• Nenhum resultado encontrado

A PSICOLOGIA CLÍNICA E O MAL-ESTAR

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A PSICOLOGIA CLÍNICA E O MAL-ESTAR "

Copied!
124
0
0

Texto

(1)

CARMEM LÚCIA BRITO TAVARES BARRETO

A PSICOLOGIA CLÍNICA E O MAL-ESTAR

CONTEMPORÂNEO : IMPASSES E RE-SIGNIFICAÇÕES

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

UNICAP / PERNAMBUCO 2001

(2)

CARMEM LÚCIA BRITO TAVARES BARRETO

A PSICOLOGIA CLÍNICA E O MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO : IMPASSES E

RE-SIGNIFICAÇÕES

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade Católica de Pernambuco, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia, sob a orientação dos Professores Doutores Zeferino Rocha e Henriette Morato.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA CLÍNICA COORDENAÇÃO GERAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

(3)

COMISSÃO JULGADORA

Dissertação aprovada em de de 2001

Profª Henriette Morato (orientadora)

Profª Vera Cury

Prof Jesus Vasquez

(4)

RESUMO

Este estudo tem como objetivo compreender o mal-estar contemporâneo partindo da experiência clínica. Traduz um verdadeiro testemunho da autora enquanto pesquisadora, psicoterapeuta e supervisora. Parte de inquietações desalojadoras experienciadas na clínica e utiliza como objeto de reflexão teórica a Abordagem Centrada na Pessoa, mais especificamente, a Terapia Centrada no Cliente.

Realiza uma leitura crítica da teoria da Terapia Centrada no Cliente, analisando a concepção de ciência e a trajetória conceitual empreendida por Carl Rogers. Partindo dessa analise, aponta para a insuficiência dos conceitos de Tendência Atualizante e Angústia para acolher e dar passagem ao mal-estar contemporâneo, indicando a necessidade de uma outra via de acesso que apreenda a condição fundamental e originária do homem. Por fim, apresenta o conceito de angústia de Heidegger enquanto possível contribuição para fecundar e re-significar a prática clínica.

Como resultado do percurso empreendido, a autora revela o momento de trânsito em que se encontra, encaminhando-se para uma clínica psicológica enquanto “cuidar” (Sorge), vinculada a uma teoria do existir humano que pode ser lida como uma ética de aceitação da finitude, da transitoriedade, e dos conflitos. Tal teoria enseja uma prática clínica, que envolva um ato de criação, como abertura de acolhimento para algo que não se conhece, com disponibilidade para se lançar nas complexidades do ser-aí. Aponta que, apesar de ter encontrado algumas respostas para as inquietações desalojadoras que motivaram o presente estudo, a temática abordada, pela sua complexidade e dinâmica própria, esteve e estará sempre aberta a novos olhares e leituras.

(5)
(6)

Dedicatória

A Camilo, meu pai, com quem aprendi a buscar o saber como atitude constante na vida.

À Crizanta, minha mãe, que sempre acreditou no meu potencial.

(7)

Agradecimentos

A Juarez, companheiro de mais de trinta anos,

pela presença nas diversas “passagens”.

A meus filhos queridos, Juarez, Mirella e Camila,

pela compreensão e respeito nos momentos de produção solitária .

A Carlos, irmão amigo,

pelo apoio em todo o percurso pessoal e profissional.

A Camilo Brito, irmão atencioso,

pela atitude disponível para com minha família.

À Herriette Morato, orientadora cúmplice,

pela escuta atenta e intervenções desalojadoras.

A Zeferino Rocha, orientador cuidadoso,

pelo incentivo, disponibilidade e supervisão dedicada do texto.

À Maria Ayres, eterna supervisora,

pela constante crença nas minha possibilidades pessoais e intelectuais.

(8)

A Jesus Vasquez, mestre amigo,

pelo cuidado com que orientou a leitura da filosofia heideggeriana.

A Luís Claudio Figueiredo, professor atento e disponível,

pelas orientações fecundas na qualificação do projeto, quando os caminhos ainda não estavam bem definidos.

Às amigas de jornada, Márcia Tassinari, Tereza Batista, Edilene, Vera e Zaina, pela escuta carinhosa e sensível, sempre presentes.

Aos meus clientes e estagiários,

pela confiança e inquietações compartilhadas.

Aos meus colegas de tur ma,

pelos momentos de alegria e desalojamento que, juntos, vivenciamos, durante todo o percurso do Mestrado.

Aos professores amigos, Álvaro Negromonte, Luíza Santos e Simone Bergamo, pela revisão criteriosa e cuidadosa do texto.

À UNICAP, em particular, ao Magnífico Reitor desta Universidade e a Decana do CTCH,

pela oportunidade e apoio concedidos.

(9)

SUMÁRIO

Apresentação 01

I - Situando o que “merece ser interrogado” 05

1 – Interrogando inquietações desalojadoras 06 2 – Delineando o cenário do mal-estar contemporâneo 16 3 – Circunscrevendo o mal-estar na clínica contemporânea 27

II – Realizando uma Leitura Crítica da Teoria Rogeriana 37

1 – A concepção de ciência na Terapia Centrada no Cliente 42 2 – Terapia Centrada no Cliente: estudo crítico de alguns construtos

teóricos

48

3 – A concepção rogeriana de Angústia 54

(10)

III – Acolhendo o Momento de Transição 62

1 – A ciência contemporânea e a constituição de seus modos de subjetivação

65

2 – A Angústia para Heidegger 69

3 – A Abordagem Centrada na Pessoa 74

IV – Re-significando a minha clínica : partindo de uma certeza abalada...

86

1 – Revisitando a minha clínica 89

2 – Iniciando um novo percurso : re-significando a minha clínica 96 3 – Tecendo algumas considerações finais não conclusivas... 107

Referências bibliográficas 111

(11)

Triste de quem vive em casa, Contente com o seu lar,

Sem que um sonho, no erguer de asa, Faça até mais rubra a brasa

Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!

Vive porque a vida dura.

Nada na lama lhe diz Mais que a lição da raiz Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem No tempo que em eras vem.

Ser descontente é ser homem.

Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro Tempos do ser que sonhou, A terra será theatro

Do dia claro, que no atro Da erma noite começou.

Fernando Pessoa

(12)

APRESENTAÇÃO

O tema deste trabalho já residia inquieto em mim. Difícil foi falar, foi descrever a experiência que lhe deu origem. Após percorrer um longo caminho, cheio de curvas, ficou claro que meu interesse era compreender o mal-estar contemporâneo partindo da minha experiência clínica.

A clínica psicológica tem apontado, com insistência, para o sofrimento do homem contemporâneo, vivendo num mundo perturbado e conturbado, em um momento em que identificamos conjunções, descentramentos, disfunções e coincidências na ciência, na economia, na política e na cultura. Vivemos, nesta passagem de século, um momento de transição com a radicalização das conseqüências da modernidade ao lado de sinais que apontam para a emergência de uma nova ordem. O homem contemporâneo encontra-se mergulhado em um universo de eventos que não consegue compreender plenamente, e que parecem estar fora de seu controle. Vive mudanças dramáticas e abrangentes que apresentam-se, na sua extensionalidade e na sua intencionalidade, mais profundas do que a maioria das mudanças dos períodos precedentes.

Enquanto psicóloga clínica, vivo também este momento de passagem e questiono se os instrumentos interpretativos da Psicologia possibilitam a compreensão desse processo. Para dar encaminhamento a esses questionamentos recorro, nessa Dissertação, à minha experiência clínica, utilizando como referência, para subsidiar a reflexão teórica que desenvolvo, a teoria da Terapia Centrada no Cliente de Carl Rogers .

Caminhando dessa direção, assumo a proposta metodológica de narrar minha experiência clínica. Nessa perspectiva, a experiência é tomada como

(13)

fonte de aprendizagem, na tentativa de possibilitar, desvelar, compreender e elaborar os dados diversos que foram se desdobrando ao longo da minha atividade clínica. Durante o percurso, vou confirmando e compreendendo, a insuficiência de alguns construtos teóricos da Terapia Centrada no Cliente para subsidiar a escuta, a compreensão e a intervenção na ação clínica contemporânea.

