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Empresariando a Informalidade: um debate teórico à luz dos novos modos de organização do trabalho

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1 16. Encontro Nacional da ABET

3 a 6/9/2018, UFBA, Salvador (BA) GT04 - Reconfigurações do trabalho

Empresariando a Informalidade: um debate teórico à luz dos novos

modos de organização do trabalho

Marcia Vaclavik (PPGA/EA/UFRGS) Sidinei Rocha-de-Oliveira (PPGA/EA/UFRGS)

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2 Resumo:

O modelo tradicional de emprego, centrado na empresa como responsável pela entrega de benefícios regulados pelo poder público e que foi referência durante o século XX, tem se distanciado de algumas relações laborais emergentes. O padrão de trabalho seguro e regular, a tempo integral e vinculado a um empregador por meio de um contrato formal tem deixado de ser a forma como muitos ganham os meios necessários para manterem-se (KOVÁCS, 2006; MANYIKA et al., 2016). Essas configurações laborais representam uma nova dimensão para a discussão acadêmica em que se aponta a redução, a ritmo crescente, do vínculo estável e duradouro entre empregados e empregadores. Estima-se que, atualmente, mais de 2 bilhões de pessoas (cerca de 60% da população ocupada) têm na informalidade o seu principal meio de subsistência (ILO, 2018). É inegável, portanto, a sua importância econômica e social. Nesse sentido, ao reconhecer os distintos modos pelos quais o trabalho se manifesta, em especial em contexto de aceleradas transformações econômicas, sociais e tecnológicas que possibilitam outros modos de operacionalização do labor, o debate sobre a informalidade tem crescido em interesse. Aos processos de automação e redução de postos formais e aos movimentos de flexibilização e desregulamentação do trabalho (CHEN, 2012; ILO, 2018; PICCININI; OLIVEIRA; RÜBENICH, 2006), é possível acrescentar a expansão de formatos diversos – como autoemprego, microempreendedorismo ou trabalho freelance, para citar apenas alguns – que tendem a reforçar a informalização. Para Chen (2018), o futuro do trabalho é inevitavelmente informal. A assunção da inevitabilidade da presença do informal nos prognósticos do futuro do trabalho é uma constatação analítica relevante. Peres (2015) aponta que a própria noção de informalidade adquire, com o passar do tempo, novos contornos ao acompanhar os movimentos dinâmicos dos quais faz parte. Desse modo, a discussão atual tem entendido a informalidade tanto como sintoma a ser erradicado, a partir de ações que viabilizem a transição do informal para o formal (OIT, 2014), quanto como fenômeno a ser valorizado por ser potencial gerador de ocupação e renda (NOGUEIRA; ZUCOLOTO, 2017; PERES, 2015). Krein & Proni (2010) destacam que, ao longo de décadas, a informalidade foi discutida a partir do conceito de “setor informal”, cunhado nos anos 1970, que colocava o trabalho formal (o bom trabalho) em oposição ao trabalho informal (o mau trabalho). A partir de 2002, reconhecendo as limitações dessa dicotomia, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) passa a adotar o termo “economia informal”, ampliando o escopo de análise ao reconhecer a heterogeneidade do fenômeno e a existência de um continuum entre a total informalidade e a formalidade absoluta. Assim, mais do que a erradicação da informalidade, ganha força a ideia de que as políticas públicas devem se pautar na busca pelo “trabalho decente” (KREIN; PRONI, 2010). Desse modo, destaca-se a mutabilidade, dinamicidade e heterogeneidade com que o fenômeno se apresenta, desdobrando-se em conceitos permutáveis e complementares no que se refere aos seus objetivos descritivos e analíticos (OIT, 2014). É a partir destas premissas que este estudo se desenvolve, considerando a necessidade de ampliar o debate sobre a informalidade em todas as suas expressões. Assim, o objetivo deste estudo é avançar na discussão da informalidade a partir de uma das suas manifestações contemporâneas: os mercados laborais digitais (MLDs). Nestes mercados, observa-se que grandes empresas multinacionais – muitas operando em vácuos regulatórios – passam a mediar relações laborais através de plataformas, utilizando-se do trabalho informal. Esse fenômeno, neste estudo denominado “empresariamento da informalidade”, coloca o trabalho informal em uma outra escala, reorganizando e amplificando a informalidade e a ela imprimindo novos contornos. As práticas laborais dos MLDs são viabilizadas pela ubiquidade tecnológica digital, a partir de plataformas que utilizam a internet para viabilizar a conexão entre a demanda por determinado produto/serviço ao fornecimento de um trabalho que a supra, reduzindo custos de transação (DE-STEFANO, 2017). Esse fenômeno é característico da chamada Gig Economy (Economia dos “Bicos”) um conjunto de mercados que conectam, através de plataformas, as demandas dos consumidores e fornecedores por meio de trabalhos de curta duração: os gigs (“bicos”) (DONOVAN; BRADLEY; SHIMABUKURO, 2016). Ainda que as plataformas de agenciamento de bicos não sejam algo novo, é notável sua expansão a partir do acelerado desenvolvimento

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3 tecnológico. As plataformas, agora digitais, encontram, especialmente devido a inexistência de regulações específicas, poucas barreiras à entrada em muitos países (Balaram et al., 2017), tendo rapidamente alcançado dimensão global. Ademais, é notório que o surgimento dos MLDs está alterando os padrões laborais existentes (BALARAM; WARDEN; WALLACE-STEPHENS, 2017; COYLE, 2017; DONINI et al., 2017), ao aproximar o produto do trabalho àqueles que o demandam (GRAHAM; HJORTH; LEHDONVIRTA, 2017). Assim, a importância dos estudos sobre a informalidade reside não apenas na dimensão numérica da ordem dos bilhões de trabalhadores, como na constatação de que novos modos de organização econômica sustentados pela tecnologia digital estão contribuindo de maneira crucial para mais uma significativa transformação nos padrões de trabalho. Tal como referem Berg et al. (2018, p. V), “uma das maiores transformações no mundo do trabalho na última década foi o surgimento de plataformas de trabalho digitais online”. Na imbricação destes fenômenos – a informalidade e os novos modos de organização laboral – residem gritantes desafios, que se relacionam diretamente com as preocupações contemporâneas sobre o futuro do trabalho. Nesse contexto, é imprescindível destacar que não apenas “os limites entre manufatura e serviços passaram a se mostrar mais tênues” (GUIMARÃES, 2008, p. 276), como a própria distinção entre o que é trabalho e o que é produto/serviço já não parece ser tão facilmente delineável. Mais que isso: não apenas esses limites agora não se apresentam claros, como os modos nos quais os mercados se estruturam se alteraram. Nota-se que novos atores passaram a assumir papéis representativos – como, por exemplo, consumidores – enquanto outros podem estar perdendo relevância – como o papel regulador do Estado. Ainda, as próprias definições entre o que é serviço (no âmbito econômico da otimização de recursos e redução de custos de transação) e o que é trabalho (no âmbito da própria regulação das relações laborais) tornam-se mais ambíguas. Estas alterações – que à primeira vista pode parecer sutis ou uma resposta ao desemprego – são significativas quando o que está em foco é o entendimento das relações de trabalho, já que as dinâmicas envolvidas se alteram completamente. Tal como referem Krein & Proni (2010, p. 202), a informalidade vai se instaurando nas “brechas deixadas pelo mundo formal”. Deste modo, mais do que ignorá-la ou estigmatizá-la, é necessário reconhecer a sua existência e importância (CHEN, 2018), compreendendo os novos formatos que assume frente às transformações tecnológicas e à reorganização nacional e internacional dos mercados de trabalho que promove.

