• Nenhum resultado encontrado

APRENDERPARAUMFAZERTRANSFORMADOR SABERESQUEFORMAMETRANSFORMAM

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "APRENDERPARAUMFAZERTRANSFORMADOR SABERESQUEFORMAMETRANSFORMAM"

Copied!
25
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO PROFISSIONAL INTEGRADA À EDUCAÇÃO BÁSICA NA MODALIDADE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

“APRENDER PARA UM FAZER TRANSFORMADOR” SABERES QUE FORMAM E TRANSFORMAM

Autor: Maria Clarice Rodrigues de Oliveira Orientador: Profª Drª Naira Lisboa Franzoi

(2)

FICHA CATALOGRÁFICA

___________________________________________________________________________ O48a Oliveira, Maria Clarice Rodrigues de

Aprender para um fazer transformador: saberes que formam e transformam / Maria Clarice Rodrigues de Oliveira; orientadora Naira Lisboa Franzoi. – Porto Alegre, 2009. 17 f. : il.

Trabalho de conclusão (Especialização) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação. Curso de Especialização em Educação Profissional integrada à Educação Básica na Modalidade Educação de Jovens e Adultos, 2009, Porto Alegre, BR-RS.

1. Educação. 2. Educação profissional. 3. Formação profissional – Relação de saberes – Escola – Trabalho. 4. Escola estadual Técnica de Agricultura (ETA) – Viamão, RS. II. Título

CDU 377 _____________________________________________________________________________ CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação.

(3)

“APRENDER PARA UM FAZER TRANSFORMADOR” SABERES QUE FORMAM E TRANSFORMAM

Maria Clarice Rodrigues de Oliveira Naira Lisboa Franzoi

INTRODUÇÃO

Este artigo traz fragmentos da pesquisa realizada na Escola Estadual Técnica de Agricultura - ETA, para o trabalho de conclusão da especialização PROEJA1/Porto Alegre, desenvolvida no âmbito do Projeto CAPES/PROEJA/UFRGS.

A intenção de realizar a pesquisa está ligada a minha trajetória profissional nesta escola, na qual faço parte da coordenação pedagógica. Minhas inquietações estão em torno das modificações nas atividades de vida e trabalho dos alunos, jovens e adultos oriundos do campo, a partir dos processos educativos e a formação profissional técnica, tendo em vista que a maioria destes alunos iniciou sua trajetória de trabalho antes mesmo da trajetória escolar. Aprofundar estas questões torna-se fundamental para a discussão e implantação de uma proposta de PROEJA, que venha contribuir para que estes sujeitos do campo, que historicamente estiveram excluídos da escola, encontrem alternativas para (re)escrever suas histórias de vida e trabalho.

Esta formação no âmbito do PROEJA deve ser entendida como direito dos trabalhadores com vista à possibilidade de transformações no contexto em que estejam inseridos superando “(...) a formação profissional como adestramento e adaptação às demandas do mercado e do capital” (FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS, 2005. p.15), de forma que os saberes por eles produzidos sejam objeto de reflexão e diálogo na escola.

Este estudo se propôs a identificar, a partir da formação profissional, se e como a relação entre os saberes da escola e do trabalho, modifica ou renormaliza _ conforme conceito de Yves Schwartz (2008) _ as atividades de vida e trabalho dos

1

PROEJA – Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos. (MEC/SETEC 2007)

(4)

alunos, jovens e adultos do meio rural. As categorias centrais utilizadas foram educação, trabalho e os saberes produzidos por estes.

A pesquisa foi desenvolvida com uma abordagem qualitativa e o procedimento metodológico utilizado foi o estudo de caso. A característica da escola agrícola, com atividades contínuas em diversas situações2 no cotidiano do aluno, possibilitou o aprofundando das questões da pesquisa. Esta esteve centrada em quatro alunos, com idade entre 19 e 26 anos, sendo que dois estão na segunda etapa e dois na terceira etapa do curso técnico concomitante ao Ensino Médio. Embora a escola não ofereça cursos de PROEJA, oficialmente reconhecidos, o perfil de alunos e a estrutura dos cursos, identifica-se no curso médio e técnico uma aproximação com a proposta do PROEJA3.

Para coleta de dados dos alunos foi utilizadas as autobiografia produzidas por estes alunos quando ingressaram na escola. Em um segundo momento foi solicitado que as autobiografias fossem (re)escritas a partir das vivências e experiências nesta escola. Além disso, foi realizada uma entrevista descritiva a partir das autobiografias. Foi realizada análise também de alguns projetos desenvolvidos na escola e utilizados pelos mesmos alunos em seu trabalho junto à família.

Como subsídio à pesquisa, foram também analisados documentos da escola como Regimento, Planos de Cursos, Planos de Estudos e Projeto Pedagógico.

Os resultados desta pesquisa serão utilizados para a discussão e elaboração da posposta de cursos PROEJA na ETA.

AS ORIGENS: contextualizando espaços e sujeitos com história e memórias

A Escola Estadual Técnica de Agricultura – ETA – foi fundada em 1910, pela Escola de Engenharia de Porto Alegre, visando o desenvolvimento da educação profissional no estado do Rio Grande do Sul, com especial atenção aos assuntos agropecuários formando “jovens para o exercício mais qualificado às lidas da pecuária e da agricultura” (GOMES. 2008. p. 852).

2

Situações vivenciadas pelos alunos além das atividades de aula: convivência na hospedagem na escola (internato), alimentação, atividades de produção, plantões em atividades de manutenção e conservação das instalações utilizadas para hospedagem, atividades culturais, de recreação e integração, organização, projetos desenvolvidos pelos alunos...

3

A proposta de adesão aos cursos de PROEJA na ETA está fundamentada nesta identificação pedagógica de educação integral e no público a ser atendido.

(5)

Em novembro, de 1909 através da Lei nº 93/094, foram destinados recursos “(...) à criação e custeio de uma Escola Prática de Agricultura e Veterinária para 30 alunos de ensino gratuito e com internato” (SOARES. 1997. p. 23). No ano seguinte foi criado o Curso de Capatazes Rurais, que correspondia aos aprendizados agrícolas, inteiramente gratuito, destinado aos filhos de agricultores e lavradores pobres.

Ao longo destes quase cem anos a escola não se afastou do seu propósito inicial de formação profissional, respeitando a identidade e a cultura dos sujeitos do meio rural. Em seu regimento a escola expressa sua identidade enquanto instituição de formação integral através de seu objetivo:

Oferecer uma Educação Profissional e Ensino Médio que estimule a aprendizagem, através de uma sólida formação humana e profissional, auxiliando o homem do campo na busca constante de melhor produtividade, rentabilidade e qualidade de vida, preservando o ambiente, os valores éticos, morais e sociais de convivência humana. (REGIMENTO ESCOLAR. 2002. p. 8)

Atualmente, 80% dos alunos desta escola técnica são oriundos do meio rural, agricultores, filhos de agricultores ou de trabalhadores rurais, sendo que a principal atividade é a agricultura familiar5.

