Conflitos territoriais indígenas no Brasil: entre risco e
prevenção
Indigenous land conflicts in Brazil: between risk and prevention
Fernanda Frizzo Bragato
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. E-mail: fernandabragato@yahoo.com.br.
Pedro Bigolin Neto
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. E-mail: pbigolin@gmail.com.
Resumo
O artigo objetiva, por um lado, analisar a relação existente entre os direitos
indígenas e a garantia de territórios tradicionalmente ocupados à luz dos
avanços na legislação nacional e internacional. Por outro lado, analisa em que
medida a privação dos territórios aos povos indígenas e os conflitos gerados
configuram fatores de risco para crimes de atrocidade, conforme delineado
pela ONU no "Framework of Analysis for Atrocity Crimes – A tool for
prevention" no âmbito da doutrina da Responsabilidade de Proteger.
Palavras-chave: direitos territoriais indígenas; responsabilidade de proteger;
crimes de atrocidades.
Abstract
The article aims, on the one hand, to analyze the existing relationship between
indigenous rights and the guarantee of traditionally occupied territories in the
light of improvements both in national and international legislation. On the
other hand, it analyzes the extent to which deprivation of the territories of
indigenous peoples and the generated conflicts constitute risk factors for
atrocity crimes, as outlined by the UN in the "Framework of Analysis for
Atrocity Crimes - A tool for prevention" within the doctrine of Responsibility to
Protect.
Introdução
Desde a década de 1980, o marco regulatório indigenista brasileiro,
latino-americano e global vêm formalmente instituindo garantias de uma cidadania
diferenciada aos povos indígenas, baseada no reconhecimento de suas
especificidades culturais e no direito de conservá-las. No Brasil, com a
Constituição de 1988, os povos indígenas adquiriram também o direito à
demarcação das terras tradicionalmente ocupadas, rompendo com o modelo
jurídico assimilacionista. Apesar dos avanços legais em direção ao
reconhecimento de sua diferença cultural, os conflitos entre indígenas e
ocupantes de terras têm-se agravado nos últimos anos e sido marcados por
episódios de extrema violência. Este cenário tem se agravado diante da
morosidade na demarcação das terras indígenas, aliado à crescente
judicialização e, em muitos casos, à anulação de atos administrativos de
demarcação por parte do Poder Judiciário e, por fim, com as propostas de
alteração constitucional em curso no Congresso Nacional que, se
implementadas, implicarão a supressão das garantias conquistadas pelos
povos indígenas em 1988.
Entretanto, além de ser signatário de diversos instrumentos
internacionais (nível interamericano e global) que protegem os direitos dos
povos indígenas sobre seus territórios, sob a base do respeito à diversidade
cultural, o Estado Brasileiro submete-se às resoluções adotadas pela
Assembleia Geral das Nações Unidas, dentre as quais a Res. 60/1. 2005 World
Summit Outcome que estabelece a responsabilidade de cada Estado de
proteger suas populações contra genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e
crimes contra a humanidade, o qual se tornou o documento de maior
autoridade sobre a doutrina da responsabilidade de proteger (R2P)
(ROSENBERG, 2009).
O presente artigo objetiva avaliar o contexto do conflito territorial
indígena brasileiro à luz do recente desenvolvimento da doutrina da
responsabilidade de proteger (R2P). A R2P consiste em uma doutrina de
prevenção que fornece um conjunto de ferramentas políticas para que os
atrocidade. Ela reconhece que a prevenção é a melhor forma de proteção
porque os Estados-membro das Nações Unidas tem o compromisso primário
com a responsabilidade de proteger suas populações, sobretudo as mais
vulnerabilizadas. Já que as populações indígenas são extremamente
vulneráveis e os conflitos envolvendo a ocupação de seus territórios os têm
expostos à violência e privação de direitos básicos, justifica-se a relevância de
se analisar a responsabilidade do Estado e de apontar os caminhos para uma
atuação que previna crimes de atrocidade ou cesse seu cometimento.
Para atingir os objetivos traçados, são relatadas circunstâncias e
comportamentos que envolvem as disputas territoriais indígenas, coletadas
por meio de notícias, relatórios, matérias jornalísticas e jurisprudência com a
finalidade de avaliar a presença de fatores de risco para ocorrência de
atrocidades, conforme delineados no “Framework of Analysis for Atrocity
Crimes: a tool for prevention” (doravante chamado “Framework”) (UN, 2014).
Realizou-se, ainda, revisão bibliográfica e pesquisa documental (legislação e
jurisprudência) para problematizar as principais questões teóricas que o artigo
endereça: o marco normativo-jurisprudencial dos direitos territoriais indígenas
e os fundamentos e os modos de operação da responsabilidade de proteger.
Povos indígenas, território e marco regulatório
De acordo com o IBGE (2016), existem no Brasil cerca de 900 mil indígenas,
distribuídos em aproximadamente 240 diferentes povos (CEPAL, 2014).
Segundo Yrigoyen (2009, p. 12), o direito internacional identifica como povos
indígenas aqueles que descendem de povos pré-existentes aos Estados atuais
(feito histórico), conservam totalmente ou parcialmente as suas instituições
sociais, políticas, culturais, ou modos de vida (vigência atual), e que têm
autoconsciência da sua própria identidade (critério subjetivo). O conceito
coincide com o artigo 1,b, da Convenção n° 169 da OIT (2011), ratificada pelo
Um dos aspectos considerados fundamentais para a sua expressão
sociocultural é o território. Beltrão (2014) observa que o território é
compreendido como a
base sócio-espacial que, tradicionalmente, pertence a um grupo étnico e com a qual os membros do referido grupo mantêm laços de pertença e a partir dela se expressam cultural e socialmente retirando ou não deste território tudo, parte ou muito pouco do que é necessário para sua sobrevivência, dada a situação “colonial”. A relação de pertença ao território não é necessariamente empírica, pois alguns grupos perderam a base física em função do alargamento das fronteiras nacionais.
Território constitui espaços indispensáveis ao exercício de direitos
identitários desses grupos étnicos. Nas palavras de Beltrão (2014), trata-se de
uma “concepção ampla que diz respeito à vida, abrangendo não apenas bens
materiais, mas agregando a produção de ambiente cultural no qual são
desenvolvidas as formas de vida”, sendo que a materialização ou a base
espacial do território é a terra. Entretanto, o reconhecimento da relação
diferenciada dos povos com suas terras e sua noção de territorialidade a partir
dos referenciais do pluralismo e do direito ao reconhecimento (LIPPEL, 2014, p.
106) só foi introduzido, no Brasil, com a Constituição de 1988, e no direito
internacional, a partir da Convenção nº 169, da OIT.