Palavras-chave: gig economy; mercado de trabalho digital; motoristas de aplicativos; economia compartilhada; platform economy.

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4 Empresariando a Informalidade: um debate teórico à luz dos novos modos de

organização do trabalho

1. Introdução

O modelo tradicional de emprego, centrado na empresa como responsável pela entrega de benefícios regulados pelo poder público e que foi referência especialmente durante o século XX, tem se distanciado de algumas relações laborais emergentes. O padrão de trabalho seguro e regular, a tempo integral e vinculado a um empregador por meio de um contrato formal tem deixado de ser a forma como muitos ganham os meios necessários para manterem-se (KOVÁCS, 2014, 2006b; MANYIKA et al., 2016). Essas configurações laborais representam uma nova fronteira para avanço da discussão acadêmica em que se aponta a redução, a ritmo crescente, do vínculo estável e duradouro entre empregados e empregadores.

Estima-se que, atualmente, mais de 2 bilhões de pessoas (cerca de 60% da população ocupada) têm na informalidade o seu principal meio de subsistência (ILO, 2018a). Em geral, o ingresso nesse mercado, mais do que uma escolha, é resultado da combinação da necessidade com a falta de oportunidades no mercado formal (ILO, 2018). No Brasil, dados indicam que o trabalho informal é a realidade de 37,3 milhões de trabalhadores, ou 40,8% da população ocupada, percentual que tem se mantido neste patamar nos últimos anos (IBGE, 2018). A mensuração precisa da informalidade, entretanto, é um desafio, seja pela pluralidade conceitual que orbita em torno do termo, seja pela própria natureza das atividades informais (NOGUEIRA, 2016a). É possível (senão provável) que este percentual, portanto, seja ainda maior do que revelam as estatísticas oficiais.

No contexto brasileiro em que 13,2 milhões de pessoas encontram-se desempregadas, tanto a informalidade como as ocupações por conta própria tem tido papel importante na alocação da mão de obra desocupada (IPEA, 2019a). É inegável, portanto, a importância econômica e social da informalidade e do trabalho informal. Não se pode desconsiderar, também, que “a informalidade é uma característica histórica do mercado de trabalho brasileiro” (IBGE, 2018, p. 41). Ainda que seja fenômeno mundial, precisa ser analisada contextualmente, isto é, a partir de elementos econômicos, históricos, institucionais e culturais, na singularidade “do que é o Brasil” cuja trajetória histórica é marcada pela presença do informal (NOGUEIRA, 2016b, p. 15).

Nesse sentido, ao reconhecer os distintos modos pelos quais o trabalho se manifesta, em especial em contexto de aceleradas transformações econômicas, sociais e tecnológicas que possibilitam outros modos de operacionalização do labor, o debate sobre a informalidade tem crescido em interesse. Aos processos de automação e redução de postos formais e aos movimentos de flexibilização e desregulamentação (CHEN, 2012; ILO, 2018a; PICCININI;

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5 OLIVEIRA; RÜBENICH, 2006), é possível acrescentar a expansão de formatos diversos – como autoemprego, microempreendedorismo ou trabalho freelance, para citar apenas alguns – que tendem a reforçar a informalização. Para Chen (2018), o futuro do trabalho é, inevitavelmente, informal.

A assunção da inevitabilidade da presença do informal nos prognósticos do futuro do trabalho é uma constatação analítica relevante. Peres (2015) aponta que, com o passar do tempo, a própria noção de informalidade adquire novos contornos ao acompanhar os movimentos dinâmicos dos quais faz parte. Desse modo, a discussão atual tem entendido a informalidade em direções diferentes: de um lado, como sintoma a ser erradicado, a partir de ações que viabilizem a transição do informal para o formal (OIT, 2014); de outro, como fenômeno a ser reconhecido como gerador de ocupação e renda (NOGUEIRA; ZUCOLOTO, 2017; PERES, 2015). Destaca-se, portanto, a mutabilidade, dinamicidade e heterogeneidade com que o fenômeno se apresenta, desdobrando-se em conceitos permutáveis e complementares no que se refere aos seus objetivos descritivos e analíticos (OIT, 2014). É com base nestas premissas que este estudo se desenvolve, considerando a necessidade de ampliar o debate sobre a informalidade em todas as suas expressões.

Assim, assume-se a tese de que há um processo de empresariamento da informalidade na formação de mercados laborais digitais (MLDs). Nestes mercados, observa-se que grandes empresas multinacionais – muitas operando em vácuos regulatórios – passam a mediar relações laborais através de plataformas online, utilizando-se do trabalho informal. Esse fenômeno, neste estudo denominado “empresariamento da informalidade”, coloca o trabalho informal em uma outra escala, reorganizando e amplificando a informalidade e a ela imprimindo novos contornos. Para fins de exemplificação, o texto faz menções à atividade dos motoristas de aplicativos no Brasil1.

É notório que o surgimento dos MLDs está alterando os padrões laborais existentes (BALARAM; WARDEN; WALLACE-STEPHENS, 2017; COYLE, 2017; DONINI et al., 2017), ao aproximar o produto do trabalho àqueles que o demandam (GRAHAM; HJORTH; LEHDONVIRTA, 2017). Tal como referem Berg et al. (2018, p. V), “uma das maiores transformações no mundo do trabalho na última década foi o surgimento de plataformas de trabalho digitais online”. As práticas laborais dos MLDs fazem parte da chamada gig economy, sendo viabilizadas pela ubiquidade tecnológica digital, a partir de plataformas que utilizam a internet para viabilizar a conexão entre a demanda por determinado produto/serviço ao fornecimento de um trabalho que a supra, reduzindo custos de transação (DE-STEFANO, 2017). Ainda que as plataformas de agenciamento de trabalhos não sejam algo novo, é

1 Este estudo é parte integrante da tese de doutorado da primeira autora e de seus orientadores

(segundo e terceiro autores) que tem como objeto de estudo a atividade dos motoristas de aplicativos no Brasil.

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6 notável sua expansão a partir do acelerado desenvolvimento tecnológico digital. Como as plataformas encontram poucas barreiras à entrada em muitos países, especialmente devido à inexistência de regulações específicas (BALARAM; WARDEN; WALLACE-STEPHENS, 2017), rapidamente alcançaram dimensão global.

No Brasil, meios de alocação de mão de obra típicos da gig economy, como o transporte privado de passageiros por meio de carros particulares (como Uber, 99 ou Cabify) ou o serviço de entregas por motocicletas (como Uber Eats, Rappi ou iFood), ambos mediados por aplicativos, têm crescido substancialmente, com impacto significativo nos índices de (des)ocupação medidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE (IPEA, 2019b, p. 15). Dados recentemente divulgados pela imprensa indicam que há mais de 5 milhões de trabalhadores brasileiros obtendo fonte de renda através do trabalho baseado em aplicativos – ou seja, vivendo na gig economy (BALZA, 2019). Há que se atentar, entretanto, que não se pode desconsiderar as transformações do próprio mercado de trabalho, em especial no que tange ao contexto de hiperflexibilidade laboral, tal como já anunciavam Kovács (2006a, 2014) e Piccinini, Oliveira e Rübenich (2006), em estudos que remontam à década de 1990. Nesse sentido, reforça-se a preexistência de elementos ligados à esfera do trabalho que se somam ao fator tecnológico e favorecem, espacial e temporalmente, o desenvolvimento deste fenômeno.

