• Nenhum resultado encontrado

ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

ANDREY PEREIRA DE OLIVEIRA

ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA 159 ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA

ANDREY PEREIRA DE OLIVEIRA Universidade Federal de Campina Grande RESUMO:

O objetivo deste trabalho é analisar o modo como a poesia indianista de Gonçalves Dias “representa” o contato entre os povos do Velho e do Novo Mundos. Filiando-nos aos estudos literários que assumem a relação dialética literatura-sociedade, que observa o modo como o referente social externo transforma-se em elemento interno das obras, faremos uma leitura dos poemas “O canto o piaga” e “Deprecação”. Enquanto o primeiro faz um prognóstico da chegada dos europeus e da conseqüente destruição do mundo indígena, o segundo tematiza justamente a consumação da destruição, contrastando a realidade indígena antes e depois das ações européias. Procuraremos demonstrar que o contato entre os povos é descrito nas “Poesias americanas” como causador de resultados catastróficos para os nativos da América, considerados duplamente vítimas das atrocidades da colonização: tanto do genocídio físico, quanto do etnocídio cultural. Imbuída do espírito nacionalista de meados do século XIX, a poesia indianista de Gonçalves Dias expõe-se como uma tentativa de recontar a história da colonização a partir de um outro ponto de vista, o ponto de vista das vítimas, identificando-se não ao riso dos vencedores, mas às lágrimas dos vencidos. Dessa forma, em vez de desenhadas como heróicas, as ações dos europeus são enxergadas como atos de barbárie.

1. INTRODUÇÃO

“Os infortúnios de um obscuro habitante das florestas teriam menos direito a nossas lágrimas que os de outros homens?”1 – Eis a epígrafe que encima as “Poesias americanas” dos Primeiros cantos, de Gonçalves Dias. Extraída de René de Chateaubriand, ela aponta para um aspecto fundamental da poesia indianista do poeta maranhense: a piedosa simpatia para com os nativos americanos. O contato entre os povos do Velho e do Novo Mundos é descrito nas “Poesias americanas” como causador de resultados catastróficos para os nativos da América, considerados duplamente vítimas das atrocidades da colonização: quando não do genocídio físico, ao menos do etnocídio cultural, o que, no fim das contas, resulta no mesmo.

Essa postura representa a inversão dos valores veiculados nos poemas indianistas do período colonial, os quais, fundando-se em uma perspectiva pragmática colonizadora, não vêem com maus olhos nem a desintegração do universo cultural americano nem o massacre dos nativos, uma vez que tais coisas eram um meio para seus fins: a expansão dos domínios imperiais. A poesia indianista de Gonçalves Dias, no entanto, fruto de um outro contexto político e cultural, é uma tentativa de recontar a história da colonização a partir de um outro ponto de vista, o ponto de vista das vítimas, identificando-se não ao riso dos vencedores, mas às lágrimas dos vencidos. Dessa forma, em vez de desenhadas como heróicas, as ações dos europeus passam a ser enxergadas como atos de barbárie.

Os poemas que trazem com maior evidência a destruição do universo indígena causada pela intromissão dos europeus são “O canto do piaga”, “Deprecação”, “Marabá”, “O canto do índio” e “Tabira”. Apreendidos a partir da perspectiva das fases do ciclo de vida dos

1

Tradução nossa a partir do original francês: “Les infortunes d’un obscur habitant des bois auraient-elles moins de droits à nos pleurs que celles des autres hommes?” (apud DIAS, 1998, p. 105).

(2)

ANDREY PEREIRA DE OLIVEIRA

ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA 160 nativos, estes dois grupos de poemas estariam representando a fase agônica que sucede as fases paradisíaca e guerreira anteriormente comentadas. Enquanto os dois primeiros desses poemas tratam, respectivamente, da antevisão e da consumação do apocalipse indígena, os demais reportam-se ao modo como, através do estímulo à corrupção da cultura nativa – ou seja, do etnocídio cultural – os europeus dominaram o homem e o solo americanos2.

“O Canto do piaga” e “Deprecação”, apesar serem poemas autônomos, podem ser lidos como duas partes de um mesmo conjunto, não apenas porque o segundo é uma espécie de continuação temática do primeiro, como também pelo fato de compartilharem algumas expressões ou outras estruturas semelhantes. Além disso, em ambos, a destruição do universo indígena não é narrada a partir de um olhar épico exterior e distanciado dos fatos, como acontece em “O gigante de pedra” ou nas passagens dissertativas de “Os Timbiras”. Neles, os fatos são expostos a partir do cerne do próprio conflito, a partir da perspectiva de um personagem que não só participa, mas que é também uma das principais vítimas dos acontecimentos, o que faz os textos ganharem em lirismo e dramaticidade.

