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KIERKEGAARD, CLIMACUS E O ESTILO DO PENSADOR SUBJETIVO NO POST-SCRIPTUM

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365 KIERKEGAARD, CLIMACUS E O ESTILO DO PENSADOR SUBJETIVO NO

POST-SCRIPTUM

Leonardo Araújo Oliveira

BRESUMO: Buscamos, com a presente comunicação, abordar a figura do pensador

subjetivo, desenvolvida por Climacus no Post-scriptum. A partir dessa abordagem, trataremos da questão do estilo, tal como exposta nessa obra. Paralelamente, manteremos uma relação entre o conteúdo dessa exposição com o destaque em propostas estilísticas presentes na escrita do próprio Kierkegaard.

1135BPalavras-chave: Estilo. Climacus. Kierkegaard. Pensador subjetivo. Post-scriptum.

1136BABSTRACT: The aim of this presentation is to discuss the image of the subjective

thinker, developped by Climacus in his Post-scriptum. By this topic, we’ll deal with the question of the style, as exposed in that work. In parallel, we’ll maintain a relation between the content of this exposition and the stylistic proposals that figures on Kierkegaard’s writing style.

1137BKey-words: Style. Climacus. Kierkegaard. Subjective thinker. Post-scriptum.

1138BINTRODUÇÃO

1139BCaracterísticas fortemente presentes na filosofia contemporânea, como o

descrédito ao predomínio da razão, o caráter particular dos temas abordados, a emergência da multiplicidade de interpretações, o enfraquecimento da linha divisória entre filosofia e literatura, convergem para um ponto em comum: não seria mais possível, tal como pretendia Hegel, realizar a filosofia como um sistema. Pensando na recusa ao modo sistêmico de composição e exposição filosófica, Søren Kierkegaard (1813-1855) figura como um precursor e anunciador da abertura em que se regem os modos contemporâneos de se fazer filosofia.

1140BNo presente texto, trataremos da questão do estilo, a partir do conflito entre

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científico às Migalhas Filosóficas, de Kierkegaard (assinado pelo pseudônimo Johanes Climacus em 1846), entre o pensador subjetivo e o pensador objetivo. Damos ênfase temático-bibliográfica ao terceiro capítulo da segunda parte da obra, intitulado “a subjetividade real, a subjetividade ética; o pensador subjetivo”, especialmente a quarta seção, intitulada "O pensador subjetivo; sua tarefa, sua forma, isto é, seu estilo”. Com isso, buscamos levar em consideração não apenas o correspondente ao “conteúdo” expresso no Post-Scriptum, mas demonstrar, também, como alguns temas do texto, sobretudo por sua inflexão existencial, se relacionam com sua forma de expressão filosófica, através do uso da comunicação indireta, ou seja, também destacamos como o conteúdo da filosofia de Kierkegaard é reduplicado no estilo.

1141BO PENSADOR SUBJETIVO

1142BEm sua autobiografia intelectual, o Ponto de vista explicativo de minha obra

como escritor, Kierkegaard expõe o papel do Post-Scriptum na batalha, enfrentada por Johanes Climacus, contra a pretensão totalizante dos sistemas filosóficos:

1143BAqui se situa o Post-Scriptum definitivo, o ‘ponto crítico’ de toda a

obra que põe o ‘problema’ e que, por outro lado, graças a uma esgrima indirecta e a uma dialética socrática, fere de morte ‘o Sistema’, pelas costas, numa luta contra o Sistema e a especulação (KIERKEGAARD, 1986, p. 85).

1144BEmbora o embate teórico com a tradição filosófica, sobretudo com a filosofia

moderna, possa posicionar Kierkegaard em sua própria formulação do conflito entre Indivíduo e multidão79F

223, o século em que viveu gerou nomes como Marx e Nietzsche,

que, em favor de uma nova relação entre teoria e existência, também fizeram esforços, ainda que de maneiras distintas, com vistas em enfrentar aquilo que o mestre da ironia denomina de fantasmagoria do pensamento puro. Porém, segundo Sartre, a partir de Kierkegaard surgem conseqüências filosóficas especificas:

223 Reforçando que a categoria de “Indivíduo”, Kierkegaard opõe à noção de “multidão”, concebendo

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1145BSem dúvida, uma das preocupações constantes do século XIX

consiste em distinguir o ser do conhecimento que dele se tem; dito de outro modo: em rejeitar o idealismo. O que Marx reprova em Hegel não é tanto seu ponto de partida quanto a redução do ser ao saber. Mas para Kierkegaard – e para nós, que hoje consideramos o escândalo kierkegaardiano – se trata de uma certa região ontológica em que o ser pretende [...] escapar ao saber e alcançar a si mesmo (SARTRE, 2005, p.16).