Assim são os quatro alunos sujeitos desta pesquisa: Jardel Mendonça (25 anos), Leandro Schena (26 anos), Sergio Juliano Souza (24 anos) e Eder Renato Chaves (19 anos)6. Jardel ao escrever sua autobiografia destaca “Bom, nasci e me criei na agricultura familiar, assim como meus pais e irmãos (...)”. Leandro conta “Sou agricultor, moro em Gramado Xavier, uma cidade do interior, lá é um lugar tranquilo e bom de viver.” Eder relata com orgulho a profissão de seus pais “Meu pai e minha mãe são agricultores e plantam fumo, milho e criam algumas cabeças de gado [...]” e Sergio expressa essa origem reflete em sua vida “[...] filho de pequenos agricultores [...] por ser filho de pessoas humildes aprendi desde criança o sentido da vida [...]”

4

Inciso IV, letra b.

5

Agricultura familiar: Segundo definição da FAO/INCRA (1996) são considerados estabelecimentos familiares aqueles que preenchem as seguintes condições: a) a direção dos trabalhos é exercida pelo próprio agricultor; b) não empregam trabalhadores permanentes e tem um número médio de empregados temporários igual ou inferior a 25% do total da mão-de-obra familiar ocupada na propriedade; c) possuem área inferior a 100 hectares de terra e têm na agricultura sua principal renda (+ de 80%).

6

(6)

Segundo os alunos, entre os principais motivos para a escolha desta Instituição para prosseguirem seus estudos estão a qualidade dos cursos ofertados e o fato da escola ser gratuita, satisfazendo as condições socioeconômicas das famílias.

Os jovens e adultos que buscam sua formação profissional na escola, tiveram sua trajetória escolar interrompida, em sua maioria pela necessidade que tiveram de exercer alguma atividade de trabalho junto à família; em segundo lugar, pela distância entre suas residências e a escola como é o caso de Sergio e Leandro: “(...) não tendo condições de continuar estudando o ensino médio por ser distante de casa (cerca de 35 km) e somente a noite (...) eu me dediquei aos trabalhos da lavoura com meu pai, minha mãe e meus irmãos (...)” “Comecei minha vida profissional aos quinze anos devido à necessidade de ajudar meu pai (...)”. (Leandro: primeira autobiografia)

As famílias e os alunos “plantam”, na formação profissional, expectativa e esperança de um desenvolvimento pessoal e profissional, a fim de conquistarem um futuro melhor, representado por muitos sonhos, como os de Sergio “(...) conseguir comprar um pedaço de terra para produzir tudo aquilo que a gente tem interesse e viver em harmonia e paz (...)”. Para a família de Jardel a expectativa “(...) é muito grande para que eu possa caminhar com as próprias pernas e até ajudar em casa.”

Existe por parte dos alunos o reconhecimento da ETA como referência na oferta de formação profissional na agropecuária, para além das concepções que historicamente marcaram a educação profissional em nosso país, principalmente, no ensino agrícola. Este reconhecimento da instituição como referência no meio rural é evidenciado quando os alunos revelam a indicação desta escola por meio de ex-alunos, irmãos, amigos, empregadores, orientadores técnicos, enfim pessoas que atuam no meio agrícola e tiveram algum vínculo com a Instituição. Sergio, como tantos outros jovens, obteve informações sobre a escola em seu trabalho na cultura do fumo: “(...) no passar do tempo conheci o nosso orientador agrícola, que estudou nesta escola e me indicou (...) eu pude comprovar tudo que ele me falou de bom ao chegar aqui (...)”. Leandro Schena conheceu a escola através de seu irmão: “Vim aqui para fazer este curso porque tive boas apresentações desse colégio por todas as pessoas que eu conheço que aqui estudaram principalmente meu irmão.”

(7)

Estes sujeitos, jovens e adultos, revelam em suas autobiografias que mobilizaram forças para superar as dificuldades e concluírem seus estudos, como afirma Eder (19 anos) “Minha esperança para o futuro é ter uma vida digna trabalhando e fazendo o necessário para que isso aconteça.”

Segundo Freire (2005) estes sujeitos buscam sua vocação ontológica de “ser mais”, assim conquistando, para além da formação profissional, a plena cidadania.

[...] sabendo que será muito importante para mim este curso, quero me dedicar ao máximo, pois o futuro espera técnicos capacitados com responsabilidade e interesse, pois assim eu tenho certeza que vamos levar mais vida a toda à população. (Sergio: primeira autobiografia) Estou no meio do curso e sinto que meus objetivos estão sendo alcançados e espero ter cada vez mais proveito do mesmo, vou dar o máximo de mim para que todos meus objetivos sejam alcançados e ter minha própria empresa. (Leandro: segunda autobiografia)

Essa mobilização para Charlot (2000. p. 55) (...) é pôr recursos em movimento, (...) é reunir suas forças, para fazer uso de si próprio como recurso.” Reafirmando estas idéias, Sergio, entende ser importante não desistir de sua formação, pois: “Somente vence aquele que não desiste das ‘batalhas’ e encontra uma forma de buscar conhecimentos”. Neste mesmo sentido, Charlot (2000) ainda considera que mobilizar-se “é também engajar-se em uma atividade(...) porque existem ‘boas razões’ para fazê-lo”. Ao refletir sobre sua decisão de retorno aos estudos, Jardel, considera que “(...) antes de ingressar na escola (...) tive medo de encarar o desafio, mas hoje o que eu projetei se encaixa muito aos meus interesses e mais tenho expectativas de superar tudo o que eu prévia.”

As expectativas dos alunos com o retorno à escola e a possibilidade de formação profissional estão, enfim, em torno de um futuro melhor, da propriedade da terra e de alternativas para a produção em vista da sustentabilidade.

TRABALHO, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL: uma relação de saberes

O homem não nasce homem. É pelo trabalho que ele se forma homem. Segundo Saviani:

Ele [homem] não nasce sabendo produzir-se como homem. Ele necessita aprender ser homem, precisa aprender a produzir sua própria existência. Portanto, a produção do homem é, ao mesmo tempo, a formação do

(8)

homem, isto é, um processo educativo. A origem da educação coincide, então, com a origem do homem mesmo. (2007. p. 154)

A relação do homem com o trabalho e o saber que decorre desta relação se inicia quando este busca na natureza os meios para satisfazer as suas necessidades de alimentação, abrigo e vestuário, organizando-se em pequenos grupos e dividindo os frutos encontrados e os animais abatidos, predominando uma “economia de subsistência”7. Só mais tarde, o homem começou a produzir o alimento que necessitava, cultivando a terra e domesticando animais. (MANFREDI, 2002). Para Álvaro Vieira Pinto (2005. p. 157) “Foi uma extraordinária descoberta a possibilidade de fazer o solo produzir as plantas das quais o homem extraí os alimentos.” Ainda segundo este mesmo autor o homem não se limita a conhecer a natureza, mas conhece o mundo a partir de sua experiência produzindo a sua cultura que o leva a viver em estado social, trabalhando coletivamente.