2. APOCALIPSE CONSUMADO

“O canto do piaga” divide-se em três partes compostas por quadras de versos eneassílabos de ritmo anapéstico que acrescenta tensão à dramaticidade da situação:

O CANTO DO PIAGA I

Ó guerreiros da Taba sagrada, Ó guerreiros da Tribo Tupi, Falam Deuses nos cantos do Piaga, Ó guerreiros, meus cantos ouvi. Esta noite – era a lua já morta – Anhangá me vedava sonhar; Eis na horrível caverna, que habito, Rouca voz começou-me a chamar. Abro os olhos, inquieto, medroso, Manitôs! Que prodígios que vi! Arde o pau de resina fumosa, Não fui eu, não fui eu que o acendi! Eis rebenta a meus pés um fantasma, Um fantasma d’imensa extensão; Liso crânio repousa a meu lado, Feia cobra se enrosca no chão. O meu sangue gelou-se nas veias, Todo inteiro – ossos, carnes – tremi, Frio horror me coou pelos membros, Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo, Ó guerreiros, o espectro que eu vi.

2

Ver nosso ensaio “A corrupção do universo indígena nas “Poesias americanas” de Gonçalves Dias”, no qual fazemos uma leitura desses dois poemas em conjunto com o poema “Marabá” (OLIVEIRA, 2005).

(3)

ANDREY PEREIRA DE OLIVEIRA

ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA 161

Falam Deuses nos cantos do Piaga, Ó guerreiros, meus cantos ouvi! II

Por que dormes, ó Piaga divino? Começou-me a Visão a falar, Por que dormes? O sacro instrumento De per si já começou a vibrar. Tu não viste nos céus um negrume Toda a face do sol ofuscar; Não ouviste a coruja, de dia, Sons estrídulos torva soltar? Tu não viste dos bosques a coma Sem aragem – vergar-se e gemer, Nem a lua de fogo entre nuvens, Qual em vestes de sangue, nascer? E tu dormes, ó Piaga divino! E Anhangá te proíbe sonhar! E tu dormes, ó Piaga, e não sabes, E não podes augúrios cantar?! Ouve o anúncio do horrendo fantasma, Ouve os sons do fiel maracá,

Manitôs já fugiram da Taba! Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupã! III

Pelas ondas do mar sem limites Basta selva, sem folhas, i vem; Hartos troncos, robustos, gigantes; Vossas matas tais monstros contêm. Traz embira dos cimos pendente – Brenha espessa de vário cipó – Dessas brenhas contêm vossas matas, Tais e quais, mas com folhas; é só! Negro monstro os sustenta por baixo, Brancas asas abrindo ao tufão, Como um bando de cândidas garças, Que nos ares pairando – lá vão. Oh! Quem foi das entranhas das águas, O marinho arcabouço arrancar? Nossas terras demanda, fareja... Esse monstro... – o que vem cá buscar? Não sabeis o que o monstro procura? Não sabeis a que vem, o que quer? Vem matar vossos bravos guerreiros, Vem roubar-vos a filha, a mulher! Vem trazer-vos crueza, impiedade – Dons cruéis do cruel Anhangá;

(4)

ANDREY PEREIRA DE OLIVEIRA

ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA 162

Vem quebrar-vos a maça valente, Profanar manitôs, maracá. Vem trazer-vos algemas pesadas, Com que a tribo Tupi vai gemer; Hão-de os velhos servirem de escravos Mesmo o Piaga inda escravo há de ser! Fugireis procurando um asilo,

Triste asilo por ínvio sertão; Anhangá de prazer há de rir-se, Vendo os vossos quão poucos serão. Vossos Deuses, ó Piaga, conjura, Susta as iras do fero Anhangá. Manitôs já fugiram da Taba, Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá! (DIAS, 2000, p. 8-12)

