Entre comunitaristas e liberais: a teoria da justiça de
Axel Honneth
Between communitarians and liberals: Axel Honneth’s theory of justice
Thiago Aguiar Simim
Universidade Johannn Wolfgang Goethe de Frankfurt, Frankfurt, Alemanha. E-mail: thiago.simim@stud.uni-frankfurt.de
Resumo
Este trabalho pretende fazer uma síntese da inserção de Axel Honneth no
quadro das teorias da justiça. Para isso, se apresenta o debate entre
comunitaristas e liberais, juntamente ao procedimentalismo contemporâneo,
e as críticas de Honneth a essas posições. Assim o trabalho apresenta o esboço
teórico de justiça como reconhecimento em Honneth, realizado com base no
conceito de eticidade formal e no método da reconstrução normativa.
Palavras-chaves: Teoria da justiça; Teoria crítica; Axel Honneth.
Abstract
This paper intends to do a synthesis of Axel Honneth´s insertion in the
framework of theories of justice. For this purpose, it presents the debate
between liberals and communitarians, as well as the contemporary
procedimentalism, and Honneth´s critics to these statements. This way, the
paper presents the theoretical outline of justice as recognition in Honneth,
based on the concept of formal ethical life and the method of normative
reconstruction.
1. Entre comunitaristas e liberais
A disputa em torno do conceito de justiça se acirrou desde a publicação, em
1971, de Uma teoria da justiça de John Rawls (2002), lida como tentativa da filosofia política de reconciliar liberdade individual e igualdade social (FORST,
2010). O grande trunfo de Rawls naquele momento foi “tornar novamente
respeitável a filosofia moral não-utilitarista” (FLEISCHACKER, 2006: 160). A polarização das teorias da justiça desde então em duas concepções
fundamentais, liberais e comunitaristas, principalmente nos debates da década
de 1980, marcaram o eixo desta disputa. Não se pode falar especificamente
em tradições de pensamento liberal e comunitarista, mas sim de seus traços
mais marcantes que aglutinam diversas posições (FORST, 2010). Estes termos
só fazem sentido na observação panorâmica do posicionamento no debate,
pois os comunitaristas se aglutinaram na posição de crítica à teoria de Rawls,
enquanto os liberais, via de regra, se dedicaram a desenvolver e defender a
filosofia política rawlsiana.
A teoria da justiça deve, segundo Rawls, se limitar ao pacto moral de
cooperação entre os indivíduos para a produção e reprodução de seus
diferentes modos de vida e persecução de seus objetivos, porque, para Rawls,
“(...) o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade”, ou seja, “a
maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social” (2002: 7-8). A partir disso, ele elabora o seu conceito de sociedade: “(...) uma sociedade é uma associação mais ou menos
autossuficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas” (RAWLS, 2002: 4).
A premissa utilitarista aceita por Rawls é aquela que ele entende como
quase científica1, de que o homem é o ser que faz escolhas racionais de modo a maximizar a satisfação de seus desejos (FLEISCHACKER, 2006). Para o
utilitarismo, isso significa que os princípios de escolha racional de uma
1
O próprio Rawls (2002) a trata como quase-científica, por partir de um pressuposto que seria
sociedade são os mesmos utilizados para um único ser humano. No fim das
contas, isso significa que “[o] utilitarismo não leva a sério a diferença entre as
pessoas” (RAWLS, 2002: 30). O chamado “fato do pluralismo” nas sociedades ocidentais modernas, de um lado, e a fixação nos desejos e liberdade
individuais como objeto da justiça, de outro lado, demonstram o interesse
especial de Rawls voltado para o indivíduo, o que gera a acusação de um
individualismo metodológico. Essa é, segundo Fleichschacker, a marca de
distinção entre Rawls e o utilitarismo: “[o]nde Rawls diverge acentuadamente
do utilitarismo, e dos outros paradigmas da filosofia moral e política de sua
época, é em sua vigorosa ênfase na importância do indivíduo” (2006: 161). Ou
seja, a cooperação social teria como objetivo assegurar as condições de que
cada indivíduo realize, ao máximo, o seu sistema de desejos2. Uma vez que esses sistemas são distintos, as regras sociais não podem assumir os princípios
de um indivíduo só, como seria no utilitarismo, mas sim procurar a forma de se
mediar as diferenças e suas consequências, para que os indivíduos tropecem o
menos possível uns nos outros.
A teoria da escolha racional, tomada da base do pensamento
utilitarista, é reformulada por Rawls da seguinte forma, portanto: “[o]s termos
apropriados da cooperação social são estabelecidos por tudo quanto, em
determinado contexto, consiga a satisfação máxima da soma dos desejos racionais dos indivíduos” (RAWLS, 2002: 27). Seu intento é a aproximação entre as teorias da escolha racional e da justiça “[p]ois, assim como é racional
que um homem maximize a realização de seu sistema de desejos, também é
justo que uma sociedade maximize o saldo líquido de satisfação obtido com referência a todos os seus membros” (RAWLS, 2002: 28).