Marco regulatório indigenista brasileiro
Durante o período colonial brasileiro, vigoravam duas políticas indigenistas
básicas: uma para os índios aldeados e considerados amigos e outra para os
índios inimigos a quem se impunha a escravidão lícita e a guerra justa
(PERRONE-MOISÉS, 1992). Os colonizadores portugueses não deixaram de
reconhecer a existência dos povos indígenas, mas com eles estabeleceram essa
dupla relação e, no concernente aos “amigos”, empreendeu-se desde sempre
uma política integracionista, “seja pelo casamento, pela catequese ou pela
integração como “trabalhadores livres” (SOUZA FILHO, 1998). Essa política
continuou refletindo-se na legislação dos séculos XIX e XX (SOUZA FILHO, 1992,
p. 134 e sg.), mas como observa Cunha (1992, p. 135), no séc. XIX debates
sobre a humanidade dos índios são reintroduzidos pela forte influência do
racismo científico em voga, que termina por declarar sua primitividade. Em
relação às terras indígenas, observa Cunha (1992), citando Mendes Jr., que na
Lei de Terras de 1850 elas não eram consideradas devolutas, dada a
característica originária de seu título, ou seja, decorrente do simples fato de
seus titulares serem índios. Todavia, na prática a legislação foi sendo
sistematicamente burlada por meio da utilização de diversos subterfúgios que
resultaram na espoliação das terras indígenas (CUNHA, 1992, p. 146). No início
do século XX, é criado o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) que, nas palavras de
Lima (1992, p. 155), constituiu-se no “primeiro aparelho de poder
governamentalizado instituído para gerir a relação entre os povos indígenas,
distintos grupos sociais e demais aparelhos de poder”. Durante a gestão do
SPI, que durou até 1967, a intenção, baseada na ideia de transitoriedade do
índio, foi transformá-los os índios em pequenos produtores rurais capazes de
se auto-sustentarem. Nessa direção, convergiu o Código Civil de 1916 que
consagrou a capacidade civil relativa dos índios, condicionada ao seu grau de
civilização (LIMA, 1992). O Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), que se seguiu à
extinção do SPI, continuou regulando a questão indígena sob o signo do
assimilacionismo e a aplicar aos povos nativos o regime tutelar. Nesse
contexto, a condição de indígena era reconhecida como uma situação
transitória, um estágio na caminhada civilizatória, que poderia ir desde o
estado de “isolados” até o estado de “integrados” (ARRUDA, 2001), conforme
o art. 4º da referida Lei.
Como observa Dantas (2014, p. 344), “o itinerário dessa história é
caracterizado pelo ocultamento e invisibilização da diversidade étnica e
cultural, portanto, da negação da pluralidade de povos e culturas
configuradoras da sociedade complexa e multicultural”.
Porém, com a promulgação da Constituição de 1988, altera-se
profundamente o paradigma sob o qual viria a ser regulada a questão indígena
no país. Na Constituição de 1988, “as terras tradicionalmente ocupadas pelos
diferentemente das anteriores, o texto tratou de reconhecer aos povos
indígenas o direito à diferença, ou seja, o direito de serem indígenas e de
permanecerem como tais. O texto inovou ao estabelecer, no art. 231, não
apenas o direito sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mas de afirmar
que esse direito é de natureza originária, ou seja, anteriores à formação do
próprio Estado brasileiro, existindo independentemente de qualquer
reconhecimento oficial. No Brasil, território étnico não deve ser confundido
com terra indígena (BELTRÃO, 2014). Terra indígena é a unidade territorial
definida juridicamente e criada por meio de procedimentos administrativos,
com vistas a garantir a determinado grupo um espaço geográfico para uso e
reprodução social (OLIVEIRA, 2012). Estes procedimentos administrativos
encontram-se previstos no Decreto nº 1.775, de 08/01/1996, e envolvem
identificação, delimitação, demarcação e registro destas terras.
O conceito de terras indígenas, mesmo que mais restrito que o
conceito de território, é, de qualquer forma, um desafio ao modelo
proprietário-civilista do direito brasileiro, em que a propriedade privada é um
espaço excludente e marcado pela nota da individualidade (DUPRAT, 2012). O
conceito de territorialidade é tão fundamental que partir dele os povos
indígenas definem a sua identidade, razão pela qual, observa Lippel (2014, p.
106), “o fim étnico-cultural das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
significa o reconhecimento constitucional do seu valor e importância enquanto
espaço geográfico para o abrigo e a promoção da etnia indígena”. Neste
sentido, Souza Filho (1998) explica que a extensão e os limites geográficos do
território são conhecidos por cada povo indígena, através de sua história real
ou mítica, e definidos por “suas relações internas de povo e externas com os
outros povos e na relação que estabelecem com a natureza onde lhes coube
viver”. Os direitos territoriais abrangem, assim, os direitos ambientais e
culturais indígenas, “porque significam a possibilidade ambiental de reproduzir
hábitos alimentares, a farmacologia própria e a sua arte e artesanato” (SOUZA
FILHO, 1998, p. 6)1.
1
Entretanto, o reconhecimento constitucional de direitos territoriais
dos povos indígenas no Brasil não condiz com uma maior sensibilidade e
realização de seus direitos humanos (BENATTI et al, 2015) e tampouco existe
sintonia entre o texto constitucional que dedicou um capítulo especial para os
índios, o braço executor do Estado e o Judiciário, que se cala ou simplesmente
não é obedecido (SOUZA FILHO, 1992).
Em relação ao Poder Judiciário, a tutela das demandas territoriais
indígenas não tem sido, em geral, favorável. Apesar de o Supremo Tribunal
Federal ter reconhecido a demarcação contínua da extensa área indígena
Raposa Serra do Sol (1.747.464 ha), no julgamento da Petição nº 3.388, e
assentado que os direitos dos povos indígenas sobre as terras que
tradicionalmente ocupam são originários, instituiu, ao mesmo tempo, a tese
do marco temporal, segundo a qual, verbis:
O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa — a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) — como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (BRASIL, 2011).
A disciplina relativa ao marco temporal tem sido aplicada em diversas
decisões judiciais tomadas pelos Tribunais Regionais Federais2 que visam a
anulação de demarcação de terras, ao argumento da inexistência de presença
2 No Tribunal Regional Federal da 1ª Região: 0000932-04.2006.4.01.3301/2006.33.01.000933-7.
indígena na área reivindicada em 5 de outubro de 1988. No STF, a aplicação
dessa tese para o fim de anular demarcações já realizadas também vem se
firmando, o que se verifica em dois recentes casos.
O primeiro deles é o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº
29.087, em que a 2ª Turma do STF, por votação majoritária, deu provimento
ao recurso e concedeu a segurança para declarar a nulidade do processo
administrativo de demarcação de terra indígena Guyraroká, bem como da
Portaria n. 3.219, de 7.10.2009. De acordo com o laudo antropológico que deu
suporte à identificação da terra indígena, a comunidade Kaiowá está na área a
ser demarcada desde os anos 1750-1760. Porém, nos anos 1940 começaram a
ser expulsos de suas terras por pressão dos fazendeiros que as adquiriram por
conta de políticas governamentais que ignoraram a presença indígena na área.
No entanto, a comunidade indígena permaneceu na área, trabalhando em
fazendas, praticando os hábitos de seus antepassados e mantendo laços com a
terra. Com base em uma interpretação questionável do laudo, a maioria dos
Ministros considerou que na data de 05/10/1988 os indígenas já não estavam
na posse da área reivindicada, ignorando o fato de o relatório antropológico
ter, também, informado que eles foram impedidos de ocupar regular e
tradicionalmente suas terras. Com isso, anularam o processo administrativo de
demarcação de TI Guyraroká. O mesmo entendimento já foi adotado
posteriormente no julgamento do Ag. Reg. no RE com Agravo nº 803.462 MS,
em 09/12/2014, no qual foi anulada a demarcação da TI Limão Verde, no
mesmo estado do Mato Grosso do Sul.