Na primeira parte do poema, um piaga da tribo tupi convoca os guerreiros de sua taba para ouvirem em seu canto a mensagem funesta que ele recebera de um fantasma na noite anterior. Valendo-se de sua autoridade e prestígio religioso de áugure divinamente inspirado – o que ele ressalta no início e no fim desta parte – o piaga narra seu encontro com o fantasma numa noite em que tinha os sonhos perturbados por Anhangá3. Destacam-se nesses versos a concisão e o efeito dramático obtidos com a ambientação lúgubre da cena, a exploração dos diversos sentidos e o estilo tenso da fala do piaga. Os detalhes do ambiente – a horrível caverna, a nebulosidade da fumaça do pau de resina, o crânio liso e a feia cobra pelo chão – apesar de pouco numerosos, são eficazes em sugerir um tom tenebroso à cena, cuja tensão é reforçada pelo jogo de estímulos auditivos da rouca voz do fantasma, olfativos da fumaça da resina, visuais da sombria gruta e do medonho e enorme espectro, e táteis do tremor de frio e medo dos ossos e das carnes do piaga.

A fala do índio, ao retratar esta cena, não flui de modo bem articulado, antes reflete toda a tensão de sua situação dramática e parece também tensa, tremida, vacilante. Os assíndetos (“Abro os olhos, inquieto, medroso”, “Todo inteiro - ossos, carnes - tremi”, “Era feio, medonho, tremendo”), as repetições (“Não fui eu, não fui eu, que o acendi!”; “Frio horror me coou pelos membros/ Frio vento no rosto senti”), os períodos interrompidos por interjeições ou vocativos (“Era feio, medonho, tremendo,/ Ó guerreiros, o espectro que eu vi”) são recursos utilizados pelo poeta para representar, não apenas no estrato conceitual, mas principalmente na concretude da fala do piaga, a sua tensão, tremor e intranqüilidade.

A segunda parte do poema é a reprodução, em discurso direto, da fala do fantasma, que, assumindo um tom acusatório, repreende o piaga por ter descuidado de sua função de intérprete dos augúrios. Enquanto dormia, o piaga não pôde atentar-se para os sinais dados pelos fenômenos da natureza que se mostrava em uma reveladora desarmonia, como um “mundo às avessas”: um eclipse escondendo a face do céu, os sons estrídulos da torva coruja em pleno dia, os movimentos e gemidos da vegetação mesmo sem aragem, e o nascimento da lua em chamas sangrentas. Tais sinais naturais anunciadores do fim dos tempos, segundo sugere Alfredo Bosi, apresenta semelhanças com algumas imagens premonitórias dos índios astecas, como o fogo e os movimentos da lagoa mesmo na ausência de ventos, e também com o imaginário bíblico registrado no sexto selo do “Apocalipse”, onde

3

Em Brasil e Oceania, Dias (p. 102-103) elenca entre as faculdades do Anhangá atacar os índios com sonhos amedrontadores.

(5)

ANDREY PEREIRA DE OLIVEIRA

ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA 163 “aparecem contíguos na mesma visão, o sol escurecido em pleno dia e a lua tinta de sangue” (BOSI, 2001, p. 184-5).

Além de observar ao piaga a desarmonia dos elementos da natureza, o fantasma ainda o faz notar os sinais dados por dois instrumentos sagrados dos índios: o maracá, espécie de chocalho sagrado, e o manitô, espécie de penates com função de proteção contra surpresas inimigas. Enquanto o chocalhar voluntário dos maracás significa a manifestação da voz dos deuses, o desaparecimento dos manitôs prognostica a iminência de grandes calamidades4, daí toda a estupefação do último verso desta parte do poema: “Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupã!”

Após censurar o piaga pelo descuido na leitura dos augúrios, o fantasma faz conhecer seu anúncio, o que se dá na terceira e última parte do poema. O espectro vaticina a chegada de um monstro marinho negro e de asas brancas abertas ao vento formado por troncos grossos e gigantes entrelaçados por cipós. Este monstro de madeira é a alegoria de uma caravela vista a partir do olhar primitivo dos nativos, que necessitam apoiar-se em analogias com elementos de sua realidade – a natureza circundante – para apreenderem os novos elementos que se apresentam. Daí a nau ser descrita em sua linguagem primitiva como uma selva sem folhas envolta por uma brenha de cipós e anexada a um bando de garças.

