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Textos complementares

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Academic year: 2021

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Mineração no Brasil colonial:

contribuições técnicas dos africanos escravizados

Não resta dúvida sobre o intenso trânsito de práticas e de conhecimentos técnicos entre a Costa da Mina e a América portuguesa, mais no sentido leste/oeste que o contrário. Sobre-tudo na região de mineração, os resultados desses empréstimos técnico-culturais se fizeram notar desde muito cedo. Não poderia ser, ressalte-se, de outra forma. Boa parte do ouro explorado durante todo o setecentos nas Gerais e nas capitanias de Goiás, de Mato Grosso e da Bahia, foi recolhido através de técnicas introduzidas pelos africanos e desconhecidas pelos europeus. Essa realidade estende-se, ainda, aos diamantes extraídos e ao minério de ferro encontrado na região, transformado em instrumentos de trabalho nas pequenas forjas mon-tadas pelos africanos. Aliás, o ferreiro, ocupação prestigiosa em algumas regiões africanas, como, por exemplo, nas terras dos Beafares, costa da Guiné, era, também, cuteleiro e ouvires. As duas ocupações estavam tradicionalmente associadas nessas sociedades, o que acabou sendo reproduzido no Brasil, talvez, sem que ainda se saiba as reais dimensões de como isso se deu. A grande quantidade de escravos e de libertos oficiais de ferreiro e a recorrência de ouvires negros e mestiços, inclusive escravos, podem ser indícios importantes para uma inves-tigação mais apurada. E, nesse caso, não seria surpreendente se se observasse outros indícios associados aos anteriores, que apontassem para um culto mais intenso, entre a população negra e mestiça da região mineradora, de Ogum, senhor iorubá do ferro e dos instrumentos de ferro (representado através das pencas de balangandãs na Bahia e nas Minas Gerais) e de Iemanjá, mulher de Ogum, a quem pertenciam a prata e o ouro.

Entre um lado e outro do Atlântico sul, os Mina mediaram culturas e fomentaram, junto com os outros povos habitantes da América portuguesa, mestiçagem cultural, nas dimensões e particularidades mais diversas desse fenômeno. Claro que não se trata de uma transposição literal de conhecimentos e de práticas de um ambiente para o outro. Houve, evidentemente, muitas adaptações, ressignificações e apuração técnica também. E é aí que hibridações e impermeabilidades culturais se compuseram, surgindo de arran-jos específicos, moldados na dinâmica da sociedade colonial brasileira e, mais especifica-mente, da sociedade mineira.

Muito do universo social das Gerais setecentistas deveu-se à atuação dos negros Mina: da bateia ao espaço e às formas das habitações nas áreas mineradoras, passando pelo comportamento, pelas práticas e pelas representações culturais. [...]

Os escravos africanos, sobretudo os Mina, empregados na mineração no Brasil, re-construíram porções da África na região. Fizeram isso, ainda que em pequena dimensão, através de pequenos detalhes e, até mesmo, de representações embebidas de códigos imperceptíveis à maioria dos observadores. No início dos trabalhos de mineração do ouro, dos diamantes e das pedras preciosas, no século XVIII, segundo relatos de viajantes e de técnicos que visitaram o Brasil no século posterior, eram usados pratos de estanho, nos rios e córregos, para separar-se areia e seixos do material precioso. Não demorou muito e o instrumento foi considerado pouco adequado ao bom desempenho das atividades. Escravos(as) africanos(as) teriam, então, introduzido gamelas feitas com madeira específi-ca, resistente ao sol e à água, para separar o ouro e os diamantes do material indesejado. Além do tipo de madeira e da técnica de manipulação das gamelas, esses homens e mu-lheres introduziram, ainda, práticas associadas que facilitavam o trabalho.

PAIVA, Eduardo França. Bateias, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no Novo Mundo. In: PAIVA, Eduardo França; ANASTASIA, Carla Maria Junho (Orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver — séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG, 2002. p. 189-191.

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A transmigração da corte portuguesa para o Brasil

Concebida, desde o século XVII, como solução de emergência em situações de crise, a mudança da corte para a América [...] entrou na pauta governamental do dia quando sucessivas ameaças da França evidenciaram, a partir de julho de 1807, a iminência da invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas.