Tal proposta me conduziu para uma leitura crítica da teoria rogeriana. É importante ressaltar que o objetivo desta leitura não se constitui em um não reconhecimento da contribuição de Rogers para a Psicologia Clínica e a Psicoterapia, mas, sim, numa busca de respostas aos conflitos e inquietações que vivi e vivo, enquanto supervisora e psicoterapeuta. Inquietações que foram se acentuando, à medida que fui me aprofundando na teoria da Terapia Centrada no Cliente, cuja perspectiva parecia-me, muitas vezes, insuficiente para compreender a “dor de existir”, vivenciada pelos clientes.

Iniciado o processo de “desconstrução” do modelo teórico que sustentava minha clínica, percebo a necessidade de caracterizar o momento atual, no qual se constituem as subjetividades, demandas e perspectivas do homem contemporâneo. Para isso, lanço mão de contribuições das ciências sociais, tentando uma compreensão das transformações sociais associadas à modernidade, buscando explicitar as conseqüências do seu projeto para o momento contemporâneo. Ancorada por essa compreensão, realizo uma leitura crítica da trajetória da produção científica de Rogers, procurando identificar sua vinculação com o projeto epistemológico da modernidade, ao mesmo tempo que procuro contextualizar o clima científico, religioso e político no qual foi formado. Posteriormente, realizo uma análise crítica dos conceitos de Tendência Atualizante e de Angústia, do modo como são formulados na teoria da Terapia Centrada no Cliente, buscando revelar as implicações de se ter esses conceitos como orientadores da prática terapêutica.

Esta proposta parece ser audaciosa. Mas impõe-se na premência de atender a necessidade da minha realidade como uma profissional inserida no

(14)

momento contemporâneo, vivendo os impasses e desafios que se apresentam à Psicologia Clínica. Situação esta que instiga minha preocupação e aumenta minhas inquietações.

Nesse momento do percurso, abordo algumas transformações que estamos vivendo e que nos levam para os limiares do contemporâneo, visitando algumas regiões conceituais, especialmente da Filosofia, da Física e da Química. Regiões que, apesar de apresentarem campos de conhecimentos singulares, apresentam ressonância entre eles, procurando dar corpo aos sinais do nosso tempo que marcam, por produzir a sensação de rompimento das figuras atuais, indicando para a emergência de novas figuras. Nesse percurso, ressalto as contribuições de Ilya Prigogine e detenho-me na perspectiva heideggeriana do existir humano.

Fecundada pelo encontro com a dimensão heideggeriana de angústia e vivendo um processo de apropriação da “metamorfose da ciência” indicado por Prigogine, inicio uma revisita à produção rogeriana, agora não mais circunscrita ao período da Terapia Centrada no Cliente. Foco minha atenção para o período da Abordagem Centrada na Pessoa e analiso alguns artigos escritos por Rogers nessa época.

No final dessa revisita constato a dificuldade de Rogers para desvincular-se da filosofia da consciência e da representação, não conseguindo incorporar à sua noção de subjeti vidade, “fenômenos estranhos” a essa orientação. Tais fenômenos, revelados nos fragmentos de falas de alguns clientes, demandam outra via de acesso que apreenda a condição fundamental e originária da condição humana. Indico, então, a angústia, compreendida numa perspectiva heideggeiana, como essa outra via de acesso, já que a dimensão rogeriana de angústia se mostrou insuficiente para acolher tais fenômenos.

No embate desses impasses revisito a minha clínica, trabalhando com fragmentos de falas de alguns clientes, escolhidos intencionalmente, em função da relevância que apresentavam à possível manifestação da disposição afetiva

(15)

de angústia. Encontro nessas falas os elementos básicos que, segundo Rogers (1977), revelariam e explicariam o “sentimento” de angústia. Mas, encontro

“algo” mais. Falam da “dor de existir” que não se expressa por conteúdos precisos. Desvelam a consciência enquanto existencial que, correspondendo a voz silenciosa da angústia libertadora, aponta para a finitude .

Finalmente, aponto a Analítica Existencial de Heidegger como uma contribuição relevante na constituição de uma concepção de homem que possa acolher o “estranho -em-nós”, que rompe com a familiaridade do cotidiano. Esse

“estranho” é revelado nas falas de clientes como “algo” que não pode ser nomeado, que é “tudo e nada ao mesmo tempo”.

Dessa forma, encaminho-me para uma clínica psicológica como um

“cuidar” (Sorge).

Atitude por demais ousada e, talvez, utópica. Mas, sem ela não avançamos nem encontramos coragem para criticar e re-significar o que, na maioria das vezes, assumimos como pronto e acabado. Sem essa utopia não poderia caminhar na direção de construir a minha história enquanto terapeuta e supervisora, teorizando e re-significando minha prática. É assumindo este desafio e, buscando uma compreensão teórica mais próxima do fenômeno clínico, que desenvolvo essa Dissertação.

(16)

I - SITUANDO “O QUE MERECE SER INTERROGADO”

“O corpo que atravessa aprende certamente um segundo mundo, aquele para o qual se dirige, onde se fala outra língua. Mas ele se inicia sobretudo num terceiro, pelo qual transita.”

Michel Serres

Este trabalho começou já há algum tempo. A direção, o tema de interesse já residia inquieto em mim. Difícil foi falar, foi escrever sobre a experiência que lhe deu origem. Experiência que advém da minha prática clínica, enriquecida pela experiência enquanto supervisora de estágio.

Desde o início do Mestrado, já no processo de seleção, fazia tentativas de dizer algo sobre minhas inquietações, mas o que consegui, naquele momento, foi escrever sobre “ A compreensão e o lugar da Abordagem Centrada na Pessoa no espaço científico-sociocultural contemporâneo”. No projeto, transformado em artigo (Barreto,1999), abordo a crise instalada na teoria da Terapia Centrada no Cliente, procurando, através do resgate da evolução da produção rogeriana, identificar as influências e mudanças que foram sendo processadas, articulando-as à demanda contemporânea. Concluo, acreditando que as mudanças realizadas por Rogers, na década de oitenta, não foram suficientes para sistematizar uma nova fase na teoria da Terapia Centrada no Cliente, apesar de possibilitar a construção e reformulação de alguns conceitos teóricos, numa tentativa de abranger a proposta científica da contemporaneidade.

Em junho de 1999, momento em que precisava apresentar o projeto de pesquisa para a comissão de professores do mestrado, percebi que a proposta inicial não mais me instigava, talvez esgotada no momento em que transformei o projeto em artigo. É provável que, no momento em que me apropriei do tema, assumindo publicamente uma leitura pessoal e um posicionamento com relação à teoria da Terapia Centrada na Pessoa, esta etapa do meu processo

(17)

tenha sido atendida. O que restava? Restava a minha inquietação com relação à prática clínica neste momento contemporâneo. Mas, como iniciar este percurso crítico partindo da experiência clínica? Como apresentar minhas inquietações e dúvidas?

Buscando um caminho, retomo minha produção científica da década de noventa, procurando encontrar uma direção, algo que possa esboçar um contorno e orientar meu pensar, já que apresenta registros de minha experiência e tem os germes de minhas inquietações. Mergulho, então, na colcha de retalhos dos meus textos buscando, talvez, um fio condutor.

Trabalhos escritos para serem apresentados em situações específicas:

congressos, palestras, debates, encontros regionais, nacionais e internacionais da Abordagem Centrada na Pessoa.

1 - Interrogando inquietações desalojadoras

Percebo que há uma ordem implícita na minha produção, que retrata um processo em movimento, que se organiza e se desorganiza conforme o foco, como um caleidoscópio. Neste momento, sinto-me seduzida pela questão do tempo, sedução que é vivida intensamente através dos poemas de Jorge Luís Borges, principalmente quando na “ Nova Refutação do Tempo” indica:

“Negar a sucessão temporal, negar o eu, negar o universo

astronômico são desesperações aparentes e consolos secretos.

Nosso destino [...] não é espantoso, por irreal; é espantoso porque é irreversível e definido. O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é o rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é o tigre que me destrói, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou

(18)

o fogo. O mundo desgraçadamente é real; eu , desgraçadamente, sou Borges.” (Borges, 1989:79)

Sob esta inspiração, retomo meus textos e percebo que podem ser agrupados em quatro momentos.