O monstro previsto pelo fantasma, cobiçoso das terras americanas, as quais demanda e fareja, é associado, pela crueza e impiedade, a Anhangá, o gênio do mal. Não se pode deixar de notar que esse monstro desentranhando do mar assemelha-se à besta do Apocalipse, que nestes termos é anunciada na Bíblia (2002, p. 1567-8):

Vi, então, levantar-se do mar uma Fera que tinha dez chifres e sete cabeças; sobre os chifres, dez diademas; e nas suas cabeças, nomes blasfematórios. A Fera que eu vi era semelhante a uma pantera: os pés como de Urso, e as fauces como de leão. [...] Abriu, pois, a boca, em blasfêmias contra Deus para blasfemar o seu nome, e o seu tabernáculo e os habitantes do céu. Foi-lhe dado também, fazer guerra aos santos e vence-los. Recebeu autoridade sobre toda tribo, povo, língua e nação (Ap. 13: 1-7).

Obviamente, o que aproxima o monstro do poema do monstro do livro bíblico não é a morfologia, embora tanto um como o outro, pelo estranhamento de suas feições, seja apreendido não como um todo, mas a partir de comparações de suas partes com elementos do conhecimento do observador. O que o aproxima, de fato, é a procedência marítima e as conseqüências destrutivas de suas ações. Do mesmo modo que a chegada da besta apocalíptica significa a blasfêmia contra o deus judaico-cristão, a derrota dos santos e o pleno domínio sobre a língua e os homens, a vinda do monstro antevista pelo fantasma significa a ruína da nação americana, de seus deuses, língua (aqui podendo ser entendida como todo o complexo cultural) e homens. As anáforas iniciadas com o verbo “vir” exprimem a cumulação das desgraças que aguardam os nativos: a corrupção do sistema religioso – representada pela profanação dos manitôs e maracás –, a perdição dos guerreiros – representada pela quebra da maça valente –, o roubo das mulheres e moças, além da escravidão, fuga ou morte dos indígenas, inclusive dos velhos e dos piagas. Tudo isso comprazendo Anhangá, contente de ver quão poucos da tribo tupi restarão. Diante desse quadro funesto que se anuncia, o fantasma aconselha o piaga a rogar a Tupã para que este pusesse fim às iras do gênio do mal.

Esse passo do poema promove uma inversão do exposto na epopéia De gestis Mendi de Saa, escrita e meados do século XVI por José de Anchieta. Nesta, os portugueses são mostrados como instrumentos do amor de Deus, que quer livrar os nativos da vida perniciosa que levavam. O herói luso foi enviado às Américas para que, além de propagar a fé cristã,

4

Segundo o poeta esclarece em nota, os manitôs eram deuses venerados pelos índios da América do Norte (DIAS, 2000, p. 189-90).

(6)

ANDREY PEREIRA DE OLIVEIRA

ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA 164

(...) vingasse os crimes nefandos, Que banisse as discórdias, freasse o assassínio,

Bárbaro e contínuo, acabasse com as guerras horrendas, Abrandasse os peitos ferozes e não sofresse impassível Cevar-se em sangue de irmãos queixadas humanas. (ANCHIETA, 1986, p. 93)

No poema de Gonçalves Dias, ao contrário, os lusos, em vez de instrumentos do amor divinos, são instrumentos da fereza de Anhangá. São eles quem, na verdade, põem fim ao paraíso americano e promovem a destruição massiva. Essa inversão de perspectiva que possibilita uma nova observação dos fatos a partir da visão dos destruídos, dos índios vencidos, é semelhante à inversão que Eurípedes pratica, quando, em As Troianas, mostra a guerra de Tróia pela perspectiva das mulheres dos guerreiros mortos. Assim, do mesmo modo que na tragédia os gregos deixam de ser representados em sua grandiosidade heróica que os acompanhava na saga homérica e passam a ser vistos como carniceiros sem piedade, nas “Poesias americanas”, os heróis deixam de ser mostrados como missionários da paz e passam a ser vistos como homens violentos e mesquinhos.