Ao tornar-se agricultor e pastor, o homem aprimorou as técnicas e os instrumentos de trabalho como resultado de sua experiência e da capacidade de modificar o mundo, “(...) em todos os ‘manejos’ humanos, isto é, nas ações humanas, há uma técnica (...)” (PINTO. 2005. p. 146). Esta técnica resulta da reflexão sobre a atividade criadora do homem. O conhecimento resulta dessa relação do homem com o processo de produção coletiva que se dá por todos os homens ao longo da história.

Mais que um simples ser no mundo, o ser humano tornou-se presença no mundo, com o mundo e com os outros “(...) estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é a capacidade de intervindo no mundo, conhecer o mundo.” (FREIRE, 1996: 31)

Reconhecendo sua origem na agricultura familiar, Jardel sente-se comprometido em atuar nesta realidade tornando significativa a busca de sua formação “Quero muito poder contribuir para o desenvolvimento da agricultura familiar e colocar em prática tudo o que aprendi na Escola.” Sergio ao reportar-se à escolha do Curso Técnico em Agricultura também reconhece sua origem e a ligação com a sua comunidade “Certamente a vocação agrícola da minha região foi determinante para a escolha deste curso. Minha comunidade espera que eu volte para lá e consiga implantar projetos que busquem a sustentabilidade.”

7

Economia de subsistências: Sistema de econômico baseado em atividades com objetivo de autosuficiência, produzindo apenas o necessário para o consumo imediato.

(9)

Para que estes sujeitos possam apropriar-se deste mundo pré-existente, desta realidade inacabada produzida ao longo da história humana, precisam aprender a conviver com outros homens e exercer uma atividade para construção deste mundo e de si mesmo. Jardel continua sua reflexão “tive e tenho muito a agradecer à agricultura familiar (...) foi daí que sou (...) a pessoa que me tornei, aprendi princípios, valores que não poderia aprender em outro ambiente. Não tenho tudo que amo, mas dou muito valor às coisas que tenho (...)”. Isso significa dizer segundo Charlot: “Nascer, aprender, é entrar em um conjunto de relações e processos que constituem um sistema de sentido, onde se diz quem sou, quem é o mundo, quem são os outros”. (2000, p. 53).

Pelo trabalho se produz conhecimento, forma-se consciência como seres produtores de atividades. O trabalho tem potencialidade pedagógica, à medida que ajuda as pessoas a perceberem as demais dimensões da vida humana. Neste sentido Jardel reconhece a sua relação com os demais sujeitos e sente-se comprometido com aqueles que o ajudaram a enfrentar os desafios de vida e de trabalho: “(...) assim como minha formação pessoal se deu dentro da agricultura familiar, é meu sonho um dia trabalhar voltado para esta área, e quem sabe ajudar tanto quanto já fui ajudado pela agricultura familiar”.

Para Schwartz (2006: 459) “(...) o trabalho é pleno independente do fato de ser assalariado, formal ou informal, doméstico ou mercantil (...)”, esta idéia está muito bem concebida por Leandro “(...) trabalho é tudo o que alguém faz em prol de alguma coisa, não interessa se é remunerado ou não.” No caso de Sergio, o trabalho vai além das atividades ligadas à produção agrícola, estende-se a outras experiências que marcaram sua vida como ele mesmo relata “(...) outra situação que marcou minha vida foi o trabalho voluntário que realizei na diretoria da minha comunidade.” 8

Por muito tempo a formação para o trabalho esteve reservada às classes populares, baseada em atividades manuais aprendidas na própria dinâmica do trabalho (MANFREDI, 2002). O pouco valor da educação e a não exigência de qualificações para as atividades de trabalho manual colaboraram para manter dicotomia entre o trabalho intelectual e o trabalho manual.

8

Sergio fez parte da diretoria da Associação da Comunitária de Linha Boa Esperança na Cidade de Vale do Sol. O trabalho desenvolvido pela associação é voluntário.

(10)

O trabalho manual não se vinculava aos saberes, mas ao adestramento e adaptação ao mercado e ao capital. A Educação Profissional insere-se neste contexto no qual por muito tempo a educação escolar foi considerada desnecessária para a maioria da população trabalhadora: “Essa dissociação entre educação e trabalho é completamente lógica quando a educação é reservada àqueles que não são destinados a trabalhar com seus corpos.” (CHARLOT, 2004. p. 10).

Segundo as estatísticas nacionais, existe uma diferença acentuada entre os indicadores educacionais relativos às populações que vivem no meio rural e às que vivem nas cidades, com clara desvantagem para as do meio rural. O maior número de sujeitos excluídos ou com trajetórias de insucesso escolar está nas regiões interioranas, associado a questões de raça, cor e gênero. Apesar da luta dos movimentos sociais, ainda persiste a dicotomia entre rural/urbano, campo/cidade.

O Parecer CEB/CNE 36/2001, que trata das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, reafirma em seu texto, a precariedade da educação escolar no meio rural:

A ausência de uma consciência a respeito do valor da educação no processo de constituição da cidadania, ao lado das técnicas arcaicas do cultivo que não exigiam dos trabalhadores rurais preparação alguma, nem mesmo a alfabetização, contribuíram para a ausência de uma proposta de educação escolar voltada ao interesse dos camponeses. (BRASIL, 2001)

Nesta situação encontram-se milhões de crianças, jovens e adultos que trabalham e vivem do/no campo e que ao longo do tempo tiveram seu direito à escolarização negligenciada, sob o pensamento de que “(...) povo da roça não carece estudo. Isso é coisa de gente da cidade.” (LEITE. 2002. p. 14). Este pensamento associa as atividades de trabalho agrícola com o trabalho manual, que por muito tempo não esteve vinculado aos saberes escolares, mas às aprendizagens informais, ensinadas na própria dinâmica da atividade de trabalho.

Os dados do DIEESE9 de 2007, comparando o trabalho infantil no meio rural e no meio urbano, apontam um maior número de crianças, entre 5 a 14 anos, exercendo atividades de trabalho agrícola. A PNAD, em 2007, reafirmou uma das principais características do trabalho infantil no país: 60,7% das crianças na idade de 5 a 13 anos ocupados estavam inseridos em atividades agrícolas. Estes dados reforçam a ideia de que as crianças e jovens, no meio rural, antes de iniciarem sua

9

(11)

trajetória escolar, já iniciaram suas atividades de trabalho, na maioria das vezes junto à família, o que os afasta da escola.