Primeiro momento:

Abordagem Centrada na Pessoa: Pontos de abertura e visão holística da Realidade – março de 1992

Segundo momento:

Evolução da Terapia Centrada no Cliente – maio de 1996

Evolução das Teorias do Conhecimento: da mitologia à fenomenologia – outubro de 1996

Terceiro momento:

Repensando a clínica-escola: da prática à teoria – maio de 1997 Repensando a formação do psicólogo – setembro de 1997

A clínica –escola na perspectiva contemporânea – setembro de 1997

Quarto momento:

Ciência : da modernidade à contemporaneidade – outubro de 1997 Ressonâncias subjetivas em tempos de violência – agosto de 1998 Abordando a constituição das subjetividades contemporâneas numa perspectiva fenomenológico-existencial – setembro de 1998

A compreensão e o lugar da Abordagem Centrada na Pessoa no espaço científico-sociocultural contemporâneo – outubro de 1998

Todo este caminho está apoiado num fazer crítico enquanto psicóloga clínica e supervisora de estágio, formada segundo os princípios da Abordagem Centrada na Pessoa – A.C.P. Tentando compreender este caminhar, percebo no primeiro momento, na A.C.P. dos anos oitenta, a constatação de

(19)

possibilidades para uma leitura científica vinculada à perspectiva holística da realidade, quando indico que

“Rogers evoluiu bastante na maneira de perceber a realidade e constatamos que sua obra reflete abertura e receptividade para as novas descobertas da ciência, tendo apresentado, gradativamente, uma visão holística, que culmina com a visão evolutiva da consciência e o reconhecimento da dimensão transcendental e de unidade da pessoa com o universo.” (Barreto, 1992:91)

Este trabalho já apontava para a preocupação com a maneira como a realidade é percebida e como o conhecimento científico foi sendo construído.

Tal apontamento parece ter me mobilizado para, no segundo momento, pesquisar e tentar refazer o caminho das teorias do conhecimento, vinculando- as aos sistemas psicológicos, concentrando a atenção na dimensão evolutiva da teoria da Terapia Centrada no Cliente. Neste momento, procurava encontrar, na própria A.C.P., respostas para as questões com que me deparava na clínica e para as quais não encontrava respostas, reconhecendo que “Rogers apesar de ter delineado indicadores que apontam para a necessidade de reformulação na Teoria da Terapia Centrada no Cliente, não os sistematizou de forma consistente” (Barreto, 1999:39).

Acompanhando o percurso indicado pelos meus textos, percebo que, conforme vou reconhecendo e me apropriando da necessidade de uma leitura crítica da teoria da Terapia Centrada no Cliente, fico mais tranqüila e dirijo minhas reflexões para repensar o funcionamento da clínica-escola e a formação do psicólogo, como se este passo fosse necessário para poder sistematizar as minhas inquietações sobre a prática clínica. Ou será que foi um afastamento, uma fuga, já que falar da minha própria clínica parecia estar sendo difícil ?

(20)

As reflexões iniciadas em torno da formação do psicólogo e do funcionamento da clínica-escola dirigem minha atenção para as questões trazidas pelo momento contemporâneo, o que motivou a realização da pesquisa “ Caracterização da clientela e avaliação dos serviços prestados à comunidade pela clínica-escola de psicologia da UNICAP”1. A análise qualitativa dos resultados dessa pesquisa evidencia um sofrimento ou mal- estar, que parece estar vinculado ao momento contemporâneo, indicando a necessidade de criar condições que suportem “o estranhamento das paisagens que o tempo redesenha no rastro dos acontecimentos”(Rolnik, 1994:4). Tais observações me levaram a procurar compreender melhor o que chamamos de momento contemporâneo, geralmente vinculado à falência do projeto civilizatório moderno, em que nos deparamos com uma sintomatologia singular que configura um discurso particular, reflexo da produção de uma rede de saber, de poder e de subjetivação que configura e define o momento atual.

Tal preocupação me levou, inicialmente, para um estudo sobre a possível ruptura entre a ciência moderna e a ciência contemporânea.

Começava, então, a delinear-se um quarto momento na minha produção, quando voltei minha atenção para o processo de remodelação conceitual nas ciências, como apresentado por Ilya Prigogine.

Nesse momento, procurei fazer uma retrospectiva da construção dos conceitos científicos e dirigi minha atenção para as formulações apresentadas por Prigogine(1991 e 1996), que rompe com a noção de tempo científico tradicional, no qual a dimensão humana está imersa na previsibilidade e na reversibilidade temporal. Nessa perspectiva considerei que, a

“metamorfose do tempo”, indicada por Prigogine, apresenta o mundo como fruto de uma co-existência que em nada é pacifica, pois ela tem por efeito um trabalho

____________________

1Pesquisa desenvolvida na Clinica de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco, no período de 01/09/98 a 30/06/99 em parceria com a Profª Vera Oliveira. Foi realizada com o apoio do Programa de Iniciação Científica, UNICAP- PIBIC com a participação de dois alunos bolsistas do Curso de Psicologia e encontra-se para consulta na

(21)

permanente de produção, na qual o homem se modifica, modifica o outro e ao seu ambiente, num trabalho permanente de afetação, superando as noções de neutralidade e reversibilidade da ciência clássica.”

(Barreto, 1999:16)

Foi um momento muito fértil em que passei a aprofundar a reflexão sobre as ressonâncias que este momento contemporâneo traz à constituição das subjetividades, intensificando experiências de desestabilização e estranhamento, apontando para mudanças do discurso social e do discurso na clínica.

Preocupada com tais experiências de desestabilização e estranhamento que intensificam e dão nova forma à manifestação da sensação de mal-estar, inevitável à condição humana, reformulei o projeto inicial do Mestrado e comecei a produzir em torno da “Psicologia Clínica e o sofrimento humano no final do século XX”, título do segundo projeto apresentado para a Comissão de professores, durante o primeiro ano do curso. Este tema permaneceu até o final de 1999, permeado por tentativas de compreender o momento contemporâneo, referenciadas pela proposta de Heidegger de “desconstrução”

da tradição ocidental da metafísica. Nesse momento, o contato com a Analítica Existencial é marcante para o meu processo, principalmente o modo como apresenta a angústia que, por não possuir objeto real nem saída racional possível, faz parte da nossa vida, apontando para o “nada”, espaço vazio, no qual o ser-aí pode aparecer, já que se encontra suspenso no “nada”. Essa perspectiva aponta para uma dimensão muito mais ampla do que aquela que respalda a clínica centrada no cliente, direcionada para a manutenção do bem- estar e pela prevalência da razão, na qual a angústia é resultado do “estado”

de incongruência entre a estrutura do self e a experiência do organismo.

Mobilizada pela dimensão heideggeriana da angústia, percebo que, gradativamente, essa perspectiva vai modificando minha escuta clínica e redirecionando minhas intervenções. Procuro, então, através desses desdobramentos, orientados por uma leitura fenomenológica, fundamentada na compreensão da condição humana como apresentada por Heidegger, apontar

(22)

possibilidades para uma contextualização da clínica psicológica contemporânea.

No início de 2000, finalmente, após tal caminho cheio de curvas, esclareceu-se meu interesse em compreender o mal-estar contemporâneo partindo da experiência clínica. Para isto, tomo como objeto de reflexão teórica a Abordagem Centrada na Pessoa, mais especificamente a teoria da Terapia Centrada no Cliente, por ser ela a fundamentação da minha formação enquanto psicoterapeuta e respaldo para minha atuação enquanto supervisora de estágio. Nessa clareira, deparo-me com algumas bifurcações no caminho percorrido, em que questiono se os referenciais teóricos, apresentados por essa teoria, oferecem subsídios que possibilitem compreender as modalidades de constituição das subjetividades e a experiência de mal-estar no momento contemporâneo. Paralelamente, percebo que a minha clínica já apresenta modificações que apontam para uma leitura compreensiva, respaldada por uma perspectiva fenomenológica hermenêutica heideggeriana. Como apresentar tal processo? Que mudanças e direções apresenta?

Tentando compreender o caminho até agora percorrido, tornou-se evidente que os questionamentos apresentados apontavam para tentativas de respostas a uma possível insuficiência de alguns construtos teóricos da Terapia Centrada no Cliente para circunscrever o campo do mal-estar contemporâneo.