3. ANTEVISÃO DO APOCALIPSE

Enquanto, em “O canto do piaga”, a destruição trazida pelos europeus era ainda uma ameaça futura, em “Deprecação”, o apocalipse indígena é fato já consumado:

DEPRECAÇÃO

Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto Com denso velâmen de penas gentis; E jazem teus filhos clamando vingança Dos bens que lhes deste da perda infeliz! Tupã, ó Deus grande! teu rosto descobre: Bastante sofremos com tua vingança! Já lágrimas tristes choraram teus filhos, Teus filhos que choram tão grande mudança. Anhangá impiedoso nos trouxe de longe Os homens que o raio manejam cruentos, Que vivem sem pátria, que vagam sem tino Trás do ouro correndo, voraces, sedentos. E a terra em que pisam, e os campos e os rios Que assaltam, são nossos; tu és nosso Deus: Por que lhes concedes tão alta pujança, Se os raios de morte, que vibram, são teus? Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto Com denso velâmen de penas gentis; E jazem teus filhos clamando vingança Dos bens que lhes deste da perda infeliz! Teus filhos valentes, temidos na guerra, No albor da manhã quão fortes que os vi! A morte pousava nas plumas da frecha,

(7)

ANDREY PEREIRA DE OLIVEIRA

ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA 165

No gume da maça, no arco tupi! E hoje em que apenas a enchente do rio Cem vezes hei visto crescer e baixar...

Já restam bem poucos dos teus, qu’inda possam Dos seus, que já dormem, os ossos levar. Teus filhos valentes causavam terror; Teus filhos enchiam as bordas do mar As ondas coalhavam de estreitas igaras, De frechas cobrindo os espaços do ar. Já hoje não caçam nas matas frondosas A corça ligeira, o trombudo quati... A morte pousava nas plumas da frecha, No gume da maça, no arco tupi! O Piaga nos disse que breve seria, A que nos infliges cruel punição;

E os teus inda vagam por serras, por vales, Buscando um asilo por ínvio sertão! Tupã, ó Deus grande! descobre o teu rosto: Bastante sofremos com tua vingança! Já lágrimas tristes choraram teus filhos, Teus filhos que choram tão grande tardança. Descobre o teu rosto, ressurjam os bravos, Que eu vi combatendo no albor da manhã; Conheçam-te os feros, confessem vencidos Que és grande e te vingas, qu’és Deus, ó Tupã! (DIAS, 2000, p. 16-18)

Formalmente, “Deprecação” é composto por doze quadras de versos hendecassílabos que apresentam rimas pares e oxítonas. A musicalidade resultante desse arranjo somada à repetição integral (ou quase) de alguns versos e estrofes sugere um lamento incessante em forma de oração ou ladainha, o que vem em reforço da proposta temática do poema, em que se vê um índio tupi suplicando a clemência do deus Tupã, que fecha os olhos diante da desgraça de seu povo.

O lamento do eu-lírico é estruturado de modo a dimensionar a catástrofe americana pela observação do contraste – da “tão grande mudança” – entre o presente agônico e as cenas do passado exuberante. Esses contrastes são evidenciados principalmente entre as estrofes VI e IX, nas quais se opõem o retrato da comunidade guerreira no “albor da manhã” e o seu retrato “hoje”: antes, à época pré-cabralina, os índios eram os senhores absolutos das matas e dos mares, caçando nas florestas espessas e causando terror nos inimigos com sua valentia e suas numerosas armas mortais e embarcações que enchiam os mares e os céus – momento todo descrito com tintas positivamente hiperbólicas; já agora, após a chegada dos europeus, restam, em meios aos mais diversos sinais de destruição, apenas alguns poucos índios vencidos e incapazes de cumprir o costume de levar consigo, sempre que abandonam uma região, os restos mortais de seus parentes mortos5.

5

No poema “Estâncias”, Gonçalves Dias faz nova referência a esse costume: “O nosso índio errante vaga;/ Mas por onde quer que vá,/ Os ossos dos seus carrega;/ Por isso onde quer que chega/ Da vida n’amplo deserto,/ Como que a pátria tem perto,/ Nunca dos seus longe está!” (DIAS, 2000, p. 170). Também Gonçalves de Magalhães, na Confederação dos Tamoios vale-se dessa prática indígena: “(...) Desta terra,/ Que já vossa não é,

(8)

ANDREY PEREIRA DE OLIVEIRA

ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA 166 O causador da destruição indígena, que no poema anterior surgia envolto por um halo de mistério como um monstro marinho desconhecido e visto à distância, ganha na terceira e quarta estrofes de “Deprecação” contornos bem mais claros e é associado a homens trazidos de longe pelo impiedoso Anhangá, homens armados com o poder do raio mortal, que vivem motivados apenas pela cobiça do ouro e dos territórios alheios, que assaltam por meio da força. Esses versos, com exceção das algumas passagens da Introdução e do Canto Terceiro de “Os Timbiras” são, em toda a obra de Gonçalves Dias, os que trazem com mais evidência a denúncia dos interesses e métodos dos adventícios europeus. Numa espécie de revisão do discurso de ideologia colonialista fundado pela “Carta de Caminha”, o poeta revê o processo da colonização pelos olhos dos nativos e reelabora, pelas palavras do eu-lírico indígena, a imagem que a História oficial e os poemas da época colonial construíram acerca dos europeus que na América aportaram.