1146BA linha que liga ser e pensamento se inicia com a proposição de Parmênides

que diz “pensar é ser” e se estende, pela história da filosofia, à identificação hegeliana entre realidade e racionalidade. Para Hannah Arendt,

1147Bapós a morte de Hegel, ficou evidente que seu sistema representava

a palavra final de toda a filosofia ocidental, pelo menos na medida em que, desde Parmênides e apesar de suas várias mudanças e aparentes contradições internas, ela nunca tinha ousado questionar a unidade entre pensamento e Ser: to gar auto esti noein te kai einai. Os que vieram depois de Hegel ou seguiram suas pegadas ou se rebelaram contra ele, e aquilo contra o que se rebelaram e com que se desapontaram foi a própria filosofia, a identidade postulada entre pensamento e Ser (ARENDT, 2008, p.193).

1148BKierkegaard questiona a adequação entre ser e pensamento, e a noção de

verdade que dela deriva, a partir da existência. A existência não é precedida pelo pensamento ou por uma essência, ela se compõe no constante movimento do tornar-se, e, ao contrário de ser definida segundo a pré-eminência do pensamento, pré-existe a ele (CF. KIERKEGAARD, 2010, p.94), fazendo-o pensar, e a pensar, inclusive, o impensado, a saber, o paradoxo, que é descrito por Climacus, nas Migalhas filosóficas, como a grande paixão do pensamento (Cf. KIERKEGAARD, 2011, p.59).

1149BUma proposição de cunho ontológico acerca do conhecimento é a de que ele

possui uma realidade, mas disso não se permite inferir que pensamento e ser se unificam em uma relação de identidade. No plano existencial, o ser do saber – enquanto abstração especulativa da objetividade – e o ser da existência – como experiência vivida da subjetividade – são estruturas distintas e heterogêneas entre si. O conhecimento objetivo, o saber sistemático, a produção científica, se aplicados à existência, resultam apenas em falsos saberes (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.342-343). Nesse nível argumentativo, Kierkegaard/Climacus estabelece, no Post-scriptum,

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a diferenciação entre pensador objetivo e pensador subjetivo, e o subsequente desenvolvimento do problema da comunicação e da estilística, cunhado na categoria da comunicação indireta. Essa problemática se concentra, em maior grau, na segunda parte da obra, no interior do terceiro capítulo da segunda seção, onde destacamos o quarto parágrafo, intitulado O pensador subjetivo; sua tarefa, sua forma, isto é, seu estilo.

1150BSe o exercício do pensamento puro é o que define a qualidade de um

pensador, o pensador subjetivo é desqualificado, bem como todos os problemas existenciais, que não encontram um ambiente próprio nas filosofias de sistema; o pensador subjetivo é um dialético existencial (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.345). O pensamento próprio à existência não é concebível sem paixão, pensar sem paixão seria possível somente com a anulação da existência no processo do pensamento. Assim, o pensador subjetivo argumenta com base em uma dialética da interioridade existencial apaixonada. Se a existência é paradoxal, se o sentimento que impera na tentativa de alcance e construção de si mesmo é o de uma imensa contradição, o pensador subjetivo não escapa de seus problemas com abstração, objetividade, cientificidade, pois assume como sua a tarefa de compreender-se na existência e de impedir sua diluição na dialética da história universal. Nesse sentido, Climacus afirma que a tarefa mais elevada para o homem é a de chegar a ser subjetivo (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.166).