É necessário, para Rawls, que se reavive a filosofia moral sem a
necessidade de se remeter a um conceito ético substancial de bom. Sua teoria tem base em dois princípios de igualdade e diferença, pois dado o pluralismo
de valores da sociedade moderna, seria necessário se traçar princípios capazes
de englobar todas as diferenças como critério de justiça que seja capaz de
atravessar qualquer contexto particular. As sociedades são tão diversas, que “a
justiça só deve se ocupar da distribuição de ‘bens primários’ – bem necessários
à busca de praticamente qualquer fim humano – e deve deixar de lado a questão de o que constitui o bem humano supremo” (FLEISCHACKER, 2006: 161-162). O que constitui o estofo da realização dos desejos de um homem
não entra em questão na ponderação de Rawls, mas somente a forma de se
criar as condições materiais para que os indivíduos tenham autonomia, e os
princípios que equacionam as diferenças. Levando em conta que sua teoria é
elaborada para servir a um espectro amplo de sociedades, Rawls não
contextualiza, a priori, o seu ponto de partida, a saber, o da posição original. Ele afirma que “na justiça como equidade a posição original de igualdade
corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social” (RAWLS, 2002: 13). A partir desta posição ele traça a tarefa de sacar os
princípios basilares para a cooperação social. A posição original é, como
sustenta Rawls, um ponto de partida hipotético, o que significa dizer que não
tem importância a sua (in)existência histórica, mas sim a ideia de que “(...)
princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original” (RAWLS, 2002: 12).
A teoria da justiça como equidade de Rawls consiste em duas partes:
“(1) uma interpretação de uma situação original e do problema da escolha
colocada naquele momento e (2) um conjunto de princípios que, segundo se procura demonstrar, seriam aceitos consensualmente” (RAWLS, 2002: 17). Portanto, do primeiro passo já mencionado – a posição original – ele saca,
logicamente, com remissão inclusive a termos e métodos matemáticos
(FLEISCHACKER, 2006), os princípios de justiça básicos. Do início ao final de
Uma teoria da justiça (2002), Rawls reformula estes princípios, chegando à seguinte redação final a dois princípios:
Primeiro princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.
Segundo princípio
princípio da poupança justa, e (b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades (RAWLS, 2002: 333).
Ele ainda entende que esta mediação não é simples, o que o faz dar
mais um passo na complexidade de sua teoria. Como há a possibilidade de
uma incompatibilidade na aplicação desses princípios, Rawls formula as regras
de prioridade, com justificação na própria lógica da justiça como equidade.
O caráter abstrato, atomista e contratualista, do qual parte Rawls para
desenvolver sua teoria da justiça é contraposto por uma teoria comunitaristas
da justiça ligada a práticas, valores, história, tradição, que formam o horizonte
normativo de uma comunidade para a constituição não só da identidade
pessoal individual, como também de sua racionalidade. Sendo assim, “‘liberais’
de um lado, e ‘comunitaristas’, de outro, entendem que as normas que
pretendem ser moralmente justificadas são designadas de ‘justas’ ou porque são transcendentes ao contexto, no caso dos primeiros, ou porque são imanentes ao contexto, no caso dos segundos” (WERLE E MELO, 2007: 17). Honneth consegue resumir bem o que demarca as duas posições no debate:
O que deu o título ao campo dos “comunitaristas” era principalmente a ideia dirigida contra Rawls de que é preciso sempre um retorno retrospectivo a um horizonte de valores comuns compartilhados, se se deve decidir com de modo razoável acerca de questões sobre a ordem justa da sociedade. O campo dos “liberais”, por outro lado, foi nomeado ao contrário pela orientação comum à idéia central de Rawls de que sob condições modernas de um pluralismo de valores só o princípio geral da igualdade de direitos, liberdades e oportunidades pode servir como critério normativo pelo qual a justiça de uma comunidade deve ser medida (HONNETH, 1993: 83).
Como afirma Forst (2010), os comunitaristas são obcecados pelo
contexto (Kontextversessen), enquanto liberais são esquecidos do contexto
(Kontextvergessen), pois é o foco, ou a ausência dele, em um ethos
3
Tradução livre de: “Was dem Lager der »Kommunitaristen« den Titel gab, war die vor allem
determinado temporal e geograficamente, que marcam estas posições
político-filosóficas. Os liberais pensam em uma arquitetura de critérios de
justiça que seja axiologicamente “neutra”, visando mediar a convivência das
diferenças culturais na sociedade contemporânea. No lado comunitarista se
acentua uma precedência ou necessidade do “bom” em relação ao “justo” ou
“correto”.
Portanto, o papel do comunitarista seria o de um hermeneuta, ou seja, de interpretar o contexto específico como forma de compreensão dos valores
e princípios que uma sociedade já carrega. Os liberais são vistos como
construtivistas, pois os princípios de convivência pautados na igualdade e
liberdade devem ser racionalmente construídos e depois aplicados. O ponto de
partida liberal, no entanto, é da construção racional atomística e sem atenção
necessária às modulações que a formação intersubjetiva do social e do político
podem dar a estes princípios.
No que tange aos liberais, a pretensão de neutralidade axiológica na
fixação dos critérios de justiça é uma cegueira, pois o tratamento igual e
respeito às diferenças é um ethos que já é pressuposto na sociedade moderna ocidental (FORST, 2010: 280). Além disso, pelo lado liberal, é necessário se
elaborar critérios abstratos e imparciais de justiça, o que carece de concreção
no enfrentamento de problemas reais de justiça que afetam as sociedades
ocidentais contemporâneas. O problema do liberalismo, segundo Taylor
(1994), é que ele seria incapaz de dar atenção satisfatoriamente às condições
culturais de reprodução de uma sociedade justa4. Se, para o comunitarista,
cada contexto já traz em si uma concepção substancial de justiça que não pode
ser criticada por fora, esta posição estaria impedida de transcender do
contexto e fugir do relativismo de sua análise, uma vez que, dar assentimento
aos valores de integração das sociedades torna impossível a fixação de
critérios que julguem a justiça ou injustiça desses valores, o que retira a
possibilidade de criticá-la. Além do mais, se coloca em questão também a
convivência entre diferentes sociedades, que na atualidade compartilham de
problemas comuns e estão em constantes trocas.