Convencido de que a integridade da monarquia somente estaria assegurada por meio da preservação dos domínios americanos, cujos recursos naturais e humanos superavam os do reino, D. João e a corte partiram de Lisboa em 29 de novembro de 1807, com-pondo uma comitiva de cerca de 15 mil pessoas. [...] A decisão atendia aos interesses do aliado inglês, encurralado pelo bloqueio marítimo que a França lhe impusera em relação aos mercados europeus, mas articulava-se também com [o] projeto de um império luso- -brasileiro [...].

Estando o reino ocupado pelos franceses, era inevitável, de um lado, a extinção do chamado exclusivo comercial, com a “abertura dos portos às nações amigas” decretada em 28 de janeiro, o que tornava disponíveis para a Inglaterra as mercadorias do Brasil e o pouco significativo mercado consumidor brasileiro. De outro, cabia fundar um novo império na América.

Após alcançar o Rio de Janeiro, em 7 de março de 1808, o regente buscou, com di-versas medidas, transformar a cidade para adequá-la à condição de sede da monarquia. Assim, foram então recriadas as principais instituições régias, como as Mesas de Desem-bargo do Paço e da Consciência e Ordens, a Casa da Suplicação e a Intendência Geral da Polícia. [...] A constituição dos pilares institucionais do governo foi acompanhada de atos que procuravam fomentar a indústria e a circulação de ideias, como a revogação da proi-bição de manufaturas no Brasil, a criação da Impressão Régia e a publicação da Gazeta

do Rio de Janeiro, primeiro periódico a circular na América portuguesa. [...]

O Rio de Janeiro converteu-se em palco de um processo civilizatório [...]. Além de a cidade se constituir no centro de difusão para todo o território da ex-colônia dos modos civilizados da Europa ilustrada, nela forjou-se [...] um poderoso grupo de comerciantes, imigrados de Portugal.

O Rio de Janeiro se transformou em uma nova metrópole em relação às demais pro-víncias da América que, após a euforia inicial, ressentiram-se crescentemente de somente serem lembradas por ocasião do lançamento de novos impostos.

VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 557-558.

O escravo de ganho e a possibilidade de alforria

Escravos de artesãos e de donos de venda [...] tinham muitas oportunidades para com-prar sua liberdade. [...] O viajante inglês James Henderson notou o grande número de ne-gros de ganho nas ruas do Rio de Janeiro no início do século XIX. Suas impressões seriam confirmadas pelos experientes viajantes e artistas Johann Moritz Rugendas e Jean-Baptiste Debret, que retrataram os negros de ganho com seus tabuleiros e cestos, agindo como mensageiros, carregadores das cadeirinhas dos mais ricos, “barbeiros” ambulantes, e pres-tando os serviços mais especializados de carpinteiro, marceneiro, pedreiro e ferreiro. Esses negros de ganho não se limitavam apenas à cidade, mas dedicavam-se à caça, à coleta e a atividades agrícolas nos arredores e chegavam a viajar para o interior como tropeiros ou va-queiros. Na verdade, não havia ocupação que não contasse com seus negros de ganho, de

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navegadores e marinheiros a cocheiros, pajens e uma variedade infinita de especializações e semiespecializações. Foi Rugendas que estimou que um negro de ganho diligente poderia, em dez anos, acumular o bastante para comprar a própria liberdade. [...]

Evidentemente, era como escravo de ganho ou aluguel ou como jornaleiro que o ne-gro ou o mulato gozariam de oportunidades favoráveis para ganhar o necessário para comprar sua carta de alforria. O grau de oportunidade dependeria da demanda da econo-mia local e do talento do indivíduo: um tanoeiro ou calafate teria menos oportunidade de trabalho que especialidades mais procuradas, como as de sapateiro, carpinteiro, pedreiro ou ferreiro. [...] Esta profissão [a de barbeiro] era praticamente monopólio de negros e mulatos, e nela os escravos predominavam. Como no caso do escravo jornaleiro-artesão, os barbeiros escravos tinham oportunidade fora do comum de fazer contatos sociais e ganhar dinheiro suficiente para comprar a liberdade.

