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LEITE JÚNIOR, Jorge. Nossos corpos também mudam: A Invenção das categorias Travesti e Transexual no Discurso Científico. São Paulo, Annablume, 2011.

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LEITE JÚNIOR, Jorge.

Nossos corpos também mudam:

A Invenção das categorias “Travesti” e

“Transexual” no Discurso Científico.

São Paulo, Annablume, 2011.

Marco Antônio Gavério

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A obra de Jorge Leite Júnior é em si mesma aquilo que tenta resgatar: uma multiplicidade de discursos que, em suas localizações históricas, incessantemente se transformam, desfazem--se para serem refeitos de formas distintas, mas não menos intrincadas na vontade de saber (FOUCAULT, 2005). Da filosofia platônica às prescrições cirúrgicas de Robert Stoller, o autor traça historicamente uma série de mudanças na maneira de produzir o conhecimento sobre as delimitações entre sexo e o que conhecemos hoje sobre gênero. Uma história de corpos mutantes que merece ser considerada perante a “constante percepção de que os sólidos edi-fícios que sustentam a ideia de uma “essência Humana” sexuada e generificada, constante e imutável, estão também constantemente se alterando” (LEITE JÚNIOR, 2011, p.28). Contudo, como Berenice Bento deixa nítido em seu prefacio a obra, “não estamos diante de um autor positivista que busque uma causa eficiente explicativa das permanências e mudanças dos conceitos, dos corpos e das relações sociais” (LEITE JÚNIOR, 2011, p.16).

É o discurso cientifico, disseminado amplamente na cultura consumida, a base em que se discutem posicionamentos políticos e a espetacularização de determinados corpos e desejos. O trânsito entre as identidades de gênero, a partir do campo do autor com travestis e transe-xuais, mostrou-se emaranhado ao que chama de “capital corporal” (LEITE JÚNIOR, 2011, p.24) que, por sua vez, é separado do gênero e da política dentro das conceituações cientificas. Dessa forma, Leite Junior (2011, p. 32) salienta que “entre o hermafrodita da Antiguidade e o do século XIX, não houve ‘evolução’, mas rupturas, mudanças e o surgimento de uma nova entidade conceitual.”

Assim, ao recuperar distinções clinicas e político-identitárias, o autor analisa a emergên-cia e manutenção dos conceitos científicos “travesti” e “transexual”, o quanto são baseados em constantes reiterações das normas de gênero (homem\mulher; masculino\feminino) e como as distinções de gênero e sexualidade são vivenciadas como se fossem naturais (LEITE JÚNIOR, 2011, p.25). Contudo, a experiência de suas colaboradoras e colaboradores no cam-po é fundamental para o autor compreender a proliferação de identidades, suas ressignifica-ções e vivencias cotidianas, através da articulação crítica de experiências legitimas em um contexto histórico-discursivo que as corroboram ou as deslegitimam.

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Um dos argumentos fundamentais da obra é a figura do hermafrodita como “influencia conceitual” (2011, p.43). Encarnação da androginia platônica, pertencente a nossa cultura ocidental desde a antiguidade, o hermafrodita ancorou nossas grandes narrativas ocidentais autorizadas sobre as fronteiras entre os sexos. Representando a harmonia unívoca do mun-do em sua ambiguidade sexual, o hermafrodita estava extremamente ligamun-do às noções de uma vida cotidiana relacionada ao mundo do fantástico, das maravilhas. Como um conceito vitoriano, o pseudo-hermafrodita e o hermafrodita psíquico surgem no século XIX apartados de seu antigo universo mágico, esquadrinhados em sua organicidade corporal e psique pelo olhar objetivo e espacializado da medicina (FOUCAULT, 2003). Fruto da racionalização ilumi-nista e das caracterizações psico-fisiológicas, o ‘hermafrodita’ vitoriano, caracterizado pela ciência sexual, será o foco sobre o qual irão se propagar as identidades e distinções daquilo que conhecemos hoje como sexo e gênero. Mas qual o ponto em que a essência humana se converte como sinônimo de seu sexo e de um gênero respectivo e coerente?

