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O EFEITO DE TRANSCRIÇÃO NA ESCUTA DE FALAS DESVIANTES: UMA LEITURA ENUNCIATIVA

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Academic year: 2021

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O “EFEITO DE TRANSCRIÇÃO” NA ESCUTA DE FALAS DESVIANTES: UMA LEITURA ENUNCIATIVA

Luiza Milano Surreaux1 O presente trabalho é efeito de reflexões que brotaram em meu projeto de pesquisa “A especificidade da transcrição da fala sintomática: aspectos enunciativos”, que analisa o processo de transcrição de falas ditas desviantes na perspectiva de linguística da enunciação (cf. Benveniste, 1989, 1991).

O objetivo deste escrito é dar destaque à transcrição como uma modalidade enunciativa da parte daquele que trabalha na clínica de linguagem, e assim constitui um dizer sobre aquilo que escuta (ou não escuta).

Por isso, muito mais do que abordar a transcrição de falas desviantes como uma enunciação muito singular do transcritor, pretendo desenvolver a concepção do que tenho chamado de “efeito de transcrição”. Algo que ronda a possibilidade do clínico poder ou não transcrever a irregularidade que brota nos chamados distúrbios de linguagem e que vem à tona numa dada enunciação.

Podemos supor que falar de transcrição de fala sintomática na perspectiva da linguística da enunciação seria uma questão técnica ou metodológica da transposição do oral para o escrito. Isso significaria abordar a questão específica sobre o tratamento de dados. No entanto, não é de pura metodologia no tratamento de dados oriundos da clínica fonoaudiológica que pretendo tratar. Minha reflexão tem sim relação com aquilo que considero um dos aspectos técnicos mais importantes da tarefa do terapeuta de linguagem, mas trata-se de um deslocamento do termo "técnica". Deslocamento exatamente em função da noção de "enunciação". Enunciação quando nos referimos ao sujeito com fala sintomática, enunciação quando nos referimos ao próprio dado, enunciação quando falamos do lugar do transcritor.

De acordo com o que tenho construído em meu percurso, a reflexão acerca da relação entre a produção oral e o registro dessa produção é um passo necessário na formação de um clínico de linguagem. A possibilidade de registro de uma fala sintomática parece andar muito próxima dos efeitos que a leitura dessa mesma fala pode evocar. Portanto, é constitutiva da formação de um terapeuta de linguagem. Tenho chamado isso de efeito de transcrição.

Tentarei, então, apontar o fio dessa reflexão.

Encontramos já há bastante tempo na área da fonética e da fonologia recursos um tanto precisos que auxiliam satisfatoriamente quando se trata de transcrição da fala dita “normal”. Pode-se dizer que há uma tradição de estudos que se dedicam à análise fonética e fonológica de processos característicos da fala dita normal e da fala desviante (em seus componentes fonéticos e fonológicos). No entanto, o mesmo não pode ser dito da transcrição linguística de dados de distúrbios de linguagem para além da abordagem fonêmica. Não há, até onde eu sei, nem no campo da fonoaudiologia, nem no campo da linguística em geral, reflexão detida acerca das particularidades que estão implicadas nesse tipo específico de transcrição2.

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Doutora em Estudos da Linguagem e professora adjunta do Instituto de Letras da UFRGS. E-mail: surreaux@uol.com.br

2

Não negligenciamos o estudo de Ingram (1976) acerca da fidedignidade da transcrição de dados de fala de crianças com desvios fonológicos, embora esse autor dê ênfase para o aspecto fonêmico da mesma.

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É necessário, no entanto, fazer uma ressalva, lembrando o trabalho de Ramos (1991). Essa autora, fonoaudióloga, enfrenta a questão da dificuldade de registro e análise de falas imprecisas em casos de crianças com fissuras lábio-palatinas. A autora se depara com a dificuldade de registrar sons feitos por alguns de seus pacientes, pelo fato de serem sons desviantes, ou seja, por não dispor de símbolos no quadro fonético da IPA para acomodar aquilo que ouvia na fala desses pacientes. Portanto, vemos em sua reflexão o apontamento desse mal-estar repercutindo sobre os níveis fonético e fonológico do distúrbio.

É significativa a nota sobre as transcrições que abre o livro de Eleonora Albano (1990, p.3): “transcrever a fala corrente é sempre falseá-la”. A autora – reconhecida no campo dos estudos fonêmicos – alerta que é um engano tecnicista pensar que alfabetos fonéticos dão conta da transcrição. Encontramos nessa afirmação da autora argumento para relativizar a ilusão de objetividade que as transcrições fonéticas usualmente utilizadas no campo fonoaudiológico propõem.

Por isso afirmo que transcrever o distúrbio de linguagem não é comparável epistemologicamente a transcrever dados de outra natureza. Por quê? Porque há uma série de questões que surgem a partir dessa proposição. É disso que passo, então, a me ocupar.

