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Meu pai e o homem das nuvens

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Academic year: 2021

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Meu pai

e o homem

das nuvens

Meu pai

vivia enfezado com o

homem das nuvens. Ele não deixava cho-ver e a horta morria de sede. Meu pai fa-lou, não sei por que deixei a roça e vim para a cidade! Achei que a sorte muda-ria. Tenho de reconhecer que na roça cho-via mais.

Era isso, tínhamos deixado o cam-po e vindo para a cidade. Um cam-pouco cam- por-que na cidade tinha televisão. Outro pou-co porque às vezes a gente não tinha o que comer.

Não adiantou. Todo dia papai saía, levando debaixo do braço uma pastinha de estudante, onde se lia Odontologia e, em letras menores, UFMG. Um rapaz que deu pra ele. Estudava em Belo Horizonte e ficou com dó. Papai então batia de

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ta em porta, pedindo, pelo amor de Deus, uma coisa pra fazer. Ninguém dava. Ninguém tinha. Voltava abatido no fim da tarde. A gente começou a passar fome novamente. Você sabe o que é passar fome? Não, não estou me referindo a fome peque-na, de antes do almoço e da janta. Eu digo fome. Fome que come a pessoa por dentro. Que dá dentada nas tripas. Que dei-xa a gente tonta, mesmo deitada. Fome de beber muitos copos de água para dar a sensação de estômago cheio.

Pois bem, mamãe perguntou, por que não voltamos pra roça? Papai ficou bravo, voltar, mas com que cara? Foi aí que mamãe pediu uma semente aqui, uma muda de alface ali e co-meçamos a horta.

Papai não deu atenção. Ele nunca dá atenção quando a idéia não é dele.

Quando a situação piorou, ele também veio colher umas cenouras, o danado. E também uns tomates e umas batatas para a sopa. Coisa fina! A travessa vinha fumegando para a mesa. No fim, ele reconheceu que estava errado e que a horta era uma boa idéia. Passamos a trabalhar nós quatro: mamãe, papai, eu e minha irmã, a Lucinha.

Nada é perfeito, disse mamãe, olhando os canteiros mur-chos. Papai olhou a pastinha, olhou de novo e exclamou, eu disse que não ia dar certo. Estão vendo? Aí ele olhou pela jane-la e se decidiu, vou lá fajane-lar com o homem das nuvens. Minha irmã abriu os olhos deste tamanho. Umas rodelas. E pergun-tou, como? Papai respondeu que tinha de pensar, depois diria.

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Papai deu de perguntar sobre papagaios, como eram feitos, qual o tipo de vareta usada e como evitar que os papagaios engastalhassem nos fios elétricos. O resto do tempo ele observava o jeito de correr dos

meninos que empinavam papagaio.

Um dia ele se trancou no quarto com cola e papel de seda. E saiu, horas depois, fantasiado de papagaio. Eu ri muito. Lucinha também. Ma-mãe ficou preocupada. Papai disse, hoje mesmo vou lá falar com o homem das nuvens. E me chamou, Pitico, amarra esta linha de sapateiro no cabresto, aqui nas minhas costas, e vem me soltar. Ao ver o meu espanto, disse, vamos lá no campinho de futebol que eu te explico o meu plano.

Era assim, papai ficaria de costas para mim, com os bra-ços abertos e com a linha de sapateiro no cabresto que ia da gola da camisa até o cós da calça. Então eu devia correr para ver se ele levantava do chão.

Não vai dar, eu disse. Por quê? O senhor é muito pesado. Papai falou, vê, eu fico de braços abertos. Colei papel de seda. Esse papel, franjado, vai até os meus pés. Eu falei, sei não, pai, sei não se vai dar certo.

Depois de muito tentar, eu disse, ah, vamos pra casa, pai. Os vizinhos já estão rindo da gente! Papai falou, espera, filho, vamos fazer uma última tentativa. Fizemos. Quando eu corri, deu uma rajada de vento mais forte, e papai subiu. Então eu dei linha e, logo em seguida, uns soquinhos pra ele recuperar a

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altura. Corri de novo, parei, dei outros soquinhos. Papai tava que tava no céu.

Nossa vizinha, Dona Íris, vinha do armazém e não acre-ditou. Correu até a cerca. Dona Ceci, venha ver, Seu Emanuel está louco, achando que é papagaio. Mamãe veio preocupada, secando as mãos no avental.

De repente, meu coração deu um pinote. Papai começou a dar piruetas. Eu disse, Lucinha, corre, avisa pra linguaruda da Dona Íris não falar que papai está louco, porque nem ela terminou de falar, ele começou a dar piruetas, não sei se de vergonha ou se para se exibir.

Pelejamos quase toda a tarde. Às vezes o vento diminuía e papai começava a cair, lá pelos lados do Jiló, onde construíam a nova estação da Mogiana. Felizmente, os meninos que solta-vam papagaio ajudaram. Eles estasolta-vam embasbacados. Não sa-biam que era possível soltar pai. Vadico falou que queria soltar sua professora de aritmética, arrebentar a linha e correr.

E eu fiquei espantado com o espanto deles. Era também a primeira vez que eu soltava pai, mas pensava que fosse a coisa mais natural do mundo. Até perguntei, vocês não soltam o pai de vocês? Os tios? Um irmãozinho chato? Eles disseram, nem pensar. Na roça, eles perguntaram, vocês soltam? Pai, mãe, ir-mão, irmã e até avô, eu respondi, me fazendo de sabido.