Contudo revelaram-se respostas construídas teoricamente que, partindo do reconhecimento prévio das limitações da teoria da Terapia Centrada no Cliente, não explicitavam nem apontavam a fonte da busca por respostas, isto é, não contemplavam nem amparavam situações de crise vividas. Pelo contrário, os construtos teóricos, que antes respaldavam minha prática, agora pareciam colocar-me numa “camisa de força”. Eis-me no ponto central, o que me deixa ao mesmo tempo, aliviada e assustada. Afinal, falar da minha prática, assumir minhas crises com a A.C.P., depois de tantos anos assumida como referência direta, não é fácil. É mais fácil teorizar, tomando como referencial construções teóricas das ciências ou da Filosofia, ou, então, a prática clínica do próprio Rogers.

(23)

Neste momento, a explicitação das minhas inquietações se impõe.

Preciso apresentar os ruídos que deram origem a essas mesmas inquietações, ou seja, a minha experiência clínica abalando minhas convicções. Inicial e timidamente, em alguns atendimentos, começou a impor-se uma sensação de mal-estar, ao vislumbrar que minha compreensão sobre os significados da narrativa trazida pelo cliente estava fundamentada por referencial teórico, que limitava a apreensão dos fenômenos que emergiam, ou poderiam emergir na relação terapêutica. Minha experiência revelava que o olhar e a compreensão clínica, respaldadas pela teoria da Terapia Centrada no Cliente, dificultavam a escuta do sofrimento do homem contemporâneo, conseqüência provável do mal-estar existente na cultura e nas organizações sociais atuais. Comecei a distinguir a existência de certos “pontos cegos” na teoria da clínica, que evidenciavam a insuficiência de alguns construtos teóricos da Terapia Centrada no Cliente, no sentido de apreender as novas inscrições das subjetividades no mundo contemporâneo. Mas que “pontos cegos” seriam esses? Afinal, como são constituídas as subjetividades atualmente?

Primeiramente, tornou-se evidente que a clientela revela uma demanda, constituída por um contexto sociocultural diferente daquele que respaldou a construção teórico-científica de Rogers, influenciada pelos ideais do iluminismo, que apostava no progresso da ciência e no conhecimento racional como condições para resolver o sofrimento humano. O cliente fala de uma forma de mal-estar que representa o esprit du temps contemporâneo, diferente daquele da cultura americana dos anos quarenta e cinqüenta, sustentada por valores moralistas respaldados pela repressão, período em que Rogers estruturou sua proposta para a psicoterapia centrada no cliente. Uma análise, ainda que simplista do contexto, já nos permite compreender, em parte, a insuficiência apontada, reconhecendo que a teoria rogeriana representa uma construção oriunda de um crivo de condições historicamente determinadas, na qual a repressão era a prática de controle social mais freqüente. Mas de que mal-estar nos fala o cliente?

O cliente nos fala da experiência de desamparo, de não conseguir se situar no mundo atual, sentindo-se perdido, sem valores, sem tradições,

(24)

experienciando situações de profundo desrespeito e desalojamento, não conseguindo responder prontamente às solicitações afetivas, familiares, sexuais, profissionais e econômicas. Queixa-se da crise no casamento, do relacionamento com os filhos, da dificuldade em definir limites e de assumir novos papéis, tanto na família como na sociedade. Não se refere mais à fadiga, mas fala de “stress”; não se queixa de tédio, mas sente-se angustiado e até mesmo depressivo; não relata, com freqüência, experiências de medo ou fobias, mas sente-se em pânico. Utili za, cada vez mais, drogas lícitas e ilícitas para diminuir sua sensação de vazio, de impotência diante das solicitações externas, frente às quais se sente desamparado e desalojado. Refere-se a sentimento de culpa e experiência de vazio ao perceber que os valores religiosos e morais nos quais fora educado, não se apresentam mais “úteis”

para atingir a “felicidade” e a “realização pessoal”. Sofre com a ausência de limites e a proliferação de atos transgressores e violentos, constatando que a tônica do “sem limite” se manifesta hoje nos comportamentos, nas falas e nas produções. Refere-se a uma perplexidade diante dos fenômenos sociais, políticos e econômicos da atualidade, experienciando, com angústia, uma sensação de banalização da vida, pois pouca ou nenhuma atenção é dada às crises nas instituições, às mortes decorrentes da violência, aos conflitos mundiais. Ouvindo tais falas, pergunto -me: para o que aponta tanto mal-estar?

Essas falas me desalojam, apontando para uma escuta de outra ordem, já que a escuta garantida pela teoria da Terapia Centrada no Cliente apresenta -se insuficiente para acolher tais falas. Qual será, então, a orientação da clínica psicológica hoje?

Abordar este tema é desafiante e até mesmo assustador, pela complexidade e diversidade de elementos e situações envolvidos. Mas é, ao mesmo tempo, apaixonante, instigante e emergente , já que se impõe com tão forte urgência como possibilidade de compreensão do processo de subjetivação do homem contemporâneo. A clinica psicológica tem apontado, com insistência, para a experiência do homem contemporâneo, vivendo num mundo perturbado e conturbado, numa época que pode ser considerada de transição “entre o paradigma da ciência moderna e um novo paradigma, de

(25)

cuja emergência se vão acumulando sinais “ (Santos, 1989:11). Sinais que apontam o deslizamento para atitudes fundamentalistas e niilistas ao lado da globalização da economia, propiciando, através dos avanços tecnológicos, uma aproximação dos universos, intensificando as misturas e pulverizando as diferenças. Cenário este que aponta para a diluição da suposta divisão entre psicologia individual e social, para a abolição entre espaço publico e privado, evidenciando uma situação em que social e individual estão imbricados.

Como conseqüência dessa transição, vivida no momento atual, as referências que respaldavam a compreensão do sujeito moderno, ancoradas pela consciência e pela racionalidade instrumental, estão sendo questionadas, bem como as figuras subjetivas concebidas como relativamente estáveis, que respaldavam a construção desse modo de ser. Modo que se apresenta com a noção de ordem ligada ao equilíbrio, onde o sujeito é fundamento de sua própria existência : funda sua liberdade e constrói sua essência.

Deparamo-nos, hoje, com contornos subjetivos efêmeros, nos quais a fragilidade das figuras de subjetividade ocupa posição fundamental. Apresenta- se como fragmentação do espaço e, ao mesmo tempo, como contração do espaço-tempo, não sendo mais apenas uma nova forma de subjetivação, mas sim a matéria prima, por meio da qual outras formas de subjetivação são constituídas. Diante dessa situação, como descrever o mal-estar contemporâneo?

Falar do mal-estar contemporâneo leva, diretamente, para a questão da subjetividade, pois como indica Birman (1999) “não se pode falar de mal-estar sem que se aluda ao sujeito, já que o mal-estar se inscreve no campo da subjetividade. [...] o mal-estar é a matéria prima sempre recorrente e recomeçada para a produção do sofrimento nas individualidades.“(p.15).

Tendo, portanto, o sofrimento do sujeito contemporâneo como pano de fundo, como tentar desvelar e, até mesmo, traçar uma cartografia do mal-estar no momento contemporâneo? Momento esse que apresenta um modelo de ciência em que identificamos conjunções, descentramentos, disfunções e

(26)

coincidências numa dimensão ética e estética do ser humano e de seus contextos sociais e culturais. Momento em que o avanço das novas tecnologias comunicacionais e cognitivas produzem efeitos nas estruturas clássicas e modernas da verdade, do sujeito, da história e do mundo.

Essa situação representa um dos fenômenos mais perturbadores de nossa época, implicando um dar-se conta da “reviravolta subjetiva da realidade”, direcionando o foco de interesse dos pensadores contemporâneos para os processos de constituição da subjetividade e os impasse experienciados no momento contemporâneo. Um ponto indicador dessa

“reviravolta” é a compreensão da constituição da subjetividade fora do âmbito da identidade e da representação, voltada , agora, para a ênfase nos múltiplos processos de subjetivação, engendrados nas dimensões sociais, culturais e temporais.

Iniciado o processo de compreensão do mal-estar do cliente na clínica e delineada a “desconstrução” do modelo que não o sustentava, encaminho minha interrogação. Torna-se, agora, necessário caracterizar o momento contemporâneo no qual se constituem subjetividades, demandas e perspectivas. Para isso, lanço mão de contribuições das ciências sociais, tentando uma compreensão das transformações sociais associadas à modernidade, para delinear uma possível aproximação com o cenário deste final de século.