As decisões de ambos processos serão paradigmáticas para o futuro
desfecho de casos de demarcação de terras indígenas no Brasil, haja vista
ainda existirem vários processos judiciais discutindo demarcação de terras
indígenas em curso no STF e nos TRF´s, nos quais se observa a circunstância da
expulsão forçada das terras e a possível não ocupação efetiva (especialmente
nos moldes do direito civil) na data de 05/10/1988.
Outro problema que ameaça a proteção dos direitos territoriais
indígenas é o Projeto de Emenda Constitucional nº. 215/2000. Esta emenda
pretende alterar fundamentalmente o artigo 231 da Constituição Federal, em
restringir as futuras demarcações mediante aprovação pelo Congresso
Nacional e observância da efetiva ocupação em 05/10/1988 (tese do marco
temporal), vedar ampliação das demarcações já realizadas, retirar o usufruto
exclusivo dos índios sobre as riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes, permitir parcerias para fins de exploração econômica com
não-índios, bem como a permuta destas terras (Brasil, 2000).
Marco regulatório indigenista internacional
No que se refere à legislação internacional relativa aos direitos humanos dos
povos indígenas aplicável no Brasil, o §2º do art. 5º da Constituição de 1988
explícita e diretamente incorpora ao ordenamento jurídico doméstico os
direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte. Ademais, de acordo com
entendimento assentado pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário nº
466343/SP (Relator Ministro Cezar Peluzo em 03.12.2008), Tratados
Internacionais de Direitos Humanos têm status normativo supralegal (MAUÉS,
2013). E, por força do §3º do mesmo art. 5º, introduzido pela EC 45/14, tais
tratados serão equivalentes às emendas à Constituição quando aprovados, em
cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos
dos respectivos membros.
O reconhecimento da identidade diferenciada dos indígenas foi
reforçado, no âmbito internacional, pela adoção do Convênio 169 da OIT, em
1989, pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos
Indígenas, em 2007, e pela recente Declaração Americana sobre os Direitos
dos Povos Indígenas, em 2016, sendo que o primeiro foi ratificado pelo Brasil
em 2004 (Decreto nº 5.051) e os demais subscritos quando de sua adoção. Os
três documentos assinalam que os indígenas têm direito a exercer e a gozar
plenamente todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais
reconhecidos no direito internacional, sem nenhum tipo de obstáculos ou
discriminação. Ditos documentos prescreveram aos povos indígenas a
que pressupunha um necessário e inexorável destino de assimilação pela
cultura dominante. No que concerne aos direitos territoriais, todos protegem o
direito à propriedade das terras e territórios indígenas.
Explicam Galvis Patiño e Ramírez Rincón (2013) que, no marco da
legislação e da jurisprudência internacionais e comparada latino-americana3,
vem-se configurando um regime de proteção próprio da propriedade da terra,
do território e dos recursos naturais dos povos indígenas. Segundo sentenças
proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a dimensão
coletiva da propriedade dá-se no sentido de que a pertença não se centra em
um indivíduo senão no grupo e sua comunidade.4 Reconhece-se, ademais, que
para os povos indígenas a propriedade comunitária é indispensável para
garantir sua sobrevivência enquanto povo.5
Vale ressaltar trecho do “Relatório sobre os Direitos dos povos
indígenas e tribais sobre suas terras ancestrais e recursos naturais”, em que a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos explica detalhadamente a
conexão particular entre as comunidades indígenas, suas terras e recursos e a
existência mesma destes povos:
Dicha relación especial es fundamental tanto para la subsistencia material como para la integridad cultural de los pueblos indígenas y tribales. La CIDH ha sido enfática en explicar, en este sentido, que “la sociedad indígena se estructura en base a su relación profunda con la tierra”; que “la tierra constituye para los pueblos indígenas una condición de la seguridad individual y del enlace del grupo”; y que “la recuperación, reconocimiento, demarcación y registro de las tierras significan derechos esenciales para la supervivencia cultural y para mantener la integridad comunitaria”. En la misma línea, la Corte Interamericana ha señalado que “para las comunidades indígenas la relación con la tierra no es meramente una cuestión de posesión y producción sino un elemento material y espiritual del que deben gozar plenamente, inclusive para preservar su legado cultural y transmitirlo a las generaciones futuras”; que “la cultura de los miembros de las comunidades indígenas corresponde a una forma de vida particular de ser, ver y actuar en el mundo,
3 COLÔMBIA, Sentença C-180 de 2005, 1/03/2005; COLÔMBIA, Sentença C-891 de 2002,
22/10/2002; PERU, Sentença STC 01126-2011-HC/TC, de 11/09/2012; NICARÁGUA, Sentença No. 123 de 2000, de 13/06/2000.
4
Corte IDH, Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicaragua (Fundo, Reparações e Custas, Sentença de 31/08/2001, Serie C Nº 79, par. 149).
5
constituido a partir de su estrecha relación con sus territorios tradicionales y los recursos que allí se encuentran, no sólo por ser éstos su principal medio de subsistencia, sino además porque constituyen un elemento integrante de su cosmovisión, religiosidad y, por ende, de su identidad cultural”; y que “la garantía del derecho a la propiedad comunitaria de los pueblos indígenas debe tomar en cuenta que la tierra está estrechamente relacionada con sus tradiciones y expresiones orales, sus costumbres y lenguas, sus artes y rituales, sus conocimientos y usos relacionados con la naturaleza, sus artes culinarias, el derecho consuetudinario, su vestimenta, filosofía y valores. En función de su entorno, su integración con la naturaleza y su historia, los miembros de las comunidades indígenas transmiten de generación en generación este patrimonio cultural inmaterial, que es recreado constantemente por los miembros de las comunidades y grupos indígenas”. (CIDH, 2010, p. 22).
Assim como em nível legislativo, no marco da jurisprudência do
Sistema Interamericano de Direitos Humanos e de alguns países
latino-americanos, como é o caso da Colômbia, Nicarágua e Peru (como visto na nota
de rodapé nº 5), foram significativos os avanços no reconhecimento dos
direitos indígenas diferenciados. No entanto, no Brasil, os indígenas estão
longe de ter os direitos sobre suas terras protegidos ou mesmo reconhecidos.
Segundo o Relatório da ONU sobre a situação dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais indígenas (ANAYA, 2009, p. 21), podem-se ressaltar
os seguintes problemas relacionados a terra indígenas no Brasil: a) muitas
áreas de ocupação tradicional indígena ainda precisam ser demarcadas; b) a
ocupação não-indígena de suas áreas, problema prevalente fora da região
Amazônica e que inclui o agronegócio, tem gerado tensões especialmente no
Estado do Mato Grosso do Sul, onde os povos indígenas sofrem com a falta de
acesso às suas terra tradicionais, pobreza extrema e outras mazelas sociais
elevando o padrão de violência que é marcado por assassinatos de indígenas e
perseguição por atos de protesto; c) onde as terras já são demarcadas e
registradas, os direitos sobre ela e seus recursos são ameaçados pela invasão e
ocupação ilegais de não-indígenas, que promovem extração e outras
atividades, causando confrontos violentos.
Diante da contradição entre o marco normativo e seu
descumprimento, no qual se verificam inclusive tentativas de supressão do
– em larga parte suficientes – e procurar mecanismos que possibilitem uma
atuação adequada de um Estado responsável por suas populações. No âmbito
da ONU, o desenvolvimento recente da doutrina da responsabilidade de
proteger (R2P) constitui uma nova possibilidade para o incremento da
proteção dos povos indígenas, na medida em que estabelece parâmetros de
prevenção diante dos quais os Estados devem agir para impedir atrocidades
que, neste caso, se relacionam intimamente com a privação territorial.