A porta de entrada para a crítica comunitarista, com Michael Sandel
(1982) e Charles Taylor (1994), em um primeiro momento, não tem relação
com as premissas contratualistas de Rawls, mas sim com a tese antropológica
individualista de fundo. Como afirma Sandel, “[o] pano de fundo para a
concepção utilitarista de Rawls aparece mais claramente em suas referências à
vida moral individual” (SANDEL, 1982: 166). Nos termos da crítica à
racionalidade instrumental, Honneth afirma que “a tradição liberal do
pensamento político foi marcada por uma falsa concepção de pessoa, na qual os sujeitos humanos são representados como portadores de decisão por cálculo
racional de ação e sem comunicação” (1993: 10).
No entanto, Sandel (1982) encontra dificuldade em fundamentar o
passo decisivo de sua crítica à teoria da justiça de Rawls, uma vez que, para
uma crítica político-teórica seria necessário se demonstrar que a concepção
reduzida de pessoa teria uma influência negativa no quadro normativo da
teoria da justiça. Do ponto de vista teórico esta transição não é natural, mas
deve ser justificada internamente. Neste ponto, Amy Gutmann critica a
posição de Sandel, inserindo a imagem histórica de modernidade que têm os
liberais (GUTMANN, 1993; 1994): com a queda da imagem tradicional de
mundo, na passagem para a modernidade, os homens passam a representar
diferentes concepções de bom, o que deve ser uma garantia universalmente
reconhecida.
Reconhecer e tratar os membros de alguns grupos de igual para igual parece agora exigir que as instituições públicas que reconheçam as particularidades culturais, ao invés de ignorar, pelo menos para aquelas pessoas cujo autoconhecimento depende a vitalidade de sua cultura. Esta exigência de reconhecimento político de particularidade cultural – estendido a todos os indivíduos – é compatível com uma forma do universalismo que leva em conta a cultura e o contexto cultural valorizado por indivíduos como entre os seus interesses básicos (GUTMANN, 1994: 5).
Dado isto, uma ordem liberal de iguais direitos e liberdades se
preocuparia em criar condições para que os indivíduos sejam capazes de
assim, a crítica deveria se concentrar mais nesta concepção histórica de
modernidade e menos na tese antropológica fundamental, que é também uma
marca da idade moderna. “A resposta da questão normativa, de como uma
sociedade moderna deve ser moralmente composta, não advém, por consequência, da escolha de um conceito adequado de pessoa humana, mas
sim da compreensão adequada do ponto de partida histórico” (HONNETH,
1993: 115).
Frente à constatação de que valores de uma comunidade não
conseguiriam mais criar integração moral nas sociedades contemporâneas, a
teoria política parte da diversidade cultural e da crescente diferenciação social
para a garantia das iguais liberdades dos indivíduos e sua contribuição para o
bem comum. Ou seja, a garantia da convivência em uma sociedade justa no
sentido liberal adviria, para Gutmann (1993), da ponderação das circunstâncias
históricas – do pluralismo – e menos de fundamentos antropológicos e morais.
Nesse sentido, se torna claro o motivo pelo qual, para os liberais, o
tema da justiça distributiva e a fixação da discussão sobre justiça nas esferas
econômica e política marcam o eixo do debate desde então. Sem a integração
moral, a questão importante para a liberdade passa a ser a ausência de
obstáculos externos à autorrealização individual, o que culmina na
concentração do debate em torno da autonomia privada e da liberdade
negativa na produção da autonomia pública e da integração social.
Se, por um lado, a crítica de Sandel (1982) é respondida por um
argumento histórico, por outro lado, no entanto, ela se sustentou justamente
no ponto a-histórico da posição original rawlseana. Segundo Sandel, “(...) a
teoria de Rawls é duplamente hipotética. Ela imagina um evento que, na realidade, nunca aconteceu, envolvendo tipos de seres que, na realidade, nunca existiram” (SANDEL, 1982: 105). Ou seja, o experimento mental da posição original de Rawls precisa pressupor um sujeito que é um ser não
situado e sem vínculo valorativo (Wertbindung). Após tal crítica, Rawls (1992)
tenta historicizar seu sujeito abstrato da posição original, afirmando se tratar
5 Tradução livre de:
“Die Beantwortung der normativen Frage, wie eine moderne Gesellschaft moralisch verfaßt sein soll, ergibt sich daher nicht aus der Wahl eines angemessenen Begriffs der
do homem com a experiência democrática ocidental. Com isso ele consegue
afastar também a crítica do sujeito descontextualizado de Sandel, apesar da
amplitude de sua análise.
A questão que resta ser respondida por Rawls, deixada de lado pelos
debatedores por se concentrarem na discussão da tese antropológica, é a
pergunta pela base moral da ação política na sociedade democrática, ou seja,
“(...) em que medida uma noção comum de bom precisa fazer parte dos
pressupostos motivacionais de tal sociedade democrática” (HONNETH, 1993: 136). Trabalhada de outra forma, se trata de perguntar pelo motivo que
convenceria os cidadãos de uma sociedade democrática a terem um projeto
comum, o que não pode ser explicado em termos simplesmente funcionais. O
sentido de comunidade e de objetivos comuns são vitais até mesmo em uma
sociedade liberal, pelo menos na manutenção da obrigação comum de
respeitar um procedimento de formação da vontade democrática (HONNETH,
1993; GUTMANN, 1994), pois “a realização dos objetivos que ela mesma
colocou com seus próprios princípios de justiça exige sempre a mobilização de motivos morais que só podem advir de um horizonte complementar de valores compartilhados em comum” (HONNETH, 1993: 137). Na verdade, há na posição liberal uma concepção moral de fundo, para tentar derivar o que é bem
comum, que, se levado a cabo, desconstrói o próprio sentido daquilo que é
comum a uma sociedade, a saber, a concepção de que um forte sistema de
garantias de liberdade individuais é capaz de manter tanto a integração social,
quanto a base normativa que marca os objetivos comuns de uma sociedade.