2 - Delineando o cenário do mal-estar contemporâneo

Para delinear este tema tão desafiador que aborda as questões levantadas pelo embate da modernidade/pós-modernidade, optamos por uma análise sociológica na tentativa de compreender as conseqüências das alterações econômicas, políticas e culturais da constituição moderna no momento contemporâneo. Como suporte teórico para esta tarefa recorremos

(27)

às idéias apresentadas por Zigmunt Bauman e Anthony Giddens, autores contemporâneos que analisam a constituição da modernidade, explicitando as conseqüências do seu projeto para o momento contemporâneo.

No apagar das luzes deste conturbado século XX, deparamo-nos com um momento de transição que traz em seu bojo uma confrontação crítica à racionalidade moderna, representando, desse modo, uma crítica profunda ao projeto da modernidade. Estamos vivendo um período de radicalização das conseqüências da modernidade, ao lado de sinais que apontam para a emergência de uma nova e diferente ordem nas formas de conhecimento.

O projeto da modernidade encontra-se em crise; o pensamento contemporâneo decreta a morte da subjetividade moderna em qualquer uma das suas dimensões, ta nto como sujeito universal quanto como indivíduo indiviso e auto-centrado. O momento contemporâneo nasce como crítica e problematiza a maneira de como conhecer e dizer a verdade. Mas como compreender este momento contemporâneo e seus desafios? Em que consiste a situação atual? Que processos, que elementos tornaram esse fim de século tão conturbado? Estariam os projetos delineados pela modernidade concluídos? Ou, inacabados, apenas estariam acenando para vitórias que ainda não se realizaram completamente, produzindo algo ainda não muito claro? A contemporaneidade nos escapa?

Alguns autores argumentam que ainda não vivemos em um mundo pós- moderno, reconhecendo que uma possível nova ordem já esteja a caminho , assumindo, desse modo, que “estamos no limiar de uma nova era, a qual as ciências sociais devem responder e que está nos levando para além da própria modernidade” (Giddens, 1991:11) . Há uma tendência em reconhecer que o estado de organização precedente está chegando a um fim, o que é expresso nas indicações “pós-modernismo”, “sociedade pós-industrial”.

Outras discussões sobre essa questão estão fundamentadas nas transformações institucionais que indicam a passagem de um sistema baseado

(28)

na manufatura de bens sociais, para outro baseado, mais centralmente, nos meios de comunicação e na informação. Um dos aportes que representa este enfoque, é apresentado por Marcio D’Amaral, que entende por contemporaneidade: “pensar o efeito das novas tecnologias comunicacionais e cognitivas sobre as estruturas clássicas e modernas da verdade, do sujeito, da história e do mundo” (D’Amaral, 1996:13). Para esse autor, o efeito das novas tecnologias comunicacionais e cognitivas produz novos desafios e turbulências no nosso momento histórico. É preciso levá-las em consideração, pois representam, também, parte do campo de experiências, onde as modalidades da experiência de si e do mundo se constituem.

Essas questões são, também, enfocadas pela Filosofia. Lyotard(1993), responsável pela popularização da noção de pós-modernidade, caracteriza o momento pós-moderno, enquanto condição cultural, pela incredulidade diante do metadiscurso filosófico-metafísico nas suas dimensões atemporais e universalizantes. Enfoca o conflito da ciência com os relatos, considerando, como característica da pós-modernidade, a evaporação da grand narrative.

Desenvolve, como hipótese de trabalho, o pressuposto de que o “saber muda de estatuto ao mesmo tempo que as sociedades entram na idade dita pós- industrial e as culturas na idade dita pós-moderna” (Lyota rd, 1993:5). Segundo esse autor, o saber científico apresenta-se como uma espécie de discurso afetado pela incidência das informações tecnológicas. Dessa forma, a perspectiva pós-moderna estaria vinculada a uma pluralidade de reivindicações heterogêneas de conhecimento, não concedendo, assim, a primazia à ciência.

Segundo Giddens(1991), a desorientação, que acomete o sujeito contemporâneo, decorre do fato de termos “sido apanhados em um universo de eventos que não compreendemos plenamente, e que parecem em grande parte estar fora do nosso controle” (p.12). Sugere que, para resolver essa questão, não basta criar novos termos, como pós-modernidade, mas, sim, compreender melhor a natureza da própria modernidade. Esta tem sido insuficientemente abrangida pelas ciências sociais, indicando que estamos vivendo um momento de radicalização das conseqüências da modernidade, ao lado do contorno de uma nova ordem que é pós-moderna.

(29)

Diante de tal quadro, percebemos que há um acordo, em diversas áreas de conhecimento, de que vivemos um momento de transição, no qual os efeitos da modernidade estão exacerbados. Tais efeitos constituem o solo em que se situa, historicamente, o tipo de subjetividade que se apresenta e desafia a clínica psicológica contemporânea. Como nosso interesse é tentar identificar esses desafios e impasses, impõe-se conhecer, primeiramente, como eles se apresentam ao homem contemporâneo, a fim de poder circunscrever os novos cenários do sofrimento subjetivo. Desse modo, aos poucos vou percebendo que escutar esse sofrimento impõe não somente a necessidade de uma análise da modernidade e de um diagnóstico de suas conseqüências, como também a caracterização da emergência de uma ordem pós-moderna, cujos sinais já se fazem notar na era atual. Para atingir esse objetivo, as perspectivas levantadas por uma abordagem sociológica podem facilitar o entendimento das questões que nos interessam, pois permitem uma introdução ao estudo da vida social moderna. Não pretendo, com isso, dizer que será desenvolvido um estudo detalhado dos modos de vida produzidos pela modernidade, mas apenas recorrer a algumas de suas explicações como indicadoras da organização dos modos de subjetivação vigentes, a fim de encaminhar a compreensão dos impasses da minha prática clínica e da teoria que antes a sustentava

Ao analisar o processo e a natureza da modernidade, Giddens (1991) enfatiza a necessidade de sublinhar o conjunto de descontinuidades associadas ao período moderno, indicando que os

“modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilham de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não tem precedentes. (...) Mas as mudanças ocorridas durante os últimos três ou quatro séculos – um diminuto período de tempo histórico – foram tão dramáticas e tão abrangentes em seu impacto que dispomos apenas de ajuda limitada de nosso conhecimento de períodos precedentes de transição na tentativa de interpretá-las.” (Giddens,1991:14)

(30)

Nesse mesmo texto, afirma que as transformações envolvidas na modernidade, tanto em sua extensionalidade (atingindo todo o globo), como em sua intencionalidade (alterando características da existência cotidiana), são mais profundas do que a maioria das mudanças dos períodos precedentes.

Aponta como características que marcam esta diferença: o “ritmo de mudança”, o “escopo da mudança” e a “natureza intrínseca das instituições modernas “.

Nas ordens sociais atuais, por conta da tecnologia e das redes de comunicação, a condição de mudança é extremamente rápida, atingindo diferentes áreas do globo que são colocadas virtualmente em interconexão.

Nosso tempo assiste ao surgimento da sociedade da informação, marcada pela ênfase no conhecimento e pela velocidade alucinante das inovações tecnológicas e comunicacionais, gerando uma crescente imbricação entre realidade virtual e realidade efetiva, cada vez menos diferenciadas pelo jogo do simulacro social. Vivemos a conjunção da ciência, da tecnologia, da economia, da biologia e da industria, além de vermos nascer possibilidades de manipulação genética, de prolongamento da vida, que trazem mudanças para a condição humana.

É uma ordem que se apresenta como conseqüência da própria modernidade, ao lado de novos indícios de organização, permeados por sua vez, por relações humanas matizadas pelo simulacro virtual da informação.

Essas relações acontecem em um mundo em que o tempo cronológico e existencial passam a sofrer as influências da virtualidade, o que, ao lado de outros elementos decorrentes do processo de transição que vivemos, contribui para que o encontro com o outro torne -se uma possibilidade tendencialmente remota e que este outro , pouco a pouco, não escute nem a si mesmo.