O narrador do De Gestis Mendi de Saa louva o colonizador português e os seus companheiros pelo heroísmo da missão, que lhes fora outorgada por Deus, de promover a salvação dos gentios, que viviam como bestas perdidas no mundo infernal dos trópicos. Os índios, por sua vez, são considerados como servos do demônio rebaixados a seres inferiores às próprias feras, superando-as em ferocidade, sanha e audácia, e formando uma nação “soberba, desenfreada, cruel, atroz, [e] sanguinária” que “saciava o ávido ventre com carnes humanas” (ANCHIETA, 1986, p. 93). Já nas “Poesias americanas”, como bem se observa principalmente em “O canto do piaga” e “Deprecação”, em vez de heróis enviados e protegidos por Deus para a salvação dos gentios, aos colonizadores são atribuídos predicados negativos semelhantes àqueles que foram por Anchieta atribuídos aos nativos. Eles, os europeus, é que são seres demoníacos associados ao gênio do mal (Anhangá). Se não saciam o ávido ventre com carnes humanas, saciam sua voracidade e sede com o ouro, não hesitando para tanto em utilizar seu poder destrutivo capaz de dizimar toda uma população de nativos6. São monstros marinhos que farejam e demandam as riquezas dos territórios alheios e que, pelo instinto destrutivo e indústria, não apenas causam pavor na “fera bravia” – sendo, portanto, mais ferozes do que ela –, como também deixam o mar “alheio e pávido”, como se lê nessa passagem do Canto Terceiro de “Os Timbiras”:

Vós, que fazeis, quando a espavorida Fera bravia procura asilo

Nas fundas matas, e na praia o monstro Marinho, a quem o mar, já não seguro Reparo contra a força e indústria humana, Lançava alheio e pávido na areia? (DIAS, 2000, p. 122)

Em “Deprecação”, observa-se que as ações destrutivas dos invasores europeus, além de serem endossadas por Anhangá, como ocorre nos demais poemas, são ainda

pois que seus olhos/ Passaram por aqui, tirai somente/ De vossos pais os ossos; que os não pisem/ Os pés de tão ferozes inimigos./ Ide, e tirai da terra as igaçabas/ Que esses ossos encerram; e com elas/ Vamos todos, além dos grandes serros (...)” (MAGALHÃES, 1994, p. 96).

6

Despido do arsenal próprio da poesia, mas com a clareza e a ênfase de um escritor comprometido com a ânsia de revisão histórica condizente com o espírito nacionalista de sua época, Gonçalves Dias acusa os colonizadores, sejam administradores, soldados ou religiosos, de terem se “sacrificado” na América movidos não por intenções benevolentes, mas apenas pela cobiça: “Era por cobiça que os governadores vinham a estas terras tão remotas, onde nenhuma glória os esperava; era por cobiça que os próprios missionários deixavam a frisa e a orla das roupetas nestas florestas sem caminho, porque tantas privações passaram, porque sofreram tantos martírios” (DIAS apud PEREIRA, 1943, p. 309).

(9)

ANDREY PEREIRA DE OLIVEIRA

ANTEVISÃO E CONSUMAÇÃO DO APOCALIPSE INDÍGENA 167 curiosamente encaradas como “vingança” e “cruel punição” de Tupã, idéia recorrente em mais da metade das estrofes (I, II, IV, V, X, XI e XII). O eu-lírico sente-se abandonado à própria sorte pelo seu deus, que, não apenas estaria omitindo-se em prestar proteção aos seus “filhos” indígenas como, ao contrário, estaria concedendo aos invasores os poderes de seus “raios de morte”, metonímia das armas de fogo dos europeus. Daí ele suplicar a clemência do deus Tupã, que fecha os olhos diante da desgraça de sua nação, implorando-lhe o fim dos suplícios, para que ressurgisse assim a bravura dos tempos de primitivos.