Esta realidade também é vivenciada por muitos dos alunos da ETA. Sergio é um exemplo entre tantos outros sujeitos do campo “Consegui concluir o primeiro grau [ensino fundamenta]) e parei seis anos de estudar. Nesse período comecei a me ocupar dos serviços da lavoura e acabei me apegando a eles a cada momento da minha vida.” Jardel,que também parou por um bom tempo de estudar, lembra: “A questão que mais marcou minha vida escolar foi quando com 16 anos ‘quis’ desistir da escola quando cursava a 8ª série do Ensino Fundamental e uma professora não deixou isso acontecer, me mostrando o valor do estudo.”Eder também parou os estudos por um período e se dedicou ao trabalho junto à família na produção de fumo “(...) quando conclui o ensino fundamental e fiquei um ano ajudando meus pais.”

Assim, a maioria dos jovens e adultos do meio rural inicia a educação profissional com experiência na área agrícola. O trabalho é algo que se aprende na família, no desenvolver das atividades ou afazeres da terra, através de orientações transmitidas pelos mais velhos, de pai para filho A formação para o trabalho está vinculada à própria dinâmica da vida e à atividade de trabalho, com base nas práticas educativas de convivência familiar que são transmitidas de geração a geração em um misto de herança cultural e à necessidade econômica.

Leandro, Eder, Sergio e Jardel comentam sobre como aprenderam as diversas atividades de trabalho que desempenharam antes de iniciarem sua formação profissional:

Trabalhei de pedreiro com meu pai onde aprendi muitas coisas ensinadas por ele mesmo, eu olhava ele fazer e depois eu tentava fazer igual, assim eu aprendi. [...] Também trabalhei em uma fazenda onde quem me ensinou foi o capataz. [...] na empresa de ônibus foi diferente, pois tive um treinamento de uma semana antes de começar o trabalho, onde quem me ensinou foi o fiscal da empresa. (Leandro: entrevista) Tudo o que aprendi antes de chegar na ETA devo muito a meu pai. Na fazenda também por eu já ter certo conhecimento com o capataz e os outros empregados eles me ensinavam muitas coisas. (Eder: entrevista) Filho de pessoas humildes, agricultores, desde cedo, ainda na infância comecei a ter os primeiros contatos com a agricultura [...] Na propriedade de minha família tive o primeiro contato com o trabalho [...] foi a minha convivência com meus pais, que me proporcionou muitos aprendizados para serem levados para minha vida. (Sergio:autobiografia)

(12)

[...] eu aprendi a trabalhar ainda na minha família, que sempre trabalhou e se sustentou tirando proveitos da fumicultura. (Jardel: entrevista)

O transmitir é um ato que se inscreve na história humana, que faz história e que faz transitar elementos da experiência e de saber (educação, formação), é uma atividade humana dinâmica que diz respeito ao agir humano, que implica sempre em escolhas (SCHWARTZ 2005). Assim, toda atividade humana é uma experiência em si e está ligada à transmissão de saberes:

[...] toda atividade; de trabalho encontra saberes acumulados nos instrumentos, nas técnicas, nos dispositivos coletivos, toda situação de trabalho está saturada de normas de vida, de formas de exploração da natureza e dos homens uns pelos outros. (SCHWARTZ, 2005. p. 23)

Conforme Charlot (2000, 78): “O mundo não é apenas conjunto de significados, é, também, horizonte de atividades.” Os alunos trabalhadores a partir de sua experiência de vida e trabalho constroem um significado próprio de valor e sentido sobre o trabalho, concebendo este trabalho como espaço de sua condição humana. Para Jardel o trabalho é o que “(...) dá a uma pessoa a importância no meio social, é ele o responsável pelos nossos sonhos, penso que sem trabalho não há sonhos, uma pessoa sem o trabalho para realizar estes sonhos se torna uma pessoa sem objetivos”

O trabalho às vezes é mais do que trabalho remunerado. Este conceito de trabalho para cada um destes sujeitos não está associado somente ao sentido abstrato, mas remete a suas vivências “(...) que fala do que faz, mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe.” (FREIRE. 1996. p. 20)

Jardel revela em um trecho de sua autobiografia a dificuldade em mudar situações que estão postas como destino a alguns sujeitos, mas também considera a possibilidade de mudar este destino dado.

Meus pais desde sempre plantaram fumo e comigo não seria diferente, porém aos 22 anos decidi que não queria aquela vida pra mim, embora a fumicultura tenha desempenhado um papel importantíssimo no desenvolvimento da minha família. (Jardel: autobiografia)

A ETA tem papel fundamental nestas rupturas como reafirma Jardel que tem sua origem na agricultura familiar com a produção de fumo e que sonha com outras atividades “A escola nos mostra uma visão de trabalho que nos deixa

(13)

esperançosos na questão familiar [...] o ensino oferecido na parte prática me faz sonhar em trabalhar na mesma linha da Escola, tornando as práticas usadas na agricultura menos agressivas ao meio ambiente, área que quero seguir.”

Eder também refere como percebe o trabalho a partir da formação na escola “Pra mim trabalho significa uma conseqüência da vida. Acho que na ETA a gente aprende a gostar daquilo que faz e não faz somente aquilo que se gosta”. Sergio complementa “Para mim trabalho significa a dignidade de ser humano. Eu percebo o trabalho aqui na ETA como sendo o “X” dos resultados obtidos.”.

A Escola, hoje, precisa educar para o trabalho e pelo trabalho, onde os saberes produzidos pelo trabalho seja objeto de reflexão e mantenha um diálogo com os saberes produzidos nos processos escolares.

RESIGNIFICANDO AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: Conexão dos saberes da escola e do trabalho

[...] se o trabalho é atravessado pela história, se “nós fazemos história” em toda atividade de trabalho, então, não levar em conta esta verdade nas práticas das esferas educativas e culturais, nos ofícios de pesquisadores, de formadores, nas nossas práticas de gestores, de organização do trabalho, e também nas nossas práticas de cidadão, é desconhecer o trabalho, é mutilar a atividade dos homens e das mulheres que, enquanto “fabricantes” de história, re-questionam os saberes, reproduzindo em permanência novas tarefas para o conhecimento. (SCHWARTZ, 2003. p.23)

As práticas pedagógicas na educação profissional estiveram, por um longo período, vinculadas à concepção tradicional, conteudista com foco no “aprender a fazer e fazer para aprender”, consequência de uma pedagogia dominante cuja educação serviu para conservar e reproduzir um comportamento prescrito baseado na narração, memorização sem relação com a realidade dos sujeitos. (FREIRE, 2005)

A superação da visão meramente reprodutora de conteúdos no espaço escolar da formação profissional busca promover a conexão dos saberes da escola com os saberes dos sujeitos trabalhadores através do desenvolvimento de atividades em que os alunos possam construir não somente conhecimentos, mas alternativas que atendam suas necessidades de vida e trabalho.