A responsabilidade de proteger (r2p) e a prevenção de atrocidades
Refletindo sobre as experiências internacionais de intervenção no Kosovo,
onde a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) agiu sem o mandato
do Conselho de Segurança da ONU (CSNU), e de não intervenção em Ruanda,
que resultou num genocídio, Kofi Annan escreveu um artigo no jornal The
Economist intitulado “The Two Concepts of Sovereignty” (1999a), cujo
conteúdo seria novamente mencionado em seu relatório anual à Assembleia
Geral da ONU alguns dias depois, momento em que clamou por um novo
consenso internacional apto a lidar com a realidade de ampla violação de
direitos humanos (1999b). Em ambos, trouxe novos elementos para conceituar
a soberania nacional de modo a afirmar a necessidade de busca de critérios
mais objetivos para uma intervenção, sem que isso acarrete necessariamente
no uso da força.
O ex-secretário geral da ONU reconheceu que as forças da globalização
e da cooperação internacional estão redefinindo a soberania dos Estados para
concebê-los como instrumentos que servem a seus povos, e não o contrário.
Portanto, se no plano internacional a soberania de um Estado deve ser
respeitada por outros, no plano doméstico vai desvelar uma série de
responsabilidades dos Estados para com seus integrantes (Evans; Sahnoun,
2002, p. 102)6.
6 Para uma melhor compreensão da soberania como responsabilidade, ver: DENG, Francis
Em 2001, a International Comission on Intervention and State
Sovereignity (ICISS), formada no Canadá, lançou um relatório com base nestas
contribuições da noção de soberania no intuito de resolver o dilema de que “se
há um direito à intervenção, como e quando ele deveria ser exercido, e sob a
autoridade de quem” (ICISS, 2001, p. VII). Este documento trata da questão
alterando o foco do “direito de intervir” para a “responsabilidade de
proteger”, optando por “uma avaliação das questões do ponto de vista
daqueles que buscam ou necessitam de apoio, ao invés daqueles que
poderiam estar considerando a intervenção” (ICISS, 2001, p.17).
De acordo com Evans e Sahnoun (2002, p. 101), tal mudança de
perspectiva traz três vantagens. A primeira é que, enfatizada a
responsabilidade, e não a intervenção, “o holofote está de volta onde sempre
deveria estar: no dever de proteger as comunidades de assassinatos em
massa, as mulheres de estupros sistemáticos e as crianças da fome”. A
segunda é afirmar que o Estado em questão é quem detém a responsabilidade
primária e que a comunidade internacional somente agirá como responsável
na falha manifesta (seja por inaptidão, seja por falta de vontade) do Estado. A
terceira é que a responsabilidade de proteger é um “conceito guarda-chuva”,
contendo em si não só a “responsabilidade de reagir” mas também a
“responsabilidade de prevenir” e a “responsabilidade de reconstruir”, o que
redimensiona os debates acerca de intervenções humanitárias.
A noção de que o Estado é um garante cujas leis devem existir para o
benefício de seus indivíduos não é nova. Em verdade, Hugo Grotius já a
defendia, inclusive sustentando o cabimento de fazer guerra para prevenir
maus-tratos do Estado em face de seus cidadãos (STAHN, 2007, p. 111). No
entanto, vincular proteção à responsabilidade é dar um passo além, ainda mais
quando a responsabilidade está compreendida como uma obrigação positiva
contra violações massivas de direitos não só dentro do Estado, mas no âmbito
da comunidade internacional (STAHN, 2007, 115).
A grande aceitação do relatório se deu muito em função da forma pela
qual trata a controversa questão da legalidade e da legitimidade de
intervenções não autorizadas (STAHN, 2007, p. 104). Consta no documento a
oferecer respostas exatas nos casos em que ele falha, deixando possibilidade
para que também assumam uma postura rígida a Assembleia Geral,
organizações regionais e coalizões de Estados (ICISS, 2001, p. 53-55). Para
intervir, contudo, foi escrito que todos devem seguir os seguintes critérios:
justa causa, intenção correta, último recurso, proporcionalidade dos meios e
perspectiva razoável de sucesso (ICISS, 2001, p. 31-37). Estes critérios de
legitimação de intervenção trazidos também são antigos e, à exceção do
último, remontam à doutrina da guerra justa7 (STAHN, 2007, p. 114).
Por meio do “World 2005 Summit Outcome”, os Estados-membro das
Nações Unidas assumiram o compromisso primário com a responsabilidade de
proteger (R2P) suas populações contra crimes de atrocidade, assim
considerados o genocídio (Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de
Genocídio, de 1948), crimes de guerra (Estatuto de Roma), crimes contra a
humanidade (Estatuto de Roma) e limpeza étnica (UNITED NATIONS, 2005). O
compromisso foi formalizado nos parágrafos 138 e 139 do Documento Final do
Encontro Mundial 2005 da 60ª sessão da Assembleia Geral da ONU.
A natureza jurídica deste compromisso é motivo de amplas discussões
acadêmicas e políticas, não se chegando a um consenso. Os autores afirmam
se tratar de uma norma emergente, de uma norma que pode tornar-se parte
do direito internacional consuetudinário e de uma soft law.8
Classificá-la como norma emergente acarreta complicações, “posto
que a responsabilidade foi desenvolvida não dentro de um vácuo normativo,
mas sim dentro de um quadro normativo complexo” (PAYANDEH, 2010, p.
485). A partir disso, de acordo com Payandeh (2010, p. 482), tem-se que
a responsabilidade de proteger é construída como uma moldura abrangente para a prevenção e contenção de violações massivas de direitos humanos. Como tal ela não pode tornar-se uma norma jurídica em sua totalidade. Elementos pontuais do conceito
7 Conjunto de preceitos e regras que que legitimam moralmente uma guerra, cuja origem se
encontra em Agostinho de Hipona, mas também verificada em autores como Tomás de Aquino, Hugo Grotius, Juan Ginés de Sepúlveda, Immanuel Kant e John Rawls. Foi utilizada ao longo da história para, dentre outras oportunidades, legitimar as Cruzadas e os conflitos com povos originários das Américas.
8
possivelmente poderiam ser traduzidos em direitos e deveres pontuais. Mas isto não faz do conceito enquanto tal um candidato adequado para uma norma jurídica.
É problemático atestar que ela já integra o direito internacional
consuetudinário, pois sequer existia há mais de duas décadas, como também
demandaria uma análise de práticas gerais de atores estatais, o que não se
pode verificar, ou acompanhadas pela opinio juris, o que carece de
objetividade (PAYANDEH, 2010, p. 488-490). Ainda assim, nada impede que ela
futuramente seja parte do direito internacional consuetudinário.
Deste modo, pode-se afirmar, a partir desta perspectiva, que
responsabilidade de proteger não se enquadra nas fontes clássicas do direito
internacional (convenções internacionais, costumes internacionais e princípios
gerais do direito) (STAHN, 2007, p. 101). Consequentemente, ela não possui
força vinculante, mas possibilita sanções diplomáticas, políticas e econômicas
pelos Estados em casos de grave violação de direitos humanos (PAYANDEH,
2010, p. 508) e, caso deliberado pelo Conselho de Segurança da ONU, formas
mais incisivas de intervenção.
