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Mulheres muçulmanas em movimento: feminismo(s), hermenêutica e ativismo político. Flávia Abud Luz 1

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Mulheres muçulmanas em movimento: feminismo(s), hermenêutica e ativismo político

Flávia Abud Luz1 Introdução

O encontro do feminismo e do Islã foi marcado por uma série de desentendimentos entre acadêmicos do Ocidente e Oriente Médio acerca das realidades um do outro; por um lado o a visão do Ocidente fortemente influenciada pelo estereótipo do discurso orientalista apresentava as sociedades muçulmanas como ambientes pouco prováveis para o surgimento de um discurso revisionista feminino (nos aspectos social, cultural e econômico) devido ao papel inibidor do próprio Islã e, de outro lado as muçulmanas buscaram desenvolver sua agenda a favor da igualdade gênero, justiça, direitos humanos e ampliação da atuação política através da reinterpretação de textos sagrados.

Enquanto consciência de gênero, o feminismo emergiu nos países muçulmanos como uma espécie de intersecção entre a denominada modernidade e o Islã ainda no final do século XIX, em países como o Egito e a Turquia e ao longo das primeiras décadas do século XX tomou a forma de movimentos sociais organizados. Em um primeiro momento, o questionamento acerca dos aspectos religioso e secular que compunham os movimentos de luta pela igualdade entre homens e mulheres foi um ponto importante. Diferentes formas de secularismo foram desenvolvidas nos países de maioria muçulmana. No Egito, por exemplo, o termo secularização foi traduzido para o árabe como um processo de separação entre a autoridade do Estado e a autoridade religiosa, bem como a formação de um Estado moderno que assumiria a responsabilidade legal e institucional de aspectos antes geridos por autoridades religiosas, e reformas foram realizadas no âmbito educacional e legal. No período pós-colonial, em vários países muçulmanos o termo secular – já empregado para

1Mestranda em Ciências da Religião, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), especialista em Política

e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e bacharel em Relações Internacionais pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Filiada à Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e Membro do Núcleo de Estudos Multidisciplinar de Relações Internacionais (NEMRISP). Email: flavia.abud.luz@hotmail.com

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designar um Estado composto de cidadãos considerados iguais, independentemente de sua filiação religiosa, que compartilhavam um mesmo território – adquiriu outra conotação: passou a designar especificidades nacionais, ou seja, como uma espécie de sinônimo para os termos nacional ou nacionalismo. Em seu estágio inicial, o feminismo secular esteve orientado por ações mais objetivas, como o engajamento na militância social e política. O feminismo islâmico, diferentemente do secular, desenvolveu-se na cena política do Oriente Médio e Norte da África no início da década de 1990 como um novo discurso ou reinterpretação dos preceitos da doutrina islâmica, através de uma interpretação independente (ijtihad) do Alcorão e outros textos religiosos, que questionava que o modelo patriarcal de família observado em algumas sociedades muçulmanas não era condizente com o principio da igualdade humana e justiça de gênero presentes no Alcorão, ou seja, o conflito estava relacionado à interpretação conferida aos textos religiosos (BADRAN, 2009, p.302; MIR-HOSSEINI, 2011,p.71), e ao mesmo tempo buscavam promover a igualdade de gêneros de maneira fluída entre a esfera público-privada (aspecto que não era presente na leitura secular, que mantinha a clássica divisão ente os espaços público e privado).