O comércio também dava ao escravo [...] certo grau de liberdade e de oportunidade para comprar a alforria. A maioria deles trabalhava atrás do balcão da venda ou da taber-na de seu senhor, mas alguns conquistavam um cargo de responsabilidade, como caixa de um depósito ou armazém. Desta forma, o escravo conseguia entrar para a comunidade dos negócios. Um escravo com iniciativa podia não só promover os interesses comerciais de seu senhor como realizar pequenos negócios em comissão por conta própria. [...]

Outro ramo deste pequeno comércio funcionava com total conhecimento e consenti-mento do senhor. As escravas eram ativamente encorajadas a sair às ruas com tabuleiros cheios de carnes preparadas e alimentos e bebidas africanos, como acarajé, vatapá, caru-ru e aluá — para vender. [...]

Uma extensão disso era a prostituição de escravas. [...] Em sua maior parte, essas mo-ças simplesmente escapuliam para ganhar algum dinheiro, a elas normalmente negado por seus deveres domésticos regulares. [...] Muitos donos de escravos fingiam não ver esta prática enquanto outros forçavam suas escravas a prostituir-se e viviam de seus ga-nhos imorais.

RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 62-65.

A justificação da escravidão e as contradições

do movimento abolicionista

Durante três séculos (do século XVI ao XVIII) a escravidão foi praticada e aceita sem que as classes dominantes questionassem a legitimidade do cativeiro. Muitos chegavam a justificar a escravidão, argumentando que graças a ela os negros eram retirados da ignorância em que viviam e convertidos ao cristianismo. A conversão libertava os negros do pecado e lhes abria a porta da salvação eterna. Dessa forma, a escravidão podia até ser considerada um benefício para o negro! Para nós, esses argumentos podem parecer cínicos, mas, naquela época, tinham poder de persuasão. A ordem social era considerada expressão dos desígnios da Providência Divina e, portanto, não era questionada. Acredita-va-se que era a vontade de Deus que alguns nascessem nobres, outros, vilões, uns, ricos, outros, pobres, uns, livres, outros, escravos. De acordo com essa teoria, não cabia aos homens modificar a ordem social. Assim, justificada pela religião e sancionada pela Igreja e pelo Estado — representantes de Deus na terra —, a escravidão não era questionada. A Igreja limitava-se a recomendar paciência aos escravos e benevolência aos senhores.

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Não é difícil imaginar os efeitos dessas ideias. Elas permitiam às classes dominantes escravizar os negros sem problemas de consciência. Os poucos indivíduos que no período colonial, fugindo à regra, questionaram o tráfico de escravos e lançaram dúvidas sobre a legitimidade da escravidão foram expulsos da colônia e o tráfico de escravos continuou sem impedimentos. Apenas os próprios escravos questionavam a legitimidade da institui-ção, manifestando seu protesto por meio de fugas e insurreições. Encontravam, no en-tanto, pouca simpatia por parte dos homens livres e enfrentavam violenta repressão. [...] As doutrinas que justificavam a escravidão foram, no entanto, abaladas no decorrer do século XVIII. Em sua luta pela destruição do Antigo Regime, a burguesia europeia criou con-ceitos novos, que vieram pouco a pouco solapar a visão de mundo que justificava a ordem tra-dicional. Com o intuito de combater os antigos privilégios que cimentavam a ordem política e social existente, os revolucionários do século XVIII criticaram a teoria que atribuía aos reis um poder divino e proclamaram a soberania dos povos, exigindo a criação de formas represen-tativas de governo. Afirmaram ainda a supremacia das leis e os direitos naturais do homem, entre os quais o direito de propriedade, de liberdade e de igualdade de todos perante a lei.

No pensamento revolucionário do século XVIII encontram-se as origens teóricas do abolicionismo. Até então, a escravidão fora vista como fruto dos desígnios divinos; ago-ra ela passaria a ser vista como criação de vontade dos homens, portanto tago-ransitória e revogável. Enquanto no passado considerara-se a escravidão um corretivo para os vícios e a ignorância dos negros, via-se agora na escravidão, sua causa. Invertiam-se, assim, os termos da equação. Passou-se a criticar a escravidão em nome da moral, da religião e da racionalidade econômica. Descobriu-se que o cristianismo era incompatível com a escra-vidão; o trabalho escravo, menos produtivo do que o livre; e a escravidão uma instituição corruptora da moral e dos costumes.