1151BO pensador subjetivo se apropria da verdade com paixão, estando

acompanhado pelo paradoxo como parte integrante da existência. Evitando que o domínio do pensamento se infeste de quantificação, o pensador subjetivo retira a verdade do âmbito científico e a torna um problema existencial. Assim, Kierkegaard, como o pensador subjetivo que descreve, advoga que o único conhecimento essencial é aquele cuja relação com a existência é essencial (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.199). Nota-se aqui a defesa de uma relação intrínseca entre pensamento e existência, que pode ser inteiramente compreendida apenas se for diferenciada do postulado que busca estabelecer uma relação, nas mesmas condições, entre pensamento e ser:

1152BQue o conhecimento essencial se relaciona essencialmente com a

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369 entre pensamento e ser mencionada acima, nem tampouco que o conhecimento se relacione objetivamente com algo que exista com seu objeto. O que significa é que o conhecimento se relaciona com aquele que conhece, o qual é essencialmente um existente, e que, por tanto, todo conhecimento essencial se relaciona com a existência e com o existir (KIERKEGAARD, 2010, p.199).

1153BVerdade e ser; verdade e existência: essas relações devem permanecer

inconfundivelmente distintas uma da outra, na medida em que é precisamente a existência que desconstrói a ligação entre sujeito e objeto, a identidade entre pensamento e ser e o conceito de verdade que dela deriva. São, portanto, perspectivas opostas, pois a tese que identifica pensamento e ser, como anuncia Climacus, “expressa que o pensamento tenha abandonado a existência completamente, que tenha emigrado e encontrado um sexto continente em que é totalmente auto-suficiente, acomodado sob a absoluta identidade entre pensar e ser” (KIERKEGAARD, 2010, p.327).

1154BEscapar do predomínio das teorias estatutárias, da quantificação do

pensamento, da limitação e adequação da verdade à objetividade, é se diferenciar do pensador abstrato-objetivo. Na primeira parte do Post-scriptum, nas teses sobre Lessing, essa diferenciação é apresentada:

1155BEnquanto o pensamento objetivo é indiferente ao sujeito que pensa

e à sua existência, o pensador subjetivo, enquanto existente, está essencialmente interessado pelo seu próprio pensamento, existe nele. Portanto, o seu pensamento possui outro tipo de reflexão, a saber, a da interioridade, da posse, em virtude da qual pertence ao sujeito pensante e a nenhum outro. Enquanto o pensador objetivo estabelece tudo em termos de resultado, e estimula toda a humanidade a trapacear, mediante a transcrição e repetição de resultados e de fatos, o pensamento subjetivo põe tudo em devir e omite o resultado, em parte, precisamente porque lhe pertence, posto que possui o caminho que conduz a ele; e em parte porque, enquanto existente, se encontra permanentemente em devir (KIERKEGAARD, 2010, p.82).

1156BAo invés de compreender o concreto de maneira abstrata, o pensador

subjetivo busca compreender o abstrato de maneira concreta (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.347). Quando Kierkegaard fala em “omissão do resultado” pelo pensador subjetivo, não está revelando uma falta de probidade intelectual. Aqui, mais uma vez surge a oposição a Hegel, particularmente à tese que postula a identificação entre

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interioridade e exterioridade. Para o pensador dinamarquês, tal tese não apenas desqualifica a interioridade, mas, no bojo da identificação entre pensamento e ser, omite o devir da existência e do pensamento, isto é, a dificuldade. A “omissão do resultado” compõe a própria complicação da verdade, que transcende o âmbito daquilo que se pode contabilizar e conceber como produto acabado.

1157BPor isso o pensamento objetivo não comporta enigmas, que competem

apenas ao pensador subjetivo. Essa distinção se desdobra no problema do estilo, uma vez que a comunicação do pensador subjetivo “enquanto sua forma, deve ser essencialmente conforme a sua própria existência” (KIERKEGAARD, 2010, p.89), e o devir e a multiplicidade da existência devem refletir no estilo, pois quem “o tem de verdade, nunca o tem acabado, mas cada vez que inicia, ‘agita as águas da linguagem’ e consegue que a expressão mais cotidiana surja para ele com a originalidade de um recém nascido” (KIERKEGAARD, 2010, p.94-95).

