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Boletim do Tempo Presente - ISSN Boletim do Tempo Presente, nº 04, de 08 de 2013, p. 1-5,

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SOBRE O ÓDIO

Por Clara de Góes[i]

Resumo: Discute-se o ódio como uma forma de gozo; já definido por Montaigne como uma paixão; considerando o primado do objeto sobre o sujeito, apontando para as consequências da formulação, tanto de Freud quanto de Lacan, segundo a qual o objeto da psicanálise é um objeto perdido. A função lógica do objeto perdido permite a formação das massas onde o ódio é o correlato do amor. A conjugação das massas, na contemporaneidade, com o ódio faz dele, do ódio, um fato histórico.

Aristóteles diz que às vezes a cólera serve de arma para a virtude e a valentia. Isso é verossímil; no entanto os que o contradizem respondem jocosamente que é uma arma de uso novo, pois as outras armas nós manejamos e esta nos maneja; nossa mão não a guia, é ela que guia nossa mão; ela nos domina, nós não a dominamos (MONTAIGNE, 2000, p.570).

O ódio é uma paixão (MONTAIGNE). Uma paixão que ultrapassa e atravessa antigas pedagogias tributárias do Iluminismo. O ódio, de ser paixão, é um transbordamento que arrasta consigo a consciência e a razão. O ódio faz estrago no coração dos homens e na praça pública. Interessa-nos, aqui, a praça pública... estamos mais para Júlio César do que para Othelo. Falar em praça pública, na contemporaneidade, implica falar em massas. É esta a personagem principal deste cenário e o ódio é uma espécie de ponto de fusão da massa. Digamos que o ódio é a argamassa para a construção da massa como força política. Pensamos na Alemanha dos anos 20 e 30. Aí irrompem as massas que fascinam e assombram aqueles que não se deixam tragar por ela. Aí se desenvolve uma consciência perversa que Pasolini soube brilhantemente reconstituir no filme Saló; o gozo do corpo do outro ordenado pela Lei.

Os homens, sobretudo quando estão diluídos em uma massa, não são movidos por decisões racionais e sóbrias conformes à vontade. Eles se movem pelo turbilhão dos afetos, vale dizer, pelo imaginário, e pelas paixões, sendo o ódio, como expressão da pulsão de morte, talvez a principal delas. O ódio articulado a uma formação de massa se torna uma das forças políticas mais importantes da história contemporânea. A partir da política, o ódio faz história. Como se articulam, o ódio e as massas? O ódio é uma paixão e uma paixão é um padecer diante de um objeto que arrebata o EU. O objeto abre

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espaço, na estrutura, para o drama do ódio. Ódio que Lacan chamou de “l‟hainamoration” (amoródio) para salientar que o ódio (haine) não vai sem o amor (énamoration). Penso nas massas do Iran seguindo os aiatolás No Seminário XX, na lição de 26 de junho de 1973, Lacan vai dizer que não se conhece amor sem ódio: “O verdadeiro amor desemboca no ódio, seguramente, não foi a experiência analítica que fez essa descoberta, a modulação eterna dos temas sobre o amor traz suficientemente o reflexo disso” (LACAN, 2010, p.270).

A mitologia dos gregos tem uma tradição dessa passagem, do amor ao ódio. A essa tradição se junta a psicanálise. Na psicanálise, o ódio coexiste ao amor na formação do Complexo de Édipo. O menino ama... ama até que irrompe o ódio por aquele que lhe interdita o corpo da mãe e que é destinatário do seu desejo. O ódio irrompe quando o menino se dá conta de que o desejo da mãe está endereçado a outro lugar. A menina sofre o mesmo processo, sendo que o ódio irrompe quando atribui à mãe a responsabilidade por ela não ter um pênis e estar reduzida a uma vagina sem um significante que a represente no inconsciente. O pai, até então amado, é transformado em „ideal do eu‟ e seu amor, o amor ao pai, guardará, para sempre, essa marca de ódio que acompanha os ideais. Não há amor sem um rastro de ódio. O que nos interessa é o ódio como instrumento da política e a política como instrumento do ódio.

O objeto

Qualquer relação humana implica e constitui um objeto. A ciência tem seu objeto, o objeto da ciência, a filosofia, a teologia, a arte, e por aí vai. No campo dos saberes, cada um tem seu objetinho. A psicanálise também tem o seu..., porém com uma diferença que é quase um paradoxo: o objeto da psicanálise é um objeto perdido, desde sempre perdido, chamado por Lacan de objeto a. Ora, se o objeto está perdido, o que temos dele é sua perda. Logo, a paixão pelo objeto é paixão pela falta, uma vez que é isso que se tem dele, sua falta.

A paixão é o jeito de estar no mundo subsumido ao objeto. E quem está no mundo? O eu. O eu está, na paixão, submetido ao objeto, vale dizer, sob o primado da falta. Freud, em seus termos, fala da paixão e do amor como uma economia libidinal.

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Há um deslocamento da libido do EU para o OBJETO, o que permite que o objeto se expanda à custa do EU.

A libido, como sabemos, é a força da pulsão sexual, pulsão de vida que nos mantém seguindo a dinâmica de uma economia psíquica que faz do sistema psíquico uma “máquina de gozo”. Podemos dizer que a paixão é um gozo? Certamente uma espécie de arrebatamento. A psicanálise é uma práxis que supõe, epistemologicamente, que o objeto esteja perdido para que um modo de produção se estabeleça como estrutura sobre a qual o drama histórico vai se localizar. O drama é histórico, a estrutura é da linguagem. O modo do inconsciente operar é uma construção lógica de Freud, daí que o objeto desde sempre perdido não é um acontecimento, mas uma necessidade lógica.