Apesar de o eu-lírico pôr às claras a condescendência de Tupã em relação aos suplícios dos nativos americanos, o que não fica explícito no poema são os motivos da punição. Todavia, tomando-se as “Poesias americanas” como um conjunto de poemas que se inter-relacionam, completando-se e se esclarecendo mutuamente, podem-se vislumbrar duas possíveis razões para a postura omissa e vingativa de Tupã. Uma primeira hipótese é ver a atitude do deus indígena como uma punição pela degenerescência dos nativos, que, corrompendo os valores da fase guerreira, passaram a viver uma vida decadente, entregando-se às astúcias de Anhangá, desobedecendo às leis da moral guerreira e desrespeitando os valores religiosos, não mais ofertando as oferendas aos maracás, desdenhando da fala dos piagas, etc. Dessa forma, a omissão de Tupã em relação às artimanhas de Anhangá e às ações destrutivas dos seus “instrumentos” europeus seria uma espécie de punição por essa degenerescência iniciada antes mesmo da chegada dos invasores brancos. Tal perspectiva sustenta-se pela leitura de poemas como “Poema americano”, “O gigante de pedra” e “O índio”. Uma segunda leitura (que ganha força quando confrontada com os poemas “O canto do índio” e “Tabira”) leva-nos a entender a atitude de Tupã como punição não por esse processo de degenerescência do passado, mas sim como punição pelo fato de os índios terem se deixado enganar tolamente pelos europeus, renegando seus valores nativos, principalmente a fé em Tupã, para enaltecer o deus dos invasores.

REFERÊNCIAS

ANCHIETA, José de. (1986). De gestis Mendi de Saa: poema épico. Introdução, versão e notas do Pe. Armando Cardoso. São Paulo: Edições Loyola.

BÍBLIA SAGRADA. (2002). Tradução dos originais hebraico e grego feita pelos monges de Maredson (Bélgica). Revisada por Frei João José Pedreira de Castro e pela equipe da editora. 151. ed. São Paulo.

BOSI, Alfredo. (2001). Dialética da colonização. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras. DIAS, Gonçalves. (s.d). O Brazil e a Oceania. Rio de Janeiro: H. Garnier.

______. (1998). Poesia e prosa completas. Organização de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

______. (2000). Poesia indianista de Gonçalves Dias. Introdução, organização e fixação de texto por Márcia Lígia Guidin. São Paulo: Martins Fontes.

MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. (1994). A Confederação dos Tamoios. 3. ed. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Cultura.

OLIVEIRA, Andrey P. de. (2005). A corrupção do universo indígena nas “Poesias

americanas” de Gonçalves Dias. In: Trama. v.1, n.2. 2005. Marechal Rondon: Escala. p. 39-57.

PEREIRA, Lúcia Miguel. (1943). A vida de Gonçalves Dias (contendo o Diário inédito da viagem de Gonçalves Dias ao Rio Negro). Rio de Janeiro: José Olympio Editora.

Referências

Documentos relacionados

Dessa forma, o objetivo do artigo traz uma breve reflexão sobre os elementos sociais, territoriais, ambientais e culturais da Comunidade Indígena Boca da Mata (CIBM) localizada

E apesar de afirmações (pré)-conceituosas como a de que o indígena não distingue os mitos dos relatos, isso não significa que essas populações estejam petrificadas na crença

- Aula prática: apresentação de imagens ou vídeos de peças anatômicas e discussão das respostas dos exercícios de verificação e aplicação de conceitos (1h 30 min).

Dentro deste quadro, interessa destacar o caso da comunidade Avá- Guarani do Rio Ocoí-A^roio Jacutinga, que desde 1981 luta com a Funai e Itaipu Binacional para receber outras

Desistência voluntária e arrependimento eficaz. Enquanto houver apenas projeto não se pode considerar o agente como punível. Ex.: pensar em matar alguém não gera responsabilidade

Se você não estiver seguro sobre as causas de sua infecção, consulte um médico ou farmacêutico antes de utilizar..

fia integracionista, que vigorou a partir do momento que o Brasil foi invadido (colonização) até 1988, com a promulgação da Constituinte, e seus reflexos são vistos nos dias

Neste artigo pretendo “por em discussão” alguns aspectos referentes aos efeitos de sentido do discurso pedagógico no processo de aquisição da leitura, pelo aluno, em língua