda do lance não existe, porque tá tudo em terra, então é nesse período que eles fazem a limpeza do lance, que é tirar a vegetação que cresceu durante aquele período, os tocos que se acumularam ali e tal, então tem a limpeza do lance, no período da seca, pra que quando aquela terra ficar submersa novamente, a rede possa ser colocada sem o risco de ela ter avarias né!? Porque se deixar o toco, pode rasgar, então tem todo um zelo ao longo do ano, com essas áreas também!

Os pescadores, pela interação com o ambiente, tem a percepção de onde e porque os peixes se concentram, em determinado ambiente. No caso de Tefé esses locais precisam ser cuidados, pelos donos, para a eficácia da pescaria.

(9)

No mapa há algumas demarcações de lances, dentro do lago de Tefé, em todo o lago há tal divisão de áreas.

Considerações Finais

Muito pouco se fala sobre a noção de propriedade na etnologia da Amazônia. Para Fausto, essa ausência se vincula a “uma concepção horizontal das relações sociais pensadas ora sob o signo da igualdade sociopolítica, ora sob o signo da reciprocidade simétrica (...). A noção de dono insere-se de modo incômodo nesse imaginário não apenas pelo caráter assimétrico da relação que a define, mas também por poder evocar a propriedade privada. Em suma, tudo em princípio tem ou pode ter um dono: a floresta, os animais, os rios e as lagoas (...). Essas relações de domínio são múltiplas e potencialmente infinitas” (FAUSTO, 2008, p. 338).

O descarte e o desperdício da produção pesqueira eram comuns na região quando barcos de outras cidades adentravam a área de forma descontrolada. A região estava sob regime de acesso e uso livre, aberto. Quando o fechamento do lago de Tefé aos pescadores de outras regiões se consolidou, os regimes de direito locais voltaram a operar. Os ambientes mais propícios foram negociados entre comunidades locais e pescadores de Tefé, que passaram a ser considerados os donos desses ambientes.

No caso relatado acima o território se divide em ambientes cujos donos têm prerrogativa de direito tanto sobre o cuidado, quanto sobre o controle e usufruto dos produtos do território. As comunidades locais que têm residência fixa próximo aos lances negociam seu direito com pescadores das cidades que, por sua vez, mantém o controle do ambiente, passando a ser considerados donos. Mas essa noção de domínio não está vinculada ao direito de dispor do lugar, mas ao direito e ao dever de cuidar ou zelar por aquele lugar. Essa relação de domínio-maestria inclui tanto a noção de predação quanto de proteção, ou seja, tanto de extração e uso quanto de cuidado. Mas o domínio não é estático. Cumpre-se renovar a cessão de domínio de forma dinâmica. Cuidar do lugar se impõe como forma de manter a continuidade do domínio. Por isso, logo que foram estabelecidos os lances, seus donos criaram meios técnicos de impedir o desperdício da produção, por meio da criação da escolhedeira.

O caso mostrou a noção consuetudinária de posse e propriedade sendo estendida a outras relações sociais, como aquelas entre comunidades e pescadores urbanos. Por sua

(10)

vez, essa negociação passa a ser reconhecida institucionalmente pelo IBAMA, que identifica e registra os donos dos ambientes nos seus mapas de uso do espaço. Tudo isso pode indicar que o manejo sustentável dos recursos naturais na Amazônia está vinculado às noções nativas de direito, controle, cuidado – que, durante séculos operaram entre as populações locais e que agora se estendem e são reproduzidas para macrorrelações entre coletivos e instituições. Cabe ao Estado também reconhecê-las. Referências

BEGOSSI, Alpina. Áreas, pontos de pesca, pesqueiros e territórios na pesca artesanal. In BEGOSSI, Alpina (org.). Ecologia de Pescadores da Mata Atlântica e da Amazônia. São Paulo: Hucitec: Nepam/Unicamp: Nepaub/USP: Fapesp, 2004.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

______. Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico. Revista USP, São Paulo, n.75, p. 76-84, setembro/novembro 2007.

FAUSTO, C. Donos demais: Maestria e Domínio na Amazônia. MANA 14(2): 329-366, 2008.

FERREIRA, J. C. L.; PERALTA, N.; SANTOS, R. B. C. “Nossa reserva: Redes e interações entre peixes e pescadores no médio rio Solimões”. Amazônica: Revista de Antropologia, 7 (1): 158-185, 2015.

FURTADO, L. G. Pescadores do rio Amazonas: um estudo antropológico da pesca ribeirinha numa área amazônica. Belém: CNPq/MPEG, 1993.

INGOLD, Tim. The Perception of the Environment: essays in livelihood, dwelling and skill. London and New York: Routledge, 2000

_______. Da representação de representações à educação da atenção. Educação. Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010.

LIMA, D.M. Ribeirinhos, pescadores e a construção da sustentabilidade nas várzeas dos rios Amazonas e Solimões. Boletim Rede Amazônia, Rio de Janeiro, v. 3, n.1, p. 57-66, 2004.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

PERALTA, Nelissa. “Toda ação de conservação deve ser aceita pela sociedade”: manejo participativo em Reserva de Desenvolvimento Sustentável. Tese de doutorado. Departamento de Sociologia e Antropologia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

(11)

SAUTCHUK, Carlos Emanuel. O arpão e o anzol: técnica e pessoa no estuário do Amazonas (Vila Sucuriju, Amapá). Tese (Doutorado em Antropologia) Universidade de Brasília. Brasília, 2007.

Referências

Documentos relacionados

César da Silva Júnior; Sezar Sasson; Paulo Sérgio Bedaque Sanches; Sonelise Auxiliadora Cizoto; Débora Cristina de Assis Godoy. Editora Saraiva, 2018

Indivíduos grandes e pequenos apresentaram sincronismo com as observações em campo, no entanto para indivíduos médios esse sincronismo não é evidente (Tabela 4-4).

Os objetivos do estágio foram: (I) prestar acolhimento, atendimento psicológico individual e realizar encaminhamentos para a rede de saúde e assistência social de mulheres

Uma vari´ avel quantitativa ´ e aquela cujos n´ıveis podem ser as- sociados com pontos em uma escala num´ erica, tal como tem- peratura, press˜ ao ou tempo. Vari´ aveis

O método dos observadores se mostrou um método eficiente para a soluçao de problemas inversos em condução de calor e com grande potencial para ser aplicado em problemas

Após a exibição de TITLE, pressione FUNCTION repetição para mudar entre as seguintes funções: TITLE introdução de título de disco—ITS programação ITS • Quando reproduzir

A Figura 5 mostra a evolução da capacidade calorífica aparente em função da temperatura das nanopartículas revestidas, esta variação se deve à perda de água e degradação

Na consulta da saúde da mulher realizada pelo enfermeiro eram atendidas as demandas relacionadas à anticoncepção, dúvidas e queixas relacionadas à saúde da