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Considerações sobre sonho e lembrança em A dança da realidade

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Academic year: 2021

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Considerações sobre sonho e lembrança em A dança da realidade

Ana Carolina Ribeiro1 RESUMO

Com base nos conceitos imagem-sonho e imagem-lembrança apresentados na teoria de Gilles Deleuze sobre o cinema, pretende-se uma análise cartográfica a partir de um fragmento do filme A dança da realidade, de Alejandro Jodorowsky. Nesta obra o cineasta chileno revisita a infância e a partir de suas lembranças apresenta uma narrativa que se distingue pela dicotomia entre o real e o imaginário, em que prevalece o caráter onírico.

Palavras-chave: imagem-sonho, imagem-lembrança, Alejandro Jodorowsky.

Introdução

Após duas décadas Jodorowsky volta a produzir para o cinema assinando a direção e o roteiro de A dança da realidade que estreou em 2013 na França. Sobre um plano de fundo do Chile nos anos 1930, o filme traz as lembranças da infância do diretor. A narrativa estrutura-se em duas partes. A primeira retrata as vivências do garoto Alejandrito diante de conflitos existenciais, sob a severidade do pai, Jaime Jodorowsky e a submissão da mãe, Sara Prulansky. A segunda, totalmente alegórica, é protagonizada por Jaime. Sua cegueira política o faz perder a lucidez, abandonar a família e partir para uma jornada heroica.

Como uma espécie de dejà-vu, muitos elementos retornam a cena e nos fazem lembrar outras produções de Jodorowsky. Sangue, pessoas multiladas, personagens místicos, circenses, o deserto, o sagrado, a peregrinação do pai e, principalmente, as críticas aos diversos setores da sociedade: religião, política, exército, família. Como se todos esses elementos que constituem a identidade da obra também fizesse parte de seu repertório de lembranças, poderíamos considerar que a filmografia de Jodorowsky se atualiza em A dança da realidade. O filme como um todo resulta em uma narrativa que escapa à linearidade e na dicotomia entre o real e o virtual, faz prevalecer uma sensação de sonho.

A partir do entendimento de que uma obra fílmica constitui-se através de múltiplos sentidos e ao ser analisada por estruturas rígidas formais corre o risco de perder a dimensão própria de seu devir, a cartografia apresenta-se como proposta adequada para este estudo. Segundo Kastrup, a cartografia é um método apresentado por Gilles Deleuze e Felix Guatarri que surge como um processo aberto, multidimensional que permite múltiplas entradas (2009).

A porta de entrada para esta análise será a observação de uma estética onírica em A dança da realidade. Em um sobrevoo pela obra identifica-se o predomínio do onírico em seu todo.

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Entretanto, esta análise paira em um fragmento que diz respeito à primeira sequência de imagens do filme.

2. A imagem-sonho e a imagem-lembrança

Para Deleuze o cinema é uma forma de pensamento e os grandes cineastas são pensadores, mas não pensam conceitualmente como os filósofos, pensam por imagens (2007). Assim, é possível pensar através do cinema, pela profusão de suas imagens e de seus signos. Na classificação das imagens cinematográficas, Deleuze apresenta duas categorias: as imagens-movimento, o cinema clássico e as imagens-tempo, o cinema moderno.

O cinema clássico é um cinema de ação, porque revela um encadeamento sensório-motor, um tempo cronológico, sequencial. Já no cinema moderno, há uma ruptura com o sistema sensório-motor, em que o tempo não está subordinado ao movimento, mas é o movimento que está subordinado ao tempo. Há apenas uma construção de situações óticas e sonoras puras. Aí residem os conceitos relacionados ao sonho e abstração. (2007).

A partir das teorias de Bergson, Deleuze apresenta os termos lembrança e imagem-sonho. A lembrança necessariamente é virtual se atualiza, mas a imagem-lembrança não é virtual, pois ela atualiza por sua conta uma virtualidade. Para ele “a imagem-lembrança não restitui o passado, ela somente representa o antigo presente que o passado “foi””. (2007, p.70)

No sonho as imagens da pessoa que dorme subsistem no estado difuso de nuvem de sensações atuais, ou seja, escapam à consciência. A imagem virtual se atualiza em outra imagem que desempenha o papel de imagem virtual, esta, por sua vez, atualiza-se em uma terceira, ao infinito. Explica: “o sonho não é uma metáfora, mas uma série de anamorfoses que traçam um circuito muito grande.” (2007, p.73).