Mesmo sem poder vinculante, discursos e condutas de atores globais
para a proteção de civis já estão sob sua influência e, mesmo sem status de
norma jurídica rígida, possui conteúdo normativo. De acordo com os critérios
apontados por Chinkin (2000, p. 30), a R2P pode ser classificada como uma soft
law, pois articula-se de forma não vinculante, contém termos vagos e
imprecisos e emana de corpos destituídos de autoridade de criação de leis
internacionais. A responsabilidade também vale-se de normas e princípios já
existentes, orientando sua interpretação para transformar as decisões jurídicas
e políticas a partir do conjunto de seus diferenciados aportes sobre soberania
e responsabilidade, cooperação internacional, intervenção e prevenção de
atrocidades.
De qualquer forma, através do 2005 World Summit, a comunidade
internacional comprometeu-se a encorajar e auxiliar os Estados para a
consecução da proteção, caso os Estados falhem em cumprir sua
responsabilidade. Porém, este documento recua, quando comparado ao
decisiva deve se dar através do CSNU, mediante uma análise casuística e em
conformidade com os capítulos VI, VII e VIII da Carta das Nações Unidas. Tal
respeito é fundamental pois, conforme Cassese (1999, p. 25), referindo-se às
possibilidades posteriores à intervenção da OTAN na guerra do Kosovo, “uma
vez que um grupo de Estados poderosos tenha se dado conta que pode
escapar livremente das restrições da Carta da ONU e recorrer à força sem
nenhuma censura, exceto a da opinião pública, uma caixa de Pandora pode ser
aberta”.
Isto não impede, importante frisar, que meios pacíficos ainda sejam
empregados por outros atores, baseados na noção de cooperação
internacional. Apesar do retrocesso textual, seu conteúdo adquire maior peso
por ter sido contemplado em uma Assembleia Geral da ONU e pode ser visto
como um ganho político para a comunidade internacional, já que fortalece o
consenso acerca da doutrina.
Em 2009 o Secretário Geral da ONU, Ban Ki-moon, lançou um relatório
que resume e estabelece a estratégia de aplicação da R2P, aprimorando os
parágrafos do World Summit Outcome. Tal estratégia é composta por três
pilares. O primeiro pilar aborda a responsabilidade do Estado de proteger a sua
população; o segundo pilar estabelece o dever da comunidade internacional
de ajudar os Estados a cumprirem sua responsabilidade de evitar e proteger; o
terceiro pilar endereça à comunidade internacional a responsabilidade de
tomar respostas oportunas e decisivas através de meios pacíficos e, se
necessário através de outros meios mais fortes, de uma forma consistente com
lei internacional. Os pilares um e dois constituem elementos cruciais na
prevenção de crimes de atrocidades em massa (KI-MOON, 2009).
Rosenberg (2009) explica que a base legal da responsabilidade dos
Estados pela prevenção (pilar 1 da R2P) repousa nas obrigações positivas
instituídas pelo direito internacional dos direitos humanos de impedir agentes
estatais e não-estatais de infringir dano sobre os direitos humanos de outra
pessoa. Esta obrigação exige que os Estados tomem medidas razoáveis para
impedir que a violação ocorra e baseia-se na noção de due diligence (diligência
devida), que foi expressamente incorporada à responsabilidade de impedir o
diligência devida implica uma obrigação de meio e não de fim, o que significa
que se o Estado tomou todas as medidas a seu alcance para prevenir
atrocidade, caso ela venha a ocorrer o Estado não será responsabilizado. Vista
sob a perspectiva da devida diligência, a prevenção torna-se o espelho da
proteção. Ademais, este deslocamento conceitual atenta para a própria forma
com que são construídas as relações intraestatais. Conforme Gerber (2011):
O ajuste das perspectivas da política global para prevenir ao invés de simplesmente responder às ameaças de atrocidades em massa tem levantado questões mais profundas sobre as dinâmicas internas que conduzem à violência da atrocidade. Ela aponta abertamente às abordagens de governança interna de Estados específicos e pergunta como opções domésticas poderiam incitar ou ativar o potencial de genocídio e outras atrocidades em massa.
A R2P consiste em uma doutrina de prevenção – frise-se – e, embora
seja entendida por alguns como outro nome para intervenção humanitária, ela
surge justamente para repensá-la. Verifica-se que ela fornece um conjunto
muito mais amplo de ferramentas políticas para afastar a necessidade de tal
intervenção ao reconhecer que a prevenção é a melhor forma de proteção.
Consequentemente, equipará-las é incorrer necessariamente em erro, tendo
em vista que a intervenção humanitária se define como
a ameaça ou uso da força além das fronteiras estatais por outro Estado (ou um grupo de Estados) visando prevenir ou acabar com violações graves e generalizadas dos direitos humanos fundamentais de indivíduos que não sejam seus próprios cidadãos, sem a permissão do Estado em cujo território a força é empregada (HOLZGREFE, 2003, p.18).
Para Bellamy (2014), a doutrina da R2P tem contribuído para o
surgimento de um novo regime internacional de proteção que tem
transformado a forma de atuação do próprio Conselho de Segurança da ONU:
Visando reforçar os meios de atuação preventiva, a Organização das
Nações Unidas lançou em julho de 2014 o “Framework of Analysis for Atrocity
Crimes: a tool for prevention”. Este documento contém ferramentas de análise
para avaliar a configuração de fatores de risco para a ocorrência de crimes de
atrocidade e não necessariamente para apurar evidências de que o crime está
em curso. Ele lista uma série de oito fatores de risco comuns para todos os
crimes, além de dois fatores de risco próprios para cada crime, totalizando
quatorze (não enumera fatores de risco próprios para limpeza étnica). O
objetivo é levantar o máximo de informações possíveis para o Estado, num
primeiro momento, ter condições de agir de forma preventiva.
Segundo o documento, a avaliação de risco exige uma coleta
sistemática de informações precisas e confiáveis, baseadas nos indicadores e
fatores de risco que ele identifica. Fatores de risco são condições que
aumentam o risco de suscetibilidade a consequências negativas, que inclui
comportamentos, circunstâncias ou elementos que criam um ambiente
favorável para o cometimento de crimes de atrocidade ou indicam potencial
probabilidade ou risco de sua ocorrência. Por sua vez, os indicadores são
diferentes manifestações de cada fator de risco e, por isso, ajudam a
determinar o grau de presença de cada fator de risco (UNITED NATIONS,
2014). Quatro pontos devem ser levados em conta na sua aplicação: nem
todos os fatores de risco precisam estar presentes para se avaliar se há um
risco significante de ocorrência de atrocidade; quanto mais fatores de risco
estiverem presentes, maior o risco de sua ocorrência; os fatores e indicadores
não possuem hierarquia, de modo que sua importância será diferente de
acordo com cada contexto; por fim, há necessidade de flexibilidade na
consideração de todos os elementos e situá-los em uma análise contextual,
política, histórica e cultural mais ampla. Os crimes de atrocidade não
necessariamente ocorrerão caso presentes os fatores de risco. Todavia, eles
raramente são cometidos na ausência de todos ou de muitos dos fatores nele
Conflitos territoriais indígenas e risco de atrocidades no brasil
Considerando-se o “Framework” e os eventos que cercam os conflitos
territoriais indígenas no Brasil, passaremos a tratá-los e a verificar em que
medida podem ou não se encaixar nas situações de risco para crimes de
atrocidade enumeradas neste documento.