Conforme o autor, a busca pela verdadeira mulher-feminina ou pelo verdadeiro homem--masculino, ou seja, as distinções que se constituíram a partir de dadas fisiologias e psiques, vão gradualmente se solidificando, através do sec. XVIII, devido a uma série de transforma-ções sociais, culturais e políticas que possibilitarão a expansão de uma nova epistemologia. O ponto é que na antiga tradição médico-filosófica e judaico-cristã “a diferença entre homens e mulheres era uma questão de hierarquia fisiológica, social e espiritual, onde uma caracterís-tica refletia e confirmava a outra” (LEITE JÚNIOR, 2011, p.54). Em vigor, mais fortemente até o século XVIII, estava o entendimento das diferenças sexuais como gradações de um mesmo ser, um corpo com dois sexos que se desenvolveriam do feminino para o masculino. É com o renascimento e seu constante estatuto racional – encontrando seu expoente filosófico em Descartes – que, de maneira mais radical, vão separar-se corpo e mente, sendo esta privile-giada e inerente a homens e mulheres. Até então, ser mulher significava um grau de involu-ção da ordem natural fisiológica e, assim sendo, deveria estar hierarquizada socialmente de maneira inferior.

Se o novo regime traz a natureza como justificativa para novas distinções políticas e so-ciais, uma nova série de conceituações, especificações e taxonomias surgem para fortalecer o processo de separação entre ciência e religião. Não à toa, em 1832, Geoffrey Saint-Hilaire cria a teratologia (do grego terata, “monstruosidade, anomalia” (LEITE JÚNIOR, 2011, p.67-68)) para sistematizar cientificamente as deformidades físicas como monstruosidades, as desvinculando do antigo entendimento mágico-religioso sobre monstros, que tinha nesta fi-gura aquele que mostra algo a humanidade, que carrega algum sinal ou ira divina. A busca pelo ‘verdadeiro’ sexo será um processo gradual de objetivação dos limites das diferenças se-xuais em seus caracteres genitais, orgânicos e posteriormente psíquicos. Não mais como um mito que remetia a um mundo ideal da filosofia platônica ou como a manifestação corporal de um mau augúrio, o hermafrodita se torna um ‘mutilado’ que, segundo Leite Júnior (2011, p.64):

“[...] perdeu gradativamente sua expressão de um complexo microcós-mico que espelha uma possível desordem macrocósmica (Foucault, 1987) entre os mundos masculinos e femininos e passou a centralizar o debate sobre tais limites em sua genitalidade e caracteres sexuais orgânicos.”

Nesse contexto o alerta do autor é para a concepção mutante sobre o entendimento das am-biguidades sexuais e de gênero catalisado por um dos discursos legitimadores da questão,

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o cientifico, de “cirurgiões, endocrinologistas, psiquiatras e outros médicos” (LEITE JÚNIOR, 2011, p. 60). Através da dúvida ‘científica’ da real possibilidade do hermafrodita, representan-te da fronrepresentan-teira e da ambiguidade em uma noção de um ser único com dois gêneros, a ciência sexual instaurada na lógica do biopoder de uma sociedade disciplinar, focará cada vez mais nos caracteres orgânicos internos e externos que designariam machos e fêmeas. De maneira vigorosa, a noção de dois seres orgânicos distintos com dois gêneros também distintos, mas correspondentes, irá modular mais ativamente os processos históricos e sociológicos de dis-tinção modernos. Assim, a crescente separação supostamente ontológica dos corpos e psi-ques como femininas e masculinas tinha seus limites estabelecidos pelos debates em torno da separação entre aparência e essência e do marcante debate filosófico sobre a ‘natureza humana’. É a sensibilidade do Romantismo do século XIX que, unida a ascensão da mentali-dade burguesa, irá separar o interno do externo e possibilitará inscrever cientificamente, no sentido medico e biológico, uma direção ‘naturalmente oposta’ da atração entre homens e mulheres.

