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A Ética na tragédia: o cuidado de si 1

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A Ética na tragédia: o cuidado de si

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[publicado no Caderno de Pesquisa em Filosofia - Póros - nº 1 -2005 - Revista do Curso de Filosofia da Universidade Metodista de Piracicaba]

Márcio Mariguela Professor de História da Filosofia Contemporânea no Curso de Filosofia da Faculdade Ciências Humanas da UNIMEP

Nietzsche escreveu O nascimento da tragédia em 1871. É uma obra de juventude. No mesmo ano, candidatou-se à cadeira de Filosofia na Universidade da Basiléia e não foi aprovado. O interesse de Nietzsche pela época trágica dos gregos vem desde 1864, quando escreveu seu trabalho de conclusão escolar sobre as obras de Sófocles. A trilogia tebana (Édipo Rei - Édipo em Colono - Antígona) foi objeto de estudos freqüentes no período em que Nietzsche estudava filologia.

No aforismo 9 de O nascimento da tragédia escreveu: "tudo o que na parte apolínea da tragédia grega chega à superfície, no diálogo, parece simples, transparente, belo. Nesse sentido, o diálogo é a imagem e o reflexo dos helenos (...) deste modo, a linguagem dos heróis sofoclianos nos surpreende tanto por sua apolínea precisão e clareza, que temos a impressão de mirar o fundo mais íntimo de seu ser, com certo espanto pelo fato de ser tão curto o caminho até esse fundo".2 Observemos que o filósofo da Basiléia identifica o diálogo como a representação apolínea por excelência. Isto significa que podemos apreender os diálogos de Platão na mesma perspectiva.

Há certamente diálogo nas peças teatrais, encenadas em Atenas no século V aC. A escrita dos poetas trágicos e cômicos é dialogal: um personagem fala com outro que por sua vez fala com o Coro. A escrita de Platão é, predominantemente, dialogal. Mas há diferenças profundas na composição estrutural de cada escrita: de Sófocles, por exemplo, e Platão. Não pretendo entrar nesta via que, certamente, é bem atraente.

1 O presente texto deriva de uma conferência proferida na Semana de Estudos de Filosofia (24 a 28/09/2001),

realização do Centro Acadêmico Pe. Narciso Vieira Ehrenberg e Direção e Coordenação do Instituto de Filosofia da PUC-Campinas.

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Se ficarmos restritos ao citado texto de Nietzsche, podemos acompanhar a distinção precisa entre os diálogos de Sófocles e de Ésquilo. Comentando a figura emblemática de Édipo por oposição aos atos de Prometeu, Nietzsche considerou os embates de forças entre a tragédia de Sófocles e as de Ésquilo: à glória da passividade de um, contrapõem a glória da atividade do outro. Forças ativas e passivas determinam oposições insuperáveis numa concepção unária de humana. O animal homem é marcado por forças antagônicas que duelam, que combatem.

Édipo, "foi concebido por Sófocles como a criatura nobre que, apesar de sua sabedoria, está destinada ao erro e à miséria, mas que, no fim, por seus tremendos sofrimentos, exerce a sua volta um poder mágico abençoado que continua a atuar mesmo depois de sua morte".3 Neste sentido, Nietzsche considerou Sófocles um poeta-pensador

religioso, pois teria ensinado que "a sabedoria é um crime contra a natureza".

Prometeu nos apresenta outra imagem do animal homem: "o homem, alçando-se ao titânico, conquista por si a sua cultura e obriga os deuses a se aliarem a ele, porque, em sua autônoma sabedoria, ele tem na mão a existência e os limites desta (...) o artista titânico encontra em si a crença atrevida de que podia criar seres humanos e, ao menos, aniquilar deuses olímpicos: e isso, graças à sua superior sabedoria, que ele, em verdade, foi obrigado a expiar pelo sofrimento eterno".4