Primeiramente, cabe mencionar que os conflitos envolvendo as terras
indígenas no Brasil não são fatos isolados, recentes ou desconexos entre si,
embora as regiões onde eles ocorram guardem suas particularidades. Observa
Benatti et al. (2015) que, na Amazônia, a questão da terra é marcada por:
grave histórico de conflitos e violência no campo; altos índices de degradação
ambiental; caos fundiário, onde o Poder Público federal e estadual não tem
pleno conhecimento sobre quais terras são públicas, quais estão sob o domínio
particular de forma regular, e quais representam a grilagem, isto é, quais terras
públicas foram indevidamente apropriadas por particulares.
O Relatório da Comissão Nacional da Verdade (BRASIL, 2014) relata
com detalhes a espoliação das terras indígenas pelo Estado Brasileiro e a
consequente invasão de brancos como uma prática corrente entre 1930 e
1960, tendo o Estado do Paraná, especialmente durante o governo de Moysés
Lupion, como um dos principais focos. Mas isto também ocorreu de forma
sistemática no Mato Grosso do Sul:
ocorrido no sul do antigo estado do Mato Grosso, traz anexa lista de nomes de beneficiados com terras indígenas e suas vinculações com políticos, juízes, militares e funcionários públicos (BRASIL, 2014).
Durante estes processos de ocupação, verificaram-se inúmeros atos de
violência contra a integridade física e cultural dos povos indígenas. No
depoimento prestado pelo Guarani Damásio Martinez, é possível verificar,
além das memórias da violência, a atuação das próprias instituições estatais de
repressão no apoio da expropriação territorial:
Até 1959, a gente ficou em Sanga-Funda, perto de Guabiroba, perto do rio Paraná [atual município de Foz do Iguaçu] [...] Foi ali que meu pai foi morto. Quando deram os tiros eu já vi o meu pai deitado no chão [...]. Os Brancos já tinham vindo pedir para meu pai as terras e o meu pai não quis dar. Ele era tipo um cacique [...]. Foram os Brancos que mandaram o jagunço. Depois que o meu pai morreu as pessoas começaram a sair. Uns foram para Mato Grosso, outros para Paraguai, outros para o centro. De manhã eu segui e depois eu fui depor, para contar o que é que aconteceu com meu pai. Quando eu estava perto da Bela Vista eu cruzei com os policiais. [...] E me levaram na delegacia. E falaram para mim que eu é que tinha matado meu pai. [...] E me prenderam. E eu falei que não tinha sido eu, e o policial disse que ouviu falar que tinha sido eu. Eu jamais faria isso com meu pai. Depois de seis meses eu saí. Quando eu voltei todo mundo já tinha ido embora (BRASIL, 2014).
Somente durante o período da ditadura militar brasileira (1964-1985),
o Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) contabilizou a morte de
3.500 indígenas Cinta-Larga (RO), 2.650 Waimiri-Atroari (AM), 1.180 Tapayuna
(MT), 354 Yanomami (AM/RR), 192 Xetá (PR), 176 Panará (MT), 118 Parakanã
(PA), 85 Xavante de Marãiwatsédé (MT), 72 Araweté (PA) e mais de 14 Arara
(PA). No entanto, o Relatório estima que a quantia de indígenas assassinados
“deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito
restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a
quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas” (Brasil,
2014). No Relatório Figueiredo, citado pela Comissão Nacional da Verdade,
relata-se que o governo brasileiro fez uso desde a doação de açúcar com
adição de estricnina, bombardeio aéreo com dinamite, e inclusive o emprego
de avião com o vírus da varíola, da gripe e do sarampo (Brasil, 2014). Em
passado recente, o próprio STF reconheceu a existência do crime de genocídio9
contra o povo indígena Yanomami ocorrido no ano de 1993, no julgamento do
Recurso Extraordinário nº 351487/RR, relatado pelo Ministro Cesar Peluzo e
julgado em 03 de agosto de 2006.
O Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) demonstra não
apenas que os povos indígenas foram sistematicamente vítimas de espoliação
de terras e de crimes contra sua vida e integridade física, mas também a
ausência de reparação e punição aos perpetradores. A forma como as terras
indígenas foram sendo expropriadas em favor da exploração econômica e
ocupação por não-índios, processo intensificado desde a segunda metade do
século XX com as políticas estatais de “colonização” de suas áreas, combinada
com violações de direitos humanos básicos, como vida e integridade física e
cultural dos índios, convergem para a caracterização do que o “Framework”
descreve como indicadores de fatores de risco nos itens 2.1, 2.2, 2.7 e 4.2.10
Apesar dos esforços da Constituição Brasileira de 1988 e da
internalização de diversos instrumentos internacionais protetivos, que levaram
à demarcação de muitas terras indígenas (ANAYA, 2009)11, os registros de
violência envolvendo disputas de terras, sobretudo sobre aquelas “em estudo”
ou “em identificação”, continuam existindo, aliados à situação de pobreza e
insuficiência de recursos para subsistência de muitos povos indígenas.
9 O conceito de genocídio encontra-se definido no art. II da Convenção para Prevenção e a
Repressão do Crime de Genocídio e consiste basicamente em atos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, tendo como exemplos: “assassinato de membros do grupo”; “dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo”; “submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial”; “medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo” e “transferência forçada de menores do grupo para outro grupo”.
10 Indicador de risco 2.1: Sérias restrições ou violações de direitos humanos ou do direito
humanitário no passado ou no presente, particularmente no caso de assumir um padrão precoce de conduta e tendo como alvo grupos, populações ou indivíduos protegidos; Indicador de risco 2.2: Atos passados de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou sua incitação; Indicador de risco 2.7: Politização ou ausência de processos de reconciliação, ou da justiça de transição após o conflito; Indicador de risco 4.2: Interesses econômicos, incluindo os baseados na salvaguarda e o bem estar das elites ou grupos de identidade ou controle sobre a distribuição dos recursos (UNITED NATIONS, 2014).
11 Segundo a FUNAI (2016), atualmente há 467 Terras Indígenas (TI’s) regularizadas, 28 TI’s
A população indígena mundial é composta por aproximadamente 370
milhões de pessoas - em torno de 5% do total mundial – e constitui mais de um
terço das 900 milhões de pessoas que vivem em extrema pobreza em áreas
rurais do mundo (UNITED NATIONS, 2015a). A mesma realidade foi registrada
no “Relatório sobre a situação dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais indígenas” (ANAYA, 2009). Em missão ao Brasil de 18 a
25/08/2008, James Anaya alertou que “de acordo com todos os indicadores, os
povos indígenas no Brasil sofrem com precárias condições de saúde,
subnutrição, dengue, malária, hepatite, tuberculose e parasitoses, que são
frequentes causas de morte.”
Embora os indicadores sociais dos povos indígenas do Brasil sejam
escassos, indicadores de suicídio e mortalidade infantil demonstram o quadro
perverso de vulnerabilidade em que se encontram. O Relatório da Violência de
2014 do CIMI aponta que “[n]o período entre 2000 e 2014, pelo menos 707
indígenas cometeram suicídio no Mato Grosso do Sul. O estado, mais uma vez,
foi o que mais teve ocorrências de suicídio registradas no último ano” (CIMI,
2014). Conforme dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI),
somente no ano de 2014 houve 135 casos de suicídios entre os povos
indígenas, sendo 48 somente no estado do Mato Grosso do Sul. A faixa etária
com maior número de casos no MS é a dos 15 aos 19 anos (36%), seguido de
casos na faixa de 10 a 14 anos (17%) (CIMI, 2014).