1158BEstar atento à dialética da comunicação é uma tarefa para o pensador

subjetivo (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.82). Essa tarefa, que é esforço de um pensador que também é Indivíduo, caracteriza o seu movimento de constante tornar-se a si mesmo, libertando-se, no interior do devir e da afirmação de si como pensador existencial; e assim como o pensador subjetivo se liberta a si mesmo, “o enigma, na comunicação, reside precisamente em libertar o outro, daí que não se deva comunicar diretamente” (KIERKEGAARD, 2010, p.83).

1159BA reflexão sobre o problema da comunicação, resultada na proposta de uma

comunicação indireta, pode ser compreendida como uma necessidade, entrevista, forjada e realizada por Kierkegaard, de encontrar um estilo próprio para tratar de questões existenciais, que atuasse em consonância com a própria dinâmica inerente à existência, e que permitisse, ao mesmo tempo, teorizar a comunicação, se preocupando com a subjetividade do receptor, tratando-se do ato de comunicar a verdade da interioridade. A proposta kierkegaardiana evidencia os limites do discurso sedimentado na linguagem científico-especulativa, que não poderia comunicar a verdade subjetiva, pois não engendra pathos, não se relaciona com a existência enquanto devir.

1160BSe verdade é subjetividade, trabalho da interioridade, pathos da existência, a

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371 que “objetivamente, se acentua o que se diz’; subjetivamente, como se diz” (KIERKEGAARD, 2010, p.204, grifos nossos). É perceptível que apenas o pensador subjetivo procura sua própria diferença, isto é, é o pensador subjetivo quem se diferencia do objetivo, retirando o peso do suposto objeto a ser comunicado e acentuando o próprio processo de comunicação, pois é ele quem está atento a forma de sua expressão, devido à particularidade do conteúdo de seu discurso e da coerência a que pretende seguir. Contudo, esse processo de reduplicação da verdade subjetiva na verdade do estilo não se realiza apenas com o fito de se manter uma coerência entre teoria e prática, entre forma e conteúdo; ele anuncia também o próprio poder da verdade tomada em uma perspectiva existencial, mostrando como ela não é somente algo a ser efetivado, mas que é o próprio efetivar-se, isto é, como a verdade reside no próprio discurso – ela é enunciada ao mesmo tempo em que se enuncia.

1161BTendo em vista o incessante processo de atentar-se ao estilo, Climacus afirma

que o pensador subjetivo não é um cientista, um erudito, mas um artista (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.346); e que

1162BO fato de que o conhecimento não possa ser declarado diretamente,

por ser essencial nele a apropriação, é o que faz com que seja um segredo para todo aquele que não é por si mesmo duplamente reflexivo. Mas, que essa seja a forma essencial da verdade, faz com que não possa ser enunciada de outra maneira. Por isso, quem pretende comunicá-la diretamente é um estúpido, e se alguém tratara de exigi-lo, também o é. Frente a uma comunicação artística e enganosa como esta, a habitual estupidez humana gritaria: “Isso é egoísmo!”. Se uma estupidez semelhante triunfasse e a comunicação fosse direta, o triunfo da estupidez seria tal que o comunicante chegaria a ser igualmente estúpido (KIERKEGAARD, 2010, p.88).

1163BConceber o pensador subjetivo como um artista reforça a tese de que a

preocupação com o estilo é um elemento central em seu pensamento, não somente no que diz respeito à escrita, mas também ao cultivo da existência como algo belo, à criação de si mesmo como singularidade estética, desde que não reduzamos essa expressão ao âmbito dos estádios80F

224, assistimos o delineamento de uma estilística da

224 Isto é, não é porque mencionamos a possibilidade de uma estética da existência em Kierkegaard

que essa hipótese possa ser refutada por uma crítica ao estádio estético, assim como a ética existencial (segunda ética) não se identifica com o estádio ético.

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existência, pois, como afirma Climacus: “existir é uma arte” (KIERKEGAARD, 2010, p.346).