Vejamos, portanto, que o final trágico de Édipo e Prometeu são bem distintos: Édipo Rei perfura seus olhos com o broche de sua esposa-mãe Jocasta e vai para o exílio em Colono. Sua filha Antígona o acompanha no exílio e assim começa a segunda parte da trilogia. O rei de Colono o acolhe em suas terras onde Édipo narra sua triste desventura. Ao final, Édipo passa por uma "transfiguração infinita", no dizer de Nietzsche. O sofrimento de Édipo encontra uma redenção final e nos ensina que o homem não pode transgredir o nomos, sob pena de ser banido do convívio com os seus conterrâneos, ser exilado de sua terra. Nos ensina também que a sabedoria cega: o diálogo de Édipo com Tirésias é exemplar. Em Sófocles o embate entre nomos e physis assume todo seu explendor.

O castigo de Prometeu é de outra ordem. O sofrimento não é abolido com a redenção ou transfiguração. O titã Prometeu paga, cotidianamente, o preço de seu atrevimento: ter roubado o fogo dos deuses e presenteado os homens. O fogo que permitiu

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forjar a cultura, o homem recebeu graças a um sacrilégio: "e assim, o primeiro problema filosófico estabelece imediatamente uma penosa e insolúvel contradição entre homem e deus, e a coloca como um bloco rochoso à porta de cada cultura".5 A metáfora da rocha pode ser extensiva ao mito de Sísifo.

Num dos mais belos trechos da tragédia Prometeu Acorrentado encontramos a posição do herói diante do castigo a que foi submetido pelos deuses. A jovem Io - que vivia errante - encontra-se com Prometeu acorrentado no rochedo. Io conta seu destino de perseguida pelos ciúmes de Juno, esposa de Júpiter (Zeus). Desolada, Io interroga-se sobre o sentido de sua vida e pensa que o suicídio seria uma possibilidade de por fim a seu sofrimento: "Para que serve a vida? Porque não me precipito desta rocha escarpada? A pedra que me esmagasse seria minha salvação: melhor será morrer uma vez, do que penar todos os dias". Prometeu lhe respondeu: "Como suportarias, então, os tormentos que padeço eu, que estou impossibilitado de morrer! A morte ser-te-á, ao menos, o fim de teus sofrimentos, ao passo que minhas dores só terão fim quando Júpiter (Zeus) for despojado de seu poder".6

A oposição que Nietzsche estabeleceu entre Sófocles e Ésquilo parece-me exemplar para interpretar a oposição entre o impulso apolíneo e o dionísiaco. Oposição que mantém em si uma ambivalência fundamental: "Tudo o que existe é justo e injusto e em ambos os casos é igualmente justificado".7 Temos, portanto, estabelecido pares de forças que se multiplicam de forma ininterrupta: "o contínuo desenvolvimento da arte esta ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações".8

A emergência histórica da filosofia nos diálogos de Platão representa uma nova composição de forças entre impulso apolíneo e o dionísiaco. No primeiro parágrafo do texto, Nietzsche afirmou que das cinzas da tragédia, surgiu a moral socrática - empreendida por Platão em seus diálogos. Se é possível sustentar a dicotomia entre os valores bem e mal

4 Idem, p. 66. 5 NIETZSCHE, 1992, p. 67. 6 ÉSQUILO, 1986, p. 129. 7 NIETZSCHE, 1992, p. 69. 8 Idem, p.27

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a partir da emergência da filosofia socrática, podemos interrogar se nos diálogos que compõem as tragédias, não estaria presente também uma forma de moral?

É bem verdade que o filólogo Nietzsche não trabalhava com a distinção entre ética e moral. Mas é bem provável que possamos marcar campos distintos para uma e outra. O filósofo francês Michel Foucault parece-me fornecer indicações muito precisas para reconhecer a ética no campo da tragédia e a moral no campo da filosofia socrática.

Sugiro a leitura de uma dessas indicações. Trata-se de um Seminário que Foucault ministrou no Departamento de Religião na Universidade de Vermont. Tendo como título "Tecnologias de si", Foucault apresentou parte de suas pesquisas que vieram a ser publicadas em 1984 como volume II (o uso dos prazeres) e volume III (o cuidado de si) da História da Sexualidade, últimos livros publicados em vida.