Uma hora, quando tudo estava sob con-trole, me dei conta de que a linha estava no fim, faltando ainda um bom pedaço para papai che-gar onde morava o homem das nuvens. Fiquei preocupado. O Almir, um dos meninos que me

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rodeavam, quis me emprestar mais um carretel de linha. Alex falou que era perigoso. A outra linha é de sapateiro, disse, e o pai dele é meio pesado. Acho que arrebenta. Almir falou, é mes-mo. E como vamos fazer? Alex deu a idéia de mandar um tele-grama, perguntando se papai estava bem e se ainda faltava muito caminho.

Enquanto eu procurava um pedaço de papel e caneta, o Almir perguntou, quem é o homem das nuvens? Que ignorân-cia! E respondi, pelo nome dá pra saber, o homem das nuvens é um homem que vive nas nuvens. E o que ele faz lá? E vou saber? Não gosto de me meter na vida dos outros. Almir não pareceu satisfeito com a resposta, mas eu não tinha outra. Meu pai é que sabia quem era o homem das nuvens, mas ele agora não estava ali para responder.

Escrevi, ocê tá bão aí, pai? Envolvi a linha com o bilhete, torci as duas pontas do papel e remeti o telegrama, dando pu-xões leves, para ele deslizar na linha para cima. Minutos de-pois, a mensagem sumiu de vista. E como papai vai mandar a resposta? Então eles se deram conta da burrada. Almir excla-mou, ué, eu não tinha pensado nisso!

De repente, a linha começou a puxar, a puxar e afrouxou de vez. Tinha arrebentado. Meu pai foi se afastando, se afas-tando, e minha mãe começou a chorar. Ela disse, não ia dar certo, eu sabia. Tinha pego as manias de papai, decretando pre-visões de desastres depois de eles terem acontecido.

Almir falou, vamos recuperar a linha, pode ter uma res-posta do telegrama. Assim fizemos. A linha tinha engastalhado nos galhos de uma mangueira e foi difícil recuperá-la. Na

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ta da linha, o telegrama de meu pai. Tô muito bem aqui, fio. Tá difícil é chegar. Devia ter comprado mais um carretel. Vou arre-bentar a linha e, na passagem, tento agarrar a beiradinha da nu-vem. Se não conseguir, adeus. Cuide bem de sua mãe e da Lucinha. Levei mamãe e Lucinha para casa. Conversamos bastan-te. Eu tinha esperança de que papai voltaria. Mais esperança ainda quando, perto das onze, começou o maior toró. Choveu até de madrugada.

A horta ficou viçosa de novo. Eu falei, é uma prova de que papai conseguiu falar com o homem das nuvens. Mamãe dis-se, pode ser. Mas não resolve a situação. Como não resolve a situação? Mamãe respondeu, tem horta viçosa, mas não tem seu pai. Ele é melhor do que alface.

Uma semana depois, como papai não voltasse, dei a idéia de soltar a Lucinha. Mamãe se engasgou com a sopa. E por que não vai você? Eu respondi, tudo ok, mãe, mas preciso de al-guém pra me soltar. A senhora sabe soltar papagaio? Sabe en-viar telegrama? E a Lucinha sabe?

Começamos a preparar a Lucinha. Ela ficou radiante. Achou o máximo! Comunicou à vizinhança. Vestiu seu melhor vestido. Meus amigos – agora já eram meus amigos – estavam morrendo de inveja, porque nenhuma irmãzinha deles topava ser solta no céu.

Era um sábado de vento, ela estava preparada. Fomos para o campinho. Almir disse, os Móveis Testa invadiram ainda mais nosso campo com toras de madeira. Não sei se tem espaço pra correr. Ele tinha razão. Assim mesmo decidi tentar, porque Lucinha era pequena, leve e havia vento.

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Dessa vez foi mais fácil, pois eu tinha pego prática de empinar papagaio feito de gente. O vento soprou na hora certa. Não choveu. A única dificuldade foi fazer Lucinha obedecer. Ela era muito pequena e não tinha responsabilidade. Achava que estávamos brincando e não parava de dar piruetas.

Mais tarde, ela se cansou. Ficou tonta. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Foi subindo, subindo, até desaparecer de vista. Escureceu. E perto das sete papai e Lucinha estavam de volta.

Papai contou que tinha tirado a linha de sapateiro refor-çada das costas de Lucinha, colocado na dele, feito os reparos necessários no papel de seda e se soltado das nuvens, com ela no colo. Eu disse, senti quando o senhor pulou, pai. A linha ficou mais pesada.

Eu quis saber se ele tinha falado com o homem das nu-vens. Respondeu com uma pergunta, e não ia falar? Se não fa-lasse, pra que essa trabalheira toda?

Ele tinha um entusiasmo nunca visto. Papai, perguntei, por que deixou de chover na nossa horta? Papai contou que o filho do homem das nuvens, encarregado da chuva, tinha saí-do com os amigos e se esqueceu de suas obrigações.

No dia seguinte, papai convidou toda a vizinhança e deu uma festa. Tinha de tudo, principalmente algodão-doce. Previ-dente, ele e Lucinha tinham trazido uma nuvem inteira. As-sim, nossa situação melhorou bastante. Tínhamos a horta e, no depósito, a nuvem. Ficamos muito conhecidos em Uberlândia, Monte Alegre de Minas e Araguari, vendendo hor-taliças e algodão-doce.

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