(14)

Para Jardel a superação de suas expectativas ao ingressar na Escola se deu a partir da reflexão sobre sua experiência no meio rural,

Ao ingressar queria muito ter uma profissão ser formado em alguma coisa, hoje quase formado já penso em desempenhar funções voltadas, por exemplo, ao extencionismo rural e superar as expectativas que eu tinha ao ingressar na Escola. (Jardel: entrevista)

O papel da escola não é só a transmissão de conhecimentos acumulados historicamente, mas exige, antes de tudo, reflexão sobre o modo de vida social que deve estar articulado com a experiência dos alunos, respondendo concretamente aos problemas enfrentados pelo homem em seu caminhar histórico. (FRANCO, 1991) Na mesma linha de pensamento Lucília Machado considera que (...) “o sujeito situado na realidade em que vive é o ponto de partida para o desenvolvimento da capacidade de contextualizar informações, conhecimentos, saberes e técnicas.” (2006. p.53)

Eder faz menção sobre às possíveis trocas de conhecimentos e experiências que cada um de seus colegas e professores traz para o convívio diário na escola e como estas situações são motivadoras para que a aprendizagem torne-se significativa.

Acho que por cada região ser um pouco diferente uma das outras, no aspecto de saberes, cultivos, culturas em determinados momentos do dia-a-dia acontece uma troca de conhecimentos entre professor e alunos e alunos e alunos. O que torna muito legal para a convivência diariamente em grupo, dá uma vontade de iniciar o dia e ver qual será a novidade, o tema ou a polêmica. (Eder: entrevista)

Os alunos na ETA percebem as práticas pedagógicas como possibilidades de reflexão sobre suas práticas com possibilidade de (re)significar o seu fazer:

Apesar de não ter concluído o curso ainda percebo que aprendi a ver as coisas com outros olhos. Antes de realizar determinada tarefa, parar, pensar, analisar. calcular, e ver qual a melhor forma de realizar essa tarefa com melhor eficiência e menos desgastes. (Eder: entrevista) Modificaram muito, principalmente no sentido de ter mais atenção para chegar mais rápido ao resultado, também a facilidade ganhou mais impulso, uma vez que ela é fator importante para diminuir nosso stress, das elevadas “cargas” que suportamos no dia-a-dia. (Sergio: entrevista)

(15)

No Projeto Pedagógico da escola, a educação vai além do currículo e dos livros, e os alunos constroem ativamente os conhecimentos a partir de suas experiências:

A prática pedagógica propicia e favorece um ambiente de aprendizagem com situações próximas ao mundo do trabalho, da vida fora dos muros da Escola, que favoreça a troca de experiências, a parceria, a pesquisa, reduzindo a distância entre o ensino e a vida. (PROJETO PEDAGÓGICO. 2007 p.3)

Aproximar as práticas pedagógicas da realidade de trabalho dos alunos é fundamental considerando que o homem só conhece aquilo que é objeto de sua atividade, e conhece porque atua praticamente, o conhecimento tem que adquirir corpo na própria realidade, sob a forma de atividade prática, e proporcionar sua transformação. (KUENZER, 2002)

Leandro, ao relacionar o conhecimento construído, no decorrer do curso técnico, com as necessidades de seu trabalho, considera: “tudo que aprendi em relação ao curso (no trabalho) estou podendo aproveitar, mas estou aprendendo andar por caminhos mais curtos e ter resultados maiores. Estou contente com isso.”

A formação profissional para os trabalhadores do campo tem que estar integrada à realidade histórica e social em que os sujeitos estão inseridos, pois, “é inegável o ”saber” adquirido pelo homem do campo em relação ao trabalho “(...) saber e trabalho alinham-se em um sentimento único de sobrevivência material e de valores (...)” (LEITE, 2002. p.72)

A formação profissional é um direito do trabalhador. Como tal esta formação deve incorporar as dimensões dos saberes formalizados aos saberes do trabalho, do trabalho intelectual ao trabalho produtivo, para a construção de conhecimentos tendo como eixo o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura rompendo com a dualidade entre cultura geral e técnica.

Os conhecimentos tecnológicos, os quais são referência ao exercício de atividades técnicas e de trabalho, também se tornam condição indispensável para que os homens usufruam destas conquistas tecnológicas para o bem estar humano. Para o aluno Sergio, o acesso a estes conhecimentos torna-se indispensável ao homem do campo para que este construa os conhecimentos necessários e integre-se à sociedade atual:

(16)

Penso que é sempre muito importante alguém que se criou no meio rural conhecer o que existe e o que a tecnologia traz para nós todos os dias [...] aqui são passadas para nós o que há de mais moderno em se tratando de gestão e tecnologia que se tem no mercado [...] o convívio com outras pessoas favorece nossa inclusão na sociedade, gerando conhecimento para todos os setores. (Sergio: entrevista)

Para Frigotto e Ciavatta (2002) a escola e os processos educativos são como insistia Paulo Freire, “empapados” daquilo que os sujeitos vivem na sua vida concreta nos diferentes espaços da sociedade. A educação mescla-se com outras aprendizagens realizadas em outros espaços com tempos e formas diferentes, onde o sujeito tem uma história de valores, de cultura e de saberes produzidos no trabalho ou fora dele, em processos formais ou informais, ou ainda em sua experiência de vida.

Todo trabalho humano envolve a mente e o corpo, e a construção de saberes que articulam o fazer com o pensar. O saber em uso, necessário à ação, segundo Malglaive (1995) reúne vários saberes: saberes teóricos, saberes processuais, saberes práticos, saber fazer. Estes substituem-se uns aos outros, combinam-se, misturam-se, explicitando o que ele chama de alquimia da passagem à prática. “Se é saber para o pensamento, torna-se saber-fazer para a ação”. (MALGLAIVE. 1995. p. 37)

A experiência do aluno trabalhador na mesma área em que estão buscando a formação profissional contribui para o bom desempenho na apropriação dos conhecimentos teóricos e práticos desenvolvidos nos cursos técnicos como nos dizem Jardel e Sergio:

[...] uma vez que eu já sabia trabalhar antes de ter vindo para a ETA me fez ser um aluno destacado pelo saber fazer e isto reflete muito nas aulas quando é pedido a minha opinião em certas atividades do campo [...]assim como acontece outros colegas que também tem raízes na agricultura familiar. (Jardel: entrevista)

Acho que minha história se encaixa perfeitamente com a escola e o curso que me oferece conhecimentos técnicos de coisas que só sabia fazer a prática. (Sergio: segunda autobiografia)

Resignificar as práticas pedagógicas remete à necessidade de aprendizagens significativas, construtivas e de formação, nas quais os alunos percebam nos conhecimentos produzidos o vínculo com as demais dimensões da vida humana.