Assim, a importância dos estudos sobre a informalidade reside não apenas na dimensão numérica da ordem dos bilhões de trabalhadores, mas na constatação de que novos modos de organização econômica sustentados pela tecnologia digital estão contribuindo de maneira crucial para mais uma significativa transformação nos padrões de trabalho. Na imbricação destes fenômenos – a informalidade e os novos modos de organização laboral – residem gritantes desafios, que se relacionam diretamente com as preocupações contemporâneas sobre o futuro do trabalho. Neste estudo, de natureza ensaística, busca-se, portanto, a articulação entre os eixos da informalidade e do trabalho na gig economy para, então, avançar no conceito do empresariamento da informalidade. Essa construção é realizada e discutida nos capítulos que seguem.

2. Revisitando o debate sobre a Informalidade

Adentrar na discussão sobre a informalidade implica reconhecer a sua complexidade, uma vez que não há consenso sobre uma definição objetiva e consensualmente aceita (KREIN; PRONI, 2010; NOGUEIRA, 2016a). O tema envolve uma miríade de representações concretas – como sonegação, comércio ambulante, microempresas ou contratação e assalariamento ilegal de trabalhadores, dentre tantas outras – que perpassam distintas concepções teóricas e diversificados objetos de estudo (CACCIAMALI, 2000; MARTINS, 2003; PASTORE, 2006). Considerando as premissas utilizadas para caracterizar a discussão

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7 – a atividade econômica ou o trabalho – são diversas as possibilidades de análise (NOGUEIRA, 2016a). Peres (2015, p. 271) aponta ainda que a informalidade, assim como os vocábulos que a circundam, podem ser tratados como “conceito, termo, noção, categoria analítica, categoria de entendimento a depender do referencial teórico que orienta as análises”.

A informalidade aparece nas mais diversas atividades produtivas e apresenta-se como parcela significativa na geração de renda dos brasileiros (KREIN; PRONI, 2010). Assim, ainda que se reconheça, há tempos, a necessidade de superar a dicotomia bom/ruim (FINCATO, 2017) e avançar no debate teórico sobre a economia informal (KREIN; PRONI, 2010), é consensual que há grande dificuldade em lidar com o tema, seja pela complexidade ou pela problemática da definição clara do objeto (NOGUEIRA; ZUCOLOTO, 2017), seja pela carência de dados ou orientação ideológica (NOGUEIRA, 2016b).

No que toca à realidade brasileira, longe de pretender fazer um resgate do processo constitutivo do mercado de trabalho2, é importante destacar que a informalidade é traço fundante das relações laborais do país3. Por mais que se reconheça que a informalidade “desenvolve-se num contexto de elevadas taxas de desemprego, subemprego, pobreza, desigualdade de gênero e trabalho precário” (OIT, 2014, p. 7), compreender a profundidade do seu enraizamento na sociedade brasileira é passo importante na busca pela melhoria dos padrões laborais. Tanto na esfera espacial das moradias quanto na ocupacional, a informalidade se coloca nas “brechas” da formalidade, manifesta em atividades – o trabalho autônomo, a indústria artesanal, o comércio ambulante ou os empreendimentos familiares – que ocupam as margens e espaços vazios do setor formal. Ao contrário de visar à acumulação de capital, as atividades informais tem natureza de subsistência, isto é, de geração de renda (CACCIAMALI, 2007; MORETTO; CAPACCHI, 2006; NOGUEIRA, 2016b, p. 20).

Não é recente, pois, a constatação de que a relação laboral pautada no assalariamento, face ao crescimento de outras possibilidades de inserção e permanência no mercado de trabalho, vem perdendo espaço. Formas ocupacionais que foram temporárias ou se apresentavam na forma de emprego outrora, assumem antigas e novas formas de atuação informal. Tal fato é percebido de modo crítico por Holzmann (2006) e de uma forma mais otimista por Pastore (2006). Sustenta-se, assim, que a análise do mercado de trabalho brasileiro precisa ser ampliada, contemplando as complexidades da informalidade e dos arranjos laborais contemporâneos.

2 Para um apanhado geral sobre o processo histórico da constituição do mercado de trabalho brasileiro,

recomenda-se a leitura do trabalho de Piccinini, Oliveira e Rübenich, (2006).

3 Sobre esse aspecto, recomenda-se a leitura de Nogueira e Zucoloto (2017), autores que resgatam o

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8 Breve Resgate Histórico do Percurso Conceitual da Informalidade4

No início dos anos 1970, a partir de pesquisas desenvolvidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT)5, a temática era discutida com base no conceito de “setor informal”, este definido considerando características específicas de determinadas unidades de produção (CACCIAMALI, 2007). Nesse contexto, a informalidade ocupacional era entendida como uma disfunção do mercado de trabalho. Esse fenômeno podia percebido claramente nos países subdesenvolvidos que não conseguiam alocar a massa de trabalhadores no padrão de emprego tipicamente capitalista (KREIN; PRONI, 2010). Cacciamali (2000) destaca o enfoque estrutural muitas vezes adotado nessa perspectiva de análise, com foco nas unidades produtivas e os desdobramentos na análise dos processos de trabalho.

Surgiam, assim, dois setores distintos no mercado de trabalho: o “formal”, caracterizado pelo “bom trabalho”, e o “informal” que, em oposição, era associado ao “mau trabalho” (KREIN; PRONI, 2010). Essa aparente homogeneidade, entretanto, não tardou a ser questionada, em um contexto social e econômico que também se complexificava. O debate sobre a informalidade, assim, intensificava-se juntamente com a necessidade de ampliar, conceitual e metodologicamente, o entendimento das transformações das formas de trabalho nas sociedades modernas (IBGE, 2018), destacando o crescimento daquelas ligadas à flexibilidade pós-fordista (KOVÁCS, 2006a, 2014; PICCININI; OLIVEIRA; RÜBENICH, 2006). A partir de 2002, reconhecendo não apenas as limitações da dicotomia formal/informal como a importância da informalidade na geração de renda, a OIT passa a utilizar o termo “economia informal”, agrupando os conceitos de “setor informal” (ligado à ideia de unidade de produção) e “trabalho informal” (relacionado à ocupação da mão de obra) (IBGE, 2018). Ampliava-se, assim, o escopo de análise ao reconhecer a heterogeneidade do fenômeno e a existência de um continuum entre a total informalidade e a formalidade absoluta. O novo termo faz referência às atividades “que – na lei ou na prática – não estão abrangidas ou estão insuficientemente cobertas por disposições formais” (ILO, 2015, p. 4; OIT, 2014, p. 8). Na 17ª Conferência Internacional de Estatísticas do Trabalho (CIET), realizada em 2003 e que serviu de base para estudos sobre o trabalho em todo o mundo, a OIT passou a adotar maior fluidez na determinação dos critérios de mensuração (KREIN; PRONI, 2010).

4 Discussões aprofundadas sobre o percurso histórico da discussão conceitual da informalidade, em

especial no contexto brasileiro, podem ser encontradas em diversas e qualificadas publicações nacionais, dentre as quais citam-se as obras de (CACCIAMALI, 2000, 2007; KREIN; PRONI, 2010; NOGUEIRA, 2016a, 2016b; NOGUEIRA; ZUCOLOTO, 2017; PERES, 2015). Não é intuito do trabalho aqui apresentado refazer esse percurso ou trazer novos vieses interpretativos desses eventos.

5 Cabe destacar que a OIT tem papel relevante no histórico do entendimento da informalidade, cujos

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9 A partir de então, a perspectiva adotada é a de que, mais do que a erradicar a informalidade, é necessário buscar a transição da economia informal para a formal e a promoção do trabalho decente. A OIT considera três objetivos principais que devem pautar as políticas públicas ligadas à esfera laboral (ILO, 2015, p. 4): a) o respeito aos direitos fundamentais dos trabalhadores, garantindo oportunidades de segurança de renda, meios de subsistência e empreendedorismo; b) a criação, preservação e sustentabilidade do trabalho decente na economia formal, mantendo coerência entre os pressupostos da macroeconomia, emprego, proteção social e outros fatores sociais; e c) a promoção de ações que ajudem a evitar o processo de informalização de empregos formais.

