II SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS INTEGRADAS
DA UNAERP CAMPUS GUARUJÁ
O amor entre a completude e a falta:
leitura psicanalítica de o Banquete de Platão
Marisa SimonsProfessora do Curso de Serviço Social
Unaerp – Universidade de Ribeirão Preto – Campus Guarujá mariennes@uol.com.br
Resumo:
O trabalho visa mostrar como o tema do Amor, em o Banquete de Platão, analisado sob a perspectiva da teoria freudiana retomada por Jacques Lacan atende (assim como outros saberes veiculados pelos diversos textos) à necessidade humana de conhecimento do mundo e dos seus sentidos, apontando para o desejo de transcendência e bem-estar proporcionados pela apreensão de bens culturais. Sob esse aspecto, a noção de “qualidade de vida” posiciona-se para além do simples acesso aos bens naturais e materiais da existência.
Palavras-chave:
Amor, Filosofia, Psicanálise. Seção 1 – Curso de Serviço Social Apresentação: oral.
1. Introdução
O acesso aos bens culturais da humanidade, por todas as classes sociais, com ênfase nos diferentes saberes veiculados pelos textos, configura importante indicador da qualidade de vida de um povo, pois a satisfação das necessidades intelectuais aponta, mesmo que indiretamente, para a superação das necessidades mais imediatas de sobrevivência.
Dentro desse escopo, perceber a forma e “qualidade” dos relacionamentos humanos, visto que a interação entre as pessoas sempre foi objeto dos textos, torna-se assunto de interesse. Básico, nas relações humanas, por seu caráter universal, o Amor vem despertando nos homens o desejo de um conhecimento mais profundo, talvez para melhor compreenderem a gênese desse sentimento responsável pelos atos mais nobres e os mais terríveis. O que dizer de quem sacrifica a própria vida em defesa de outrem? Ou de quem mata em nome de um pretenso “amor”?
Sentimento controverso, o Amor vem espicaçando escritores e intelectuais das mais diversas tendências e posicionamentos, fazendo com que se debrucem sobre seus misteriosos "meandros", na tentativa de entendê-lo ou, ao menos, perceber suas nuances. Dentre eles,
encontram-se Sigmund Freud, o teorizador da psicanáliencontram-se, e Jacques Lacan que revisitando os escritos freudianos, ao tratar da transferência na relação analítica, em O seminário, livro 8: a transferência (1960-1961)1 acaba por
estudar importante texto filosófico: o Banquete de Platão, totalmente dedicado ao tema do Amor.
2. O amor entre a completude e a falta
Inicialmente, de modo a delimitar seu ponto de vista, sobre o texto do século V a.C., Lacan enfatiza que, embora não se possa deixar de evocar o contexto de Banquete, para bem o compreender, não é necessário ressituá-lo na história, mas sim, atendendo à metodologia do comentário,
interrogar o discurso para entender o sentido que veicula. Logo, Lacan
enfatiza não o modo pelo qual o discurso se situa na história, mas como a própria história adentra o discurso.2
Versando sobre um symposion, costume praticado por pessoas de elite, na Grécia antiga, numa cerimônia com regras (espécie de "jogo social"), na qual se costumava discutir um tema3, o Banquete situa, como
cenário, a casa de Agatão, poeta dramático, que comemora sua vitória num concurso de tragédias. Ali, trava-se uma disputa entre vários convivas - com destaque para a figura de Sócrates - que elaboram discursos em elogio a Eros.
Vários são os conceitos de amor que os discursos dos bancantes presentificam. Segundo Lacan, Fedro o aponta como metáfora da substituição, enquanto, o abastado Pausânias assinala seu valor de troca; em Erixímaco, o médico, revela-se a face harmoniosa do amor; ao passo que Agatão enfatiza a atopia de Eros e, Aristófanes, poeta cômico, o desejo
de completude. Chega-se, depois, à natureza do amor, um sentimento marcado pela falta, por meio das palavras de Sócrates.
Analisando todos os discursos, Lacan deles extrai aspectos significativos. O discurso de Fedro mostra a possibilidade do amado tomar
a posição do amante; em outras palavras, o amante (ativo) e o amado
(objeto) trocarem de papéis.4 Portanto, na relação amorosa, a metáfora do amor pode ocorrer na troca, ser a ser, ou na escolha da Moira do destino
com o mesmo valor substitutivo.5
1 A questão da transferência é analisada por Lacan na primeira parte de seu Seminário 8. LACAN, Jacques. O
seminário, livro 8: a transferência 1960-1961. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão
brasileira de Dulce Duque Estrada; revisão do texto Romildo do Rego Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 1992.