As relações entre as muçulmanas feministas e as islamitas inicialmente não possuíam um padrão central, eram instáveis e alteraram-se de acordo com a situação: em alguns momentos desenvolveram uma espécie de padrão polarizado, em que cada lado observava o outro como um adversário no que diz respeito à concretização de seus interesses ou objetivos, enquanto em outros ocorreu uma aproximação por conta de objetivos comuns, como, por exemplo, em dois casos emblemáticos. O primeiro, ocorrido na metade da década de 1980 na Turquia, relacionou-se ao debate em torno do uso do véu islâmico (hijab) por parte das mulheres muçulmanas em um momento em que o governo turco havia proibido o uso da referida peça de vestuário em locais públicos. Neste cenário, a denominada segunda geração de feministas apoiou as feministas islamitas no que diz respeito ao uso do véu em universidades e demais ambientes públicos. O segundo evento foi sucesso do ativismo político de feministas e islamitas do Iêmen que propiciou, através de um discurso baseado no islã, a mobilização das mulheres para a participação ativa nas eleições parlamentares de

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1997 e a ação conjunta na elaboração de um documento que clamava pela revisão do chamado código de status pessoal ou direito de família, baseado até então na interpretação conferida à xaria (BADRAN, 2009, p. 217).

Tendo em vista a importância do tema e a atualidade de sua discussão, o objetivo desta comunicação será apresentar as origens (no entrelace com demandas do feminismo secular, como a revisão do código muçulmano de status pessoal e as propostas de reforma do Islã), principais demandas e avanços do Feminismo Islâmico, movimento religioso e político de luta contra a opressão das mulheres em países muçulmanos, destacando as experiências de países como o Egito, Turquia e República Islâmica do Irã.

Conforme será discutido ao longo do texto, o Feminismo Islâmico, desde seu surgimento até expressões na atualidade2, conseguiu avanços teóricos importantes, tais como o questionamento da noção de que a esfera familiar constitui um domínio separado ao invés de uma continuidade dos espaços público (e sociedade) e privado, além do desmonte da noção de que o Islã conduziria, necessariamente, a um modelo patriarcal de sociedade3. No entanto, como se observa nas experiências de países como a da República Islâmica do Irã, o maior desafio apresentado ao atual discurso feminista advém da dificuldade de alcançar de forma prática a igualdade de gênero no âmbito familiar, ainda dominado por visões mais tradicionais acerca do papel a ser ocupado por homens e mulheres.

Feminismo(s) e Islã: debates, pautas e experiências

A consciência a respeito da desigualdade na relação entre gêneros em algumas sociedades muçulmanas, conforme analisa de maneira assertiva Mojab (2001, p.125-127), é anterior ao contato de parcelas das referidas sociedades com o denominado feminismo ocidental, porém passa a ter maior envergadura no final do século XIX, agora com a influência modernizante ocidental, em que discussões desenvolvidas acerca da compatibilidade (ou

2Entre as principais expoentes do movimento, destacam-se os trabalhos desenvolvidos por Amina Wadoud

(1999), Ziba Mir-Hosseini (1993; 1996; 2011) e Asma Barlas (2002).

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não) da emancipação feminina e da igualdade de gênero com os princípios do Islã foram constantes em países como o Egito e a Turquia. Nesse primeiro momento, o questionamento acerca do papel inibidor Islã frente ao surgimento de um discurso revisionista de gênero esteve presente e foi articulado por forças feministas, seculares e religiosas para compor seus argumentos4.

De um lado, observou-se a tendência de enfatizar que a demanda por igualdade era compatível com os princípios do Islã, sobretudo através da reinterpretação do Alcorão – ao argumentarem que a segregação ou exclusão impostas às mulheres estaria em desacordo com o Islã, como clamaram as primeiras feministas ou reformistas egípcias, a exemplo de Malak Hafini Nasif5, feminista egípcia e escritora que protestou contra abusos cometidos por homens no que diz respeito ao divorcio e à poligamia, clamou pelo direito das mulheres de participarem das orações em mesquitas e desenvolver seus estudos religiosos para contribuir com o bem-estar e desenvolvimento da umma (a comunidade holística dos muçulmanos) e, sobretudo, pela reforma do denominado código de status pessoal muçulmano. Ainda em 1909, Nasif propôs um programa extenso de reformas no que diz respeito à interpretação do Alcorão, sendo que ênfase especial foi colocada na importância do acesso das mulheres aos textos sagrados e seu estudo para posteriormente serem capazes de desenvolver a livre interpretação (ijihad) dos mesmos.