Diferentes conceitos e perspectivas de análise

As fronteiras entre o trabalho formal e o informal, entretanto, permanecem de difícil delimitação, já que, no contexto laboral, os termos formal e informal, sempre imbricados, aceitam diferentes interpretações (PICCININI; OLIVEIRA; RÜBENICH, 2006). Nogueira (2016b, p. 5) é categórico ao afirmar: “não há uma linha divisória definida entre o que é formal e informal”. Há, sim, articulação e complementaridade entre as duas instâncias. Além disso, destaca-se que há diversas perspectivas de análise possíveis. Piccinini et al. (2006) destacam que, a partir da visão econômica, informais são ocupações periféricas pouco rentáveis; no âmbito jurídico, legais e, portanto, formais, são as ocupações em estado de regularidade conforme previsão em lei (carteira de trabalho assinada, contrato de trabalho coletivo, registro de autônomo ou status de empregador); e, sob o prisma popular, derivado da ordem jurídica, informais são as ocupações nas quais a carteira de trabalho não é assinada). Nessa última perspectiva, em especial, Peres (2015, p. 270) vê a informalidade como “uma resposta espontânea e criativa, em sociedades em que o assalariamento é pouco generalizado”.

Neste sentido, argumenta Noronha (2003, p. 116), o termo informalidade “é ainda por demais polissêmico para ser utilizado sem adjetivos”. Termos comuns na literatura, como “assalariado”, “autônomo” ou “empregador”, carregam tamanha complexidade que não podem ser encapsuladas genericamente sob o guarda-chuva da formalidade ou informalidade. Noronha (2003, P. 121) enfatiza também que “os contratos legais (com registro em carteira) opõem-se aos informais (sem registro) e não aos ilegais (entendidos como criminosos)”, de modo que, no contexto brasileiro, tantos os contratos legais quanto os informais são entendidos como legítimos. A aceitação social desses contratos, diz o autor, remete a uma complexa teia que perpassa a noção de licitude (legal/ilegal), o senso de justiça (justo/injusto) e até mesmo a conveniência (aceitável/inaceitável), misturando “noções de necessidade pessoal, de eficiência, de éticas pessoais e familiares, de justiça e de valores, normas e hábitos socialmente definidos” (NORONHA, 2003, p. 121).

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10 De modo mais objetivo e em linha com a OIT, nos anos 2000 o IBGE6 considerava informais “as unidades econômicas de propriedade de trabalhadores por conta própria e de empregadores com até cinco empregados, moradores de áreas urbanas, sejam elas a atividade principal de seus proprietários, sejam atividades secundárias” (NOGUEIRA, 2016a, p. 9). Em publicação mais recente, o IBGE mantém-se em linha com os postulados da OIT ao utilizar o conceito de trabalho informal disposto na 17ª CIET, considerando trabalhadores das seguintes categorias: “empregados do setor privado e trabalhadores domésticos sem carteira de trabalho assinada, trabalhadores por conta própria e empregadores que não contribuem para a previdência social (PS) e trabalhadores familiares auxiliares” (IBGE, 2018, p. 41). Do total de 37 milhões de trabalhadores da economia informal, 43,2% trabalham por conta própria sem contribuir para a PS e 36,1% são empregados sem carteira assinada.

Nota-se que as estatísticas oficiais brasileiras7 sobre o mercado de trabalho, em geral, estão organizadas a partir do seu “grau de formalidade” (IPEA, 2018, p. 21). Essa classificação considera formal o trabalho “com carteira assinada”, ou seja, com vínculo empregatício, e informal aquele “sem carteira assinada”, ou seja, sem vínculo empregatício. É a carteira assinada, por meio do contrato formal de trabalho, entendida como sendo o principal garantidor de benefícios de bem-estar social e de direitos trabalhistas, como salário mínimo, contribuição previdenciária, regulação da jornada de trabalho, férias e descanso semanal remunerados, dentre outros. Os trabalhadores da economia informal, portanto, ao não estarem cobertos pelas garantias das disposições formais, não estão protegidos, no todo ou em parte, pela legislação do trabalho. Cacciamali (2000) já destacava, entretanto, que o recorte da categoria de situação ocupacional (isto é, assalariado com/sem registro, autônomo, empregador, etc.) é insuficiente não apenas pela dificuldade estatística da mensuração da informalidade, mas porque não considera as relações e contrastes com o setor formal.

Considerando as especificidades brasileiras, Nogueira e Zucoloto (2017) propõem um aprofundamento conceitual, defendendo a existência de uma complementaridade entre o formal e o informal, manifesta pela existência do que denominam “semiformalidade”. Este conceito compreende “situações nas quais operam, de forma articulada e complementar, atividades formais e informais”, executada por agentes que “pertencem ao universo formal, mas que executam parte de suas operações no âmbito da informalidade” (NOGUEIRA; ZUCOLOTO, 2017, p. 34; 148). Nesse entremeio estão, por exemplo, empresas formalmente

6 Conforme a pesquisa “Economia Informal Urbana” (Ecinf), cuja última edição data de 2003.

7 A PNAD contínua considera, na análise da categoria “ocupado”, a posição na ocupação e a categoria

do emprego. Analisa, assim, os ocupados divididos em cinco posições: empregado (que se subdivide em setor público e privado), trabalhador por conta própria, empregador, trabalhador doméstico e trabalhador auxiliar familiar. No setor público, considera se há ou não a carteira de trabalho assinada (assim como no setor privado e trabalhador doméstico), acrescentando também o vínculo como militar e servidor público estatutário. Para maior detalhamento destas classificações, recomenda-se acessar o website do IBGE: https://www.ibge.gov.br.

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11 estabelecidas que possuem trabalhadores sem carteira assinada, que efetivam parte de suas transações fora dos registros contábeis ou que remuneram seus empregados à margem dos registros oficiais – essas duas últimas conhecidas como transações “por fora”. Outro exemplo característico do fenômeno da semiformalidade na sociedade brasileira é a figura do microempreendedor individual (MEI), dispositivo que “pretende oferecer condições especiais de legalização (ou formalização) principalmente para o trabalhador autônomo que vem atuando informalmente” (NOGUEIRA; ZUCOLOTO, 2017, p. 150). Na prática, entretanto, ainda que submetido às mesmas exigências das médias e pequenas empresas (MPEs), o MEI muitas acaba revestindo-se de uma “formalidade pela metade”, já que não se adequa totalmente à todas as exigências e formalidades previstas em lei.

O conceito da semiformalidade considera o pressuposto de que as relações laborais se dão muito mais dentro de um continuum de possibilidades do que dentro de categorias claramente definidas, operando como um “integrador dos universos formal e informal” (NOGUEIRA, 2016b, p. 54). Esse conjunto é complexo porque, para além das dimensões econômicas, perpassam diversas construções, como a histórica (que examina a tradição da economia de subsistência), a institucional (que observa o processo de conformação de uma institucionalidade) e a simbólica (que remonta à “cultura” da informalidade e da semiformalidade) (NOGUEIRA, 2018, p. 92).