2 Idem. Op. cit., p: 83-84. 3 Idem, ibidem, p: 29.
4 Fedro compara o Amor a um grande deus e situa os mitos de Alceste e Admeto (a esposa amante que
substitui o marido amado, na morte) e Aquiles e Pátroclo (o amado que, matando Heitor, vinga a morte de Pátroclo, o amante, com isso aceitando a própria morte). Conclui pela superioridade amorosa do par Aquiles-Pátroclo, pois aos deuses maravilha o amado comportar-se como se amante fosse. PLATÃO.
Diálogos: Mênon, Banquete, Fedro. 5ª ed., trad. Jorge Paleikat, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo:
Editora Globo, 1962, p: 122-126.
As palavras de Pausânias, discorrendo sobre o caráter duplo do amor - o inferior e o superior6 - revelam as maneiras pelas quais o "amor
superior" passa por troca de valores entre érastès e éroménos, cabendo ao primeiro contribuir para a inteligência, para a aquisição de virtudes do segundo, de modo a fazê-lo ganhar em educação, em saber.7 Já, as do
médico, Erixímaco, asseguram ser o amor regido pelo pressuposto de harmonia, inerente a toda a natureza8, responsável pela atração dos
semelhantes entre si, disso resultando o amor sadio e o mórbido.9
Com relação ao discurso de Arisfófanes, Lacan faz ver que o poeta destrói a idealização da esfera, como forma perfeita, à qual Antiguidade estava apegada.10 Para explicar a origem do amor, o cômico se vale do mito
dos homens hermafroditas, fortes e redondos, que atacaram o Olimpo e, por castigo, foram repartidos em metades, por Zeus. O eterno desejo dos homens encontrarem a “metade perdida”, marcaria o sentimento amoroso. Os seres buscavam-se e, ao se encontrarem, morriam num inseparável e estéril abraço, impossibilitados de procriar, por terem seus órgãos genitais na parte posterior (onde estavam quando eram redondos). Por comiseração, Zeus passara os genitais à frente do corpo, para que a raça não se extinguisse11.
A hermenêutica lacaniana enfatiza o tom cômico do Banquete, em diferentes passagens12, mas não especificamente nesta, apesar da
“derrisão da esfera” ser apresentada por Aristófanes, o bufão. Ao contrário, Lacan destaca o estranhamento causado pela elaboração, de um dos mais sérios e trágicos discursos sobre a natureza do amor, por um estrião.13
Aristófanes, poeta cômico, encontrará o contraponto de suas palavras no discurso de Agatão, poeta trágico, que, distanciando-se da vertente dramática, elaborará seu discurso num jocoso tom de bufonaria14.
Embora uma das leituras tradicionais do Banquete identifique o amor com
a temperança15 , no discurso agataniano, o distanciamento interpretativo
de Lacan tem apoio nos subentendidos de certos termos, criados pela
6 Pausânias justifica ocaráter duplo do Amor, afirmando a existência de duas Afrodites: Urânia, responsável
pelos amores superiores e Pandêmia, Vênus popular, vinculada às manifestações eróticas inferiores. PLATÃO. Op. cit., p: 126-133.
7 LACAN, Jacques. Op. cit., p: 61-64.
8 Erixímaco se embasa na noção de harmonia, própria da escola médica dos alcmeônidas, segundo a qual o
princípio harmônico regeria toda a natureza, inclusive o homem e sua saúde. In: Idem, ibidem, p: 74.
9 Idem, ibidem, p: 73-81.
10 Essa "fascinação" se revelaria, mesmo antes do movimento elíptico planetário, descoberto por Kepler, pela
imaginária existência de um Universo pautado pelas "propriedades da esfera, definida como a forma que porta em si as virtudes da suficiência... [capaz de] combinar nela a eternidade do mesmo lugar com o movimento eterno". In: Idem, ibidem, p: 95-97.
11 PLATÃO. Op. cit , p: 138-141.
12 LACAN, Jacques. Op. cit, p: 80 e 110-113. 13 Idem, ibidem, p: 92.
14 Idem, ibidem, p: 110-113. 15 Idem, ibidem, p: 110.
língua grega16. A intencionalidade de Platão, seu desejo de "antítese" lhe
parece patente e o psicanalista conclui: "não basta, para falar de amor, ser poeta trágico... é preciso também ser poeta cômico".17 Essas palavras
parecem apontar uma espécie de enigma com relação à natureza do amor a ser elucidado por Sócrates, a principal figura desse diálogo.