Enquanto na Europa a revolução burguesa produzia seus frutos, no Brasil, os colonos que se sentiam cada vez mais reprimidos pela política metropolitana acolhiam com entu-siasmo as novas ideias revolucionárias. No bojo dessas ideias havia, entretanto, algumas contradições fundamentais. Como conciliar o direito de propriedade que os senhores tinham sobre seus escravos com o direito que os escravos tinham (como homens) à sua própria liberdade? Como conciliar a sujeição do escravo com a igualdade jurídica, que, segundo a nova filosofia, era um direito inalienável do homem?

COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 8. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2008. p. 13-15.

Os imigrantes no Brasil durante o século XIX

Desde meados do século [XIX], imigrantes europeus começaram a entrar em número crescente no Brasil, principalmente entre 1870 e 1900, e o período de maior imigração situa-se nos anos que se seguem à abolição. Só o estado de São Paulo recebeu, em pouco mais de um decênio, isto é, entre 1890 e 1901, cerca de setecentos mil colonos: italianos, portugueses, espanhóis e austríacos, não contando os de outras nacionalidades.

A maioria dos imigrantes que entraram nessa área foi encaminhada para as lavouras de café, exercendo funções anteriormente desempenhadas pelos escravos. Mais para o sul do país, nos estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, desenvolveu-se um sistema diferente de colonização. Concederam-se aos colonos lotes de terras. Embora o processo tenha sido diferente num e noutro caso, o contingente imigrante contribuiu, tanto numa região quanto em outra, para o desenvolvimento dos núcleos urbanos e para a ampliação relativa do mercado interno, estimulando as funções urbanas.

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No estado de São Paulo, os imigrantes, assim que puderam, abandonaram as lavouras de café onde viviam em precárias condições. Muitos, desiludidos, voltaram à sua pátria de origem ou migraram para outras áreas. Outros localizaram-se em núcleos urbanos, onde se dedicaram ao comércio ou artesanato, às manufaturas e aos pequenos serviços. Outros, ainda que originalmente se destinassem à lavoura, preferiram, logo ao chegar, localizar-se nas cidades. Alguns já vieram com o objetivo de se fixarem nos núcleos ur-banos, como os artesãos e comerciantes ingleses e franceses que se estabeleceram na cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX.

No Rio de Janeiro, num total de 275 mil habitantes em 1872, 84 mil eram estrangeiros. [...] Em 1872 os estrangeiros compunham 12% da população de Porto Alegre, 11% da população de Curitiba, 8% da de São Paulo. A tendência em direção ao fim do século foi ascendente. Em São Paulo, a população estrangeira passaria a 22% do total em 1890.

COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. 9. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 254-255.

Os legados do Estado Novo

Com a implantação do Estado Novo, Vargas cercou-se de poderes excepcionais. As liberdades civis foram suspensas, o Parlamento dissolvido, os partidos políticos extintos. O comunismo transformou-se no inimigo público número um do regime, e a repressão policial instalou-se por toda parte. Mas, ao lado da violenta repressão, o regime adotou uma série de medidas que iriam provocar modificações substantivas no país. O Brasil, até então, basicamente agrário e exportador, foi-se transformando numa nação urbana e industrial. Promotor da industrialização e interventor nas diversas esferas da vida social, o Estado voltou-se para a consolidação de uma indústria de base e passou a ser o agente fundamental da modernização econômica. O investimento em atividades estratégicas, percebido como forma de garantir a soberania do país, tornou-se questão de segurança nacional. Fiadoras do regime ditatorial, as Forças Armadas se fortaleceram, pois, além de guardiãs da ordem interna, passaram a ser um dos principais suportes do processo de industrialização. Com medidas centralizadoras, Vargas procurou diminuir a autonomia dos estados, exercendo assim maior controle sobre as tradicionais oligarquias regionais. Buscando forjar um forte sentimento de identidade nacional, condição essencial para o fortalecimento do Estado nacional, o regime investiu na cultura e na educação. A preo-cupação com a construção de uma nova ideia de nacionalidade atraiu para o projeto estado-novista um grupo significativo de intelectuais. Na área social, o Estado Novo ela-borou leis específicas e implantou uma estrutura corporativista, atrelando os sindicatos à esfera estatal. Aboliu a pluralidade sindical e criou o imposto sindical, contribuição anual obrigatória, paga por todo empregado, sindicalizado ou não. O salário mínimo foi institu-cionalizado. Para mediar as relações entre patrão e empregado, o governo regulamentou a Justiça do Trabalho. Através da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sistematizou a legislação trabalhista. Em nome da valorização do trabalhador nacional, o Estado Novo adotou uma política de restrição à imigração. Através do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que, além de exercer a censura sobre todos os meios de comunicação, investia maciçamente na propaganda do regime, Getúlio Vargas conseguia reforçar sua imagem de protetor da classe trabalhadora.