Em outras palavras, a construção liberal de princípios de justiça não explica a
integração social e a desconsidera em sua formulação teórica.
Tanto Alasdair MacIntyre (1993) quanto Michael Sandel (1982), ambos
comunitaristas, tentam responder à questão de qual fundamento moral das
sociedades democráticas ocidentais atuais com alto grau de diversidade.
6 Tradução livre de:
“(...) inwiefern eine gemeinsame Vorstellung des Guten zu den
motivationalen Voraussetzungen einer jeden demokratischen Gesellschaft gehören muß”.
7
Tradução livre de: “(...) denn die Verwirklichung der Ziele, die sie sich mit ihren eigenen
Gerechtigkeitsprinzipien selbst gesetzt hat, verlangt stets wieder die Mobilisierung von moralischen Motiven, die nur aus einem zusätzlichen Horizont gemeinschaftlich geteilter Werte
Porém eles caminham para lados distintos: o primeiro trabalha com o
patriotismo advindo da ameaça externa, enquanto o segundo se concentra na
solidariedade e ajuda na redistribuição econômica como pano de fundo. De
todo modo, o que há de comum entre eles e o desenvolvimento da posição
liberal, é que a questão central se volta às bases morais da sociedade
moderna. Há neste ponto uma intermediação entre as posições, uma vez que,
para responder as críticas, os liberais se esforçaram em historicizar sua
posição, enquanto os comunitaristas ampliaram o contexto para sociedades
mais diversificadas, para as quais a existência de um único ethos se torna discutível.
Charles Taylor intentou uma transformação dos termos do debate,
inserindo um campo de discussão que passa pela filosofia e teoria política
(HONNETH, 1993), com a intenção de se apreender melhor as sociedades
modernas. Para ele, apesar das aproximações entre liberais e comunitaristas,
há ainda uma clara disputa que se alarga por duas perspectivas. Do ponto de
vista ontológico, trataria de entender os acontecimentos do mundo social
através do atomismo ou do holismo. Do ponto de vista normativo, se colocam as posições individualista e coletivista para responder a pergunta de quem deve ter prevalência moral na constituição de uma sociedade política. Para ele,
as perspectivas são parcialmente dependentes. Ou seja, as premissas
ontológicas podem servir de pano de fundo na motivação e explicação da
questão normativa, mas não podem ser a única justificativa delas. Por outro
lado, a tomada de uma posição normativa é dependente da assunção de uma
das teses ontológicas de fundo. Taylor reformula a questão controversa do
debate, perguntando quais recursos morais devem ser vistos como necessários para se manter viva uma existência social diversificada. De acordo com a
premissa ontológica que se adota, deve-se responder a esta questão de formas
distintas: holistas responderiam que uma ligação valorativa comum é necessária para a integração moderna dos membros de uma sociedade; já os
Para Taylor, no entanto, o mais interessante desta discussão se situa
no ponto de encontro de liberais e comunitaristas que compartilham da
premissa ontológica do holismo. Após o que se chama de “virada contextualista” de Rawls, ambos os lados concordam que, sem um
determinado grau de conexão comum de valores propagados historicamente
nas formas de vida e na cultura, não é possível se garantir a capacidade
funcional da democracia moderna no que diz respeito à integração social
(HONNETH, 1993). A isto se junta outra convergência que não permitiria mais
o tratamento de liberais e comunitaristas como lados completamente opostos:
(...) a questão em comum agora é, a saber, até que medida a sociedade democrática liberal é dependente de um horizonte comum de valor, pois, com isso, ambas as posições estão conectadas para formular o conceito de uma comunidade pós-tradicional e democrática, que pode corresponder às exigências delineadas. (...) Eles não podem mais medir-se então simplesmente pela resposta à pergunta de se a preferência deve pertencer normativamente ao princípio liberal de liberdade ou a um bem coletivo, mas sim apenas à solução da questão de quais valores comuns precisam ser consideradas como pressuposições necessárias para a execução dos princípios liberais de liberdade e justiça (HONNETH, 1993: 168).
De certa forma, isso significa que os comunitaristas se voltam, nesta
nova formulação, às finalidades de uma sociedade liberal democrática. A
disputa, a partir de então, tem relação com o modo pelo qual se soluciona a
questão acima. O debate, portanto, parece se aproximar e se distanciar
simultaneamente, uma vez que as aproximações que se deram no seu
desenrolar serviram para marcar outros pontos controversos. De todo modo, o
seu desenvolvimento serviu de demarcador dos temas contemporâneos em
teoria política e da justiça.
8
Tradução livre de: “(...) wenn die gemeinsame Frage nunmehr nämlich lautet, bis zu welchem
2. A crítica de Honneth às teorias da justiça
A dissolução de alguns problemas e a aproximação das posições inauguram,
para Honneth (2009), uma nova discussão, tanto com a entrada do feminismo,
quanto com a exposição da cultura política da democracia procedimental, por
Habermas (1992), o que dá força e forma ao conceito de procedimentalismo
contemporâneo a partir de então. Para Honneth, o abismo entre teoria
filosófica e práxis política aumentou com o esgotamento do debate entre
liberalismo e comunitarismo (2009), a caminho das discussões de cunho
democrático-procedimentais. A questão da justiça social, basilar para se
discutir autonomia e igualdade de participação, é tratada desde então nos
termos da redistribuição econômica de bens. Tais princípios gerais de justiça
social são, para ele, destituídos de valor informacional para a práxis política,
tanto para os representantes políticos quanto para os movimentos sociais,
naquilo que tange a desafios complexos. Este problema não advém de um
descompasso temporal e tampouco pode ser resolvido por um esforço no
sentido de transformar princípios de justiça em ação política. Muito antes,
seria impossível derivar alguma orientação política de tais princípios, sem se
recorrer a outras regras adicionais, dado o grau de abstração dessas
formulações (HONNETH, 2009).