Outro indicador que atesta o grau de vulnerabilidade dos povos
indígenas é o da mortalidade na infância, pois está relacionado às más
condições de saneamento e de atenção básica à saúde. O Relatório de 2014 do
CIMI apresentou dados obtidos novamente da SESAI que apontam um total de
785 mortes de crianças entre 0 e 5 anos em 2014. Como exemplo, a taxa de
mortalidade do nascimento até cinco anos nos índios Xavante chegou a 141,64
por mil, enquanto que a média nacional registrada em 2013 pelo IBGE foi de
17 por mil (CIMI, 2014).
A pobreza aguda, desnutrição e ausência de segurança alimentar,
devastação ambiental que impede a produção de meios de subsistência e a
ocupação econômica dos indivíduos da comunidade, escasso acesso à saúde e
situações de instabilidade que colocam os indivíduos em um estado de
estresse tão elevado a ponto de gerar ambientes propícios para atrocidades, o
que vem indicado como fator de risco nos itens 1.7 e 1.9 do “Framework”12.
Aliado à situação de vulnerabilidade socioeconômica, os registros de
agressões e ataques contra a integridade pessoal e aos bens dos povos
indígenas são absolutamente atuais no Brasil, particularmente frequentes no
Mato Grosso do Sul. É possível perceber, no Relatório do CIMI (2014), que no
período de 2003 a 2014, 754 indígenas foram assassinados em solo brasileiro,
em uma média anual de 68 casos. Destes assassinatos, 390 ocorreram no Mato
Grosso do Sul, totalizando 51% dos assassinatos de indígenas. Também se
evidencia que o número de homicídios cometidos em um ano quase triplicou.
Enquanto em 2013 foram registrados 53 casos no Brasil, no ano seguinte
foram 138 (CIMI, 2014). Alguns dos casos registrados dizem respeito ao
assassinato de lideranças indígenas, como é o caso da Kaiowá Marinalva
Manoel em 31 de outubro de 2014, o que demonstra o caráter de eliminação
dos indivíduos que conduzem as pautas políticas dos povos indígenas. A ONU
Mulheres Brasil pediu às autoridades rigor e celeridade na apuração da morte
da líder indígena e divulgou nota em que manifesta "extremo pesar pela
violência e pela truculência" com que ela foi morta (AGÊNCIA BRASIL, 2014).
O CIMI (2014) também registrou, em 2014, 31 casos de tentativas de
assassinato. Destas, 12 ocorreram no estado do Mato Grosso do Sul, sendo
novamente o estado com o maior número de ocorrências. A título
exemplificativo, destaca-se o caso de atentados a tiros contra a Terra Indígena
Pyelito Kue, enquanto a comunidade realizava seu “kotyhu” (reza tradicional).
Enquanto corriam para buscar abrigo, os tiros atingiam e rasgavam as lonas de
seus improvisados barracos. Um dos barracos da comunidade chegou a ser
incendiado e dias depois, motoqueiros voltaram a atacar a comunidade (CIMI,
2014).
O recrudescimento da violência contra os povos indígenas em 2015,
principalmente contra os Guarani e Kaiowá e Terena do Estado do Mato
12
Grosso do Sul, foi tema de nota pública emitida pela Anistia Internacional em
setembro de 2015. A nota denuncia que “em 29 de Agosto de 2015, um
membro da comunidade Ñanderu Marangatú do povo Guarani e Kaiowá,
Simião Vilhalva, foi morto nos ataques contra a comunidade, supostamente
por proprietários de terras e grupos paramilitares”. Além disso, destaca a
ocorrência de novos ataques contra outra comunidade Guarani e Kaiowá, o
Guyra Kambiý, mesmo após a visita de autoridades federais, incluindo o
Ministro da Justiça, em 02/09/2015. Por fim, informa que o Ministério Público
Federal do Mato Grosso do Sul determinou a abertura de um inquérito para
investigar proprietários de terras privadas e forças paramilitares contra os
Guarani e Kaiowá (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015). Menos de um ano após a
morte de Simião, no dia 14 de junho de 2016, um grupo de produtores rurais
cercou uma fazenda que havia sido ocupada dois dias antes por indígenas que
reivindicam a área correspondente à Terra Indígena Dourados Amambaipeguá
I, ocasionando um conflito armado do qual resultou o assassinato de Clodiode
Aquileu Rodrigues de Souza, um guarani de 26 anos. Na ocasião, outros cinco
índios ficaram feridos, entre eles uma criança de 12 anos, todos atingidos por
munições letais (EL PAÍS, 2016).
Os dados relativos aos ataques armados às comunidades indígenas
ocupantes de áreas reivindicadas, amplamente noticiados pela imprensa
brasileira e internacional, apontam para a presença do indicador de risco 7.8
(primeira parte) e 8.5 constantes no “Framework”13.
No que concerne à atuação das forças de segurança do Estado diante
dos ataques paramilitares às aldeias indígenas no Mato Grosso do Sul, o
Procurador da República Ricardo Ardenghi refere, em reportagem veiculada
pela Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo, que, em junho de
2015 solicitou “apoio da Força Nacional de Segurança para proteger a
comunidade Kurusu Amba, sob ataque de fazendeiros e seus jagunços.” Este
apoio não foi dado, assim como a Polícia Federal que, requisitada pelo
Procurador, recusou-se a ir ao local. Uma vez que ambas são subordinadas ao
13 Indicador de risco 7.8 – Crescente violação do direito à vida, integridade física, liberdade ou
Ministério da Justiça, o procurador afirma que o órgão “agiu com grave
omissão, desrespeitando os direitos constitucionais dos indígenas”. Deste
modo, pediu à Polícia Civil do MS escolta, dirigindo-se pessoalmente para o
local do confronto entre fazendeiros e indígenas (AGÊNCIA DE REPORTAGEM
DE JORNALISMO INVESTIGATIVO, 2015).
A impunidade dos crimes cometidos contra indígenas e suas lideranças
é um fato naturalizado no Brasil, não só por ser algo que ocorre há muito
tempo, mas porque não se observa tendência de reversão (CIMI, 2014). A
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo publicou matéria
jornalística que sintetiza a situação de impunidade de perpetradores e
mandantes de assassinatos cometidos contra lideranças indígenas no contexto
de conflitos fundiários no sul do Mato Grosso do Sul, demonstrando inclusive
que se trata de um problema de longa data: “Os pistoleiros são os que mais
incomodam, mesmo sendo apenas a ponta do iceberg: eles fazem o serviço
sujo aqui e ali, botam os funcionários da Funai para correr. Vivem protegidos
nas fazendas dos mandantes, com a certeza da impunidade” (AGÊNCIA DE
REPORTAGEM DE JORNALISMO INVESTIGATIVO, 2015).
Mesmo que a violência contra o povo Guarani e Kaiowá venha se
intensificando, medidas concretas em direção à investigação e punição dos
perpetradores não têm sido tomadas com a mesma velocidade. Em entrevista
concedida ao jornal “Estadão”, no dia 06/10/2015, o líder guarani Eliseu Lopes
denuncia:
Desde a morte do Marsal e de várias outras lideranças, como o
Durvalino, não vemos punição. Minha tia, uma anciã de 73 anos, também foi
morta na frente da sua família, seus netos. O único caso na história que teve
punição, depois de muita pressão internacional, foi o assassinato do guarani
Nizio Gomes [morto em novembro de 2011], que teve um homem preso. E
enquanto denunciamos isso, somos perseguidos, criminalizados e assassinados
por fazendeiros, pistoleiros e políticos. Mas fazendeiro, no Mato Grosso do Sul,
não é qualquer um. Eles são políticos locais, deputados, juízes, filhos de
juízes… Os ataques são feitos por pessoas qualificadas, pessoas que têm
conhecimento. Por isso, nada tem punição. Para nós indígenas, principalmente
indígenas como se fossemos animais. Para eles é, o discurso é “mata e deixa
por aí que não tem punição” (ESTADÃO, 2015).