1164BESTILO E COMUNICAÇÃO INDIRETA

1165BGilles Deleuze, em Diferença e Repetição, ao abordar a questão do estilo na

história da filosofia, ressalta a presença de Kierkegaard, ao lado de Nietzsche, como um dos grandes renovadores do modo de expressão filosófica, em consonância com a crítica do que seria um falso movimento hegeliano, em proveito de uma introdução do movimento no texto filosófico, capaz de afetar o espírito de tal modo que não se permita encerrá-lo na mediação:

1166BKierkegaard e Nietzsche estão entre os que trazem à Filosofia novos

meios de expressão. [...] inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito. Esta é uma ideia de homem de teatro, uma ideia de encenador – avançado para seu tempo. É neste sentido que alguma coisa de completamente novo começa com Kierkegaard e Nietzsche. [...] Eles inventam, na Filosofia, um incrível equivalente do teatro, fundando, desta maneira, este teatro do futuro e, ao mesmo tempo, uma nova filosofia (DELEUZE, 2009, p.28-29).

1167BO autor de Temor e tremor instalou e permaneceu com um tom poético em

grande parte de seus escritos, fez uso de pseudônimos e personagens, que comportam a tonalidade de falas de personagens retiradas do teatro, discursos que partem de lugares específicos, que ainda que, enquanto máscaras literárias, atuam em consonância com um método pedagógico, uma vez que, como apontado no Ponto de vista explicativo, o efeito estético da comunicação indireta se insere em uma proposta ética, religiosa e filosófica, como tática imprescindível para tarefa de tornar o homem atento (Cf. KIERKEGAARD, 1986, p.45).

1168BUma análise da comunicação pela via direta traz à luz a pretensão à verdade

objetiva, correspondente ao tipo de discurso científico, que pressupõe o conceito de verdade ligado à adequação entre pensamento e ser. No discurso objetivo, o caráter enigmático da subjetividade é diluído e obliterado, o que o torna impróprio para expressar os problemas filosóficos existenciais. A prática da comunicação indireta, por sua vez, reflete o projeto de incorporação da verdade na existência. Dessa

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373 maneira, a comunicação indireta é concebida por Kierkegaard como a mais apropriada para expressar o tipo de filosofia que se propõe a fazer, da filosofia que não se separa da existência e das dificuldades que lhe são inerentes, como o movimento real (não-conceitual) e o devir.

1169BKierkegaard, como um pensador subjetivo, se move no interior da tensão de

se mostrar e se ocultar, por meio da ironia, do humor e, sobretudo, possuindo uma aguda consciência do caráter imprescindível da comunicação indireta – assumindo, nas últimas páginas do Post-scriptum, que a pseudonímia não se trata de um procedimento acidental, mas de um recurso essencial em sua produção (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p.602).

1170BO estilo de Kierkegaard, que insere sua escrita nos mais diversos espaços,

como o filosófico, o religioso, o psicológico, o teológico e o literário, se inscreve na via contrária à imagem do pensamento estatutário, expresso na forma do discurso objetivo, direto e unidimensional. Contudo, não apenas sua forma de expressão permite uma inserção do pensador dinamarquês em uma posição crítica em relação à tradição filosófica, mas também sua reflexão acerca do próprio estilo, que se encontra no cerne de sua filosofia, pois se envolve com o problema da comunicação de uma teoria que trate das questões existenciais, de uma filosofia que propõe um questionamento e uma ampliação temática em torno do conceito de verdade.

1171BA verdade como apropriação do Indivíduo em sua interioridade, não pode ser

tratada, simplesmente, como conteúdo claro e distinto, que possa ser ensinado meramente através de um procedimento de transferência81F

225. Portanto, ao contrário

do pensador objetivo, o pensador subjetivo incorpora o conteúdo à forma de sua expressão, em constante atenção, não somente ao que enuncia, mas à elaboração do seu enunciado de acordo à verdade com a qual procura trabalhar.