Tais reflexões nos encaminham para outro aspecto também importante, porém pouco enfatizado e compreendido: o dinamismo da ordem social que deriva da “separação do tempo e do espaço”. Nas culturas pré-modernas, o tempo estava vinculado ao lugar sendo, portanto, impreciso e variável,

(31)

constituindo a base da vida cotidiana. O advento da modernidade, com a invenção e difusão do relógio mecânico, arranca o espaço do tempo, possibilitando relações com outros ausentes, localmente distantes. Possibilita, também, o desenvolvimento de mecanismos de “desencaixe”, retirando a atividade social dos contextos localizados, possibilitando a reorganização de relações sociais através de grandes distâncias, retirando-as de uma condição de “situacionalidade”. A desvinculação do tempo e do espaço, com a invenção da escrita, possibilita outros modos de organizar a ação e a experiência. Nas culturas tradicionais, o modo de organizar a ação e a experiência era através da tradição, que garantia a continuidade do passado, presente e futuro. Nas culturas orais, além da tradição, passa a existir outros modos de organizar a ação, que, com a intervenção da escrita, “expande o nível do distanciamento tempo-espaço e cria uma perspectiva de passado, presente e futuro, onde a apropriação reflexiva do conhecimento pode ser destacada da tradição designada” (Giddens, 1991:44).

Como conseqüência desse processo, as reivindicações da razão instrumental substituíram as da tradição, passando a oferecer uma sensação de certeza maior do que a apresentada pelos dogmas da tradição. Essa sensação de certeza, construída por e através de conhecimento

“reflexivamente aplicado”, foi, segundo Giddens (1991), fruto de uma interpretação errônea, pois não se pode garantir que qualquer elemento do conhecimento, constituído reflexivamente, não será revisado. “Em ciência, nada é certo, e nada pode ser provado, ainda que o empenho científico nos forneça a maior parte da informação digna de confiança sobre o mundo a que podemos aspirar. No coração do mundo da ciência sólida, a modernidade vagueia livre” (Giddens, 1991:46). Embora os iniciadores da modernidade buscassem certezas, através da razão, para substituir os dogmas da tradição, na realidade, devido à circularidade do conhecimento, o que se evidenciou foi a constituição de princípios revisáveis, por circularem dentro e fora do ambiente que descrevem.

As disjunções, descentramentos, como a ruptura com as concepções providenciais da História e a dissolução da aceitação de fundamentos devem

(32)

ser vistos, de acordo com Giddens(1991), como “resultantes da auto- elucidação do pensamento moderno, conforme os remanescentes da tradição e das perspectivas providenciais são descartados. Nós não nos deslocamos para além da modernidade, porém estamos vivendo precisamente através de uma fase de sua radicalização”(p.57).

Para consubstanciar esse ponto de vista, o autor faz uma análise detalhada dos significados que com maior freqüência são atribuídos à pós- modernidade. Indica que “a dissolução do evolucionismo, o desaparecimento da teleologia histórica, o reconhecimento da reflexibilidade meticulosa, constitutiva, junto com a evaporação da posição privilegiada do Ocidente”(ibid,p.59) apontam, não para uma nova ordem, mas para a

“radicalização da modernidade” que é perturbadora e significativa, levando a um novo e inquietante universo de experiência. Considera que o posicionamento, comumente vinculado à pós-modernidade, de falta de credibilidade nos fundamentos da epistemologia, ao invés de indicar a superação da modernidade, é muito mais significativo se considerado como “a modernidade vindo a entender-se a si mesma” (ibid, p.54). Desse modo, a modernidade estaria vivendo um momento, ao tomar-se a si mesma como foco, de constituição de um conhecimento explícito, reflexivo, sobre seu próprio modo de funcionar.

Deparamo-nos, então, com a problemática da própria modernidade que, ao revelar-se “enigmática” em seu cerne, nos deixa como legado perguntas que não são somente do âmbito dos filósofos, sociólogos ou psicólogos, mas que, como fenômenos, filtram-se em ansiedades, cuja pressão todos nós sentimos, e que constituem o cenário para a emergência do mal-estar contemporâneo.

O “declínio do Ocidente”, de acordo com a perspectiva descontinuista apresentada pelo autor, representa não o resultado da diminuição do impacto das instituições ocidentais mas, ao contrário, o resultado de sua disseminação global, fruto do processo de globalização política, econômica, tecnológica. A

(33)

globalização é considerada como uma das conseqüências fundamentais da modernidade e pode ser definida como

“um processo de desenvolvimento desigual que tanto fragmenta como coordena, introduzindo novas formas de interdependência mundial, nas quais, mais uma vez não há ‘outros’. Estas por sua vez, criam novas formas de risco e perigo ao mesmo tempo que promovem possibilidades de longo alcance de segurança global.”.

(Giddens ,1991:174)

Continuando o processo de tentar compreender os efeitos e impasses da modernidade, ressaltamos a perspectiva de Bauman (1999), quando aponta para o fato de que o projeto iluminista da modernidade nunca deixou de produzir autoconhecimento da sociedade moderna mas esse produto racional, ao invés de cumprir a tarefa da ordem, vai desembocar na contingência do eu moderno, da sociedade moderna, pois

“o insight da contingência representa a auto-ilusão das modernas ciências sociais que informaram da contingência acreditando descrever a necessidade, expuseram a particularidade supondo falar da universalidade, deram uma interpretação tradicional pretendendo uma verdade extraterritorial e extratemporal, mostraram indecisão travestida de aparência, indicaram o provisório na condição humana crendo-se portadoras da certeza do mundo, revelaram a ambivalência do projeto humano quando supunham descrever a ordem natural.”

(Bauman,1999:244/245)

Tal posicionamento, aponta para o fato de que a clareza e transparência ordenadas para a vida humana, que seriam oferecidas pela razão instrumental, não aconteceram, e nos deparamos hoje com a irremediável contingência da

(34)

existência humana, com a inevitável ambivalência de todas as opções, identidades e projetos de vida. Parece , então , que a proposta da modernidade viveu de uma auto-ilusão, não conseguindo apresentar um mundo solidamente ordenado para ser habitado pelo homem, cuja existência seria considerada moderna “na medida em que é produzida e sustentada pelo projeto, manipulação, administração, planejamento” (Bauman,1999:15). É importante ressaltar que foi esta auto-ilusão, baseada em (falsas)crenças, que sustentou a estrutura de poder contemplada pela mentalidade moderna ao proclamar a crença na verdade do próprio conhecimento. Em tal estrutura, a verdade passa a exercer a função de uma relação social, constituída numa hierarquia de unidades de superioridade e inferioridade, exercendo o poder através de uma forma hegemônica de dominação.

Tal reflexão permite uma melhor compreensão do modo de funcionar do mundo ocidental que, tendo adotado como modelo a civilização moderna, passa a exercer o domínio sobre o resto do mundo dissolvendo sua alteridade, que, por ser considerada como um erro ou como o caos, deveria ser superada pela verdade que tinha como proposta instalar a ordem. Nessa perspectiva, a diferença significa desordem e caos e todo o esforço do intelecto moderno deveria estar voltado para suprimi-la, eliminando tudo o que não pode ser definido, classificado, ordenado. Como conseqüência dessa prática moderna, teríamos a intolerância que, na ânsia de anular a ambivalência, exige “a negação dos direitos e das razões de tudo que não pode ser assimilado – a deslegitimação do outro” (Bauman, 1999:16).

Apesar de o projeto da modernidade identificar a ordem como o contrário do caos, Bauman(1999) indica que é exatamente essa negatividade que representa a possibilidade da ordem se constituir. Aponta que ambos, ordem e caos, são irmãos gêmeos e foram concebidos diante do colapso da ordem divina do mundo, onde o mundo simplesmente era, sem pensar em como ser.

Diante disso, o momento de compreensão de uma ordem do mundo pode ser considerado como o nascimento da modernidade, que se constituiu como um tempo em que se reflete a ordem, criada para restringir o que era natural.

(35)

Tais argumentações nos levam a considerar que a existência humana passa a ser moderna no momento em que contém a alternativa da ordem e do caos, apesar de todo o esforço do projeto da modernidade em ordenar o mundo, em contrapor precisão semântica à ambivalência, transparência à obscuridade, clareza à confusão. É exatamente dessa luta que se constitui a modernidade que, através do projeto e do planejamento, busca o controle e a manipulação da natureza, perseguindo a classificação dos objetos e dos eventos através de praticas de separação. Essas práticas buscam a excelência local, especializada, e têm como arcabouço central a oposição, a dicotomia, criando uma falsa simetria, em que, o poder capaz de fazer diferença é centralizado em um dos pólos da oposição. O outro pólo é apresentado como o oposto, o exilado, o suprimido, dependendo do primeiro para ser identificado no seu isolamento. No entanto, o primeiro que detém o poder diferenciador depende do pólo suprimido para poder se auto-afirmar.