Os dados de ambas reportagens são corroborados por Tauli-Corpuz,
relatora especial para assuntos indígenas da ONU, em pronunciamento oficial:
Dada a atual situação de insegurança e desconfiança no Estado de Mato Grosso do Sul, inclusive de questões de longa data não resolvidas sobre a posse de terras tradicionais e os padrões de curso de violência, temo pela segurança e proteção dos povos indígenas afetados, caso este despejo ocorra (UNITED NATIONS, 2015b).
Além disso, há, por parte dos indígenas, desconfiança nas forças de
segurança pública do Estado, em razão do uso contínuo e desproporcional da
força policial, que inclusive utiliza balas de borracha e bombas de gás
lacrimogênio, nos casos de reintegrações de posse determinadas pelo
Judiciário. As ocupações de terra surgem como resposta à morosidade do
poder público na demarcação de terras indígenas (CIMI, 2014)14. As
comunidades indígenas, assim, possuem alto nível de desconfiança em relação
à atuação do Estado na proteção de sua integridade física, apontando para o
que o “Framework” identifica como indicador de risco nos itens 2.4 e 2.8.15
Por outro lado, têm sido frequentes as manifestações públicas com
conteúdo depreciativo a respeito da identidade e do modo de vida
diferenciado dos povos indígenas. Estas manifestações são proferidas não
apenas por pessoas comuns - envolvidas diretas ou não na apropriação dos
recursos dos povos indígenas -, mas por agentes estatais. Os servidores da
Coordenação Regional da FUNAI de Campo Grande/MS, em carta aberta,
informam que:
14 Nos dois últimos mandatos da Presidenta Dilma Roussef, foram declaradas 25 TI´s e
demarcadas 21 TI´s (ISA, 2016b), sendo que mais da metade destes atos foram praticados no mês de abril de 2016 e representam mais da metade das declarações e demarcações feitas nos dois mandatos. De qualquer forma, é a Presidente que menos declarou e demarcou TI´s desde a Constituição de 1988.
15 Indicador de risco 2.4: Inação, relutância na recusa em usar todos os meios possíveis para
Toda essa violência, sob a forma física ou simbólica, já é uma constante em Mato Grosso do Sul. Os métodos de propaganda da elite rural via mídia estendem sua influência hegemônica sobre a opinião de parte da população comum do estado, portanto não proprietária de títulos, que acaba por reproduzir esse discurso de ódio e preconceito aos índios e funcionários de órgãos de estado que trabalham com as populações indígenas, reforçando atitudes que negam direitos originários ao seu território, direitos consagrados nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 e demais direitos de cidadania que lhes são fundamentais (JORNAL GGN, 2015).
Chamam atenção dois episódios recentes, ocorridos no ano de 2013,
em que dois deputados federais do Estado do Rio Grande do Sul proferiram
discursos públicos com conteúdo altamente discriminatório contra os povos
indígenas para agricultores ocupantes de terras reivindicadas como indígenas e
sobre as quais existem conflitos. Em uma delas, o deputado federal Luis Carlos
Heinze, do Partido Progressista do Rio Grande do Sul (PP/RS) afirmou que
quilombolas, índios, gays e lésbicas são “tudo o que não presta” (G1, 2014). A
seu turno, o deputado federal Alceu Moreira, do Partido do Movimento
Democrático Brasileiro do Rio Grande do Sul (PMDB/RS), proferiu o seguinte
discurso na mesma ocasião: “Se fardem de guerreiros e não deixem um
vigarista desses dar um passo na sua propriedade. Nenhum! Nenhum! Usem
todo o tipo de rede. Todo mundo tem telefone. Liguem um para o outro
imediatamente. Reúnam verdadeiras multidões e expulsem do jeito que for
necessário” (RÁDIO GAÚCHA, 2014).
Conforme o “Framework”, discursos de ódio são indicadores de risco
na medida em que proporcionam um ambiente que conduz à comissão de
crimes de atrocidade ou que sugere uma trajetória rumo à sua perpetração e,
ainda, porque geram clima de instabilidade social com base em questões de
identidade, o que vem identificado nos indicadores de risco 7.14 e 8.716.
Por fim, vale agregar a esta análise final dois fatos já mencionados no
item relativo ao marco regulatório indigenista brasileiro, que dizem respeito à
atuação do Poder Legislativo e Judiciário. Em relação ao primeiro, a aprovação
da PEC 215/2000 terá efeitos profundamente negativos sobre os direitos
16 Indicador de risco 7.14: Crescente retórica inflamada, campanhas midiáticas ou discursos de
territoriais dos povos indígenas. A posição da Subprocuradora-Geral da
República, Deborah Duprat, é a seguinte:
Essa PEC é o fim dos direitos indígenas. Ela contém vários vícios de inconstitucionalidade, que foram apontados já em manifestação da 6ª Câmara. Foi levado a julgamento no Supremo um mandado de segurança em que os sinais de inconstitucionalidade dessa PEC foram de certa maneira sugeridos pelo Relator. E ela só corre pela compreensão de que o Congresso tem o direito de errar. Para que depois o Judiciário possa corrigir (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2015).
Em estudo de 2015, o Instituto Socioambiental (ISA) avaliou os
impactos perversos sobre os direitos indígenas em decorrência de possível
aprovação da PEC 215 e sistematizou-os da seguinte forma:
(1) A transferência de competência ao Legislativo pretendida pela PEC 215/2000 impacta diretamente os processos de demarcação de 228 terras ainda sem homologação, os quais devem ser paralisados. Essas terras representam uma área de 7.807.539 hectares com uma população de 107.203 indígenas. Devem ser afetadas ainda 144 terras cujos processos de demarcação estão judicializados, que totalizam uma área de 25.645.453 hectares, com uma população de 149.381 pessoas.
(2) A abertura das Terras Indígenas a empreendimentos econômicos, obras de infraestrutura e atividades de impacto configura grave ameaça a todas as 698 Terras Indígenas, inclusive as já demarcadas, anulando os direitos constitucionais.
(3) Com a proposta de vedação à ampliação de terras, serão afetadas 35 Terras Indígenas, com uma área total de 1.556.153 hectares e uma população de 33.603 indígenas.
(4) A inclusão da tese do “marco temporal” no texto constitucional impactaria diversas Terras Indígenas já demarcadas, homologadas e registradas, além de outras que se encontram em processo de demarcação.
(5) Por fim, a aplicação retroativa da PEC 215/2000 às Terras Indígenas que estejam sub judice incidiria em pelo menos 144 terras indígenas, sendo que 79 delas já têm demarcações consolidadas (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2015).
No que se refere aos processos judiciais em que se discutem os atos
administrativos de demarcação de terras indígenas, há dois problemas
principais. Via de regra, nestes processos, as comunidades indígenas não
figuram no polo passivo porque se considera suprida a sua representação pela