1172BA comunicação direta é caracterizada por Kierkegaard como comunicação de

saber, tendo uma dupla direção: serviria aquele que sabe algo e que, a partir disso, julgaria o que lhe é comunicado; e aquele que não sabe, e, portanto, apreenderia o que lhe é comunicado. A proposta de uma comunicação indireta opera, assim, um duplo desvio, concentrando-se, contudo, em se afastar da síntese em que se pode

225 Esse é o ponto de partida de Climacus em sua obra anterior ao Post-scriptum: “Em que medida se

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fixar tanto o endereço da comunicação dos que julgam saber (e por isso julgam o saber) e daqueles esvaziados de conhecimento prontos a captarem saberes, a saber: a transmissão do conhecimento. A comunicação indireta não visa transmitir, mas convocar o leitor/interlocutor à interpretação. A comunicação kierkegaardiana consiste em um exercício de linguagem da subjetividade, da interioridade. Ela se expressa pelo que Kierkegaard denomina de dupla-reflexão; ou seja, em primeiro lugar, a reflexão da interioridade, em que o pensador subjetivo procura comunicar sua existência, com todo o enigma que lhe é inerente, e num segundo momento, a reflexão da alteridade, que leva em consideração a interioridade do outro, do interlocutor que receberá a mensagem indireta. No entanto, por conta da singularidade da mensagem, da forma em que é comunicada, a recepção do leitor é sempre uma interpretação, não podendo ser confundida, desse modo, com um processo passivo por parte de quem recebe, mas sim como uma prática propriamente ativa e existencial.

1173BNão sendo comunicação de saber, Kierkegaard configura a comunicação

indireta como comunicação de poder. Segundo Bruno Romano:

1174BNo interior do nexo liberdade-verdade-comunicação, a comunicação

pode apresentar-se segundo duas possibilidades que se opõem: a comunicação objetiva-alienante, que é simples e objetivamente comunicação de saber; a comunicação existencial-libertadora, que é comunicação de poder, de possibilidade. Segundo os termos de Kierkegaard, a primeira é denominada comunicação direta, a segunda comunicação indireta (ROMANO apud ALMEIDA, 2009, p.128, grifos do autor).

1175BO poder da comunicação indireta pode ser compreendido com maior

amplitude se a entendemos não como um objetivo da comunicação, mas como sua configuração formal, enquanto possibilidade. Assim, o poder se expressa na comunicação, como uma possibilidade genética de interpretações. A comunicação indireta pode ser compreendida como uma expressão da potência criativa da comunicação.

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1177BKierkegaard não busca anular o conhecimento objetivo. Trata-se apenas de

evidenciar seus limites. Para o pensador dinamarquês, um sistema lógico é possível, apenas não é possível um sistema da existência. A existência, apreendida de uma perspectiva sistemática, seria possível apenas para Deus, isto é, para um não existente. Desse ponto de vista, teríamos um elogio ou uma ofensa ao filósofo sistemático? Não poderíamos ir tão longe, acatando uma dessas asserções. A ironia kierkegaardiana parece nos indicar que o pensador sistemático possui pretensões desmedidas. Bem, se a forma de pensamento para uma filosofia da existência não pode ser sistemática, a reinvenção estilística é um procedimento necessário

1178BOra, se o sentido da verdade escapa à ciência, à objetividade, ao sistema, à

razão pura, como tratar da verdade? Como fazer filosofia? A comunicação indireta parece ser o caminho. Somente com uma reinvenção lingüística que acople a ironia, o humor, a comicidade, a pseudonímia, a plurissignificação; somente com procedimentos comunicativos oblíquos, que se realizem de forma indireta, torna-se possível uma filosofia que trate a verdade de uma perspectiva existencial. Ao mesmo tempo, somente se a verdade comportar, também, um sentido vital, a filosofia poderá enfrentar a tarefa de se emaranhar na existência.

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REFERÊNCIAS

1180BALMEIDA, Jorge Miranda de. Ética e existência em Kierkegaard e Lévinas.

Vitória da Conquista: UESB, 2009.

1181BARENDT, Hannah. O que é filosofia da existência? In: ______. Compreender:

formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 192-216.

1182BDELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

1183BKIERKEGAARD, Søren. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João

Clímacus. Petrópolis: Vozes, 2008.

1184B______. Ponto de vista explicativo de minha obra como escritor. Lisboa:

Edições 70, 1986.

1185B______. Post Scriptum no científico y definitivo a “Migajas filosóficas”.

Salamanca: Ediciones Sígueme, 2010.

1186BSARTRE, Jean-Paul. El universal singular. In: Kierkegaard vivo: Uma

Referências

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