Biblioteca Álvaro Magalhães
O rapaz da bicicleta azul
ilustrou
9
1 – O que é a liberdade?
O João acordou sobressaltado a meio da noite e acendeu a luz. Alguém estava a gemer no quarto ao lado. O João levantou-se, enfiou os chinelos nos pés e foi ver o que se passava.
– Pai! Pai! – gemia o pai enquanto dormia.
O João torceu o nariz, preocupado. Um pai a chamar pelo pai a meio da noite, como uma criança assustada. Mesmo a dormir, o pai era ele.
Abanou-o com força e ele acordou de repente. – Pai? – perguntou o pai.
Já tinha os olhos abertos mas ainda não via que era um filho e não um pai protector que estava diante dele.
– O pai és tu – disse o João. – Já te esqueceste? O pai abraçou-o.
– Desculpa! Acordei-te… Estava numa aflição e chamei o teu avô. Ele foi o meu pai. Custa a acreditar, mas um dia também fui um filho como tu agora és.
O João olhou para a fotografia do avô, sobre a mesinha-de-cabe-ceira.
– Gostava de ter visto esse sonho – disse ele. – Não conheci o avô. Nesta fotografia nem sequer tem cara de avô.
– Morreu novo – disse o pai.
– Foi pena. Dava-me jeito ter outro avô. Também havia de me con-tar histórias. Tu nunca te lembras…
– Não tenho tempo…
– O tempo não passa quando se está a contar ou a ouvir uma his-tória. Foi o que ouvi dizer.
– E é verdade. Vou contar-te a história do rapaz da bicicleta azul. Acabo de sonhar com ela.
O João lançou-se para a cama e ficou deitado de bruços, à espera. – O rapaz da bicicleta azul… – murmurou, agradado. E depois, mais alto: – Conta, pai. Conta!
O pai pôs-se numa posição confortável e começou a contar:
“Era uma vez um rapaz assim como tu, mais ou menos da tua idade. Vivia num país pequeno e triste onde faltava a maior riqueza que se pode ter: a liberdade. Era um país lindo mas triste, muito triste, que raramente sorria.
Ora bem… Esse rapaz tinha um desejo que estava quase a cum-prir-se: uma bicicleta. Ia recebê-la no dia seguinte, que era o dia do seu aniversário. Promessa do pai, que nunca faltava a uma promessa. Nes-sa noite, custou-lhe a adormecer com a excitação. Já se via ao guiador da bicicleta, atravessando o ar morno de uma manhã de Abril. Porém, de madrugada, três homens invadiram a casa, revolveram tudo à pro-cura não se sabia de quê e, por fim, levaram com eles o pai do rapaz.
Já não era a primeira vez que aquilo acontecia. Quando o pai re-gressava, ao fim de alguns dias, vinha sempre fraco e doente. “Onde estiveste? O que te fizeram?”, perguntava o rapaz. O pai não respondia e ele parava de fazer perguntas, e a vida regressava à vida, naturalmen-te. Desta vez, porém, o rapaz queria respostas. Desceu as escadas e veio encontrar a mãe à porta de casa, a chorar.
– Porque levaram o pai outra vez? – perguntou. – Ele fez algum mal?
– Nenhum, filho. Procura a liberdade que eles nos roubaram. – E porque não deixam as pessoas procurarem a liberdade?
– Porque têm medo de que elas a encontrem.
Vieram para dentro de casa e a mãe enxugou as lágrimas, para não entristecer mais o filho.
– O que é a liberdade? – quis saber o rapaz. – É um tesouro – respondeu a mãe.
– Um tesouro… como um tesouro? – Sim. O maior de todos.
– E como é? A que cheira, a que sabe, que forma tem, de que cor é? A mãe não sabia nada disso e o rapaz começou a duvidar que a liberdade existisse.
– Já alguém a viu? – perguntou por fim, desconfiado.
– Não se vê, a liberdade – respondeu a mãe. – Vês o ar que res-piras?
