Por uma análise integrada do confronto político: os protestos no Brasil em um contexto de crise
Andréia Galvão Luciana Tatagiba
Introdução
Esta comunicação discute as características do confronto político no Brasil entre 2011 e 2016, um período marcado por um intensificação das mobilizações sociais, com destaque para o ano de 2013, ponto a partir do qual o Brasil ingressa em um cenário de aguda crise política e econômica, que resultou no golpe jurídico-parlamentar de 2016.
Nossa pesquisa é fruto de um diálogo entre a teoria do confronto político e a teoria marxista, diálogo esse que tem se intensificado em âmbito internacional (Barker et al., 2013; Della Porta, 2015), mas que ainda é incipiente no Brasil. A aproximação entre essas perspectivas teóricas possibilita tratar os movimentos sociais de modo articulado, rompendo com as linhas divisórias entre lutas redistributivas, de um lado, e movimentos identitários e pelo reconhecimento de direitos, de outro. Nesse sentido, nosso enfoque aponta para a existência de uma relação entre os diferentes movimentos sociais, sejam eles ligados ao trabalho, como o movimento sindical, quanto a outras identidades e objetivos. Assim, destacamos a importância de clivagens sociais de natureza distinta, como gênero, raça e classe, a exemplo do que a literatura sobre interseccionalidade vem apontando (Biroli e Miguel, 2014), bem como das clivagens políticas, sobretudo aquelas relativas à maneira segundo a qual os protestos se posicionam frente a partidos e governos.
Objetivos
Neste artigo, vamos apresentar alguns dados do banco de eventos de protesto, construído no âmbito do projeto pesquisa "Confronto político no Brasil (1998-2016)", elegendo para a análise o período entre 2011, primeiro ano de governo de Dilma Rousseff e 2016, quando a ex-presidente é deposta. Nesse interregno, assistimos a um rearranjo nas relações entre Estado, mercado e democracia, que reacende disputas político-ideológicas e desencadeia uma intensificação de conflitos.
construir nosso argumento é preciso remontar a 2003. Partimos da hipótese de que a combinação entre as características do capitalismo periférico e os contraditórios legados dos governos do PT conferiram uma modelagem particular aos protestos no Brasil. A frequência dos protestos registra uma oscilação ao longo dos governos petistas, com maior concentração no primeiro governo Lula (2003-2006, com média de 423 protestos por ano) e uma redução no período posterior (média de 232 protestos por ano, entre 2007 e 2016), a despeito dos picos de mobilização observados em 2013 e 2016. Isso não significa que os protestos tenham perdido importância, haja visto os impactos produzidos na crise política do impeachment, mas que o padrão de protesto sofre uma mudança qualitativa e quantitativa no que se refere a variáveis tais como base social mobilizada, organizações protagonistas, repertórios de ação coletiva, resposta do Estado. Os protestos passam a ter maior capilaridade, ou seja, a ocorrer simultaneamente em diversas cidades, a concentrar um número maior de participantes e a desencadear uma intensificação de ações repressivas. Em termos dos seus conteúdos, os protestos brasileiros observados nesse período aproximam-se dos protestos verificados em escala global, que denunciam a crise da democracia representativa e a ditadura dos mercados, colocando em evidência a corrupção das instituições políticas e a desestruturação dos direitos sociais pelas políticas de austeridade adotadas após a crise financeira de 2008.
O artigo se dividirá em duas partes: na primeira, apresentamos alguns elementos da conjuntura política na qual se inserem os protestos promovidos no período em questão (2011-2016) e evidenciamos as diferenças entre nossa abordagem e a bibliografia que analisa o confronto político no Brasil; na segunda, indicamos as características gerais do confronto político sob os governos petistas e apresentamos os principais achados da pesquisa no que se refere às seguintes variáveis: base social mobilizada, reivindicações, organizações promotoras dos protestos e repertórios de ação coletiva.
Metodologia
A pesquisa utiliza-se da metodologia de Análise de Eventos de Protesto (AEP). Desenvolvido na plataforma Access, o banco de dados tem como fonte o jornal de circulação nacional Folha de S. Paulo, a partir de uma coleta diária, com foco em todo o território nacional e abrangendo todos os temas. Uma das particularidades do nosso banco é tratar a ação coletiva contenciosa de uma forma ampla, tanto no que se refere à convocação dos atos quanto às formas de luta. Nele são registradas ações convocadas
por organizações de movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores, bem como manifestações "espontâneas", convocadas por coletivos de cidadãos, compreendendo greves, ocupações, passeatas, intervenção artística, depredação, escrachos contra políticos, bloqueio de estradas, rebeliões etc. Definimos evento de protesto como uma ação de natureza coletiva na qual indivíduos coletivamente fazem reivindicações em nome de um movimento, organização, categoria social ou grupo, assim como ações mais ou menos espontâneas que expressam queixas, indignação ou apoio a fatos relativos ao funcionamento da vida em sociedade. Ou seja, eventos de protestos são ações coletivas vinculados à defesa de diferentes causas e interesses. Na análise dos dados buscamos compreender em que medida e de que forma os conflitos trabalhistas se articulam às demandas ligadas ao funcionamento das instituições políticas e a questões identitárias/culturais e como essa conexão afeta a estruturação dos conflitos, a configuração dos atores e de seus repertórios de luta.