(17)

APRENDER PARA UM FAZER TRANSFORMADOR10: Renormalizações de vida e trabalho a partir da formação profissional

As articulações fragmentadas entre educação e trabalho não contribuíram para um projeto de inclusão social, ao contrário, reforçaram a lógica do capitalismo que se impôs à maioria da população, o que caracteriza, até hoje, uma sociedade onde não há uma justa distribuição de renda e muitas formas de discriminação, onde a ausência da escolarização serve para justificar as funções desqualificadas no mercado de trabalho.

A expansão do desenvolvimento capitalista fez com que a escola e a formação profissional estivessem atreladas a este projeto de desenvolvimento econômico, no qual as relações sociais de trabalho, as ciências e as tecnologias estão vinculadas à propriedade privada, ao trabalho assalariado como exploração da mão de obra. Esta idéia de “desenvolvimento” está intimamente ligada ao poder do capital financeiro, a uma lógica de mercado que determina as relações sociais a partir da competição e do individualismo transformando tudo em mercadoria com vista ao lucro.

Ao lado deste “desenvolvimento” está outra realidade: a exclusão social, o desemprego crescente para aqueles que não têm oportunidades de acompanhar as mudanças, as novas tecnologias ou aqueles que não servem mais ao poder daqueles que orientam tal desenvolvimento.

Contrários a este poder hegemônico de educação e de desenvolvimento estão aqueles que acreditam existir outras formas de desenvolvimento e de formação, que orientam para práticas fundadas na inclusão social, no respeito e no bem comum. Estas novas práticas quebram paradigmas, (re)significam conhecimentos e saberes construindo novas experiências, novas relações sociais com novos protagonistas e novas iniciativas transformando realidades de trabalho e vida.

Os projetos desenvolvidos pelos alunos da ETA destacam e reafirmam a importância da reflexão nos espaços de formação profissional, sobre questões vitais no cotidiano dos alunos com possibilidade de renormalizações de vida e trabalho, conforme relatam os alunos, suas experiências nos projetos desenvolvidos:

10

“Aprender para um fazer transformador” é o Princípio norteador da aprendizagem na filosofia da ETA. (Regimento Escolar, 2002. p. 7)

(18)

Participei de dois projetos, o que me colocou em um lugar de destaque no ambiente escolar, com isto vem também um ganho na minha vida social, amadureci em relação ao que eu pensava antes, tive um ganho pessoal enorme e fez com que estes projetos e a participação em vários eventos me abriram muitos caminhos no meio profissional, em se tratando de trabalho. (Jardel: entrevista)

[Projetos] foram de significado muito grande, principalmente em se tratando de conhecimento adquirido [...] Modificaram minhas práticas sim, porque a partir daí percebi que sempre podemos melhorar alguma coisa utilizando a pesquisa como método para provarmos que é possível. Digo que houve alternativas sim, pois poderemos usar adubos nas nossas plantas utilizando pó de rocha e tornar um solo produtivo mesmo que digam que não é. Vejo que fatos estranhos podem parecer estes, mas não é são resultados do campo da pesquisa. (Sergio: entrevista)

Foi maravilho, me sentir útil ver os resultados de uma longa jornada de trabalho ver que vale a pena se dedicar pra valer, em uma coisa que se acredita independente de opiniões dos outros. Com certeza [projetos] me ajudou e me ajuda na vida social e profissional. Pro futuro pretendo me aperfeiçoar na área de pesquisa. (Eder: entrevista)

Um destes projetos o “Uso da Fécula e da Farinha de Batata Doce como Alternativa de Renda para Agricultura Familiar” foi desenvolvido a partir da difícil realidade de vida e trabalho de Eder e Jardel, filhos de pequenos agricultores, que tiveram seus estudos interrompidos para trabalhar na produção de fumo.

No contexto da cadeia produtiva do tabaco, no qual os alunos estão inseridos, o Brasil é o maior exportador e o segundo maior produtor de tabaco no mundo. O Rio grande do Sul, principalmente na região do Vale do Rio Pardo, onde residem os alunos concentram-se em torno de 90% desta produção, geralmente desenvolvida em pequenas propriedades na qual a mão de obra envolvida é predominantemente familiar, o que para as grandes empresas significa “mão de obra barata”. O contrato de trabalho estabelecido sob a forma de Sistema de Integração de Produção do Fumo se apresenta hoje, talvez, como uma das mais perversas relações de trabalho Além do contrato condicionar o produtor a comprar um pacote tecnológico (financiamento, sementes, insumos, venenos e assistência técnica) necessário para a produção, também fica submetido à obrigatoriedade de vender exclusivamente tudo o que produzir a essa empresa.

Apesar da indústria manter um controle total da produção e das atividades do agricultor, não há a caracterização de empregador e de empregado o que não estabelece uma relação trabalhista. Os trabalhadores do cultivo do fumo sabem bem como funciona o sistema. As crianças nascem praticamente em contato com o fumo,

(19)

se desenvolvem tendo em mente que o cultivo do fumo é a única maneira de viver com uma renda suficiente para suas necessidades básicas. O medo de mudar ou inovar na maioria das vezes, por falta de informação ou formação, faz com que os fumicultores fechem os olhos para o mundo e se acomodem, não encontrando alternativas viáveis em curto prazo, submetendo-se ao domínio e à exploração, no qual o trabalho está regulado pelo capital.

A Organização Mundial da Saúde reconhece o tabagismo como uma doença causada pela dependência de uma droga: a nicotina. Esta doença está ligada a um “negócio”, orientado pelo poder do capital, que se expandiu tornando-se um problema mundial. Em 1999 os Membros das Nações Unidas propuseram a adoção de um tratado internacional a Convenção Quadro para o controle do Tabaco11, com o objetivo de “(...) proteger as gerações presentes e futuras das devastadoras conseqüências sanitárias, sociais, ambientais e econômicas, geradas pelo consumo

e pela exposição à fumaça do tabaco (...)”(INCA 2004. p.21).

A convenção não proíbe a produção de fumo, mas “(...) reconhece o impacto que a redução do consumo trará no longo prazo sobre a demanda de produção e se preocupa com a busca de alternativas economicamente viáveis principalmente para o elo mais frágil da cadeia produtiva, os fumicultores.” (INCA, 2004. p.21)

Os problemas decorrentes da relação de trabalho entre os pequenos produtores e as grandes indústrias do fumo reafirmam que “a história humana, infelizmente, até hoje, reitera a exploração de seres humanos por seres humanos e de classe sobre classe.” (FRIGOTTO, 2002. p. 12 e 13).

O projeto dos alunos propõe uma alternativa de produção para a pequena propriedade, no qual desenvolveram uma forma artesanal para extração e produção da fécula e da farinha da batata doce, com o objetivo do aproveitamento na confecção de produtos coloniais, utilizando-as como espessante natural na fabricação de bebida láctea e na panificação. O projeto foi implantado na agroindústria da escola e os resultados demonstraram a clara viabilidade da produção, agregando valor à matéria prima, ou seja, a batata doce, obtida na pequena propriedade rural, contribuindo para o desenvolvimento da agricultura familiar e a sustentabilidade do sistema produtivo familiar.