Por tecnologia, Foucault compreendia toda formação histórica de discursos e dispositivos que garantiam ao animal homem construir um saber sobre si. O autor caracterizou quatro tipos de tecnologia: tecnologias de produção, que permitem produzir, transformar ou manipular coisas; tecnologias de sistemas de signos, que permitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou significações; tecnologias de poder, que determinam a conduta dos indivíduos, submetendo-os a certos tipos de fins ou de dominação que garante um nível de objetivação do sujeito; e por fim, tecnologias de si, que garantem aos indivíduos efetuar, por sua própria conta e com ajuda de outros, certo número de operações sobre seu corpo e sua alma, seus pensamentos, conduta, ou qualquer forma de ser, obtendo assim, uma transformação de si mesmo com a finalidade de alcançar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade.9

O autor adverte para o fato de que os quatro tipos de tecnologias não funcionam de modo separado. É possível sustentar que, em seu conjunto, a obra de Foucault contém modos específicos de articulam entre os diferentes tipos de tecnologia. Cito duas apenas para os interessados: História da Loucura na Idade Clássica de 1961; e a outra, Vigiar e Punir de 1965.

Seguindo as trilhas apresentadas no Seminário de Vermont, Foucault pretendeu traçar "a história do modo em que um indivíduo atua sobre si mesmo" ou em outros termos, constituir a genealogia da tecnologia de si. Para tanto, definiu dois contextos distintos para

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análise: a filosofia greco-latina, desde o advento da filosofia de Platão até o baixo Império Romano; e emergência da espiritualidade cristã, desde os princípios monásticos dos séculos IV e V até o final do alto Império Romano.

Seu ponto de partida é a pesquisa das obras que tinham como propósito, servirem como instrumentos para o trabalho sobre si. Eram obras que tinham um caráter prático, que foram designadas como manuais. Em grego, essas obras práticas eram nomeadas como epimelesthai sautou: o cuidado de si, a pre-ocupação de si. O preceito ocupar-se de si mesmo era para os gregos um dos princípios mais importantes para a vida na polis, uma das regras mais cultuadas para a conduta social e também considerada uma arte da vida, ou para ser mais preciso, uma estética da existência.

Foucault considerou que o preceito do cuidado de si não tem para nós (os contemporâneos) o sentido que os gregos atribuíam. Se perguntarmos qual é o princípio moral mais importante na filosofia antiga, a resposta imediata é: conheça-te a ti mesmo. Portanto, é o princípio délfico que aparece como o eixo determinante de toda a história da filosofia ocidental, desde Sócrates até Kant, se quiserem. O princípio do cuidado de si foi submetido ao conheça-te a ti mesmo. Primeira e grande rotação ocorreu na história da cultura: a ética tornou-se uma teoria da moral. Desde então, constitui-se muito embaraçoso desvincular a ética da moral.

É certo que Foucault faz notar o quando o princípio délfico estava associado às práticas de conduta, "não era um princípio abstrato referido a vida, era um conselho prático, uma regra que devia ser observada para consultar o oráculo". Ocorre, portanto, que se na cultura greco-latina o conhecimento de si se apresentava como conseqüência do cuidado de si, com a modernidade, o conhecimento de si se apresentou como o princípio fundamental. De tal modo, que para nós, o conhecimento de si é via mais importante para fundamentar toda moral. De Hobbes até Kant, de Hegel até as Ciências Humanas, somos conduzidos a pensar que toda ação esta fundada na racionalidade dos fins e na escolha deliberada dos meios.

Convém interrogar a possibilidade de articular uma ética fundada no cuidado de si por oposição à moral, fundada no conhecimento de si. Fazendo ressurgir o princípio do cuidado de si poderemos avaliar as formas de subjetivação que estão em jogo em nossos

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dias atuais. É possível sustentar uma ética que possa estar fundada na estética de si? Parece-me que os trabalhos finais de Foucault permitem responder que sim.

Referências Bibliográficas

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