Deleuze acrescenta que as imagens-sonho ainda podem ser constituídas em sua produção técnica. Seja através de “fusões, superimpressões, desenquadramentos, movimentos complexos de câmera, efeitos especiais, manipulações de laboratório, chegando ao abstrato, tendendo à abstração”, ou através dos cortes bruscos, chamados montagem-cut, que oferecem a sensação de imagens que são interrompidas aleatoriamente, tal qual ocorre nos sonhos. Tanto a imagem-lembrança, quanto a imagem-sonho, na condição de constante atualização apresenta a condição de indiscernibilidade entre o real e o virtual. (2007, p.75).

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Na primeira cena do filme o circo surge como elemento introdutório ao onírico. Após uma sequência de imagens em plano médio com moedas caindo sobre um plano de fundo negro e um chão vermelho (imagem1), segue a imagem de Jodorowsky entre as moedas narrando um texto. Posteriormente, em plano geral, a imagem do circo. Na fachada, a imagem de um palhaço jogando moedas emoldura a entrada (imagem 2). A câmera subjetiva segue fechando o plano e adentrando a lona. A cena seguinte revela o picadeiro, dois palhaços realizam uma pantomima em que um deles deixa cair moedas sobre um tapete vermelho (imagem3). No plano de fundo a plateia se apresenta com máscaras neutras.

Imagem 1- frame de A dança da realidade Fonte: extraído pela autora

Imagem 2 - frame de A dança da realidade Fonte: extraído pela autora

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Na juventude, Jodorowsky teve a oportunidade de apresentar-se como palhaço junto a uma companhia circense. Desde então, já via o circo como um universo onírico (JODOROWSKY, 2009). As delimitações de um picadeiro possibilita pensá-lo como uma ruptura espaço-temporal em que o espectador, diante do encanto das atrações, atinge o indiscernível. O circo, portanto, surge entre outras necessidades, como uma metáfora para a narrativa que se seguirá. O palhaço emoldurado na porta do circo nos convida a adentrar ao espetáculo construído através das memórias do pequeno Alejandrito. A câmera em subjetiva segue, como se nós, espectadores, fossemos conduzidos ao universo onírico que constitui as lembranças de vida do cineasta. Não é por acaso que o circo é o ponto de partida da narrativa. Jaime, quando jovem trabalhava no circo, e foi lá que Sara o conheceu.

Na sequência, as moedas caindo apresentam-se em três dimensões: na cena que antecede o circo, na mão do palhaço que emoldura a porta e na pantomima. A repetição redimensionada em espaços distintos implanta-se como um circuito de anamorfoses em que aquele que sonha não consegue distinguir a espacialidade em que ocorre a ação. (imagens 1,2 e3).

A máscara reafirma a atualização do virtual. A plateia com máscaras neutras, tal qual na atualização de uma lembrança, traz a sensação de não conseguirmos reconstituir na memória a fisionomia daqueles que não protagonizaram os acontecimentos de nossa vida (imagem 3). Assim, entendemos que Jodorowsky não apresenta uma tentativa de restituição do real, mas a atualização de um acontecimento do passado.

Considerações finais

A dança da realidade é uma obra autorreferente em que Jodorowsky revisita o passado a partir de sua memória afetiva. Na apresentação do trailler oficial de divulgação do filme, o cineasta afirma: “só temos memória, nunca realidade, o que se faz já não existe mais”. Assim, as memórias da infância do cineasta não se apresentam na frustrada tentativa de reconstituição do real, mas em um estado de devir, através da atualização de lembranças que são apenas o ponto de partida para uma narrativa repleta de reflexões, personagens fantásticos e situações imaginárias que proporcionam um novo sentido a sua vida.

Referências

DANÇA da realidade, A. Direção e Roteiro: Alejandro Jodorowsky. Produção: Moisés Cosío, Xavier Guerrero Yamamoto, Alejandro Jodorowsky, Michel Seydoux. Chile: 2013 (130min)

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DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Trad: Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2007.

JODOROWSKY, Alejandro. A dança da realidade. Trad: Sueli Farah. São Paulo: Devir, 2009. PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da (Org.). Pistas do método da cartografia:

Referências

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