Em linha, destaca-se que Cacciamali (2000, p. 163) já ressaltava a importância de compreender a informalidade para além de um conceito estanque. Propõe compreendê-la a partir da noção dinâmica de “processo de informalidade”, onde transformações sociais e econômicas incidem “na redefinição das relações de produção, das formas de inserção dos trabalhadores na produção, dos processos de trabalho e de instituições”. Esta noção é particularmente útil para a análise das relações laborais, que são reformatadas considerando os modos da organização da produção que opera às margens da formalidade. Caracteriza-se, de um lado, pelos baixos rendimentos, vulnerabilidade e insegurança em relações de trabalho nada ou insuficientemente regulamentadas; de outro, pela existência do autoemprego e trabalho por conta própria como estratégias de sobrevivência, especialmente nos casos de dificuldades de reingresso no mercado formal de trabalho (CACCIAMALI, 2000).

3. O Trabalho na Gig8 Economy e os Mercados Laborais Digitais

Ainda que seja fenômeno recente, a gig economy mostra-se relevante a ponto de já integrar o escopo de discussões sobre o trabalho na OIT. Na 20ª CIET, realizada em 2018, o termo aparece, pela primeira vez, no relatório conceitual para estatísticas sobre relações de

8 O vocábulo “gig” foi tomado de empréstimo da indústria musical (DANAHER, 2015). O termo

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12 trabalho (ILO, 2018b). De tal constatação – em especial porque, como já dito, a OIT é referência para o estabelecimento de parâmetros para estudo sobre o trabalho – depreende-se que não apenas esdepreende-se fenômeno já pode depreende-ser considerado estatisticamente relevante (CODAGNONE; BIAGI; ABADIE, 2016), como há interesse, por parte do órgão, em compreendê-lo. O esforço no entendimento destes novos arranjos laborais, em geral muito flexíveis e não-padronizados, está vinculado a um contexto de desenvolvimento tecnológico que está acelerando as transformações que impactam a organização do trabalho, com efeitos notáveis para empresas e trabalhadores (ABRAHAM et al., 2018).

No entendimento da OIT, a gig economy refere-se a “arranjos de trabalho pouco estruturados, mediados por plataformas de internet”9 (ILO, 2018b, p. 66). Esses arranjos, em geral, estão relacionados à execução imediata de pequenas tarefas sob a demanda online dos requisitantes de determinado serviço (BALARAM; WARDEN; WALLACE-STEPHENS, 2017). Formam, assim, mercados que conectam, através de plataformas, as demandas dos consumidores e fornecedores por meio de trabalhos de curta duração: os gigs, ou “bicos” (DONOVAN; BRADLEY; SHIMABUKURO, 2016). Como exemplo, cada corrida de um motorista de Uber, cada entrega da Rappi realizada por um motoboy ou cada locação de imóvel realizada por anfitriões do Airbnb é um “gig”.

Cabe destacar que a gig economy possui estreita relação com a sharing economy (economia compartilhada – EC), da qual é preciso fazer, de antemão, distinções conceituais importantes10. A EC estabeleceu-se, de certo modo, como um conceito “guarda-chuva”, fomentando uma confusão semântica e tornando as discussões ambíguas, fragmentadas e limitadas (BELK, 2014; BOTSMAN, 2013). A EC está assentada na mudança da ideia de posse para a noção de acesso (BELK, 2007, 2014; MARTIN, 2016); preza pela maximização da utilidade e da capacidade ociosa de recursos tangíveis e intangíveis e é viabilizada por tecnologias digitais que permitem conectar aqueles que possuem tais recursos àqueles que os desejam (BOTSMAN, 2013; BOTSMAN; ROGERS, 2011; COHEN; KIETZMANN, 2014), possibilitando que indivíduos monetizem seus ativos ou aptidões subutilizados (MARTIN, 2016).

9 Tradução livre do original em inglês: “less structured work arrangements mediated through an internet

platform”.

10 Um problema que se destaca é que, comumente, expressões como “sharing economy”, “collaborative

economy” (economia colaborativa), “collaborative consumption” (consumo colaborativo), “peer-to-peer economy” (economia entre pares), “gig economy”, “prosumption” e “crowdsourcing” (estes dois últimos comumente utilizados em língua inglesa sem tradução), dentre outras, são utilizadas indiscriminadamente para se referir a fenômenos que, embora amplos e heterogêneos, possuem implicações práticas e teóricas distintas. Destaca-se, ainda, que no contexto da gig economy, a mediação do trabalho por plataformas digitais também é chamada de platform economy (EUROFOUND, 2018; FLORISSON; MANDL, 2018) ou on demand economy. Neste estudo, portanto, estes termos são tidos como referentes a um mesmo fenômeno.

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13 É com o olhar voltado para o trabalho realizado nestas atividades que se reconhece, portanto, o fenômeno da gig economy. Na EC, há plataformas online baseadas no uso intensivo de ativos (asset-based) ou trabalho (labor-based). Neste, o principal ativo não é material, mas relacionado ao uso de recursos menos tangíveis como tempo e/ou habilidades (BALARAM; WARDEN; WALLACE-STEPHENS, 2017), enquanto naquele há pouco ou nenhum trabalho envolvido11. Assim, reforça-se que, neste estudo, a gig economy é entendida como um “desdobramento” da EC, voltado especificamente para o âmbito do trabalho. Codagnone, Biagi e Abadie (2016) consideram, ainda, que a natureza do trabalho utilizado pode variar em escalas que vão desde o “muito manual” ao “muito cognitivo”, e do muito ao pouco qualificado (figura 1).

Figura 1 – Modelo Conceitual

Fonte: Adaptado de Codagnone, Biagi e Abadie (2016).

Esta distinção entre os extremos de um trabalho altamente comoditizado e outro altamente qualificado é, reforça Coyle (2017), importante para a discussão sobre as implicações do surgimento dos MLDs. Reforça-se, portanto, que entender o fenômeno apenas sob o aspecto da tecnologia ou do consumo/serviço representa um equívoco, por desprezar o trabalho como elemento fundamental. Importante a compreensão de que, apesar de serem considerados por muitos como sendo fornecedores na relação com os consumidores e as plataformas digitais, os indivíduos envolvidos nesta prestação de serviços exercem uma atividade laboral, e como trabalhadores são considerados no contexto deste estudo.

11 Nesse sentido, há autores que não consideram atividades relativas ao aluguel ou venda de bens –

como, por exemplo aquelas desenvolvidas por hosts da Airbnb – como parte da gig economy (FLORISSON; MANDL, 2018).

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14 A Gig Economy e os Mercados Laborais Digitais

A intermediação do trabalho por plataformas digitais cria mercados de trabalho específicos12: os MLDs (BAJWA et al., 2018; CODAGNONE; BIAGI; ABADIE, 2016; VACLAVIK; ROCHA-DE-OLIVEIRA; OLTRAMARI, 2019). No contexto da gig economy, confundem-se as instâncias outrora facilmente distinguíveis apontadas por Guimarães (2008a): o mercado de trabalho – onde se estabelecem as disputas entre compradores (as firmas contratantes) e vendedores (os indivíduos) da força de trabalho; e o mercado de produtos – onde estabelecem-se as interações entre compradores e vendedores de bens e serviços, cujas relações envolviam trocas entre firmas e entre firmas e indivíduos. Sundararajan (2016), em linha, destaca que, no modo de organização econômica online e sob demanda, abrem-se oportunidades para transacionar qualquer coisa (ativos, habilidades tempo, dinheiro), fazendo borrar as linhas divisórias entre pessoal e profissional, labor e lazer, emprego e trabalho casual.