No entanto, de outro lado também estavam as reações contrárias a possibilidade de compatibilizar a demanda da igualdade de gêneros e a realidade das sociedades muçulmanas, ou seja, existiam parcelas da sociedade que argumentavam que tal demanda

4 BADRAN (2009, p.220)

5Nasif (1886-1918) iniciou a publicação de seus ensaios no jornal al-Jarida, publicação esta desenvolvida pelo

partido nacionalista e progressista egípcio al-Umma. Os ensaios de Nasif foram organizados em um livro publicado em 1910, momento em que o feminismo tornava-se mais presente em discussões na sociedade egípcia e o referido movimento parecia articular de forma assertiva demandas de gênero e a linguagem dos anseios de libertação nacional (BADRAN, 2009, p.21-23).

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de reforma era uma pauta ocidental, uma forma diferente de invasão cultural e colonial, e anti-islâmica.

O movimento feminista, além da controvérsia acerca dos direitos das mulheres e sua relação com a religião dominante, floresceu – principalmente até a primeira metade do século XX – em um momento singular em que as sociedades muçulmanas passavam por transformações internas e externas por conta do impacto do colonialismo europeu, a modernidade e seu discurso reformista, o nacionalismo (sob a égide de movimentos de independência e a chamada para a formação de Estados independentes) e influências políticas, como o socialismo. Entre as transformações mencionadas, o discurso de libertação nacional e chamado para a formação de Estados independentes, baseado em laços culturais e espaço compartilhado, sobressaiu e as novas identidades nacionais não encontravam-se circunscritas à filiação religiosa, ou seja, o movimento do secularismo nacional ganhava força com a noção da construção de um novo tipo de identidade coletiva, pautada em uma noção de raízes históricas e território comuns, sendo a religião garantida e as múltiplas identidades religiosas reconhecidas (BADRAN, 2009, p.220; MOJAB, 2001, p.125).

Na dinâmica acima referida, mulheres urbanas de classe média e alta que viviam confinadas ao domínio privado da família em diversos países do Oriente Médio passaram a desenvolver um discurso feminista que demandava participação na vida pública, o que tornava o movimento feminista uma nova e importante força social que demandava por direitos sociais, políticos e econômicos, e que se garantidos e exercidos teriam a capacidade de trazer à realidade a redistribuição do poder nas esferas público e privada. Tendo em vista esse potencial reformador do movimento e discurso feminista, ficam evidentes algumas das motivações e condições que fizeram com que as demais forças políticas e sociais – tais como nacionalistas (ou seculares), islamitas e socialistas – de alguns países predominantemente muçulmanos buscaram articular-se de modo a controlar ou integrar em suas frentes os movimentos de mulheres em seus respectivos países.

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Os contornos dos movimentos feministas em países do Oriente Médio e Norte da África alteraram-se de acordo com a forma com que se inseriram as demandas das mulheres e suas experiências na sociedade, e por último, mas não menos relevante, estão as relações estabelecidas entre o denominado feminismo secular (ligado, inicialmente, aos movimentos de liberação nacional no que diz respeito ao domínio europeu e por isso tomou o termo secular passa a ser empregado sob a conotação de nacionalista) e feminismo com bases

religiosas (cabe ressaltar que não eram todas as representantes deste movimento que se

consideravam feministas, neste momento havia maior afinidade com a noção de reformista ou modernista do Islã), que clamava pelos direitos das mulheres e igualdade de gêneros através de argumentos advindos de textos sagrados.

