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Nos ventos da ambigüidade: Heidegger leitor de Nietzsche

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Academic year: 2021

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Heidegger leitor de Nietzsche

HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Tradução de Marco Antônio Casanova.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. 2v.

Pedro Duarte de Andrade*

Martin Heidegger manteve-se, por toda sua vida, exposto àquilo que Sócrates, na origem da filosofia, chamava de vento do pensamento. Teve a força de se preservar flexível como aquelas árvores que, situadas no litoral, sofrem as investidas imprevisíveis do clima, com ventanias vindas de alto-mar que puxam seu tronco e seus galhos em direções as mais estranhas. Maleável como elas, mas também firme como elas, Heidegger fincou as raízes de seu pensar no solo do século que viveu com a mesma intensidade que filosofou. É certo que, para ele, as duas coisas eram uma só.

Testemunho cabal disso é sua longa e infatigável confrontação com Nietzsche. E, sorte nossa, o esforço com maior fôlego de tal confrontação tornou-se acessível, em 2007, ao leitor brasileiro no seu idioma natal, graças à tradução para o português do professor Marco Antônio Casanova dos dois volumes que compõem o famoso Nietzsche,

de Heidegger. Nos últimos anos da década de 1930, Heidegger dedicou-se, com afinco, à leitura de Nietzsche, que foi objeto de suas preleções universitárias, cujo conteúdo ocupa a maior parte desses volumes, embora haja neles também ensaios dos primeiros anos da década de 1940. Foi em 1961, contudo, que Heidegger reuniu e organizou o material tal como o encontramos hoje.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano VI n. 10 p. 263-269 2008

* Doutorando em Filosofia na PUC-Rio. Professor da Pós-Graduação lato sensu (Especialização)

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De lá para cá, muita polêmica envolveu esses escritos. Embora, em geral, seja reconhecido certo pioneirismo no peso filosófico que Heidegger reconheceu em Nietzsche, acusou-se ele, não raro, de fazê-lo sob o preço de sua “heideggerianização”. Em outras vezes, reclamou-se, no mesmo tom, da excessiva unificação, por Heidegger, de temas nietzschianos que foram expostos normalmente em aforismos ou faziam parte de material póstumo. No célebre texto “A metafísica de Nietzsche”1, por exemplo,

são articulados os cinco elementos que, para Heidegger, eram centrais na filosofia nietzschiana: vontade de poder, niilismo, eterno retorno, além-do-homem e justiça (sendo este último o mais surpreendente).

São reclamações curiosas, pois protestar que quando um pensador lê outro não se mantém fiel a ele é como protestar que um filme adaptado de um livro não permaneceu preso à sua letra. Ninguém, para interpretar um autor ou para adaptar uma obra sua, rasga sequer uma folha do original. Em outras palavras: quem quiser ler Nietzsche tal e qual ele é, se é que alguém que lê Nietzsche acha mesmo que tal coisa existe, basta ir na livraria mais próxima e lê-lo. Ele continua lá. Restaria ainda, de todo jeito, perguntar se, caso Nietzsche saia da leitura de Heidegger um pouco “heideggeriano”, se Heidegger, por sua vez, não sai um pouco nietzschiano.

Ler o Nietzsche de Heidegger supõe o interesse tanto por um

quanto por outro. Heidegger sabe disso. Por isso, afirma que sua leitura de Nietzsche obedece, ainda, à mesma tentativa que, em 1927, caracterizava sua primeira grande obra, ser e Tempo. Mais do que isso,

importa que Heidegger está convicto, de modo geral, que “todo pensador ultrapassa o limite interno de cada pensador”2. É isso que nos permite

entender o fundamento do esclarecimento que lemos adiante.