– Não.
– Ora experimenta duvidar que ele existe e tapa a boca e o nariz a ver o que acontece.
O João sabia muito bem o que acontecia quando tapava a boca e o nariz. Já tinha experimentado. Mas ainda não estava convencido:
– O ar sente-se quando se põe a mexer – disse ele. – Como quan-do levanta o meu cabelo no ar ou refresca a minha cara no Verão ou faz arder as minhas orelhas no Inverno. A liberdade também se põe a mexer? Também se sente?
15
– Sim. Acaricia-nos por fora e também nos acaricia por dentro. E mexe-nos e faz-nos mexer. Acho eu.
A mãe estava grávida, no fim do tempo, e o rapaz não queria can-sá-la com as mais de mil perguntas que lhe giravam na cabeça.
– Não te aflijas – disse ela por fim. – Talvez amanhã o teu pai re-gresse. E isto um dia vai acabar. Acho eu. Quantas vezes acordo de manhã e vou à janela, e me parece que cheira a liberdade. Mas não é ainda ela, só o perfume das flores, de outras flores. Afinal, estamos na Primavera.
– A liberdade é uma flor? – perguntou o rapaz.
– É. Uma flor que está guardada num castelo por dois guardiões que são a Força e a Tirania. Só a Coragem e a União os podem vencer. Acho eu. E agora dorme. Já é tão tarde.
Nessa noite, o rapaz não conseguia adormecer. Ouvia a mãe a chorar no quarto ao lado e chorou também.
No dia seguinte, o pai não regressou e a mãe teve uma crise e foi para a maternidade.
– A tua irmã vai nascer hoje ou amanhã – disse a tia que veio para casa tomar conta dele. E acrescentou: – Acho eu.
O rapaz preferia que a irmã nascesse no dia seguinte, aquele dia de aniversário estava ocupado por ele. E também preferia estar sozinho, detestava aquela tia. Só era parecida com a mãe porque dizia “acho eu” depois de algumas frases.
– Que grande desordem! – disse a tia, a preparar-se para arrumar tudo.
– Foram os homens que levaram o meu pai. Reviraram tudo à pro-cura não se sabe de quê – explicou o rapaz.
E foi então que se lembrou de que o pai tinha um esconderijo, no sótão, atrás de uma porta falsa. Mas só lá tinha visto livros, jornais ve-lhos e papéis.
Quando a tia saiu para o quintal, ele subiu ao sótão, abriu a porta secreta e atrás dela estava uma bicicleta azul, novinha em folha. Tinha uma placa de metal onde estava gravado o nome dele. Era a bicicleta que o pai já comprara e não tivera tempo de lhe dar. Nem a mãe sabia que ela já ali estava.
O rapaz trouxe-a para a rua e admirou-a ao Sol. Era uma bela bi-cicleta. Talvez um pouco grande para o tamanho dele, mas era preciso ver que ele estava a crescer, como dizia a mãe quando iam comprar sapatos.
Ouviu a tia a chamá-lo, mas não respondeu. Subiu para a bicicleta azul e pedalou até deixar de ouvir a tia. Depois continuou a pedalar. Não podia parar. E avançou sem se importar para onde ia. Quanto mais avan-çava, mais livre e mais solto se sentia. A brisa empurrava-o para diante e ele ia. Foi então que decidiu não parar. Ia à procura do pai e da flor da liberdade. Se fazia tanta falta a tanta gente, cada um deveria fazer o que podia para a encontrar. E ele tinha agora uma veloz bicicleta azul.
17
Um coelho bravo atravessou a estrada à frente dele. Um carro empurrou-o para a berma a apitar. Um pedinte estendeu-lhe a mão de repente e quase o fez cair. Um camponês acenou-lhe. Um cão perse-guiu a roda de trás a ladrar. Um rapazola fez uma careta que ele não viu. Uma linda rapariga, a uma janela, seguiu-o com o olhar e depois sorriu.