Apesar de tentar suprimir o caos, a modernidade precisa dele para poder instalar a ordem e construir os conceitos que apresenta como representantes de sua ação e modelo. É dessa forma que define doença em oposição à saúde, o estrangeiro em oposição ao nativo, o leigo em oposição ao especialista.

Seguindo essa argumentação, Bauman (1999) indica que a ambivalência seria o “refugo” da modernidade sendo esta “a mais genuína preocupação e cuidado da era moderna, uma vez que, ao contrário de outros inimigos derrotados e escravizados, ela cresce em força a cada sucesso dos poderes modernos. Seu próprio fracasso é que a atividade ordenadora se constrói como ambivalência” (p.23).

Dessa forma, apesar do projeto da modernidade ter desenvolvido toda uma luta contra a ambivalência, por conta da própria lógica interna do projeto, esta torna-se a sua principal fonte. Permitindo, assim, com que a diferença seja, progressivamente, assumida de forma “clandestina” pela modernidade, que ao continuar pensando a diferenciação, que perpetrava como universalização, concretiza seu processo de auto-ilusão.

(36)

Tal processo gera conseqüências culturais para a constituição das subjetividades contemporâneas, que vivem numa época de reconciliação com a ambivalência num mundo implacavelmente ambíguo, fruto da derrota histórica da grande campanha moderna contra a ambivalência. Este momento traz conseqüências práticas para o homem contemporâneo, que vivendo num mundo “sem alicerces”, depara-se com a contingência como condição humana.

Tal situação exige uma reflexão das problemáticas políticas e morais deste momento, o qual deve ser assumido também pela Psicologia, já que é no espaço privilegiado da situação clínica, que este homem desamparado, assustado, vivendo sob condições de reconhecida contingência, vem chorar suas desilusões, vem falar do seu pânico do mundo e dos outros, vem buscar saber cuidar-se.

Este “novo e inquietante universo de experiência” compõe o campo de experiências no qual as subjetividades contemporâneas são constituídas. É neste solo que se situa, historicamente, o tipo de subjetividade que se apresenta à clinica psicológica contemporânea, que segundo Rolnik(1994) seria o tipo de subjetividade do homem moderno, que vive este momento de transição e que se encontraria em estado avançado de erosão. Como, então, este homem vê o mundo? Como vive o efeito perturbador de se descobrir vivendo na contingência quando foi educado para viver na necessidade? Como experiência este momento de passagem no qual não mais conta com o dogma da tradição teleológica nem com a certeza da razão, mas sim com as linhas de virtualidade de sua experiência ? Como consegue lidar, se é que consegue, com a perda da ilusão de completude e da imagem de uma ordem igual ao equilíbrio ?

E nós, enquanto psicólogos clínicos, vivendo também a radicalização da modernidade, como podemos acolher este momento de passagem ? Nossos instrumentos interpretativos possibilitam uma compreensão deste processo ? Como nos situamos diante da instauração de novas ordens sociais e de uma nova forma de pensamento que indicam o esgotamento dos discursos

(37)

universalizantes e apontam para a possibilidade de coexistência das problemáticas, acolhendo a diferença, a diversidade, a contingência e a ambigüidade?

Nesse momento surge a necessidade de compreender como, na minha prática clínica, tenho acolhido a singularidade dos clientes ao manifestarem as formas que vivenciam este mal-estar contemporâneo. Para isso, escolhi relatar momentos da minha prática clínica, resgatando o processo de mudança que foi ocorrendo e as inquietações que desencadearam e mantiveram este processo.

Dessa maneira, acredito que estarei delineando o meu percurso na clínica psicológica, descobrindo nele o contexto vivenciado com os clientes e estagiários, bem como os indicadores das mudanças que foram se processando na minha compreensão e re-significação dessa prática.

Não é fácil dar passagem às inquietações que nos atormentam. Assumi- las significa desalojamento, o que é bastante ameaçador. Mas, assumir esse desalojamento é também a condição de possibilidade de novas construções, de dirigir-me a um outro lugar. Elas já dão sinais de que precisam ser acolhidas, apesar do medo de desestabilização que provocam. Como, então, dar passagem às inquietações? Como proceder à apropriação da experiência que originou essas inquietações?

Para tentar dar passagem e assumir as inquietações provenientes da minha prática clínica, voltarei a percorrer o caminho via minha experiência.

Porém, agora, não mais no âmbito da construção teórica, mas no campo das vivências, narrando-as de modo a possibilitar um trabalho de elaboração do vivido cujo sentido se completa ao ser comunicado.

3 – Circunscrevendo o mal-estar na clínica contemporânea

(38)

A proposta de narrar minha experiência clínica oferece-se como possibilidade de tematizar-se como foco de reflexões na tentativa de produzir conhecimento. Nesse sentido, parte da experiência como “a possibilidade de ver-se a si mesmo diante da tarefa de navegar pelos mares do diverso, do plural e do alheio, inventando, contra a linearidade convencional dos modelos de pesquisa, as articulações que dêem conta de seu trajeto labiríntico em torno do fenômeno” (Schmidt, 1990:70). Ancorada nesta proposta metodológica, apresentarei uma breve narrativa do percurso da minha experiência como psicóloga clínica, ao mesmo tempo que tentarei compreender as mudanças que foram acontecendo e que deram origem às inquietações que mobilizaram este trabalho.

Nesta perspectiva, a experiência é tomada como fonte de aprendizagem, na tentativa de possibilitar a elaboração dos dados diversos que foram se desdobrando e sedimentando ao longo da minha prática clínica e da minha experiência enquanto supervisora de estágio. Neste sentido, “tomar a experiência como fonte de aprendizagem implica, ainda, a necessidade de explicitar um sentido de aprendizagem no qual a experiência seja contemplada”

(Morato e Schmidt in Morato, 1999:125). Tal posicionamento implica o reconhecimento dos processos de aprendizagem como possibilidades de conhecimento e de atribuição de significados para as experiências vividas.

A presente pesquisa, inspirada nesta postura, retrata o percurso da minha experiência clínica. Em alguns momentos assume o sentido de um verdadeiro testemunho da minha vida como pesquisadora, terapeuta e supervisora de estágio. Testemunho cujos sentidos procuro compreender a partir da reflexão sobre a matéria-prima relatada nos testemunhos-depoimento, que são tematizados na tentativa de produzir conhecimento.

Inicio, então, narrando o modo como minha prática clínica foi sendo constituída. Iniciada sob a orientação da teoria da Terapia Centrada no Cliente, foi desenvolvida em consultório particular, ao lado de outros psicólogos que

(39)

seguiam a mesma orientação. Rodávamos sempre no mesmo círculo de pessoas e tínhamos supervisão e reuniões de estudos com o mesmo profissional. Durante alguns anos, trabalhei sentindo nesta pertinência uma certa tranqüilidade e conforto.

Contudo, a partir de um determinado momento, comecei a ficar inquieta, questionando as ações clínicas (escuta e intervenção) fundamentadas na teoria da Terapia Centrada no Cliente, o que foi gerando desconforto e um sentimento de insuficiência, apesar de não localizar de onde procediam.