É com essa crescente impossibilidade de existência do ‘verdadeiro’ hermafrodita que ci-rurgiões e endocrinologistas, como Carlos Lagos García e Gregorio Marañon, argumentarão, já no século XX, não mais por um sexo verdadeiro e sim por um sexo que irá ‘prevalecer’ orgânica e fisiologicamente. Uma vez que homens e mulheres começam a se distinguir, no discurso bio-médico, por caracteres sexuais primários e secundários, surge o pseudo-hermafrodita como correspondente, mais masculino ou feminino, da fluência complexa e possivelmente ‘natural’ entre os sexos. Na busca pela constante diferenciação sexual serão inseparáveis - de maneira geral até a segunda metade do século XX - desejo, gênero e sexo. Em outras palavras, mesmo as diferenças sociais ficando cada vez mais localizáveis no espaço corporal e mental do indiví-duo moderno, identificado em sua unidade, o autor (2011, p. 96) aponta que eram:

“os “verdadeiros” homens os “masculinos”, e mulheres, as “femininas”. Independentemente do que ser masculino ou feminino possa significar para o período, o importante é que fossem representados e atualiza-dos em conformidades com os sexos consideraatualiza-dos correspondentes: homens com masculinidade e mulheres com feminilidade, sendo qual-quer perturbação desta equação e linearidade um “desvio”, uma “per-versão.”

A partir da especulação cirúrgica sobre o corpo do agora pseudo-hermafrodita, acompanhan-do a radicalização da separação corpo-mente durante o século XIX, surge o hermafrodita psíquico como sinal da ‘inversão’ da atração sexual. Assim, em consonância com a criação da espécie ‘homossexual’, também considerada o ponto extremo da ‘intersexualidade’ (a mistura interna das diferenças entre feminilidade e masculinidade) o ‘hermafroditismo psíquico’ será ancoragem conceitual para as análises daqueles considerados ‘pervertidos’ ou ‘perversos’. É com Magnus Hirschfeld, já no começo do século XX (LEITE JÚNIOR, 2011, p.106-7), que a rela-ção entre ‘impulso sexual’ e uso de vestimentas do sexo oposto será psicologizada ao ganhar uma nova denominação, o travestismo. Hirschfeld associa o ato de travestir-se a uma gratifi-cação erótica na troca das vestes independente da natureza da atração sexual, uma vez que estes indivíduos não apresentam distúrbios psicóticos e sim uma forma de ‘expressividade intima’ de um ‘desvio’ da sexualidade considerada normal (LEITE JÚNIOR, 2011, p.109-10).

É esse trabalho tão minucioso de recuperação histórica de cada nó discursivo no ema-ranhado de relações de saber\poder que o autor perceberá as bases para a desintegração

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clínica (analítica e conceitual) da coerência entre “sexo, gênero, aparência, desejo e compor-tamento” (2011, p.108), através da constante referência à figura ambígua do hermafrodita, que vai ser aprofundada na segunda metade do século XX. Assim, o conceito de gênero será forjado a partir de uma outra criação clinica desse século, o ‘transexualismo’, como derivação da sexo-patologia travesti, em um contexto social de disciplina e controle, onde os ‘desvian-tes’ precisam ser ‘incluídos’ na participação social, através de instituições e outras categorias para contenção de suas ‘anormalidades’ ameaçadoras.

Tanto nos discursos analíticos das ciências sociais, quanto nos já dominantes discursos analíticos médicos, a interiorização das diferenças sexuais e comportamentais acompanha-rá a cisão mente-corpo de tal maneira que a essência do sexo deixaacompanha-rá de ser somente sua ‘aparência’. A importância do corpo sexuado para endocrinologistas, como Harry Benjamin, psicólogos e psiquiatras\psicanalistas como John Money e Robert Stoller, será indissociável da noção de um sexo da mente. Através do estudo clinico e da espetacularização via cultura de massas de casos de mudanças de sexo as ‘trocas de sexo’, focadas principalmente na intervenção corporal de indivíduos com ‘distúrbios somático-psíquicos’, corresponderão ao entendimento que esses médicos, bem como a própria ‘sexologia’ do século XX, construirão sobre a necessidade de distinguir cada vez mais as diferenças entre ‘homens’ e ‘mulheres’. É dessa maneira que surgem identidades sexuais em torno da noção de um gênero circunscrito nas dimensões biológicas do corpo humano.