No Egito, o movimento feminista passou por algumas fases, porém no início parecia existir para as pioneiras egípcias uma sintonia ente a religião e a busca dos direitos das mulheres, ou seja, as mulheres conceberam um movimento com inspiração religiosa com o intuito de resgatar os direitos que a elas teriam sido garantidos através do Islã – ação esta que também foi tomada por mulheres cristãs. Assim:

O discurso das fundadoras do feminismo egípcio esteve ancorado simultaneamente no discurso da reforma islâmica e no nacionalismo secular. O feminismo secular (geralmente chamado apenas de feminismo) oferecia argumentos islâmicos ao demandar os direitos das mulheres à educação, trabalho e direitos políticos – juntamente com direitos nacionalistas, humanitários e argumentos democráticos (BADRAN, 2009, p.246)

Esta espécie de intersecção entre múltiplos discursos e orientações políticas, tais como o nacionalismo secular, modernismo islâmico, humanitarismo e democrático, é considerada uma das características deste feminismo secular egípcio.

Os esforços das pioneiras egípcias em busca dos direitos das mulheres começaram ainda na metade do século XIX, após a liberação do Egito do domínio direto do Império Otomano, momento em que o novo governante – Muhammad Ali – fez alterações na direção da consolidação de um processo de secularização do Estado, sobretudo nas áreas da educação e das leis, com exceção do código muçulmano de status pessoal, lei esta que regula aspectos

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da vida familiar, tais como o casamento, o divórcio, a custódia dos filhos, de acordo com interpretações da lei islâmica. A nova organização do Estado egípcio criou uma espécie de dicotomia entre o papel das mulheres nas esferas pública e privada6, ou seja, na esfera pública a mulher era vista enquanto cidadã do recém-formado Estado-nação que se pretendia comunidade de cidadãos iguais, independentemente de sua filiação religiosa, processo que fez com que a religião se apresentasse na esfera privada, onde teria a função de regular a relação dos indivíduos na família. No entanto, as forças religiosas e o Estado – embora com interesses e/ou agendas diferentes – mantiveram alianças que não questionaram, aliás, acomodaram as formas patriarcais de controle das mulheres.

As feministas egípcias (embora nem todas assumiram tal nomeação para si, mas se consideravam ativistas dos direitos das mulheres) ainda no período de influência britânica (desde 1882 até 1922), aderiram, simultaneamente, a dois discursos principais: o de reforma do modernismo islâmico e o nacionalismo. O primeiro discurso, representado pela ideia de modernismo islâmico7 – foi influenciado pelo reformista Mohammad Abduh – que através do princípio da ijtihad permitiria aos muçulmanos uma interpretação independente das fontes religiosas (o Alcorão e o Hadith) de modo a exercerem os papeis de cidadãos do Estado moderno e membros da comunidade muçulmana, questionou as tradicionais interpretações religiosas e considerou-as violadoras de princípios do Islã, sobretudo pelo fato de que segundo o xeique e professor Abduh abusos relacionados aos aspectos que regiam o âmbito familiar, tais como o divórcio e poligamia, que eram cometidos através de uma interpretação equivocada do Islã. O segundo discurso compreende o desenvolvimento de um movimento formado por homens e mulheres com o intuito de alcançar dois objetivos principias: a retirada dos britânicos do território egípcio e a construção de um Estado-nação secular, ou seja, baseado no compartilhamento de um território e no entendimento de que todos os cidadãos de filiações religiosas diversas – como no caso dos muçulmanos e coptas –

6 BADRAN (2009, p.17-18) 7 BADRAN (2009, p.19-20; 222)

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fossem considerados iguais. As feministas egípcias detinham como aspecto secular o fato de abarcarem de forma inclusiva muçulmanas e cristãs na luta comum por direitos iguais e, ao mesmo tempo foram reformistas islâmicas ao colocarem a reforma da religião no centro de debates como a busca de alterações do código muçulmano de status pessoal8.