11

Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco- Tratado internacional de saúde pública negociado por 192 países durante os anos 1999-2003 sob orientação da Organização Mundial da Saúde.

(20)

Neste contexto, para além da formação técnica profissional, os alunos (re)significaram conhecimentos, desenvolveram uma tecnologia alternativa à monocultura, à dependência a produtos químicos, visando à sustentabilidade, agregando valor a produtos considerados pelos produtores de valor reduzido e ainda associando cuidados com o ambiente.

A escola e a formação profissional, neste caso, assumem um papel social como espaços de criação, construindo conhecimentos e tecnologias alternativas, a partir de uma práxis capaz de transformar a realidade na busca de melhores condições de vida e trabalho no qual os sujeitos [...] criam e recriam, pela ação consciente do trabalho, sua própria existência. (FRIGOTTO, 2002. p. 13)

O trabalho é, também, uma experiência, um encontro onde são produzidos saberes e construções sociais, além disso, está sempre modificando e desenvolvendo saberes baseados nos processos do próprio trabalho e nas experiências anteriores. Neste sentido para Schwartz (2007) toda a atividade humana é produtora de normas e está sempre em negociação com as próprias normas da atividade. Cada ser humano, principalmente no trabalho, tenta recompor o meio em função do que ele é, do que ele desejaria que fosse este meio.

Os alunos trabalhadores do meio rural chegam à escola com saberes construídos pela experiência de vida e trabalho, mas buscam novos conhecimentos para poder modificar e melhorar o meio em que estão inseridos, assim como Jardel:

Antes eu sabia fazer o trabalho ‘cabido’ a mim, hoje continuo fazendo o mesmo trabalho, porém com uma significativa mudança. Hoje eu entendo porque fazer certas práticas, quais os seus ganhos e quais as melhores maneiras de garantir uma sustentabilidade financeira e ecológica. (Jardel: segunda autobiografia)

Os conceitos não são suficientes para compreender o que se passa nas situações de trabalho, é preciso retificar e (re)aprender, entre as experiências e os conceitos, o que são as mudanças reais do trabalho. Na perspectiva ergológica, a atividade humana põe em trabalho as experiências e os conceitos, fazendo surgir um debate de normas e de valores, (...) no trabalho, há sempre uma espécie de destino a viver (...) sempre é necessário fazer escolhas. (SCHWARTZ, 2007, p. 193).

Na fala de Sergio podemos contextualizar a construção de conhecimentos nesta perspectiva de (re)aprender e do fazer escolhas a que estamos sempre expostos a partir de nossas experiências:

(21)

[...] dá mais prazer a nossa vida fazer aquilo que gostamos [...] Porque no momento em que vamos realizar uma técnica passa pela nossa cabeça a idéia de já termos feito algo parecido em algum local. As técnicas podem ser alteradas a qualquer momento, mas o alicerce construído não pode ser removido. Hoje sou uma pessoa que adquiriu outra visão do setor agropecuário e estou muito contente em realizar esta conquista pela força de vontade que tive. Imaginem uma pessoa sair de casa e viajar quase trezentos quilômetros em busca de um futuro melhor! Isso aconteceu comigo! (Sergio: segunda autobiografia)

O fazer escolhas sempre envolve uma “dramática do uso de si” 12, em que se produzem novos acontecimentos transformando a relação com o meio e entre as pessoas. (SCHWARTZ, 2008)

Nas diversas situações de trabalho formal ou informal, encontram-se saberes historicamente acumulados, normas de vida e de trabalho que se reinscrevem na história pelas “renormalizações”. O ser humano tenta permanentemente re-interpretar estas normas, estes saberes que lhe são impostos como forma de configurar o meio como o seu próprio meio, “(...) a ideia de atividade é sempre um “fazer de outra forma”, um “trabalhar de outra forma”. (SCHWARTZ, 2007, 35)

Sergio continua a refletir sobre estas novas formas de realizar suas atividades:

Modificaram muito, [as atividades de trabalho] principalmente no sentido de ter mais atenção para chegar mais rápido ao resultado, também a facilidade ganhou mais impulso, uma vez que ela é fator importante para diminuir nosso stress, das elevadas “cargas” que suportamos no dia-a-dia. (Sergio: entrevista)

Na ETA o princípio da aprendizagem “Aprender para um fazer transformador” o trabalho é compreendido como [...] um saber capaz de permitir a transformação do conhecimento em diferentes ações para interagir com a realidade. (REGIMENTO ESCOLAR. 2002. p. 7)

Estas iniciativas no campo da educação e do trabalho transcendem os espaços de aprendizagem, de conhecimentos e os muros da escola; são experiências que modificam a relação dos conhecimentos formalizados da escola e do trabalho, renormalizam vidas e possibilidades das atividades

12

Dramática do uso de si – Na origem, um drama – individual ou coletivo – tem lugar quando ocorrem situações, que quebram os ritmos das sequências habituais, antecipáveis, da vida. Daí a necessidade de reagir, no sentido de: tratar esses acontecimentos, “fazer uso de si”. Ao mesmo tempo, isto produz novos acontecimentos, por conseguinte, transforma a relação com o meio e entre as pessoas.

(22)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mas a história da ETA continua, nela estão os jovens comprometidos na busca de ensinamentos, tanto quanto todos que já passaram por lá. Trazem na bagagem, além dos sonhos, o ideal, a vontade de viver com dignidade dentro do mundo difícil. Ao deixar a velha casa, retornam às suas querências, carregando em seus “pessuelos” a saudade na garantia do retorno, e levam ao pago o conhecimento mais profundo, quer na área humanística ou na técnica. Levam o aprendizado de vida. (GOMES, 2008: 861)

(Re)pensar educação profissional para trabalhadores do meio rural implica pensar em práticas pedagógicas que promovam o diálogo entre os saberes construídos pelos alunos trabalhadores e os saberes formalizados da escola, superando, assim, a fragmentação curricular, a segmentação dos conhecimentos e as práticas enraizadas culturalmente nos processos de formação para o trabalho.

O “Aprender para um fazer transformador”, princípio norteador da aprendizagem na ETA, traduz-se nesta prática pedagógica fundamentada na realidade social dos sujeitos, nas experiências, nas necessidades, nos conhecimentos já adquiridos na vivência destes trabalhadores, associando uma formação integral aliada à tecnologia, promovendo, assim, mudanças ou renormalizações de vida e trabalho.

A educação escolar e a formação profissional na ETA são entendidas como um processo de criação e apropriação de conhecimentos e da cultura produzidos pelo homem. Para além da reprodução e memorização de conteúdos esta escola é um espaço de (re)significação dos saberes sistematizados, nos quais as práticas pedagógicas contribuem para formação de sujeitos conscientes, criativos e críticos.