Assim, em 1953, Harry Benjamin, criará literariamente o transexualismo como uma con-dição médica diferente, porem da mesma base do travestismo. Ambos serão um “distúrbio da normal orientação do sexo e do gênero” (Benjamin Apud LEITE JÚNIOR, 2011, p. 146), porém o transexual carregará, na literatura medica especializada, a profunda identificação com o sexo-gênero oposto, enquanto o travesti será cada vez mais alocado nas ‘perversões’. Parale-lamente, em 1955, John Money se baseia no conceito sociológico parsoniano de papel social e designa a palavra ‘gênero’ para referir-se às diferencias sexuais relacionadas a identidade sexual e, em 1964, Robert J. Stoller anuncia o conceito ‘identidade de gênero’ distinguindo feminilidade e masculinidade do ser homem ou mulher no sentido da inevitável biologia. Em 1973, já influenciado pelos estudos de Stoller em 1968 sobre a ‘identidade de gênero nuclear’, Money ajuda a conceber o conceito ‘disforia de gênero’ como a insatisfação com seu pró-prio gênero (LEITE JÚNIOR, 2011, p.155). Separa-se mais fortemente gênero e sexualidade, indica-se e prescreve-se para os ‘verdadeiros’ transexuais a cirurgia de transgenitalização enquanto se busca incessantemente, no íntimo do organismo e no íntimo da mente, os ‘reais’ e ‘verdadeiros’ homens e mulheres.

Evocar o gênero de uma pessoa é indissociável, a partir de variados polos de uma disputa de poder linguística e terminológica, da procura pela verdade. Como Leite Júnior coloca (2011, p. 181) “a busca pelas ‘verdadeiras’ pessoas transexuais revela, por oposição, a fragilidade e os constantes esforços necessários para se manter um padrão ideal de pessoas “normais”, sem desvios, perversões, parafilias, disforias ou transtornos”. Seguindo a filósofa Judith Butler e suas problematizações sobre gênero, o autor aponta a ficção reguladora envolvida na ideia moderna de gênero (2011, p.121) como produtor da materialidade e da inteligibilidade de corpos organizados sobre as distinções sexuais e sob sexualidades especificas. Nesse sentido, o que as prescrições médicas indicavam ao construir nosologias especificas do travestismo e do tran-sexualismo era, antes de tudo, uma coerência discursiva entre natureza e cultura visando fun-damentar de maneira mais purificada possível a natureza heterossexual de homens e mulheres embasada nas noções de uma família burguesa como uma reprodução unicamente sexológica.

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Em 1973 o termo clinico ‘homossexualismo’ deixa de constar no Manual Diagnóstico e

Es-tatístico de Transtornos Mentais (DSM), dando espaço as categorias “Transtorno psico-sexual”

e “Transtorno da identidade de gênero”. Em 1980 o ‘transexualismo’ figurará na terceira edi-ção do DSM, sendo retirado em 1994 com o lançamento do DSM-IV, enquanto o ‘travestismo’ se manterá como um fetiche, dentro da categoria maior ‘parafilia’. Também em 1980, pela primeira vez, na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados

à Saúde, ou Código Internacional de Doenças (CID) ‘transexualismo’ será considerado como

um ‘transtorno mental’ de ordem sexual. Jorge Leite Júnior ainda nos lembra (2011, p.189) que o DSM e o CID objetivam padronizar a orientação ao tratamento e a pesquisa em relação a doenças e transtornos psíquicos’ ao mesmo tempo que consideram, de maneira geral, o “tra-vestismo” como disfunção sexual e o “transexualismo” como um transtorno da identidade. Será sobre essas profundas distinções marcadas por uma complexa linguagem cientifica que os movimentos político-identitários vão ressignificar termos patológicos em busca de uma identidade coletiva positivada representada, por exemplo, pelo termo transexualidade.

É assim que essa obra nos oferece uma importante análise do complexo movimento his-tórico em que a ‘invenção’ de categorias se mostra um dos principais fundamentos da neces-sidade constantemente evocada de se distinguir e hierarquizar corpos e suas vivencias\expe-riências. As normas de gênero são incessantemente colocadas em discurso como criadoras e fixadoras de um conjunto organo-psíquico coerente e tudo que lhe escapa, ao mesmo tempo que garante a reiteração da própria ordem, pode desestabilizar essas mesmas normativida-des. São as estéticas de gênero tidas como ‘falsas’ ou ‘desviantes’ que borram as limitações categóricas e patologizantes nos permitindo questionar cada vez mais: por que nossos corpos não podem mudar?

Referência

FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003 ________________. História da Sexualidade I - A Vontade de Saber. São Paulo: Graal, 2005.

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