A transcrição linguística de dados de distúrbios de linguagem tem especificidades que decorrem, de um lado, da instância enunciativa em que o dado é produzido – a instância clínica – e, de outro lado, do fato de a própria transcrição ser também o produto de um ato de enunciação. Em outras palavras, a transcrição é constituída duplamente na enunciação, uma vez que é um ato enunciativo que decorre de outro ato enunciativo anterior.

No escopo deste trabalho, minha preocupação é destacar o lugar que o estudioso da linguagem – seja ele fonoaudiólogo ou linguista – ocupa frente aos dados de fala desviante.

E se poderia perguntar: por que seria tão importante esse ato enunciativo de passar para o papel as falas que brotam no trabalho clínico com linguagem? Tenho percebido que é de fundamental importância que nos ocupemos da relação oralidade-escrita na abordagem da fala sintomática.

Numa primeira mirada, posso apontar que o apoio do material escrito é necessário para melhor se avaliar e compreender a forma peculiar com que cada sujeito enuncia. O material transcrito ajuda a enxergarmos o que circula de materialidade linguística entre terapeuta e paciente.

No entanto, é importante salientar que não se trata apenas de um procedimento mecânico de transformação de um meio (oral) em outro (escrito). O que está em jogo nessa transformação é perceber que nessa mudança há perdas e ganhos.

Por um lado, pode-se ilusoriamente imaginar estar higienizando (através da materialidade da escrita) o dado para tratá-lo de uma forma mais apreensível em termos linguísticos. Ou seja, tomando como referência o falante adulto “normal”, procede-se a um tratamento dos dados que vai na direção de apoiar a escuta na normatização da fala do paciente.

Por outro lado, parece fundamental ter presente a impossibilidade de apreensão total da fala de um sujeito, seja no meio oral ou no meio escrito. Melhor dizendo, há que se resignar enquanto ouvinte e perceber que, daquilo que é falado pelo outro, algo sempre escapa. Embora a transcrição da fala dos sujeitos seja necessária – e diríamos

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até fundamental – para a análise da fala sintomática, ela não dá conta daquilo que é da ordem do inapreensível que qualquer fala carrega.

E essa me parece uma primeira constatação importante: a interação terapeuta -paciente constatada através de uma transcrição é sempre uma apreensão parcial: daquilo que se deu nessa interação, apenas uma parte é captada na transcrição realizada. Isso porque esse recorte é fruto de uma enunciação, ou como nos ajudaria Benveniste, do

aqui e agora desse ato enunciativo.

Penso que na abordagem da fala sintomática necessita-se sim de um apoio material, no caso, um registro gráfico da oralidade para que se possa analisar as falas que ali circulam. É necessário buscar um caminho por onde guiar esse registro gráfico, respeitando a noção de linguagem que comporta sua própria incompletude. Melhor dizendo, esse interrogante recai sobre uma pergunta difícil de responder e que tem relação com o fato de tentar apreender aquilo que é inapreensível. Ou seja, o apelo à escrita pode ir até onde esbarra na questão da interpretação. Sabendo-se que a interpretação é realizada sempre no a posteriori, é sob os efeitos da escrita que se analisará a fala dos sujeitos.

Vamos acompanhar agora um exemplo que caminha nessa direção:

O fato linguístico analisado a seguir integra o Banco de Dados ENUNSIL (Enunciação e Sintoma na Linguagem), do Instituto de Letras da UFRGS.

Contexto enunciativo: fonoaudióloga (F) e paciente (E), de 8 anos, conversam sobre um episódio que E. vivenciou dias antes com um grupo de amigos.

E

F

1. Brincando com as gurias? 2. ééé...

3. qui qui qui

4. Bah o xoun embolotou as gurias

5. Quem que embolotou as gurias? 6. O xoun

7. Senta direitinho para falar, E. 8. O xoun

9. O João embolotou as gurias? 10. O xoun

11. Som?

12. O que que é o som? 13. U xoun

14. Um barulho? 15. Não lembo

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17. xoun

18. Som?

19. [risada]

20. Como que é o nome dele? 21. É xoun

22. É mesmo? 23. É!

Quadro 01

A fonoaudióloga responsável pelo caso estava às voltas com a transcrição desta cena enunciativa. Ao realizar a transcrição desse trecho especificamente, deparou -se com o mal-estar evidenciado pelo fato de novamente ter que se deparar com aquilo que ela não compreendeu na fala do paciente. Em reunião da equipe de fonoaudiologia3, essa fonoaudióloga solicita que os colegas auxiliem na tarefa de transcrição de tal trecho. Causa-lhe grande surpresa quando uma das bolsistas (estudante do 4º semestre de fonoaudiologia), diz que o elemento nebuloso em questão é “cachorro”.

A partir desse exemplo podemos avançar na questão da transcrição/interpretação e sobre lugar daquele que transcreve. Frente a uma transcrição estão em jogo dois enunciadores: o que fala (na cena) e o que transcreve. Por isso deve-se levar em consideração sempre o fato de que a transcrição implica o transcritor, que enuncia de forma muito particular essa passagem do oral para o escrito.