Ao longo do século XX, conforme explana Singerman (2001, p. 98), diferentes bandeiras integraram os esforços do movimento feminista egípcio, sobretudo através das organizações não-governamentais e movimentos sociais, sendo que entre estas quatro são as principais: a dos direitos, a do desenvolvimento, a do feminismo e a islamita. A bandeira dos direitos, por exemplo, aglutinava profissionais da área do direito e ativistas que buscavam mostrar os aspectos legais da igualdade entre os indivíduos, além de desenvolverem estratégias para alterações no código muçulmano de status pessoal (sobretudo aspectos como casamento, divórcio e custódia de filhos) que foram utilizados por organizações não-governamentais como forma de pressionar as autoridades a realizarem reformas. Entre os avanços do movimento feminista, bem como os retrocessos e críticas contra este, alguns aspectos destacam-se: a) a formação da União Feminista Egípcia (em 1923) – o primeiro movimento organizado de mulheres – que clamou pela concretização de direitos políticos, sociais e econômicos, mas atuou de forma mais engajada no acesso à educação (alcançado no nível elementar, fundamental e posteriormente universitário) e na revisão do código muçulmano

de status pessoal, sendo que se alcançou a alteração da idade mínima para casar; b) depois

de décadas de ativismo, propostas feitas à lei eleitoral e forte críticas de autoridades do Estado, os resultados, no que diz respeito à demanda por direitos políticos, foram diversos: no ano de 1956 as mulheres alcançaram o direito ao voto e ao mesmo tempo as organizações de mulheres foram banidas; e c) a denominada Lei de Jihan, advinda de um decreto presidencial de 1979 que trouxe alterações no código muçulmano de status pessoal,

8 BADRAN (2009, p.224-225)

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permitindo às mulheres a iniciativa do divórcio e a proteção às mulheres divorciadas, foi considerada inconstitucional e revogada em 1985.

Na Turquia, ao final do século XIX e princípio do século XX iniciaram-se alguns debates acerca da posição da mulher na sociedade de forma concomitante com o processo de modernização do país, que implicou, inclusive, na adoção de um código civil (em 1926) de caráter secular (baseado no modelo suíço), e na imposição de cima para baixo de reformas modernizantes que abarcavam – no que diz respeito às mulheres – a retirada dos véus e a possibilidade de outras formas de vestimenta, novas oportunidades no nível educacional e direitos políticos; porém de maneira contraditória o Estado não permitia a formação de movimentos independentes de mulheres. Na década de 1980 as ativistas de gênero (forma usada para nomear as mulheres que se engajaram na luta por seus direitos), inspiradas no movimento de releitura de textos sagrados do Islã passaram a questionar as reformas realizadas sob a liderança de Kemal Atatük, como, por exemplo, a presença no espaço público ao acessarem o sistema educacional, além do exercício de direitos políticos, como o direito ao voto e a se candidatarem para eleições municipais e no Parlamento; pois acreditavam que embora avanços fossem registrados, não foram todas as mulheres que se beneficiaram dos direitos adquiridos (uma disparidade entre mulheres rurais e urbanas), a limitação da ação de movimentos independentes de mulheres e mantiveram as instituições de caráter patriarcal (BADRAN, 2009, p.223).

Feminismo Islâmico: surgimento, demandas e hermenêutica

Diferentemente do denominado feminismo secular, que emergiu no cenário político e social de alguns países do Oriente Médio sob a forma de movimentos sociais, o feminismo islâmico surgiu no final da década de 1980 e início da década de 1990 – em países como a República Islâmica do Irã, Malásia, entre outros – sob a égide de um discurso religiosamente embasado que abordava a igualdade de gênero, articulando um discurso de direitos das mulheres e igualdade de gênero com a reinterpretação de textos sagrados, como o Alcorão e os hadiths

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(ditos religiosos e costumes atribuídos a Maomé que são passados de maneira oral ao longo do tempo) e o fiqh (ou jurisprudência).