No entanto, a partir de 1942 teve início o processo de desarticulação do Estado Novo. Certamente o envolvimento do Brasil na II Guerra Mundial, aliando-se por razões de

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ordem econômica aos Estados Unidos e rompendo com a Alemanha nazista, contribuiu para o enfraquecimento do regime. [...] Em novembro de 1945, Getúlio foi deposto da presidência da república. Extinto, o Estado Novo deixava uma forte herança histórica e matéria-prima para pesquisa e reflexão nas décadas seguintes.

Analisar esse período em todas as suas dimensões significa apreender paradoxos e afastar tentações maniqueístas. Afinal, a despeito da ausência dos direitos políticos e da precariedade das liberdades civis, o regime ditatorial consolidou a ideia do Estado como agente fundamental do desenvolvimento econômico e do bem-estar social. Se a política trabalhista de Vargas permaneceu praticamente intacta até os dias de hoje, se a discussão sobre o formato do Estado e a reforma da previdência social são temas que continuam mobilizando a sociedade, não se pode negar que o Estado Novo contribuiu para reforçar a fragilidade de nossas instituições político-partidárias, para produzir um descaso pelos direitos civis e políticos e para disseminar a ideologia do anticomunismo. A crença na di-cotomia entre democracia social e democracia política, na supremacia do executivo sobre o legislativo e da técnica sobre a política são algumas das heranças do Estado Novo que comprometem até hoje a consolidação da nossa democracia.

PANDOLFI, Dulce. Apresentação. In: PANDOLFI, Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1999. p. 10-11.

A figura política de Getúlio Vargas

e o fortalecimento do sentimento de nação

Getúlio e as elites que o cercaram produziram, ao longo dos 24 anos em que estiveram no palco do poder, a utopia social que mais penetrou a sociedade como um todo e que mais profundamente construiu um perfil de nação.

Assentada no poder a partir dos anos 1930, esta elite fabricou uma nova ideia de homem, de nação, de brasilidade, de cidadania, de justiça, de educação, de família, de polícia. Enfim, a complexidade de suas ideias de totalidade construiu um novo sentido para o homem e para as instituições; para as massas e para o líder; para o Estado e para o governo. [...]

Ao mesmo tempo em que o Estado se tornava mais duro, ameaçador, complexo e que exteriorizava seu totalitarismo e penetrava mais e mais no mundo privado de cada um, fa-zendo com que se perdesse a noção de indivíduo para só permanecer a do coletivo, mais e mais a massificação fazia com que contingentes maiores da população se identificassem com o líder; que vissem neste novo pai o sentido de suas vidas [...].

As imagens de Getúlio, por isso, eram usadas fartamente. Esta identidade das massas com o presidente era reforçada constantemente. Nas escolas, nos hospitais, repartições, ruas, casas, todos tinham que ter uma foto de Vargas. Era a prova de que ele estava pre-sente, sempre perto, sempre alerta e sempre disposto a mostrar o rumo certo, fazendo o chamamento de todos para construir uma nação livre dos comunistas, dos liberais, dos capitalistas, do capital estrangeiro. Enfim, das “aves de rapina”.