Gradativamente, comecei a dar-me conta do início de algumas inquietações no momento em que o trabalho com alguns clientes parecia não sair do lugar. Por mais que fizéssemos, continuávamos num interminável círculo de giz. Algo escapava e nossas falas não deslizavam. Sentindo-me impotente, passei a questionar as referências teóricas cotidianas que respaldavam minha escuta e compreensão do processo do cliente. Sem respostas, e atribuindo essa situação paralisante à minha insuficiente compreensão dos pressupostos teóricos em expressiva expansão na comunidade “psi”, afastei-me do consultório. Direcionei minha atenção para as disciplinas que lecionava no Curso de Psicologia. Neste período, participei de diversos grupos de estudos, de base psicanalítica, buscando encontrar respostas para as questões que não conseguia responder tendo como base a teoria da Terapia Centrada na Pessoa. Quem sabe, pensava, outro referencial teórico pudesse desemperrar minha atuação e compreensão. Percebi , então, que para nada me serviria a mudança de orientação ( que poderia, sim, ser a posição de saída mais fácil), sem antes, partindo das minhas inquietações, inclinar-me para uma compreensão contextualizada do processo de construção da teoria rogeriana e de seus seguidores. Decidida a apropriar-me de minhas inquietações e levar adiante possíveis reflexões, retomei a clínica, iniciando um movimento de participação intensa nos eventos e encontros da Abordagem Centrada na Pessoa, buscando encontrar situações que possibilitassem e dessem passagem às minhas inquietações. Na realidade, o que encontrei revelou-se ambíguo: ou uma defesa cega dos princípios rogerianos de forma acrítica e atemporal, ou questões, perguntas, inquietações de alguns colegas que pareciam estar vivendo a mesma situação que eu. Em alguns grupos desses

(40)

“inquietos” percebi a tentativa de re-visitar a proposta rogeriana através de leituras filosóficas com base na fenomenologia e no existencialismo, proposta essa que me interessou e à qual fiquei vinculada por algum tempo. Naquele momento, sentindo-me mais confortável, por tais propostas iniciantes de ir além da teoria rogeriana, assumi, na Universidade, a supervisão de estágio na Abordagem Centrada na Pessoa. Esta paz durou pouco. Voltaram as inquietações e a mesma velha sensação de que algo no discurso dos clientes me escapava, sensação essa acentuada pelo desconforto sentido nas supervisões, quando me flagrava articulando a prática dos alunos com a teoria da Terapia Centrada no Cliente, numa tentativa de compreensão do processo.

Que processo? Do cliente, do aluno, da relação terapêutica, da psicoterapia, da teoria centrada na pessoa, da supervisão, e , acima de todos, o processo das minhas inquietações. Por essas articulações, comecei a encontrar espaços vazios que, nem mesmo podiam ser preenchidos pelas contribuições que tinha assimilado de possíveis re-leituras da ACP, através da fenomenologia e do existencialismo. Desse modo, abriu-se a urgência de retomar o caminho de questionamentos. Não me parecia justo para comigo mesma, nem para com meus clientes e alunos, assumir, mais uma vez, passivamente, as contribuições de possíveis re-leituras. Dispunha, agora, de uma experiência clínica que precisava ser considerada e legitimada para referendar reflexões críticas.

Vejo-me , então, “convocada a mergulhar nesta experiência para depois, e somente depois, retirar-me dela e poder formar idéias. Para pensar, é preciso buscar clarear um sonho, um devaneio. Tentar dar-lhe um esboço de contorno.

Primeiros rabiscos. Amorfos.” (Morato, 1989:5). É difícil comunicar o que estou querendo dizer. Não sei por onde começar. Vai ficando claro que retomar, refazer, reconhecer o fazer, possibilita a elaboração, a reflexão, a compreensão do que foi vivido e que, muitas vezes, não foi identificado.

O que estou tentando é refletir sobre o meu fazer enquanto terapeuta, recorrendo para isso às situações de desconforto provenientes da minha prática clínica, ao meu próprio desalojar. Situações que geram a sensação de não ter conseguido apreender a significação da demanda do cliente e,

(41)

conseqüentemente, de não ter conseguido, através de intervenções adequadas, favorecer o processo, funcionando como “intercessora”2 da experiência de desalojamento do cliente.

Neste momento, confirmo a experiência vivida por Morato(1989), na elaboração de sua tese de doutorado, ao indicar que “podendo reconhecer-me, posso expressar-me e compartilhar essa possibilidade com vocês.[...] Ao resgatar-me também me situo. Situando-me, uma nova perspectiva possível surge: a minha pertinência” (p.10).

É partindo da minha experiência que evidencio mais uma possível conseqüência desse processo: o apropriar-me de mim mesma, que possibilita construções novas e criativas. É trabalhando na ressonância com aquilo que me afeta que vou poder apropriar-me. Quem sabe, provavelmente, desse modo, a expressão do que está em transformação na minha experiência clínica encontrará possibilidade de tradução.

Para isso, inicio uma “viagem”, não cronológica, que, como testemunho, apresenta o meu percurso na clínica psicológica, agora direcionado para revelar situações em que senti que os construtos teóricos, apresentados pela teoria da Terapia Centrada no Cliente, eram insuficientes como escuta, compreensão e intervenção na ação clínica contemporânea.

Começo a “viagem”, carregando, na bagagem, lentes de visão da natureza humana expressa na teoria rogeriana. Contudo, ofuscada pela sensação de limitação de minha escuta e compreensão da condição humana na experiência clínica, tais lentes acabam revelando-se como “saia justa”.

Miopia minha ou lente limitada? Ouso encaminhar uma reflexão. Limitação de visão de “natureza humana”, tão carregada de dicotomia e de essencialismo que precisa ser revisitada.

_____________________

2 Intercessora é um termo utilizado por Suely Rolnik (1995), no texto “Subjetividade e Historia “ , publicado pela Revista” Rua” do Núcleo de Desenvolvimento e Criatividade da UNICAMP, em que assumindo a noção introduzida por Deleuze de “intercessor”, define-a como alguém que funciona como intercedendo a favor do estranho que nos habita.

(42)

Limitação essa oriunda do reconhecimento da contradição presente no pensamento de Rogers (1970) que, ao fazer uma analogia da natureza humana com a natureza animal, ressalta as características de positividade e sociabilidade como inerentes ao homem, enquanto a hostilidade e a destrutividade seriam decorrentes de influências sociais. Distingue entre o natural e o social, ao mesmo tempo que reconhece a sociabilidade como valor implícito ao organismo individual. Como filho legítimo da modernidade, funciona dentro da lógica do pensamento moderno. Ao defender a polaridade homem/sociedade, configura mais nitidamente o caráter indiviso e centralizador da sua noção de pessoa, que representa uma tentativa de escapar da ambigüidade e da contingência da condição humana, através de uma concepção essencialista e naturalista do ser humano. Uma visão teleológica, moralmente positiva que, considerando a pessoa como centro, enfatiza um potencial de desenvolvimento, que lhe é inato, de caráter intrinsecamente

“positivo” da natureza humana. Nessa perspectiva, como compreender a clínica e a função do terapeuta? Facilitação do processo de expressão da tendência atualizante para o desenvolvimento inerente à pessoa, através de condições básicas propiciadas pelo terapeuta na relação com o cliente. Mas, então, como compreender sua restrição quando, na prática clínica, essa perspectiva que respaldava a minha compreensão do fenômeno clínico, não contemplava minha experiência de que algo ficava de fora. Algo na comunicação do cliente, por ser “estranho” a esse modo de compreensão de constituição da subjetividade, não tinha passagem. Esse “estranhamento”, tantas vezes angustiantemente experienciado, não podia ser compreendido, unicamente, como resultado do estado de desacordo entre o self e a experiência. A relação terapêutica não podia mais ficar restrita a condições que possibilitassem o desbloqueio de certos sentimentos. Algo pedia passagem e trânsito, demandando ser acolhido como próprio da condição humana.

À medida que encaminhava tais reflexões, configurava-se que o grau das lentes também estava sendo alterado. Com este outro olhar, minha prática

Neste texto, faz uma analogia entre intercessor e o analista, cuja tarefa consistiria, basicamente, em se colocar à

Referências

Documentos relacionados

O Museu Digital dos Ex-votos, projeto acadêmico que objetiva apresentar os ex- votos do Brasil, não terá, evidentemente, a mesma dinâmica da sala de milagres, mas em

nhece a pretensão de Aristóteles de que haja uma ligação direta entre o dictum de omni et nullo e a validade dos silogismos perfeitos, mas a julga improcedente. Um dos

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

Tal será possível através do fornecimento de evidências de que a relação entre educação inclusiva e inclusão social é pertinente para a qualidade dos recursos de

O objetivo deste experimento foi avaliar o efeito de doses de extrato hidroalcoólico de mudas de tomate cultivar Perinha, Lycopersicon esculentum M., sobre

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Apothéloz (2003) também aponta concepção semelhante ao afirmar que a anáfora associativa é constituída, em geral, por sintagmas nominais definidos dotados de certa