Numa mudança de registro, Sócrates não fará propriamente um discurso. Antes, utilizando-se de seu método (Maiêutica), elaborará uma série de interrogações a Agatão: "Esse amor de que falas, é ou não, amor de alguma coisa? Amar e desejar alguma coisa é tê-la ou não tê-la? Pode-se dePode-sejar o que já Pode-se tem?"18 O direcionamento das perguntas, leva os
interlocutores às seguintes conclusões: "o objeto do desejo, para aquele que experimenta esse desejo, é algo que não está à sua disposição, e que não está presente, em suma, alguma coisa que ele não possui, algo que não é ele mesmo, algo de que está desprovido, é desse tipo de objeto que ele tem desejo, tanto quanto amor."19
Entretanto, após definir a natureza faltante do amor, Sócrates introduz a figura de Diotima, a Estrangeira de Mantinéia, que lhe teria ensinado tudo o que sabe sobre o amor, e Lacan se pergunta o porquê. Parece-lhe muito fraca a justificativa, normalmente aceita pela crítica, de que Sócrates assim age para salvaguardar a figura de Agatão, seu amado na época, cujo discurso demonstra-se extremamente sofístico, no sentido pejorativo do termo20. O motivo deveria ser procurado em outro lugar, e ele
se interroga quanto à abrangência do método socrático para dar conta da natureza do tema.
Dentro dessa óptica, Sócrates promove uma mudança de registro, ao dar a palavra a Diotima, transportando a discussão do tema amoroso a outra área do conhecimento, ou seja, da ciência; em outras palavras, da
épistèmè para a do muthos21. E o mito do nascimento do Amor será a linha
guia adotada pela maga da Mantinéia para discorrer sobre o tema.
E Diotima começa pelo mito originário do Amor, atribuindo-lhe por pai, Poros (Expediente, Recurso), filho de Métis, a Invenção, e por mãe, Penia (Pobreza, Miséria), caracterizada como aporia, ou seja, a que não tem recursos. Sua concepção teria ocorrido durante os festejos do nascimento de Afrodite, quando Poros, embriagado e adormecido, fora submetido por Aporia, que se fez emprenhar por ele22. Como Aporia nada tem a oferecer, a não ser a sua própria falta constitutiva, referenda-se a posição lacaniana, expressa na frase: "Amor é dar o que não se tem"23, fundamentalmente
respaldada na questão da "falta amorosa".
16 Idem, ibidem, p: 111. 17 Idem, ibidem, p: 114.
18 PLATÃO. Op. Cit., p: 153-154 e LACAN, J. Op. cit., p: 118. 19 LACAN, Jacques. Op. cit., p: 119.
20 Idem, ibidem, p: 110. 21 Idem, ibidem, p: 123. 22 PLATÃO. Op. cit, p: 158.
Na esteira de Diotima, Lacan apresenta as denominadas
características básicas do amor, sentimento definido como práxis
pertencente a uma zona intermediária entre a épistèmè e a doxa24 e entre o belo e o verdadeiro, porque, conforme o mito, sendo a data de concepção
de Eros coincidente com a do nascimento da bela Afrodite, o amor sempre manterá uma relação obscura com o belo. Observa que é retórica a objeção de Sócrates à maga, segundo a qual se falta ao amor o belo, ele seria feio e, ainda que, no discurso platônico, o Amor está entre os dois.25
Numa série de questionamentos, Diotima vai construindo seu discurso, introduzindo, inclusive, a questão: "O que falta àquele que ama?" e, na seqüência, "E esses bens, por que os ama, aquele que ama?" Articulando tais argumentos, sugere que o bem específico desejado pelo
amor é o belo, elemento que dá direção ao desejo de possuir. Continuando,
num salto discursivo (sofístico na leitura lacaniana), a Estrangeira de Mantinéia associa o belo não com o ter, mas com o ser, especificamente, com o ser mortal.26
Nessa linha de raciocínio, o Belo (cuja forma eterna encontra-se no domínio das essências, não afetadas pela geração e corrupção), quando ligado a manifestações fugazes da vida, se tornaria o modo de participação do mortal no mundo eterno, filosoficamente teorizado por Platão. A ilusão da beleza seria, portanto, o fundamento da busca de perenidade; na procura do belo, o mortal se reproduziria e sustentaria a constância de sua forma, em busca de sua aspiração máxima - o desejo de imortalidade.27
A garantia desse "desejo maior" se vincularia ao desejo de
completude e procriação por meio de fusão no outro, conforme o idealismo
platônico. Daí constituir-se instigante ponto de reflexão o discurso mítico de Aristófanes, em que o sujeito esférico e cindido procura incessantemente sua complementaridade em outro ser (a metade perdida), pois o mito parece colocar a possibilidade de fechamento da esfera primitiva, num amálgama reconstrutor da antiga unidade, uma vez que o homem é visto como íntegro em sua origem. O amor é entendido como o sentimento que, mesmo perpassando pela figura do outro, caminha no sentido de reforçar a plenitude individual.28
A situação do ser fendido, que busca o uno, pode até mesmo ser entendida como "trágica", uma vez que se trata de um grande logro narcísico; ou, em outros termos, a falta fundamental existente na natureza
24 Opiniões, discursos que podem até ser verdadeiros, mas o sujeito não sabe o porquê, pois a doxa não é
ciência. LACAN, Jacques. Op. cit., p: 126.