É importante ressaltar que Honneth (2009) não pretende descartar as
teorias da justiça de até então, mas apontar os limites estruturais daquilo que
ele chama de “procedimentalismo contemporâneo”, com vistas em dar um
passo a mais na discussão. Em sua análise do universo de premissas do
procedimentalismo contemporâneo, Honneth traça a existência de três pilares
não problematizados nessas teorias da justiça: o próprio esquema
procedimentalista fundamental, a ideia de justiça distributiva e a fixação no
Estado enquanto agência única de justiça. O esquema procedimental
fundamental entende-se como uma união entre o “princípio de forma”,
segundo o qual todos os princípios de justiça devem ser passíveis de ser
concebidos como resultado da formação comum da vontade, e seu
como forma de garantia da autonomia pessoal, individualmente pensada. Este
componente material asseguraria a participação livre dos indivíduos, uma vez que, para uma sociedade concebida nesses termos do procedimentalismo, a
liberdade seria a ausência de tutela externa e dependências pessoais, como
defende Honneth (2009). Para tais teorias, a justiça social, portanto, deve
cuidar da existência material mínima para que os indivíduos sejam livres e
persigam seus planos de vida sem a dependência dos parceiros de interação,
pois os vínculos sociais seriam limitações à liberdade individual.
Com a limitação do sentido e do papel do social nas teorias liberais –
algo que permanece no procedimentalismo – o conceito de justiça social se
fixou no paradigma da (re)distribuição de bens, do ponto de vista puramente
material. A garantia de que todos sejam capazes de realizar seus respectivos
planos de vida dependeria unicamente da ausência de limitações materiais, já
que as limitações políticas seriam resolvidas pelo procedimento democrático.
Uma vez que estas teorias precisam partir do sujeito geral descontextualizado
para tentar sacar os princípios gerais de justiça que podem ser ajustadas a
todas as sociedades, uma discussão sobre o papel das interações sociais na
formação dos indivíduos não está, mais uma vez, em questão para elas. Sua
dinâmica pressupõe, assim, uma concepção de sujeito não trabalhada, mas
que se funda na noção reduzida de autonomia pessoal individualisticamente
pensada. A tarefa material da justiça, nesses termos, seria assegurar a
distribuição de bens valorizados, permitindo igualmente aos membros da
sociedade a perseguição de suas preferências individuais (HONNETH, 2009).
O procedimentalismo contemporâneo precisa, segundo Honneth
(2009), se valer de experimentos mentais que fazem remissão a um acordo
original hipotético na construção de seus critérios de justiça. Na teoria de
Rawls (1992; 2002) este acordo se daria na posição original como ponto de
fixação de princípios distributivos, “(...) que pessoas livres e racionais,
preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição
representação atomística do social, como se todo indivíduo pudesse se despir
de suas visões de mundo e de seu contexto sem deixar de ser indivíduo
universalmente racional, e (ii) que tais teorias invertem o ponto de chegada
como ponto de partida, quando pressupõe a liberdade e autonomia do sujeito
que decide pelos princípios de distribuição, enquanto, na verdade, essas
características consistem no objetivo da justiça. Neste ponto, o
procedimentalismo contemporâneo se afasta mais uma vez da possibilidade de
orientação da práxis, quando pressupõe sujeitos livres e racionais capazes de
decidir a partir da perspectiva do todo social. O correto seria perguntar sobre
quais são as condições sociais, inclusive imanentes à interação social, para que
os indivíduos se tornem livres e iguais, ao invés de pressupor isso. Uma vez que
tal experimento mental não passa e não pode passar do plano hipotético, as
teorias da justiça procedimentais devem antecipar os resultados normativos
do procedimento. As condições de justiça na situação original devem ser
projetadas sem que os deliberantes tenham concordado com elas. Por isso a
teoria precisa antecipar os resultados normativos do procedimento como
forma de caracterizar e reafirmar as condições iniciais de autonomia pessoal.
Para Honneth (2009) ter o Estado como única agência de realização da
justiça parte de uma divisão moral, segundo a qual os cidadãos devem produzir
os princípios de justiça e o Estado democraticamente controlado deve
implementá-los. Se, por um lado, centralizar a responsabilidade pela justiça no
Estado é uma garantia contra a ditadura das virtudes (HONNETH, 2009), por outro lado, ela envolve o risco de se limitar a um conceito incompleto e pouco
poroso de justiça, pois reduz o debate às esferas de atuação do Estado, à
esfera pública. A defesa de Honneth não é de um intervencionismo estatal em
todas as esferas da vida, mas da ampliação da compreensão de justiça como
um fenômeno no mundo social e não como um experimento mental de
critérios de (re)distribuição de bens pelo Estado. Se a (in)justiça está nas
relações sociais, não pode a filosofia política e social limitar o debate ao
estabelecidas segundo normas cristalizadas nas instituições9 sociais existentes,
no sentido mais abrangente.