A perda não é dramática, mas lógica. Isso quer dizer que não há empiricamente o momento da perda, mas há a necessidade lógica da perda. Tem uma frase de Lacan no Seminário ...ou Pire que define bem a função lógica: “O objeto da lógica é o que se produz da necessidade de um discurso” (LACAN, 2011, p.40)

O que eu quero dizer é que a formulação do objeto desde sempre perdido é necessária ao discurso da psicanálise. Se o objeto está perdido, o que comparece como objeto é a falta. Instaura-se, então, não uma dialética do objeto, mas da falta. Falta, esta, que se faz presente como abismo e dilaceramento e cujo furor pode levar à loucura ou à morte.

A formulação do objeto perdido não é empiricamente demonstrável, tampouco é um apelo à fé. Talvez seja um jeito de escrever a dor de existir que aparece e se endereça à clínica psicanalítica. A paixão é da ordem de um gozo... o gozo da falta e o ódio é um modo de resistir a inscrever, na alma, a falta. Assim que na paixão reina o objeto, vale dizer, na paixão reina a falta.

As massas irrompem na história contemporânea provocando assombro e fascínio. Nos anos 30, serão um fator essencial à ascensão dos fascismos. Ainda nos anos 20, Freud formula a estrutura do fenômeno que marcará o século XX e a passagem para o XXI. Diz que a ligação que suporta a massa é uma ligação libidinal, o que deita por terra todas as explicações que apontam para uma pedagogia, sugestão ou manipulação das pessoas que obedeceriam, em última instância, por ignorância. Freud aponta na direção de um sujeito, isto é, de alguém responsável pelo seu ato. A partir daí

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se amplia o campo da ética e da responsabilidade individual diante de acontecimentos coletivos.

A formação das massas obedece à mesma operação de apagamento do eu (incluindo-se, aí, a consciência) diante do objeto amado... ou odiado.

A formação da massa requer uma espécie de enamoramento, ou seja, relações libidinais entre seus membros e o líder. Não atende a qualquer pedagogia, pois as massas são avessas a pensar. O que conta é a ligação apaixonada com o objeto. Os que formam a massa não estão ali por uma espécie de engano (a não ser os enganos habituais do amor), nem por manipulação. Estão ali apaixonados.

De certa maneira, a massa é efeito do objeto, embora recuse a falta. A falta particulariza, dá margem ao aparecimento do sujeito, enquanto a massa transforma a todos em iguais. Aliás, é só aí, que se pode encontrar a igualdade; a igualdade diante do líder. Só há iguais diante de um mestre, de um senhor... o que torna preocupante os discursos da igualdade.

Uma civilização advinda das Luzes prometia a diminuição da selvageria. Ocorre justamente o contrário. A selvageria não é assunto da Razão, mas da política. O aparecimento das massas associado à ciência e à tecnologia leva à proliferação de medeias abandonadas e terríveis. Na tragédia de Eurípedes, Medeia lhe é negada a cidadania e ela é expulsa de Corinto por ser estrangeira e inspirar medo aos poderosos. Vemos a repetição desse espírito na expulsão dos ciganos na França.

A ampliação do modo de produção capitalista, vale dizer, a transformação dos laços sociais sob a égide do capital, produzem o desenraizamento da população camponesa, a concentração urbana, os ciclos de crise e desemprego fornecem as condições para a formação das massas. Ao apelo de “chefes”, há o ajuntamento e a fusão. Essa operação se subjetiva através da inversão da pulsão sexual. O ódio é a alma da massa, mas o amor não fica atrás. A pulsão sexual está imiscuída à pulsão de morte. Afinal, as massas se formam em torno do amor a um ideal encarnado por um líder. O ideal do EU, tomado como objeto, logo produz um ponto de ódio.Quanto mais o amor é evocado (no discurso religioso isso fica muito claro) no nível do discurso, mais ódio responde na prática a essa evocação. Em nome de amor ardiam as fogueiras da inquisição.

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A massa é um amálgama diante de um traço qualquer tomado como ideal. Quanto mais vazio e sem sentido for esse traço mais eficaz será sua capacidade de atração. Quanto mais vazio e sem sentido for o discurso que toma a massa, mais eficaz ele será em seus propósitos. O ódio é correlato do amor. Então, defender uma política em nome do amor é disseminar o ódio. Na vida, como na política, o ódio e o amor correm juntos. Assim que, aos adeptos do amor, lembro do que dizia Santa Teresa no Livro da Vida: “Deus nos livre de devoções tolas” (D‟ÁVILA, 2010, p.127).

Referências

CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

D‟ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.

FREUD, Sigmund. Psicologia de las Massas y análisis del yo. In: ___. Más allá del principio de placer, Psicología de las masas y análisis del yo y otras obras. Vol. XVIII. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.

LACAN, Jacques. Le Séminaire, livre XIX: ... ou Pire. Paris: Seuil, 2011.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro XX: Encore (1972-1973). Rio de Janeiro: Escola de Psicanálise Letra Freudiana, 2010. (Edição não comercial destinada exclusivamente aos membros da Escola).

MONTAIGNE, Michel de. Da Cólera, cap XXXI. In: ____. Os Ensaios. Vol II. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Notas

[i] Professora do programa de pós graduação em História Comparada pela UFRJ e doutora em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É psicanalista e membro da Escola de Psicanálise Letra Freudiana.

Referências

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