Trabalhamos de maneira entrelaçada apresentação e interpretação, de modo que não fica claro por toda parte imediatamente aquilo que é deduzido das palavras de Nietzsche e aquilo que é acrescentado a elas. A única coisa necessária a toda interpretação

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não é certamente deduzir a coisa mesma. Ao contrário, sem insistir nisso, toda interpretação também precisa poder contribuir discretamente com algo próprio a partir de sua questão. Essa contribuição é aquilo que, medido a partir do que o leigo toma sem interpretação pelo conteúdo do texto, é necessariamente censurado como um imiscuir-se no interpretado e como um ato arbitrário.3

Heidegger não pretende manter Nietzsche intacto. Nietzsche não possui a fixidez necessária para que fique intacto. Heidegger o questiona em nome daquilo que ele diz. Não seria isso que o próprio Nietzsche desejaria, como encarnação do princípio da vontade de poder na seara da interpretação? Parece bastante contraditório imaginar que Nietzsche quisesse leitores fiéis, que mais se assemelhariam ao que ele chamava de “rebanho” do que àqueles que ele nomeava como “espíritos livres”.

Essas questões de fidelidade perdem ainda mais importância quando compreendemos o propósito de Heidegger ao ler Nietzsche. Pois não se trata de curiosidade histórica ou de exploração erudita na filosofia. Muito antes, ler Nietzsche é, para Heidegger, a questão mais urgente. Pois, para ele, é nas palavras dos pensadores que vem à luz a doação histórica do próprio ser, ou seja, o envio da essência da história em sua temporalização, sendo que, neste caso, trata-se de nossa humanidade ocidental. Nas palavras de Nietzsche, portanto, o que lemos não são apenas vocábulos recheados de filosofia ou de anti-filosofia, mas a decisão histórica em que nossa época está lançada.

Nesta medida, a despeito de seus protestos, Nietzsche pertence, para Heidegger, à história da metafísica, entendida como nome para a própria história ocidental em seu acontecimento mais essencial. Na determinação do ente, ou seja, de tudo aquilo que é, enquanto vontade de poder, Nietzsche teria aberto a época histórica em que vivemos. Ele levou adiante a definição moderna do ser como vontade até seu cume, liberando esta vontade de qualquer referência ulterior. Ela só quer poder. Enquanto tal, ela não quer mais nada que não seja, em última instância, ela mesma.

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Metas, valores ou idéias comparecem nesta maquinação da vontade apenas como pretextos para que, a cada vez, ela possa garantir seu próprio eterno retorno, pois, a rigor, a vontade não quer coisa alguma – ela quer querer. Tudo serve apenas à ampliação de poder – não deste ou daquele homem ou nação, mas da própria vontade. Tanto assim que até o homem, diante disso, pode ser concebido como “capital humano” ou “material humano”, já que mesmo ele está a serviço do caráter incondicionado da vontade.

Foi isso que Heidegger chamou de “era da ausência de sentido consumada”. Pois a vontade de poder determina os entes de tal modo que dispensa, por sua própria essência, todo questionamento acerca do sentido do ser por parte do homem. Na medida em que só quer poder, a vontade proveria a “medida para a decisão quanto ao fato de só o eficaz dever ser considerado como ente”.4 Em outras palavras, aquilo que não é

eficaz, mais do que não ter importância ou dignidade, simplesmente não é. Buscar, por exemplo, o sentido ou a verdade do ser não é exatamente eficaz, logo deve ser deixado de fora.

Pensar o ser, a entidade do ente, enquanto vontade de poder significa: conceber o ser como a liberação do poder em sua essência, de tal modo que o poder, vigorando incondicionalmente, estabelece o ente como o objetivamente efetivo no primado exclusivo contra o ser e faz com que o ser caia em esquecimento”.5

Na dobra da vontade sobre si mesma enquanto vontade de poder, ela instala o império das meras coisas, ou seja, dos entes, fora de toda menção à pergunta sobre o seu ser. “Na objetivação, o próprio homem e tudo o que é humano se transformam em mero fundo de reserva que, computado psicologicamente, é inserido no processo de trabalho da vontade de vontade”.6 De agora em diante, somente o objetivamente

eficiente deve valer.

4 Heidegger, op. cit., p. 288. 5 H , op. cit., p. 3.

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Daí a marcha da organização incondicionada daquilo que é o “efetivamente real” encobrir não exatamente o ser mas, antes mesmo disso, a própria possibilidade da pergunta por ele. De antemão, já está decidido: só é o que é eficaz. Não estranha que, nesse cenário, palavras como liberdade ou justiça, verdade ou coragem, tenham se tornado inteiramente vazias na nossa época. É que o seu sentido não pode ser, digamos, “preenchido” por nenhuma efetividade tecnicamente real ou realizada. Sem o entrave da pergunta pelo sentido de ser, então, pode a maquinação planetária dar vazão à sua sanha desenfreada com os entes.