Mesmo o afastamento político no curto período em que esteve em São Borja, na estân-cia Santos Reis, logo após a queda do Estado Novo, contribuiu ainda mais para reforçar a imagem de Getúlio Vargas como leme da pátria. O mundo precisava dele, e foi nele, no ditador, que a população votava livremente, esperando a redenção e a justiça social. Era impressionante sua força política. Mesmo os comunistas, presos, mortos, exilados duran-te os anos de excesso da Revolução de 30, reconheciam o líder, o guia.

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Nesta perspectiva, o ato de suicídio de Getúlio — ao perceber e viver o desmorona-mento de sua imagem, uma imagem que ele mesmo havia criado — não pode ser sur-preendente. O suicídio era a negação da morte da história do líder, do pai da pátria, do pai dos pobres [...].

A solução do suicídio implicava que o presidente não poderia ser deposto nem haveria possibilidade de renúncia. Renunciar e ser deposto eram hipóteses que significavam o desfazer do casamento da nação com a figura do pai. Era necessário um ato heroico para confirmar aquilo que Getúlio significava desde os primeiros dias da Revolução de 30: o retrato dos “verdadeiros desígnios da nação”.

CANCELLI, Elizabeth. Vargas, a paixão de um suicídio: o irracional e a magia do ato. In: Textos de História: Revista de Pós-Graduação em História da UnB. Brasília: Universidade de Brasília, v. 2, n. 4, 1994. p. 102-105.

Mudanças econômicas no governo

de Juscelino Kubitschek

O novo governo [Juscelino Kubitschek], aliado ao PTB [Partido Trabalhista Brasileiro], conserva traços populistas. No entanto, a política econômica representa uma alteração pro-funda em relação ao modelo precedente [do governo de Getúlio Vargas]. Durante os dois governos Vargas, a prioridade do desenvolvimento nacional consistiu no crescimento da indústria de base, produtora de aço ou de fontes de energia, como o petróleo ou a eletri-cidade. Naquele modelo, a iniciativa estatal predominava e os recursos para o crescimento econômico advinham da agricultura de exportação. Pois bem, Juscelino Kubitschek altera a forma de nosso crescimento industrial, instituindo o que os historiadores economistas cha-mam de tripé: a associação de empresas privadas brasileiras com multinacionais e estatais, essas últimas responsáveis pela produção de energia e insumos industriais.

A diferença desse modelo em relação ao anterior estava no fato de os bens duráveis, como foi o caso da produção de automóveis por multinacionais, passarem a ser o principal setor do processo de industrialização. Graças ao investimento das empresas estrangeiras, a nova eco-nomia brasileira tornar-se-ia mais independente em relação às crises do setor agroexportador. No entanto, o modelo tripé tinha consequências nefastas. Por disporem de fartos recursos de seus países de origem, a produção das multinacionais aqui instaladas podia crescer em ritmo mais acelerado do que a produção de base, implicando assim um aumento das importações de insumos industriais, fator responsável pelo progressivo endividamento externo do Brasil. Mais ainda: para estimular a implantação dessas empresas foram facilitadas as remessas de lucros para as matrizes, o que implicava no desvio de valiosos recursos da economia brasileira.

A curto prazo, porém, o modelo industrial de Juscelino foi um sucesso. A economia atingiu taxas de crescimento de 7%, 8% e até mesmo 10% ao ano. Isso permitiu que um ambicioso Plano de Metas — popularmente conhecido como “50 anos em 5” — alcan-çasse um estrondoso sucesso. As rodovias são multiplicadas, o número de hidrelétricas cresce além do previsto, o mesmo ocorrendo com a indústria pesada. Na área de produ-ção de alimentos, o presidente estimula uma tendência, existente desde os anos de 1930, que consistia em ampliar a fronteira agrícola em direção a Goiás e Mato Grosso — o que, aliás, levou ao extermínio de novos povos indígenas. Coroando essa política ambiciosa, a capital é transferida: no cerrado do Brasil central surgia Brasília.

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato. O livro de ouro da história do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 338-339.