A crítica de Honneth explicita os problemas da inserção do
componente material dentro das premissas procedimentalistas, do modo como elas apareceram até então, que buscam corrigir os equívocos materiais
decorrentes da aplicação dos princípios formais abstratos. Esta concepção
superficial de justiça social como redistribuição é, para Honneth,
incontornável, já que as teorias da justiça liberais e procedimentais possuem
limites estruturais: elas não têm ferramentas para teorizar a desigualdade
social, a não ser enquanto exceção aos princípios de justiça abstratos e
formulados de maneira neutra. Como consequência, a tradição das teorias da justiça liberais e o procedimentalismo contemporâneo só podem tratar da
justiça social como uma exceção aos princípios de justiça abstratos em razão
de uma peculiaridade do contexto, ou como mínimo existencial para a garantia
da participação na formação da vontade política democrática, mas nunca
como cerne das questões de justiça. Para ambas, é a realidade que deve se
adequar à teoria, e não o contrário. Como a realidade apresenta entraves à
pureza teórica dos princípios abstratos de justiça, é necessário se criar
correções materiais.
Já em relação ao comunitarismo, pode-se dizer que o vínculo entre
teoria e práxis foi melhor problematizado, uma vez que existe teoricamente
uma abertura para a imanência do contexto. Por isso, segundo Honneth, o
comunitarismo chega mais perto da formulação real do problema (HONNETH,
1993), no entanto ele redunda em um relativismo que não permite uma crítica
desses contextos.
3. Justiça como reconhecimento
Assimilar a crítica de Honneth às teorias da justiça serve como porta de
entrada para se compreender a inserção que a teoria do reconhecimento tem
9
“Instituições sociais” tem, em Honneth, um sentido amplo, como, por exemplo: família,
no debate contemporâneo sobre a teoria e seu esboço de justiça. Se a crítica, a
fundo, consiste na objeção à existência de um sujeito fora do contexto,
Honneth tenta retomar o papel da sociedade na formação dos indivíduos e de
seu sentido de liberdade. A realização dos planos de vida depende da
(re)distribuição material, neste caso, somente em um segundo momento. Pois,
no plano mais fundamental, a possibilidade de sua execução guarda relação
originária com as condições sociais de reconhecimento recíproco. É o
reconhecimento10 que demarca o horizonte de possibilidades de persecução
dos planos de vida individuais (HONNETH, 2003).
Como herdeiro da Escola de Frankfurt, Honneth se insere no quadro
das teorias da justiça com base em uma teoria crítica da sociedade. Se, quanto
ao conteúdo, a teoria crítica de Honneth consiste em “uma forma alternativa
aos intentos dos liberais e dos comunitaristas de acomodar, numa concepção de Estado democrático de direito, as diversas e, em alguns casos, conflituosas demandas por reconhecimento (...) [pela] noção de política deliberativa de
Habermas” (COSTA E WERLE, 1997: 167), quanto ao método, tem-se, pelo menos para Habermas e Honneth11, a reconstrução normativa enquanto postura epistemológica diversa daquelas assumidas pelas duas posições
anteriores.
Não se trata nem de somente interpretar o contexto e nem de uma
restrita construção normativa externa, mas “a entrada de Honneth nesse
debate tem de ser entendida como uma tentativa de oferecer uma nova solução para o impasse estabelecido, ou seja, articular simultaneamente uma
teoria relacionada às práticas sociais e situações históricas concretas sem cair no ‘relativismo’” (WERLE E MELO, 2007: 18). Em Honneth, a teoria do reconhecimento intenta reposicionar a questão em debate, tanto para
depurá-la quanto para oferecer soluções ao problema. A suprassunção do conflito
entre princípios morais formais (ou seja, a posição liberal inicial) e uma
concepção ética substantiva (ou seja, comunitarista) consiste, para Honneth
10 O termo “reconhecimento” traz diversos equívocos sobre a teoria de Honneth. Aqui, não se
trata de reconhecimento como orientação moral, mas da própria descrição de como as demandas por justiça se articulam socialmente a partir de um sentimento de injustiça por um desrespeito moral. Cf. Honneth, 1994, 2000b.
(2003), no conceito de eticidade formal elaborado em sua teoria do
reconhecimento. Como afirma Forst, “no debate entre liberalismo e
comunitarismo mostrou-se, em diferentes lugares, que o conceito de reconhecimento fornece possibilidades conceituais para fazer uma mediação significativa entre ambas as posições” (2010: 328). Tanto na retomada do jovem Hegel para a elaboração de sua teoria do reconhecimento12, quanto na
reatualização da Filosofia do Direito de Hegel13, há uma manifesta tentativa de
Honneth de se posicionar neste debate reinserindo a filosofia hegeliana na
filosofia política contemporânea:
(...) independente se existiu, nessas abordagens, a tendência a um privilégio da ética em detrimento de um princípio moral formalista, do vínculo valorativo comunitário frente à liberdade individual, nunca foi de fato empreendida a tentativa de tornar a filosofia do direito de Hegel novamente fértil para o discurso da filosofia política (HONNETH, 2001: 814).
Não constitui objeto deste trabalho a explicitação detalhada da teoria
do reconhecimento de Honneth, mas sim como ela se insere na discussão com
as teorias da justiça. Como mencionado, esta relação se dá principalmente a
partir do conceito hegeliano de eticidade formal reatualizado por Honneth. Trata-se de uma concepção intermediária entre moral kantiana presente no
projeto atomista liberal, vista por Honneth como transcendental, e a ética
comunitarista, que tem a formação natural espontânea dos valores em uma comunidade como forma única de vida boa que não aceita crítica externa. Em
outros termos, é a tentativa de universalização da concepção de vida boa
historicamente presente em padrões existentes de relações intersubjetivas.