O interessante é que na clínica de linguagem muitas vezes é o recurso da escrita que permite “escutar”, perceber o que aquela enunciação singular evoca. Tal constatação me leva a dizer que a transcrição da fala sintomática toma contornos peculiares, ao evocar particularmente a noção de escuta, conforme já pudemos apontar em outra oportunidade (Surreaux & Deus, no prelo). Com isso ganha destaque o lugar do transcritor no ato de transcrição.

Tudo indica que a tarefa de transcrição necessita mais elementos para dar um passo além da pura objetividade. Nesse sentido, concordamos com a abordagem enunciativa de Silva (2009), ao apontar que a transcrição deve conter aspectos que levam em conta a teoria, o corpus e o transcritor. A teoria, no nosso caso, de ancoragem na perspectiva enunciativa de Emile Benveniste, requer uma fundamentação que dê conta das particularidades do aqui/agora singular de cada enunciação. O corpus, no caso deste trabalho, tem origem na especificidade da fala sintomática. A análise de falas sintomáticas envolve a particularidade de enunciados e enunciações que carregam a marca de um desarranjo na fala. E, finalmente, a posição que o transcritor ocupa em uma transcrição é o que estamos querendo neste trabalho destacar.

Encaminhamentos finais

Somos tentados a pensar que a transcrição circunscreve o sintoma. A ideia aqui não é destacar através da transcrição aquilo que se aponta como fala sintomática, mas

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propiciar, através do estatuto da enunciação uma reflexão sobre o papel do transcritor e sua interpretação como um operador da noção de escuta no âmbito da clínica de linguagem.

A transcrição de falas “nebulosas” requer sua leitura sempre em relação a outras falas. Trata-se de um ponto de partida que possibilitará a leitura de falas em relação. Esse ponto de vista mostra que a particularidade de uma análise deve necessariamente levar em consideração o efeito que uma fala (desviante ou não) produz no outro (interlocutor). É o efeito disso que se verá em uma transcrição.

Não se trata da necessidade literal de transpor uma fala para o escrito como condição da posição de escuta daquela fala. Trata-se, antes disso, de levar em consideração: (a) o paciente que apresenta fala sintomática como um locutor passível de ocupar a posição de enunciador; (b) os enunciados do paciente como produto de uma enunciação. É a partir disso que se estará sob o “efeito de transcrição”, o que significa escutar partindo do pressuposto que se está frente a falas em relação.

Muitas variáveis estão em jogo naquilo que o transcritor parece poder ouvir (ou não) no momento de uma transcrição. Lidar com a fala de um paciente em atendimento fonoaudiológico como a fala de um interlocutor em condições singulares de ocupar um lugar enunciativo parece ser determinante na escuta que o transcritor imprime. É isso que nomeio de “efeito de transcrição”.

Referências

ABAURRE, M.B. Os estudos lingüísticos e a aquisição da escrita. In: O método e o

dado no estudo da linguagem. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

ALBANO, E. Da fala à linguagem: tocando a fala de ouvido. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

ALLOUCH, J. Letra a letra – transcrever, traduzir, transliterar. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1995.

BENVENISTE, É. Problemas de lingüística geral I. Campinas: Pontes, 1991. BENVENISTE, É. Problemas de lingüística geral II. Campinas: Pontes, 1989.

FLORES, V.N. Entre o dizer e o mostrar: a transcrição como modalidade de enunciação. Organon - Sintoma e linguagem, Porto Alegre, IL/UFRGS, n.40/41, p.61-75, 2006.

FLORES, V.N. Transcrição e enunciação. (no prelo)

FLORES, V.N., SURREAUX, L.M. & KUHN, T. Enunciação e sintoma da linguagem: um estudo sobre as relações metafóricas e metonímicas. Calidoscópio, São Leopoldo, Unisinos, v.3, n.2, maio/agosto de 2005.

FLORES, V.N.; TEIXEIRA, M. Introdução à lingüística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2005.

INGRAM, D. Phonological disability in children. London: Edward Arnold, 1976. MILNER, J-C. O amor da língua. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.

RAMOS, A.P.F. Avaliação e tratamento fonológico de crianças portadoras de fissuras

do lábio e do palato reparadas na faixa etária de 4 a 9 anos. Dissertação (Mestrado em

Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1991. SILVA, C.L. A criança na linguagem – enunciação e aquisição. Campinas: Pontes Editores, 2009.

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SURREAUX, L.M. Benveniste, um lingüista que interessa à clínica de linguagem.

Letras de Hoje, Porto Alegre, Ed. PUC/RS, v.39, n.4, p.79-87, dez., 2004.

SURREAUX, L.M. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande de Sul, Porto Alegre, 2006.

SURREAUX, L.M.; DEUS, V.F. A especificidade da transcrição com base enunciativa

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