Os alunos, em suas autobiografias, revelaram que as práticas pedagógicas no espaço escolar da ETA considera a experiência, o vivido. Em decorrência disto foi possível levá-los do senso comum a uma consciência crítica na qual este espaço escolar tornou-se um pano de fundo para a construção e (re)significação de seus conhecimentos, a partir daí criaram, inovaram mudaram o contexto não só deles mas também de suas famílias e comunidade. Segundo Paulo Freire [...] só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente que os homens fazem do mundo, com o mundo e com os outros. (2005. p. 20)

Os alunos que participaram da pesquisa tornam-se protagonistas não só da produção do conhecimento, mas de suas próprias vidas ao passar por esta “escola de vida vivida”.

(23)

REFERÊNCIAS

BRASIL, Ministério da Educação. Documento Base – Prog. Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – Educação Profissional Técnica De Nível Médio/Ensino Médio. Brasília: MEC/SETEC, 2007.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Instituto Nacional de Câncer. A ratificação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco pelo Brasil: mitos e verdades. Rio de Janeiro: INCA, 2004.

BRASIL, Ministério da Educação. Diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo. CEB/CNE. Brasília. 2001.

CHARLOT, Bernard. Da Relação Com O Saber- Elementos para uma teoria. Porto Alegre. Artmed, 2000.

CHARLOT, Bernard. Educação, Trabalho: Problemáticas Contemporâneas Convergentes. Educação Sociedade e Cultura. Nº 22. 2004

DIEESE- Anuário dos trabalhadores: 2007. 8.ed. / Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socieconômicos. -- São Paulo: DIEESE, 2007.

DURRIVE, Louis. SCHWARTZ, YVES. Revisões Temáticas: Glossário de ergologia. Tradução Liliana Cunha e Marianne Lacomblez em 26/06/08. Revista Laboreal. Vol. IV, nº 1. 2008, p.23-28.

FRANCO. Luiz Antônio Carvalho. A Escola do Trabalho e o trabalho da escola. 3ª edição. Porto Alegre. Cortez: Autores Associados, 1991.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo. Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 47ª ed. São Paulo. Paz e Terra, 2005.

FRIGOTTO, Gaudêncio. A produtividade da Escola Improdutiva. 4ª Edição. São Paulo. Editora Cortez.1993

FRIGOTTO, Gaudêncio. CIVIATTA, Maria (orgs) A experiência do trabalho e a educação básica. Rio de Janeiro. DP&A, 2002.

FRIGOTTO. Gaudêncio. CIAVATTA. Maria. RAMOS. Marise (orgs.) Ensino Médio Integrado: Concepções e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.

(24)

GOMES. Santino Telmo. Escola Técnica de Agricultura: ETA – Memória e

história. IN: BARROSO. Véra Lucia Maciel. Raízes de Viamão. Porto Alegre: FAPA; 2008.

LEITE, Sergio Celani. Escola Rural: Urbanização e Políticas Educacionais. 2ª edição. São Paulo. Editora Cortez, 2002.

KUENZER, Acacia Zeneida. Conhecimento e Competência no Trabalho e na Escola. Boletim Técnico do SENAC. Rio de Janeiro. Editora Senac, 2002.

KUENZER, Acacia Zeneida. Competência como Práxis: os Dilemas da Relação entre Teoria e Prática na Educação dos Trabalhadores. Boletim Técnico do SENAC. Rio de Janeiro. Editora Senac, 2004.

KUENZER, Acacia Zeneida. Articulação entre conhecimento tácito e inovação tecnológica: a função mediadora da educação. Revista Brasileira da Educação. Vol.12 n. 36 set/dez. 2007.

MALGLAIVE, Gerard. Ensinar Adultos. Porto Editora Portugal, 1995.

MANFREDI, Silvia Maria. Construindo a Pedagogia do Trabalho. Qualificação e educação: reconstruindo nexos e inter-relações. Brasília: MTE, SPPE, DEQ. 2005. Vol. 1. MTE

MANFREDI, Silvia Maria. Educação Profissional no Brasil. Cortez. São Paulo: 2002.

MACHADO, Lucilia. Ensino médio integrado a educação profissional: integrar para quê? Secretária Básica. Brasília Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.

PINTO, Álvaro Vieira. O Conceito de Tecnologia – volumes I. Rio de Janeiro: Editora Contraponto. 2005.

PROJETO PEDAGÓGICO. Escola Estadual Técnica de Agricultura. Viamão, 2007. REGIMENTO ESCOLAR. Escola Estadual Técnica de Agricultura. Viamão, 2002. SCHWARTZ, Yves. Trabalho e Saber. Vol.12. nº 1 – jan/jun – 2003

SCHWARTZ, Yves. Transmissão e Ensino: do mecânico ao pedagógico. Pro-Posições. vol.16. nº 3 – set/dez – 2005

SCHWARTZ, Yves; DURRIE, Louis. Tradução de Travail & Ergologie. Jussara Brito e Milton Athayde ...[ET AL]. . Trabalho e Ergologia – Conversas sobre a atividade humana. Niterói. UdUFF. 2007

SAVIANNI. Dermeval. Trabalho e Educação: fundamentos ontológicos e históricos* Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007.

(25)

SCHWARTZ, Yves. Transmissão e Ensino: do mecânico ao pedagógico. Pro-Posição. V.16 nº 3 (48) set-dez. 2005.

SOARES. Mozart Pereira. ETA: Escola Técnica de Agricultura João Simplício Alves de Carvalho – Uma Contribuição para sua história. Porto Alegre: AGE, 1997.

Referências

Documentos relacionados

Declaro que fiz a correção linguística de Português da dissertação de Romualdo Portella Neto, intitulada A Percepção dos Gestores sobre a Gestão de Resíduos da Suinocultura:

Como o predomínio de consumo energético está no processo de fabricação dos módulos fotovoltaicos, sendo os impactos da ordem de 50 a 80% nesta etapa (WEISSER,

Portanto, mesmo percebendo a presença da música em diferentes situações no ambiente de educação infantil, percebe-se que as atividades relacionadas ao fazer musical ainda são

mydas juvenis alimentaram-se basicamente de itens de origem vegetal, apresentando principalmente o consumo da Ulva lactuca, registrando maior frequência

No diagrama relacionando o padrão de elementos traços normalizados em relação ao manto primitivo de Sun & MacDonough (1989), figura 43, é possível observar que as

13) Para tal fim cada Parte deverá comunicar a outra por escrito da existência e o objeto da controvérsia, para a resolução da mesma. 14) Caso isto não aconteça em até 60

O presente trabalho foi realizado em duas regiões da bacia do Rio Cubango, Cusseque e Caiúndo, no âmbito do projeto TFO (The Future Okavango 2010-2015, TFO 2010) e

patula inibe a multiplicação do DENV-3 nas células, (Figura 4), além disso, nas análises microscópicas não foi observado efeito citotóxico do extrato sobre as