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As nuances da ditadura militar brasileira

Setores preponderantes das Forças Armadas, em 1964, tomaram o poder no Brasil, der-rubando o governo Goulart e iniciando uma ditadura que só terminaria 21 anos depois. Foram várias as razões do golpe de Estado e muitos os desdobramentos políticos e eco-nômicos do regime militar. Aqueles foram anos de profundo obscurantismo e sectarismo, geradores de consequências perversas que, ainda hoje, todos lutamos por superar. [...]

Como é sabido, houve variações na intensidade da repressão durante a ditadura mi-litar: em certos momentos, como na fase imediatamente posterior ao golpe ou na con-juntura que se iniciou em 1968, a repressão foi muito intensa; em outras fases, como no período seguinte às primeiras punições (junho de 1964 a outubro de 1965) e durante a “distensão” e “abertura” políticas promovidas nos governos Geisel e Figueiredo, o nú-mero de punições decresceu. Por causa dessas variações, alguns analistas classificaram o período de combate à luta armada como o “auge da repressão” (1968/1974), enquanto outros, sublinhando a coexistência do regime político de exceção com períodos de dimi-nuição relativa da coerção, mencionaram o neologismo burlesco “ditabranda”.

Na verdade, essa aparente “ciclotimia” encobre um penoso processo de evolução e involução demoradas que correspondeu à montagem, ao apogeu e à decadência de um complexo e poderoso sistema nacional de segurança e informações. Tal sistema somente se consolidou entre 1969 e 1970, mais de cinco anos depois do golpe, e sua desmon-tagem se estenderia para além da volta do país à democracia política — com resquícios persistindo ainda hoje.

A partir do golpe de 31 de março de 1964, a elite política brasileira e a assim chamada “opinião pública” assistiram, estupefatas, a uma escalada, jamais vista em nossa história, de atos arbitrários de toda a natureza. Parcelas desses e de outros setores que apoiaram a derrubada de Goulart surpreenderam-se com o ânimo punitivo dos golpistas. Os momen-tos em que a repressão serenava — e que a muimomen-tos pareciam confirmar uma esperança de não abandono total da democracia, ao menos como horizonte — correspondiam a fases de intensas maquinações, por parte dos setores militares mais exaltados, tendentes a definitivamente implantar — ou fazer perdurar indefinidamente — um forte esquema repressivo capaz de controlar, pela força, quaisquer dissensões. [...]

FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 17-19.

As migrações do campo para as cidades

entre 1950 e 1970

[...] Migraram para as cidades, nos anos 50, 8 milhões de pessoas (cerca de 24% da população rural do Brasil em 1950); quase 14 milhões, nos anos 60 (cerca de 36% da população rural de 1960); 17 milhões, nos anos 70 (cerca de 40% da população rural de 1970). Em três décadas, a espantosa cifra de 39 milhões de pessoas!

Nas cidades, em São Paulo, o centro do progresso industrial, mas também no Rio de Janeiro, a capital do Brasil até 1960, em Belo Horizonte, Recife, Salvador, Fortaleza, Porto Alegre, até em algumas cidades médias, a industrialização acelerada e a urbaniza-ção rápida vão criando novas oportunidades de vida, oportunidades de investimento e oportunidades de trabalho. Oportunidades de investimento na indústria, no comércio, nos transportes, nas comunicações, na construção civil, no sistema financeiro, no

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ma educacional, de saúde etc., que exigem capital maior ou menor, tecnologia mais ou menos complexa. Oportunidades de trabalho, melhores ou piores, bem remuneradas ou mal remuneradas, com maiores ou menores possibilidades de progressão profissional, no setor privado ou público. [...]

Os trinta anos que vão de 1950 a 1980 — anos de transformações assombrosas, que, pela rapidez e profundidade, dificilmente encontram paralelo neste século — não pode-riam deixar de aparecer aos seus protagonistas senão sob uma forma: a de uma socieda-de em movimento. Movimento socieda-de homens e mulheres que se socieda-deslocam socieda-de uma região a outra do território nacional, de trem, pelas novas estradas de rodagem, de ônibus ou amontoados em caminhões paus de arara. [...] Movimento de uma configuração de vida para outra: da sociedade rural abafada pelo tradicionalismo para o duro mundo da con-corrência da grande cidade, ou para o mundo sem lei da fronteira agrícola; da pacata cidadezinha do interior para a vida já um tanto agitada da cidade média ou verdadeira-mente alucinada da metrópole. Movimento, também, de um emprego para outro, de uma classe para outra, de uma fração de classe para outra, de uma camada social para outra. Movimento de ascensão social, maior ou menor, para quase todos.