Resultados
No que se refere ao contexto, sustentamos que os protestos verificados entre 2011 e 2016 fazem parte de uma mesma conjuntura, marcada pelo impacto da crise internacional numa economia capitalista periférica e pelas políticas públicas implementadas pelos governos petistas. Essas políticas passaram por diferentes fases, sendo possível identificar inflexões e recuos, bem como demonstrações de descontentamento, tanto por parte dos setores sociais beneficiados quanto pelos que se sentiram prejudicados por elas.
A despeito do debate sobre a natureza dos governos petistas, sobretudo acerca das mudanças e permanências em relação ao neoliberalismo, as políticas implementadas pelos governos Lula e Rousseff promoveram melhorias no mercado de trabalho e na distribuição de renda, possibilitando a redução do desemprego, das desigualdades e das hierarquias sociais. Esses resultados repercutiram no processo político e nas formas de ação coletiva, provocando reorientações significativas entre os subalternos: novos grupos foram reconhecidos como atores políticos e integrados à arena política (mulheres, estudantes, periferia), ao mesmo tempo em que se verificaram rupturas e cisões organizacionais em movimentos já constituídos (movimento sindical, de teto, sem-terra). No que se refere às formas de ação coletiva, observa-se a combinação de formas de ação direta (greves, ocupações) com a participação institucional.
Por outro lado, a redução das desigualdades e a intensificação do conflito distributivo resultaram em uma polarização política inédita, sobretudo a partir de 2013, momento em que as direitas, com a presença ativa de grupos sociais dominantes, também passaram a disputar as ruas. As políticas sociais dos governos petistas buscaram reduzir as desigualdades de um modo que feriu, direta ou indiretamente, a ideologia meritocrática, fomentando o anti-petismo e o surgimento de um novo ator à direita (Cavalcante, 2015; Tatagiba et al, 2015). As eleições de 2014 trouxeram novas oportunidades para a ação coletiva (McAdam e Tarrow, 2011), na medida em que a disputa eleitoral foi acirrada e a vitória de Rousseff foi contestada pelo candidato derrotado, abrindo espaço para a campanha pelo impeachment.
Os dados obtidos em nossa pesquisa indicam o crescimento dos protestos que envolviam uma diversidade de bases sociais, ao mesmo tempo em que apontam para a permanência do trabalho como categoria identitária. A identificação da base social foi feita a partir do que o jornal noticiava, mas em muitos casos a matéria não trazia qualquer possibilidade de identificação. Além disso, muitos protestos não podiam ser associados a uma única categoria de manifestantes, posto que compreendiam uma base social heterogênea, o que nos levou à utilização da categoria cross class. Os protestos
cross class envolviam demandas relacionadas, sobretudo, à crise da democracia, como
nos protestos contra e a favor do impeachment. A base social foi identificada como trabalhador sempre que foi possível relacionar a ocupação profissional ao motivo do protesto. Procuramos identificar a ocupação a partir das seguintes categorias: administração pública, trabalhador da indústria, comércio e serviços, transporte, educação, saúde, forças de segurança e familiares, trabalhador rural, profissional liberal, autônomo/conta própria. Nesse sentido, incluímos não apenas protestos de trabalhadores formais e sindicalmente organizados, mas também trabalhadores informais e não organizados, como perueiros, motoboys, camelôs etc.
As bases sociais mais mobilizadas entre 2011 e 2016 foram "trabalhador" (514 eventos) e "cross class" (368 eventos), juntas elas respondem por 64% do conjunto dos protestos do período. Na sequência, aparecem estudantes (210 eventos), sem-teto (147 eventos), moradores1 (89 eventos), indígenas (56 eventos), sem-terra (49 eventos) e
1 Moradores compreendem protestos localizados em bairros, seja por demandas de políticas públicas e melhorias em infra-estrutura, seja por questões relativas a direitos humanos e violência.
mulheres (48 eventos) e outras categorias sociais que respondem por cerca de 36% do total.
As reivindicações que mais mobilizaram nesse período foram as que dizem respeito à crise da democracia (387 eventos referentes a governo/políticos e regime, o que inclui questões relativas às instituições, à defesa da democracia e da liberdade de expressão) e à dinâmica do capitalismo (685 eventos referentes a habitat/infra-estrutura/transportes, questões laborais e salariais, moradia, política econômica e setorial, seguridade social/aposentadoria e terra. São reivindicações que dizem respeito ao direito à cidade e a modelos de desenvolvimento, que remetem tanto ao conflito capital X trabalho, um conflito de classes clássico, como às disputas relativas à propriedade privada e à apropriação de recursos naturais). Juntas elas respondem por cerca de 68% do total2. A crise da democracia se expressa nas ruas, majoritariamente,
nos protestos contra e/ou a favor de políticos, seguidos do contra/a favor do
impeachmente contra a corrupção.