Faria parte dessa sanha da vontade, por exemplo, o ideal nazista da “mobilização total”, expressão de Ernst Jünger que Heidegger menciona no Nietzsche II. Para aqueles que insistem em criticar Heidegger

por conta de seu envolvimento com o movimento nacional-socialista e seu posterior silêncio a este respeito, encontra-se aqui algo bem mais importante: a interpretação filosófica daquilo que estava em jogo em tal movimento. Em jogo estava, aliás, o próprio movimento, a mobilização total, incessante e incondicionada, tal como determinada pela vontade de poder. Nesta maquinaria sem limites, tem lugar a pretensão de domínio incondicionado da Terra.

A era da consumação da metafísica – considerada a partir do acompanhamento pensante dos traços fundamentais da metafísica de Nietzsche – nos dá a pensar até que ponto nos encontramos inicialmente na história do ser e até que ponto precisamos experimentar antes disso a história como largar o ser em meio à maquinação, um largar que é enviado pelo próprio ser.7

Há, portanto, forte ambigüidade, pois é a história do ser que nos entrega o ser largado em meio à maquinação, o que significa que não adianta imaginarmos um desvio desta maquinação em prol de um questionamento mais radical do ser. Pelo contrário. Somente através da experiência profunda do que é essencialmente esta maquinação típica do

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mundo da técnica, podemos questionar propriamente o ser, pois este é o envio histórico pelo qual ele chega até nós hoje. Por isso, o pensamento de Nietzsche é tão crucial. Nele, podemos fazer a experiência de um tal recebimento daquilo que somos em nossa época, tanto no que ela coloca obviamente diante de nós quanto no que fica escondido em meio a isso. Se o óbvio é o ente, cuja maquinação instala-se enquanto vontade de poder, isto, ao mesmo tempo, encobre o ser, de onde o pensamento recebe seu vigor. Na metafísica da vontade de poder, apenas é radicalizada, para Heidegger, a tendência metafísica fundamental de esquecimento do ser. Este esquecimento, contudo, não apenas esconde o ser. Ele é também a sua preservação, a sua salvaguarda. Por isso, a história da metafísica é, ambiguamente, o esquecer que guarda, o encobrir que protege. Ela traz em seu bojo o insondável que, no entanto, reverbera a cada vez: o ser.

Por isso, Heidegger considerou o passado essencial como liberação. Pois ele não passou. Ele pode ser, antes, um início. E o início, enquanto tal, só é o que é no próprio iniciar. Por meio disso, o passado essencial “ultrapassa tudo o que chega depois dele e é assim por vir”.8 Não por acaso, o último dos textos do Nietzsche chama-se

“Lembrança da metafísica”. É que ela “é a história do ser como o curso contínuo a partir do início, um curso que deixa o retorno a outrora se tornar uma urgência e a lembrança do início se tornar uma necessidade extremamente urgente”.9 Isso vale para toda a história da metafísica,

inclusive para Nietzsche, já que, a rigor, ela toda “permanece afastada do início de maneira igualmente essencial em seu começo tanto quanto em seu fim”.10

Em cada coisa que pensa, Heidegger pensa o ser. E o ser, para ele, é ambíguo, é vazio e riqueza11, é “promessa de si mesmo”. Por isso,

o pensamento de Heidegger, segundo ele mesmo indica12, precisa ser

ambíguo, evitando demonizações e elogios, pessimismos e otimismos,

8 Heidegger, op. cit., p. 2. 9 Heidegger, op. cit., p. 375. 10 Heidegger, op. cit., p. 377.

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atingindo uma região aquém dessas clivagens: a região da ambigüidade. É isso que explica suas idas e vindas ao interpretar Nietzsche enquanto aquele que nos lança para a decisão de nossa época. Elas são apenas a coragem que teve Heidegger de se deixar levar pelo vento do pensamento. Nietzsche é a consumação da metafísica neste sentido ambíguo, pelo qual a revela na sua forma mais nítida e radical, mas assim também a leva até o seu limite extremo, como possível preparação de um outro início.

Referências

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