Na gig economy, não apenas “os limites entre manufatura e serviços passaram a se mostrar mais tênues” (GUIMARÃES, 2008, p. 276), como a distinção entre o que é trabalho e o que é produto/serviço já não parece ser tão facilmente delineável. Mais que isso: tanto esses limites agora se apresentam menos claros, como os modos nos quais os mercados se estruturam se alteraram. Nos mercados de trabalho da gig economy, nota-se claramente a menção frequente a três atores principais: trabalhadores, consumidores e plataformas13 (ILO, 2018c). Nota-se, desse modo, que enquanto as plataformas e os consumidores passaram a assumir papéis representativos, outros se apresentam com menos relevância – como o papel regulador do Estado (VACLAVIK; ROCHA-DE-OLIVEIRA; OLTRAMARI, 2019). Estas alterações são significativas quando o que está em foco é o entendimento das relações de trabalho, já que as dinâmicas envolvidas se alteraram substancialmente.

Uma das principais características dos MLDs é que as plataformas não se consideram empregadoras de mão de obra, mas “facilitadoras” no espaço online de trocas entre compradores e vendedores para suprir determinada demanda, que pode ocorrer tanto física (como no caso das corridas agenciadas pela Uber) quanto virtualmente (como no caso das microtarefas agenciadas pela Amazon Mechanical Turk) (CODAGNONE; ABADIE; BIAGI, 2016). Estes negócios se autodenominam como sendo apenas empresas de tecnologia que

12 Uma discussão aprofundada sobre o surgimento e consolidação de um mercado de trabalho típico

da gig economy em contexto brasileiro pode ser encontrada em Vaclavik, Rocha-De-Oliveira e Oltramari (2019). Em especial, o estudo amplia o olhar sobre os MLDs - que tendem a ser considerados a partir de uma relação apenas triangular entre clientes, trabalhadores e plataformas (EUROFOUND, 2018) – destacando a participação de diversos outros atores que formam um campo dinâmico de disputas.

13 Ainda que os consumidores tenham papel importante na ampliação do fenômeno da economia

colaborativa e, em consequência, na disseminação dos novos formatos de trabalho presenciados na

gig economy, o foco deste estudo está centrado na discussão laboral e, desse modo, nos papeis

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15 operam na intermediação de mercados online, conectando quem deseja um serviço com quem o oferta, sem provê-lo, de fato.

Para Balaram, Warden e Wallace-Stephens (2017), as plataformas são empresas que têm o potencial disruptivo de desafiar o poder que está hoje concentrado nas grandes indústrias – ainda que, reforça-se, as plataformas muitas vezes são, elas mesmas, grandes corporações com propósitos claros de lucratividade. Dado o seu crescimento exponencial nos últimos anos, ao continuarem crescendo nesse ritmo as plataformas podem afetar as formas de emprego tradicionais (CODAGNONE; BIAGI; ABADIE, 2016) – e é presumível que isto já esteja acontecendo. Beneficiadas pela assimetria de informação e poder existente nesse modelo, elas têm larga vantagem na determinação de preços e condições para conectar usuários e trabalhadores (BAJWA et al., 2018). Além disso, se estabelecem nos países valendo-se de canais não regulamentados e com baixas barreiras à entrada, utilizando a mão de obra sem a preocupação com direitos trabalhistas.

A intermediação do trabalho, em si, não é uma novidade no mercado laboral. Há dez anos, Guimarães (2008, p. 278) já destacava que o mercado de trabalho tradicional, em especial o brasileiro, é operado em uma complexa relação tripartite: i) os demandantes por emprego e vendedores da força de trabalho – trabalhadores; ii) os demandantes por trabalhadores e compradores da força de trabalho – as firmas; e iii) os “agentes que disponibilizam vagas no mercado, tornando-as visíveis, transparentes, para os demandantes, mas que também fazem o caminho de volta, triando e locando trabalhadores potenciais”. Nota-se, porém, que as observações apontadas pela autora estavam circunscritas ao mercado de trabalho tradicional, marcado pelas relações de emprego. No âmbito dos MLDs, a intermediação da procura por trabalho não apenas se dá entre atores com papeis diversos daqueles apontados, como refere-se a relações muito mais frágeis e instantâneas e que não estão cobertas por qualquer vínculo empregatício formal.

Classificando os Trabalhadores da Gig Economy

Os trabalhadores são considerados freelancers ou autoempregados, realizando (micro) tarefas sob demanda dos consumidores e sendo remunerados pelas entregas realizadas, em uma relação que pode durar apenas breves momentos (BAJWA et al., 2018, p. 6–7). Tal como apontado por Donovan, Bradley e Shimabukuro (2016, p. 3), “caracterizar a força de trabalho da gig economy (isto é, aqueles que oferecem os serviços que são intermediados através de plataformas digitais) é um desafio. Uma das dificuldades encontradas na análise desse fenômeno reside na classificação dos trabalhadores. Termos como trabalhadores “autônomos”, “independentes”, “temporários”, “sob demanda”,

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16 “autoempregados”, “microempreendedores”, entre diversos outros14, são utilizados nas referências às pessoas que atuam nas atividades que envolvem o trabalho na gig economy. Mais do que uma questão meramente semântica, a classificação do trabalhador dos MLDs como empregado ou autoempregado coloca em questão os aparatos jurídicos que se referem à garantia de direitos trabalhistas, como salário mínimo, jornadas máximas e demais benefícios regulados pelo poder público. Cabe reforçar que, tradicionalmente, o conceito de autoempregado está relacionado à ideia do empreendedor, aquele que: trabalha diretamente para o mercado, sendo dono do próprio negócio e lidando com os riscos a ele inerentes; detém os meios de produção; e tem autonomia e liberdade para definir seus horários, escolher quais tarefas executar e determinar o seu próprio rendimento (TODOLÍ-SIGNES, 2017).

A questão terminológica é notadamente importante quando se considera o cenário de regulamentação das atividades envolvidas neste contexto. Nesse sentido, em estudo realizado a partir do mercado de trabalho dos motoristas de aplicativos no Brasil, Vaclavik Rocha-De-Oliveira e Oltramari (2019) destacam que, apesar do poder público15 ter se envolvido ativamente no longo processo de regulamentação da atividade, o aspecto laboral foi negligenciado. Os autores destacam, ao observar o posicionamento do STF sobre a atividade dos motoristas de aplicativos que, considerando o “valor social do trabalho”, o “livre exercício profissional”, o “regime constitucional da livre iniciativa”, e que “é inócuo tentar proibir a inovação ou preservar o status quo” (NOTÍCIAS STF, 2018), o órgão reforçou o entendimento do trabalho pela perspectiva do serviço. Assim, a atividade foi regularizada e retirada da clandestinidade, mas a oficialização da ocupação na perspectiva da prestação de serviços consolidou a natureza de autoemprego da ocupação. Assim, no caso brasileiro, é a noção de liberdade de profissão como direito fundamental e garantido pela Constituição (MONTEIRO, 2017) que viabiliza a operação das plataformas.

Analisando as vulnerabilidades de gig workers em contexto internacional, Bajwa et al. (2018) apontam que há, de fato, uma conjuntura que demanda maior regulação da gig economy. Porém, alguns enxergam que intervenções dessa natureza como potenciais ameaças ao espírito de inovação característico da EC (e dos demais movimentos correlatos) e à exploração econômica de tais atividades. É por isso, dizem os autores, que muitos governos estão, efetivamente, “abraçando” a causa da gig economy. Esse aspecto, considerando a realidade brasileira e o percurso transcorrido no processo de regulamentação da atividade de motoristas de aplicativos, hoje o maior expoente da gig economy no país,

14 A confusão semântica não está restrita à língua portuguesa. Codagnone, Abadie e Biagi (2016, P.

10-11) citam termos utilizados em língua inglesa, mencionando a mesma dificuldade de classificação: “micro-entrepreneurs”, “gig workers”, “contractors”, “on-demand workers”, “freelancers” e

“Lumpen-cognitariat et salariat algorithmique”.