25 Idem, ibidem, p: 125-126. 26 Idem, ibidem, p: 129. 27 Idem, ibidem, p: 130.
28 Trecho apoiado no discurso de Aristófanes, em o Banquete, mostra-nos o desejo de unidade, compreendido
como próprio da natureza original: “Ser unido e fundido no amado! Serem apenas um! E a razão é que assim era a nossa antiga natureza, pelo fato de havermos formado anteriormente um todo único. E o amor é o desejo e a ânsia dessa complementação, dessa unidade”. (grifos nossos) PLATÃO. Op., cit., p: 142-143.
do amor, tão bem apontada por Sócrates, nunca será preenchida.
3. Conclusão
Assim, se o amor platônico pressupõe a unidade do ser, o amor freudiano considera a cisão do ser, cuja vida mental, como se sabe, revela a existência do consciente, pré-consciente e inconsciente. Embora ambos amores sejam marcados pelo desejo de completude, o idealismo platônico (pela teorização dada ao desejo) abre a possibilidade de sua obtenção, o que não acontece na psicanálise, na qual o desejo apresenta condições de outra ordem.
Para a psicanálise o desejo é compreendido como uma cadeia
significante articulada pelo inconsciente, em demanda permanente, num
processo de reivindicação sempre latente na vida mental da pessoa. Para Freud, esse caráter de "repetição", de "automatismo" do desejo vincula-se à
pulsão de morte29. Sendo o desejo constitutivo do sujeito, nele o desejo de
morte também está presente, travando constante "luta" com a pulsão de
vida30 - o Amor.
Marcado pelo desejo, sob tensão entre Eros e Thanatos, sempre em busca da impossível completude amorosa, oscilando entre a alegria e o sofrimento, sempre caminhou, caminha e caminhará o Homem, presa do Amor, sentimento do qual, por mais que o compreenda, nunca se desvencilhará.
4. Bibliografia
FREUD, Sigmund. "Psicologia de grupo e Análise do Ego". In: Além do
Princípio do Prazer, Psicologia de Grupo e Outros Trabalhos, Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, edição standard brasileira, vol. XVIII, Rio de Janeiro: Imago, 1976.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência 1960-1961. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de Dulce Duque Estrada; revisão do texto Romildo do Rego Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 1992.
PLATÃO. Diálogos: Mênon, Banquete, Fedro. 5ª ed., trad. Jorge Paleikat, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo: Editora Globo, 1962.
29 A pulsão de morte, segundo Freud, origina-se no interior do indivíduo e manifesta-se como uma tendência
destrutiva, um movimento regressivo que tem por objetivo reconduzir o organismo vivo ao estado inorgânico inicial (como modo de eliminação total das tensões existenciais), podendo também se voltar contra outros, sob a forma de agressividade. FREUD, Sigmund. "Psicologia de grupo e Análise do Ego". In: Além do Princípio do Prazer, Psicologia de Grupo e Outros Trabalhos, Obras psicológicas completas
de Sigmund Freud, edição standard brasileira, vol. XVIII, Rio de Janeiro: Imago, 1976, p: 55-57.
30 Contrapondo-se à pulsão de morte, a pulsão de vida liga-se ao impulso sexual e a autoconservação do