Diferente da moral universalista kantiana de respeito a todos como “fins em si
mesmos” e autonomia moral dos sujeitos, a eticidade formal se fixa nas
condições de autorrealização pessoal. Como afirma Honneth, “[o] conceito de
‘eticidade’ refere-se agora ao todo das condições intersubjetivas das quais se
12 Cf. HONNETH, 2003.
13 Cf. HONNETH, 2001, 2010a e 2011a.
14 Tradução livre de: “
pode demonstrar que servem à autorrealização individual na qualidade de
pressupostos normativos” (2003: 271-272). A partir da eticidade formal, ou seja, da concepção formal de vida boa, pode-se reconstruir as condições de
reconhecimento recíproco inscritas na própria realidade social. Isso porque se
opera uma inversão da relação entre moralidade e eticidade “tornando a
validade dos princípios morais dependente das concepções historicamente cambiantes da vida boa, isto é, das atitudes éticas” (HONNETH, 2003: 270). O conceito de eticidade formal pode ser visto como o passo a mais que Honneth (2000a; 2001; 2009) afirmou ser necessário para se fixar os critérios da análise
crítica imanente de um contexto concreto, o que as teorias da justiça liberais e
comunitárias seriam incapazes de realizar.
Em sua teoria do reconhecimento, a preocupação de Honneth é em se
fixar as bases que expliquem a formação da identidade pessoal e, por isso
também, o conflito social moral advindo dos diferentes anseios e planos de
vida. Para isso, Honneth realiza a leitura reatualizada de Hegel e lança mão da
psicologia social, para elaborar a “(...) teoria de uma mediação dialética entre a
individualidade e a universalidade em diferentes níveis de relações intersubjetivas” (FORST, 2010: 327). É dos diferentes padrões de relações sociais, historicamente construídos, que o conflito social pode emergir, como
já se adianta no subtítulo que define a Luta por Reconhecimento como a
gramática moral dos conflitos sociais (HONNETH, 2003). Em entrevista ao jornal Die Zeit em 2010, Honneth tenta sintetizar e exemplificar sua teoria do reconhecimento da seguinte forma:
Eu sou conhecido pela chamada teoria do reconhecimento, que significa que eu considero o conflito social como uma luta por afirmação, estima e respeito. Um bom exemplo é o movimento pelos direitos civis nos Estado Unidos ou o movimento das mulheres. No primeiro plano tratava-se de exigências materiais: a permissão, enquanto negro, para ir a uma apresentação de teatro ou, enquanto mulher, de exercer um cargo político. Na verdade, porém, esses conflitos tratam de uma luta por reconhecimento. Eu acredito que o conflito social pode ser reduzido a isso (HONNETH, 2010b15).
15 Tradução livre de:
A luta por reconhecimento tem um mecanismo determinado,
portanto, por um movimento dialético de negação e síntese daqueles
princípios fundamentais de cada padrão de reconhecimento recíproco. Em
resumo:
A ideia básica da gramática moral dos conflitos sociais parece ser simples. Os conflitos sociais emanam de experiências morais decorrentes da violação de expectativas normativas de reconhecimento firmemente arraigadas. Essas expectativas formam a identidade pessoal, de modo que o indivíduo pode se compreender como membro autônomo e individualizado, reconhecido nas formas de sociabilidade comum. Quando essas expectativas são desapontadas, surge uma experiência moral que se expressa no sentimento de desrespeito. O sentimento de desrespeito, por sua vez, somente pode se tornar a base motivacional de uma mobilização política se for capaz de expressar um ponto de vista generalizável, dentro do horizonte normativo de um grupo (WERLE E MELO, 2008: 190).
A ideia básica de eticidade formal significa tomar estes padrões e
instituições16 como critério da crítica, pois eles oferecem também o horizonte
da autorrealização individual, cujo malogro com base em um desrespeito (não
reconhecimento) enseja as demandas de justiça. Para analisar tais padrões já
inscritos historicamente nas instituições Honneth se vale, em sua obra tardia
(2011a), da chamada reconstrução normativa17, que seria capaz de explicitar as dimensões normativas presentes nas sociedades ocidentais. O seu sentido de
reconstrução é, como se pode imaginar pelo caminho tortuoso que segue a
teoria crítica, diverso do habermasiano, desde sua base teórica até a amplitude
de sua análise. Segundo Celikates:
vordergründig um materielle Forderungen: die Erlaubnis, als Schwarzer in eine
Theatervorstellung zu gehen oder als Frau Politikerin zu werden. Eigentlich aber handelten diese Konflikte von einem Kampf um Anerkennung. Ich glaube, dass sich alle sozialen Konflikte darauf reduzieren lassen“.
16
Em um primeiro momento (HONNETH, 1994) se trata de padrões ou de reconhecimento, a saber, amor (relação mais concreta), direito (relação mais abstrata) e solidariedade (mediação do todo com a parte). Mais tarde, Honneth (2011) trabalha com tais padrões a partir da reconstrução de instituições sociais: relações íntimas na família e amizade, relações de troca no mercado de consumo e de trabalho e a formação da vontade democrática no Estado democrático (HONNETH, 2011). Neste segundo momento Honneth já admite uma leitura mais
ampla de Hegel e, por isso, tenta reatualizar as mesmas instituições sociais da Filosofia do
Direito (Cf. “Autor”, 2016).
Axel Honneth pode ser descrito como um “hegeliano de esquerda”. Uma “reconstrução normativa” teria que tentar descobrir “aqueles ideais normativos na realidade social de uma dada sociedade, os quais, por isso, se oferecem como pontos de referência de uma crítica fundamentada, porque eles representam encarnações da razão social” (2009: 19018).