Ao desagregar o que agrupamos na categoria dinâmica do capitalismo é possível observar que o segundo tema mais presente em nossa base é trabalho e previdência (275 eventos). Contra aqueles que diziam que o trabalho deixou de ser uma categoria importante na ação coletiva nas sociedades contemporâneas, e que ele teria sido substituído por demandas pós-materiais, como as baseadas no reconhecimento de identidades, nosso banco de dados prova exatamente o contrário. Os conflitos capital X trabalho continuam ensejando um alto índice de mobilização, principalmente sob a forma de greves. Há um aumento continuado das greves a partir de 2011, que crescem 300% em 2013 (46 registros) quando comparadas a 2010 (10 registros).
As principais demandas relativas a esse tema são salário e condições de trabalho. Até 2014, as condições econômicas favoráveis e os altos índices de negociações coletivas com ganho real de salário podem ter estimulado diferentes categorias de trabalhadores a apresentar demandas salariais (Boito, Galvão e Marcelino, 2015). Em 2016, num contexto de crise política e econômica, as demandas salariais se reduziram e as referentes a condições de trabalho aumentaram. A crise econômica, de um lado, e os projetos de reforma concebidos pelo governo Temer para reduzir os direitos sociais, de
2 As reivindicações foram codificadas em grandes eixos. Além dos mencionados, classificamos ecologia/meio ambiente, educação, gênero/igualdade/diversidade, justiça/direitos humanos, saúde, segurança pública.
outro, provocaram o crescimento de protestos contra o desemprego, as mudanças na legislação trabalhista e na aposentadoria.
A análise das organizações é a mais prejudicada em função da sub-notificação do jornal: em apenas 18% dos eventos registrados temos informação sobre as organizações que convocaram o protesto. Partindo desse universo limitado, o que se destaca é a alta pluralidade das organizações envolvidas: tivemos 244 organizações registradas. Há desde organizações formais, com densa capilaridade social e histórico de mobilização que remonta ao período de redemocratização, como CUT, MST e UNE; novas organizações que se construíram ou consolidaram nos governos petistas, como o MTST e Conlutas; articulações e frentes que surgiram em resposta à conjuntura, como as Frentes Povo Sem Medo e Frente Brasil Popular; até os novos coletivos cuja forma de operação é indissociável das novas mídias, como o Ocupa Cabral e Ocupa Tudo RS e aqueles que no jornal são identificados como "convocados pela internet". Há ainda as novas organizações à direita, que surgiram ou se cacifaram após os protestos de junho de 2013, com destaque para o Movimento Brasil Livre e Vem Pra Rua.
Por fim, no que se refere aos repertórios de ação coletiva, destaca-se a manifestação na forma de atos públicos ou passeatas (826 eventos, 57% do total), seguida das greves e paralisações (217 eventos, 15%), e em terceiro lugar as ocupações (201 eventos), em suas diferentes modalidades. A ocupação de terra é a marca do principal movimento social brasileiro, o MST, enquanto a ocupação de imóveis privados que não cumprem a função social da propriedade tem sido uma importante estratégia dos movimentos de moradia. Mas a partir de 2013 a ocupação tem assumido um simbolismo renovado, incorporando-se ao repertório de outras bases sociais.
A comunicação trará uma análise detalhada de cada uma dessas variáveis, oferecendo também uma leitura da relação entre elas.
Bibliografia
BARKER, Colin et al. (ed.), Marxism and Social Movements, Leiden/Boston, Brill, 2013.
BIROLI, Flávia e MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. Boitempo: São Paulo, 2014.
BOITO, Armando; GALVÃO, Andréia; MARCELINO, Paula. La nouvelle phase du syndicalisme brésilien. Cahiers des Amériques Latines, nº 80, 2015, p.147-167.
CAVALCANTE Sávio, Classe média e conservadorismo liberal, in Sebastião Velasco e Cruz et al. (dir.), Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação, Perseu Abramo, 2015, p. 177-196.
DELLA PORTA. Donatella. Social movements in times of austerity: bringing capitalism back into protest analysis. Cambridge: Polity Press, 2015.
MCADAM, Doug e TARROW, Sidney. Movimentos sociais e eleições: por uma compreensão mais ampla do contexto político da contestação. Sociologias, Porto Alegre, vol.13, n.28, 2011, p.18-51.
TATAGIBA, Luciana; Trindade, Thiago; Teixeira, Ana Cláudia. Protestos à direita no Brasil (1997-2015), em Sebastião Velasco e Cruz et al. (Editores). Direita, volver! O
retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 197-212.