15 O poder Público a que se referem está representado, na esfera federal, pela Câmara dos Deputados,

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17 reflete o modo de sua introdução e aceitação, incluindo a perspectiva legal. A constatação de que a atividade, no âmbito laboral, é autônoma e espacial e temporalmente flexível, reforça a sua aproximação com a informalidade.

4. A gig economy e o empresariamento da Informalidade

Neste estudo, defende-se a tese do “empresariamento da informalidade”, em que grandes plataformas passam a mediar e reorganizar relações laborais caraterísticas do trabalho informal, dando a elas escalabilidade e lhes imprimindo novos contornos. Se há uma década Guimarães (2008) jogava luz nos “ilustres desconhecidos” agentes que intermediavam o trabalho, fortalecendo assim a noção de que a relação no mercado de trabalho não era dual mas sim triangular, no contexto da gig economy o papel exercido pelas plataformas constrói novos limites por meio da articulação direta de consumidores e trabalhadores. Aliás, pode-se afirmar que o trabalho desempenhado pelos freelancers na gig economy existe através das plataformas, que assumem papel central nesse modo de organização econômica e laboral.

Considerando o exposto, entende-se necessário fortalecer o entendimento dos limites da informalidade no espaço no qual opera a gig economy. A própria OIT reconhece que novos modos de organização do trabalho, em especial aqueles fortemente ligados à noção de flexibilidade, contribuem para uma “crescente incerteza sobre a relevância ou validade de uma fronteira entre o trabalho autônomo e o emprego remunerado” (ILO, 2018b, p. 6). Essa incerteza, muitas vezes manifesta na imprecisão conceitual e na dificuldade de enquadramentos precisos, dificulta a análise de um fenômeno que não apenas já se apresenta na realidade social, como reconhecidamente tem importante papel no entendimento do futuro do trabalho (ILO, 2018c), mas que ainda carece de aprofundamento (DE-STEFANO, 2017).

Em publicação recente sobre a informalidade, a OIT conceitua o trabalho mediado por plataformas digitais como uma forma de trabalho “atípico”16 e reconhece a natureza informal das atividades da gig economy (ILO, 2018c). Nesse sentido, considera que a informalidade e as formas atípicas de alocação de mão de obra se sobrepõem em diversos sentidos, em especial no que se refere a: 1) cobertura legal, ou seja, a (in)existência de amparo e proteção pela lei e por mecanismos reguladores, como convenções coletivas; 2) nível legal, isto é, a abrangência e o grau de proteção trabalhista e social; e 3) conformidade legal, que refere-se à (in)aplicabilidade, total ou parcial, das leis na prática. O órgão reforça, entretanto, que cada país pode utilizar critérios específicos para a mensuração da informalidade.

16 Ainda que Kovács (2006a, p. 23) já tenha indicado que a adoção do termo “atípico” para caracterizar

formas emergentes de emprego pode ser inadequada, neste estudo utiliza-se esta expressão como tradução livre de “non-standard forms of employment”, adotada pela OIT em publicações recentes (ILO, 2018b, 2018c).

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18 Assim, utilizando novamente o exemplo dos motoristas de aplicativos como ilustrativo do fenômeno no caso brasileiro, o recente processo regulatório conferiu-lhe o caráter autônomo. A partir de uma recente decisão proferida em maio/2019, entretanto, passou a ser obrigatório o recolhimento, por parte do trabalhador motorista, da contribuição individual ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), com opção pelo registro de MEI. Em 08/agosto/2019, foi oficializada a ocupação de “motorista de aplicativo independente” na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), reforçando assim o entendimento autônomo da atividade (BRASIL, 2019a). Deste modo, os trabalhadores passam a contar com direitos como aposentadoria, auxílio-doença e salário-maternidade (BRASIL, 2019b), mas a organização e o recolhimento dos impostos para alcançar estes benefícios é de sua responsabilidade. Assim, embora a atividade esteja diretamente ligada a uma corporação global por meio de uma plataforma, assume traços de trabalho autônomo.

Cabe referir que, segundo o IBGE (2018), trabalhador por conta própria contribuinte é inserido na categoria de trabalho “formal”, enquanto aquele que não contribui para a previdência é considerado informal. Esta alteração tem implicações estatísticas relevantes. Se até então os trabalhadores por conta própria estavam tendo importante participação na alocação da mão de obra desocupada (IPEA, 2019a), agora passam a reforçar a massa de trabalhadores formais, o que pode mascarar uma melhora na qualidade da ocupação – o que, de fato, não ocorreu. Esta alteração também tem implicações analíticas importantes. É discutível a alocação destes trabalhadores na formalidade, considerando que, apesar de mínima proteção, não há amparo de outros direitos protetivos como contrato de trabalho, jornada laboral máxima, garantia de salário mínimo, férias, 13º salário e fundo de garantia por tempo de serviço (FGTS), características marcantes da formalidade no país, típicas da carteira de trabalho assinada. Além disso, a interrupção do “contrato” feito por meio da plataforma ocorre com a desconexão do trabalhador, em geral sem qualquer esclarecimento ou aviso anterior, sob alegação de descumprimento das regras estabelecidas.

Ao operar como MEI (o que é opcional), os motoristas autônomos aproximam-se do conceito de semiformalidade proposta por Nogueira e Zucoloto (2017), por conterem na sua essência problemas típicos das microempresas (de um lado, ligados à questões contábeis, fiscais e de gestão do negócio e, de outro, à baixa produtividade). A figura do MEI, nota-se, está muito mais direcionada à legalização/formalização de microempreendimentos informais do ponto de vista jurídico. No âmbito do exercício laboral, entretanto, poucas preocupações relacionadas à noção de trabalho decente, tão cara à formalidade, se apresentam – a exceção, talvez única, seja a questão da contribuição previdenciária. Voltando ao caso específico dos motoristas de aplicativos, o empresariamento se manifesta, inclusive, quando à plataforma é delegada, pelo poder público, a responsabilidade de averiguar a regularidade da situação cadastral de contribuinte do trabalhador (BRASIL, 2019b).

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19 Ao entender que estes trabalhadores são autônomos, reconhece-se que são os termos e as condições impostas pelas plataformas que determinam o seu status e a sua condição laboral, com implicações significativas para a sua proteção social, uma vez que ela não é compartilhada com a plataforma e nem com os clientes (EUROFOUND, 2018). A condição de dependência da plataforma, especialmente nos casos em que esta é a principal fonte de renda do trabalhador, não pode ser ignorada. Além da questão protetiva, cabe mencionar que, nessa relação autônomo-dependente, típica do empresariamento da informalidade, o trabalhador assume o risco do “seu” negócio, mas o controle da atividade é feito pela plataforma. Além disso é comum a existência de práticas de estímulo à intensificação do trabalho por meio de bônus financeiro por alcance de metas (como número de viagens ou trabalho em períodos diferenciados, como nas noites de Natal e Réveillon, no caso dos motoristas de aplicativos) ou por desempenho. Tais formas de adicional financeiro assemelham-se a padrões de remuneração comuns nas relações formais de trabalho.

Outro aspecto importante que merece destaque é a mediação digital da confiança17. A força da marca das plataformas tem papel fundamental nas relações efêmeras da gig economy, no que concerne à verificação da identidade, das intenções e do conhecimento técnico sobre o serviço a ser executado (SUNDARARAJAN, 2016). Essa verificação de autenticidade realizada pelas plataformas dá a confiança necessária para a realização de transações entre pessoas anônimas, a partir de elos construídos entre o consumidor e a plataforma e entre a plataforma e o trabalhador. O modo como essas relações são organizadas torna muito mais fácil para os trabalhadores conectarem-se a uma grande e reconhecida marca (SUNDARARAJAN, 2016), potencializando o alcance dos seus serviços. A verificação de autenticidade e a facilidade das conexões possibilita que os negócios ganhem escalabilidade, viabilizando a própria gig economy.