MELLO, João Manuel Cardoso; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 2. p. 581; 584-586.

Brasil: desafios à democracia

A democracia se consolidou, mas não é a democracia esperada. [...]

Para compreender a dinâmica institucional que sustenta essa contradição, elaborei uma série de hipóteses, que denominei “o paradoxo democrático”. Tal paradoxo manifesta-se, por um lado, na enorme expansão do associativismo, dos novos direitos ligados a iden-tidades coletivas e de organizações que se apresentam como expressão da vitalidade da “sociedade civil”; e, por outro lado, na limitada eficácia que tais processos desempenham na diminuição da desigualdade social.

A “sociedade civil” e os novos atores sociais constroem suas identidades em torno de reivindicações feitas em nome dos direitos humanos — veiculados pelo sistema cons-titucional, pelas ONGs e por organizações internacionais —, à margem, em geral, das instituições da vida político-partidária. Embora a acumulação de direitos fortaleça o sen-timento de dignidade de diversos grupos, o resultado das demandas realizadas pelos novos atores sociais tem se mostrado extremamente ineficaz em termos de diminuição da desigualdade socioeconômica do conjunto da sociedade.

A passagem do mundo dos direitos ao mundo da política implica negociações e esco-lhas, mobilização de interesses conflituosos, acordos, administração de recursos escassos, em suma, a passagem do mundo ideal ao mundo da necessidade. À medida que as novas formas de ação coletiva se sustentam seja no discurso dos direitos humanos, seja em fun-damentalismos religiosos — cujas demandas, em ambos os casos, são de caráter moral, isto é, se apresentam como reivindicações com valor absoluto e não negociável —, elas dificultam a cristalização de projetos de caráter político-partidário, provocando assim um distanciamento entre moral e política, direitos e interesses.

O processo de criação de novos direitos e sujeitos de direito transferiu para a ordem jurídica e o poder judiciário demandas e expectativas de redistribuição da riqueza e de reconhecimento social. Mas a judicialização do conflito social e os novos atores sociais

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têm limitada eficácia como instrumento de diminuição da desigualdade social, pois res-tringem a representação de interesses a nichos, sem uma visão do conjunto da sociedade, e fragilizam a política partidária, que é substituída por novos atores, especialmente ONGs, cujas reivindicações alcançam, em geral, um impacto mais simbólico que prático e retiram dos partidos políticos a representação do discurso moral e a elaboração de novas utopias sociais.

As pressões e expectativas crescentes transferidas para o poder judiciário deixam a descoberto seus limites para a resolução de problemas que exigem respostas de ordem executiva e administrativa; respostas que, numa sociedade democrática, estão fora de seu alcance e possibilidades funcionais. A explicitação de tais limitações desestabiliza o poder judiciário, que tende então a se dividir em razão de sua identificação com os diversos gru-pos sociais cujos interesses dependem de suas decisões. As ONGs, por sua vez, embora tenham um poder crescente de mobilização da opinião pública, são bastante limitadas como instrumento de pressão política e apresentam um deficit de legitimidade por não possuírem nem mandato nem representação social definida.

Os novos direitos funcionam, ocasionalmente, como direitos por default, ou seja, em vez de serem efetivamente cumulativos, são utilizados pelos atores sociais para suprir carências produzidas pelas insuficiências — e, por vezes, subtração — dos “antigos” direitos sociais. A situação atual é fundamentalmente o resultado de uma nova dinâmi-ca de individualização, constituição de identidades coletivas e participação polítidinâmi-ca que fragmenta a representação social e limita a capacidade de elaboração de propostas para a transformação do conjunto da sociedade.

SORJ, Bernardo. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 13-15.

Referências

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