O modelo de reconstrução de Honneth é mais próximo daquilo que se
elabora na ideia de uma crítica interna das instituições sociais em sentido
amplo (HONNETH, 2001), caracterizado pelo mecanismo de transcendência da
imanência, a partir da noção de excedente semântico de validade19. Trata-se da defesa de que a reconstrução dos princípios normativos racionais já presentes
em uma dada realidade social podem ser sempre, uma vez mais, efetivados no
sentido de incluir mais uma diferença. Ou seja, a reconstrução é crítica quando
“(...) o teor normativo apresenta um ‘excedente de validade’ diante das
institucionalizações realmente existentes que, portanto, não realizaram as primeiras por inteiro, mesmo quando isso vale para elas melhor que as respectivas instituições antecessoras” (CELIKATES, 2009: 19020). Com as discussões sobre reconhecimento, Honneth dá sequência à tendência iniciada
por Habermas em Faticidade e Validade (1992), segundo a qual a teoria crítica passa a se dedicar mais intensamente ao debate em filosofia política e teoria
da justiça. Neste sentido, tem-se a preocupação de se formular uma teoria
crítica da justiça, a qual, para Rainer Forst, deve ser realizada da seguinte
forma:
As normas que se devem distinguir como justas precisam ser tanto imanentes ao contexto quanto transcendentes a ele. Precisam reivindicar validade [Geltung] para uma comunidade particular e suas autocompreensões e instituições específicas, mas ao mesmo tempo se apresentar como um espelho crítico moral para essas autocompreensões e instituições (FORST, 2010: 10).
18 Tradução livre de:
“Axel Honneth (...) kann als »linkshegelianisch« bezeichnet werden. Eine »normative Rekonstruktion« müsse versuchen, »an der sozialen Wirklichkeit einer gegebenen Gesellschaft diejenigen normativen Ideale freizulegen, die sich als Bezugspunkte einer begründeten Kritik deswegen anbieten, weil sie Verkörperungen gesellschaftlicher Vernunft darstellen«“.
19 Cf. DE CAUX, 2013.
20
Tradução livre de: “(...) der normative Gehalt gegenüber den real existierenden
Institutionalisierungen einen »Geltungsüberschuss« aufweist, diese Ersteren also nicht zur Gänze
realisieren, auch wenn ihnen dies besser gelingt als den entsprechenden
A inserção do tema do reconhecimento no debate das teorias da
justiça contemporâneas compõe a produção mais recente de Honneth21: isso
significa dar atenção às relações intersubjetivas, na medida em que se trata de
uma teoria sobra a formação social dos indivíduos, tanto na produção de
pretensões morais válidas, quanto como critério da crítica. Ou seja, a teoria
social honnethiana possui o duplo caráter: de teoria crítica e de teoria política
fortemente normativa.
Enquanto teoria crítica, a teoria de Honneth se presta pouco a fazer
um diagnóstico de tempo com base concreta: Honneth faz uma leitura moral
do capitalismo22 e da experiência do socialismo23, ignorando a autonomia no
funcionamento sistêmico do mercado capitalista, por exemplo. Portanto,
apesar de criticar a fixação das teorias da justiça na (re)distribuição econômica,
Honneth também não problematiza as próprias relações de troca, que são
base para se pensar qualquer teoria da justiça. No desenvolvimento de sua
obra, Honneth tenta aprofundar suas bases históricas da formação e dinâmica
própria do conceito de eticidade formal e, como consequência da sua reformulação teórica, deixará de lado a dimensão conflituosa do social na sua
análise institucional hegeliana tardia24. Ou seja, abdica da análise do conflito e
da categoria da luta por reconhecimento em prol de uma concepção de
reconhecimento já conformada nas instituições sociais. A fixação na
reconstrução interna às instituições pode resultar em uma teoria
conservadora, já que pressupõe um certo assentimento à existência desta
instituição. A reconstrução procura racionalizar valores cristalizados que,
muitas vezes, poderiam ser criticados de fora. Como exemplo, pode-se discutir
em que medida se deveria fixar nos princípios presentes na instituição da
família ao invés de criticar a existência desta instituição. Do ponto de vista de
uma teoria da justiça, no entanto, a reconstrução normativa seria capaz de
analisar a luta pelo casamento igualitário, como impulso pela realização de um
excedente de validade presente na instituição da família, mais especificamente
21
Cf. HONNETH, 2000a, 2001, 2009, 2010a, 2011a.
22 Cf. HONNETH, 2011b.
23
Cf. HONNETH, 2015.
do matrimônio, já que a existência de pretensões mútuas, inclusive jurídicas,
entre duas pessoas que comungam de um certo tipo de relação amorosa, não
é algo que se dá somente entre homem e mulher; contudo o seu
reconhecimento social foi somente parcialmente completado, o que gerou, da
parte de quem tem esta pretensão negada, o sentimento de injustiça25 capaz
de articular a demanda pelo casamento igualitário. Esta análise de uma
injustiça recorrente e historicamente conformada na instituição é feita a partir
da ideia de má-formação26 ou de patologia social27, o que significa dizer que,
para Honneth, o papel dessas demandas por justiça é tornar saudável o
funcionamento das instituições sociais28.
Apesar de sua utilidade prática para a descrição de como e por que se
dá uma demanda por justiça, é de se perguntar quando e por que a teoria
crítica frankfurtiana se furtou de realizar diagnósticos de tempo e passou a se
dedicar a debates que, como o quadro da teoria da justiça, pressupõe e dão
assentimento ao estado de coisas existente ao invés de criticá-lo.
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25 HONNETH, 2000b
26 Cf. HONNETH, 2007b.
27 Cf. HONNETH, 2001, 2007a, 2011a; “Autor”, 2015.
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Sobre o autor
Thiago Aguiar Simim
Graduado e mestre em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorando em Sociologia na Goethe-Universität Frankfurt am Main. Professor Substituto no Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito da UFMG. Graduado e Mestre em Direito na UFMG. Pesquisa Sociologia e Direito no Doutorado. E-mail: thiago.simim@stud.uni-frankfurt.de.