Assim, no continuum de situações que se colocam entre a formalidade completa e a informalidade absoluta e no vácuo regulatório sobre as questões laborais que caracterizam a gig economy, defende-se que, a partir dos aspectos de cobertura, nível e conformidade legais (ILO, 2018c), a mera caracterização do prestador autônomo como contribuinte do INSS é insuficiente para garantir-lhe as condições de trabalho decente – não que elas não possam existir, mas fato é que não são garantidas por força de lei. Nesse ponto, reforça-se a importância de compreender também o fenômeno da gig economy por meio de uma lógica não dicotômica, tal qual a questão da (in)formalidade.

17 A discussão sobre o papel da confiança na economia compartilhada (e relações derivadas) é densa

e aparece de forma bastante simplificada neste trabalho. O objetivo da menção a ela é introduzir a noção da centralidade do papel das plataformas na viabilização das transações online que envolvem o trabalho. Para maiores detalhes sobre essa discussão, sugere-se acessar as obras de Hawlitschek et al. (2016) e Sundararajan (2016).

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20 Resgata-se, deste modo, a necessidade de trazer à discussão a amplitude da natureza do trabalho e das possibilidades que se apresentam nos MLDs, tal como preconizado por Coyle (2017) e Codagnone, Biagi e Abadie (2016). Reforça-se, ainda, a importância do papel da intermediação pelas plataformas. Ao assumir posição central na conexão das relações, a plataforma não apenas facilita o contato entre os agentes interessados (vendedores e compradores), como atua no estabelecimento das regras de operacionalização das atividades. Isso envolve um desequilíbrio no poder de barganha, na determinação dos preços e imposição das regras do trabalho (TODOLÍ-SIGNES, 2017). Nesse sentido, o caráter autônomo da atividade fica relegado ao fraco elo de segurança laboral existente entre a plataforma e o trabalhador e à liberdade na determinação da jornada de trabalho. As características empreendedoras tradicionalmente alocadas aos autônomos pouco podem ser exploradas ou desenvolvidas pelos trabalhadores, já que estes devem se submeter às regras impostas e aos preços determinados pelas plataformas.

A intermediação também estabelece novos modos de controle da atividade laboral, que se dá não apenas por meio de dispositivos tecnológicos (como localizadores de posição (GPS) disponíveis em qualquer aparelho celular) como pela delegação da atividade de avaliação do serviço aos clientes usuários através de sistemas classificação. Assim, o foco do controle está no resultado final do serviço prestado, desonerando as plataformas de fornecer treinamentos e instruções aprofundados (TODOLÍ-SIGNES, 2017), instaurando uma relação de autonomia-dependência entre os trabalhadores e as plataformas.

Esse é um aspecto importante da viabilidade da gig economy: o baixo custo de operacionalização das plataformas combinado com o enorme potencial de exploração das atividades informais realizadas por milhões de pessoas, que até então estavam fora do alcance do controle (e do interesse) de grandes corporações. Esse fenômeno é, portanto, temporal e situacionalmente condicionado pela ubiquidade tecnológica observada atualmente. De fato, na gig economy o meio de produção que gera o valor econômico não é, exclusivamente, aquele de posse do trabalhador (como carro e celular no caso de motoristas de aplicativos); ao contrário, afirma Todolí-Signes (2017, p. 200): “os meios reais de produção são tecnológicos”.

Assim, o empresariamento da informalidade se manifesta em diversos aspectos: no estatuto de emprego e acesso à proteção social; na autonomia e controle; nos rendimentos e recolhimento de tributos; no processo de treinamento e desenvolvimento de habilidades e prospecção de trabalhadores; e na (falta de) representação coletiva (EUROFOUND, 2018). Assim, tal como pontuam Graham e Shaw (2017, p. 6), “a gig economy criou novos mercados de trabalho e transformou outros. E, com essas mudanças, os antigos desafios e políticas de trabalho não desapareceram, apenas assumiram novas formas”. Essas novas nuances que se apresentam no caso dos MLDs, bem como as consequências deste novo modo de

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21 organização, reforçam a necessidade de investigações empíricas do fenômeno, nas diversas manifestações concretas que assume.

5. Considerações Finais

“A compreensão do mercado de trabalho requer um contexto e uma história” (ROCHA-DE-OLIVEIRA; PICCININI, 2011, p. 1536). Após tornar-se a principal forma de trabalho no século XX, o emprego formal – que nunca foi a forma predominante de atividade no Brasil – confronta-se com crescimento do trabalho flexível, da informalidade e da semiformalidade. As ondas de transformação tecnológicas que ocorrem desde os anos 1980, notadamente aceleradas nos últimos anos, bem como novos padrões de consumo que se apresentam, marcam a emergência, também, de mais uma significativa transformação nos padrões de trabalho. Na atualidade, a tecnologia digital está contribuindo para um novo processo de reorganização da atividade econômica e dos modos de operação dos negócios e das atividades laborais (CODAGNONE; ABADIE; BIAGI, 2016; SUNDARARAJAN, 2016; TODOLÍ-SIGNES, 2017). Assim, destaca-se a importância dos estudos sobre a informalidade, não apenas pela sua dimensão, mas também porque menos vagas de emprego formal estão sendo criadas e porque muitas ocupações formais estão sendo informalizadas (CHEN, 2012; ILO, 2018).

É importante ressaltar que o trabalho informal ou autônomo sempre esteve presente na formação de diferentes mercados de trabalho, principalmente no Brasil. Com a gig economy, entretanto, ganha destaque o empresariamento da informalidade, em que grandes empresas, atuando por meio de plataformas, passam a intermediar trabalho informal. Cria-se, assim, um novo estatuto laboral em que são mescladas características de atividade formal, como o controle, avaliação de desempenho e incentivos financeiros, e informal, pela natureza autônoma e pela falta de vínculo direto com a organização.

Assim, reconhecendo que a informalidade vai se instaurando nas “brechas deixadas pelo mundo formal” (KREIN e PRONI, 2010, p. 202), mais do que ignorá-la ou estigmatizá-la, é necessário reconhecer a sua existência e importância (CHEN, 2018), compreendendo os novos formatos que assume frente às transformações tecnológicas e à reorganização nacional e internacional dos mercados de trabalho. Adicionalmente, compreender os impactos nos modos de vida e de gestão se constituem como elementos fundamentais para repensar tanto as políticas públicas quanto as diretrizes organizacionais que regem o labor.

Se Guimarães (2012, p. 123) já apontava que “o estudo da procura por empregos se constituía numa via elucidativa para descrever não apenas as mudanças recentes que tinham lugar na organização do mercado de trabalho, mas para deslindar o modo como os laços sociais operavam na sociedade contemporânea”, alterar o foco do estudo não somente para o “emprego”, mas para a busca por “trabalho”, pode ajudar a melhor compreender como o

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22 fenômeno se apresenta. Surgem, deste modo, preocupações reais tanto sobre o futuro do trabalho como sobre as formas que ele já assume hoje, imersas em um complexo contexto que não se mostra facilmente. Dentre todas as possibilidades que se apresentam nos novos modos em que o trabalho ligado à gig economy se organiza, novas vulnerabilidades e fragilidades emergem, às quais cabe intensa e profunda investigação.

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Referências

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