O feminismo islâmico trouxe do paradigma do feminismo secular no Oriente Médio (aquele que metodologicamente é datado do final do século XIX e meados do século XX) a bandeira do modernismo islâmico e desenvolveu um discurso religioso progressista como seu discurso central, avançando em aspectos como a noção de igualdade entre homens e mulheres na

qualidade de seres humanos ao longo do espectro público e privado, tendo como base novas

leituras do Alcorão, enquanto que o paradigma do feminismo secular insistia na igualdade ente os gêneros na esfera pública, mas parecia ainda aceitar a diferença e complementaridade na esfera pública ou âmbito familiar, aspecto este que para as representantes do novo discurso feminista não poderia perdurar, ou seja, era necessário alcançar a justiça social e a igualdade de gêneros, reinterpretando e questionando a ideia de uma hierarquia de gênero (sobretudo no âmbito privado) e o tradicional modelo de autoridade patriarcal. No contexto de seu surgimento, um aspecto foi importante: o movimento conservador dentro do Islã – sob a égide do movimento islamita – que diferentemente das retóricas anteriores, como o nacionalismo (que foi apropriado por forças feministas como forma de alcançar a igualdade de direitos à época da formação dos novos Estados-nação) e reformista islâmico (que clamava por reformas e inovações no que diz respeito às relações de gênero), possuía um discurso conservador acerca do papel das

mulheres, sobretudo pelo fato de clamar pelo retorno destas à vida doméstica, vista como

correta e autêntica, afastando-as da esfera pública.

Um exemplo deste movimento conservador representado pelo movimento islamita pôde ser observado na República Islâmica do Irã quando da Revolução Iraniana (1979), momento em que clérigos xiitas tomaram o poder do país persa e buscaram reverter o processo de secularização das leis que havia sido iniciado na dinastia Pahlevi e as reformas iniciais atingiram os direitos das mulheres: primeiro, o Estado fez com que as mulheres que trabalhassem no governo voltassem a observar o uso do véu; depois suspendeu a Lei de

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Organização das Mulheres do Irã (OMI) e teve como aspecto principal a reforma que permitiu que as mulheres entrassem com o pedido de divórcio (algo anteriormente exclusivo aos homens) e com outras emendas feitas na década de 1970 permitiu às mulheres o direito limitado à custódia dos filhos –; e por último dispensou as mulheres que exerciam a profissão de juízas (MOJAB, 2001, p.131-133; AFARY e ANDERSON, 2011, p.129). As mulheres desapontadas com o discurso oficial do governo revolucionário e preocupadas com os retrocessos em seus direitos adquiridos ao longo do denominado processo de secularização/modernização do país passaram alterar seus discursos e práticas, desenvolvendo assim um novo discurso feminista que questionava as tradicionais interpretações das fontes sagradas do Islã, clamava pelos direitos das mulheres e posteriormente deu origem ao movimento de reforma no país persa. A revista iraniana Zanan, criada no início da década de 1990, atuou de maneira ativa no que diz respeito à divulgação e circulação de textos e reflexões feministas, mesmo sob repressão do governo (MIR-HOSSEINI, 2011, p.70).

Os esforços das mulheres em desenvolver uma hermenêutica de cunho feminista do Islã iniciaram-se com as pioneiras egípcias (como descrito anteriormente) no início do século XX, porém foram retomados por movimentos como o Irmãs no Islã, surgido na Malásia no final da década de 1980 e início da década de 1990, um grupo de mulheres com formação nas áreas de Direito e Ciências Sociais que se uniram com o intuito de interpretar o Alcorão de forma a detectar na releitura do referido texto sagrado elementos que pudessem comprovar se a opressão e/ou violência contra as mulheres eram de alguma forma presentes de maneira inquestionável no texto ou se tais aspectos – que utilizados por autoridades políticas e religiosas para perpetuar injustiças cometidas contra as mulheres – constituíam apenas fruto das interpretações dos textos sagrados, que eram feitas tradicionalmente por homens (FUENTE, 2015, p.27). Compreendida como o exercício da função narrativa ou a explicação de textos sagrados para a população em geral, a hermenêutica – principal ferramenta teórica e discursiva do feminismo islâmico – não é atemporal, mas se constitui uma forma de relato cuja validade reside na justaposição de elementos como o texto que é

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lido (e interpretado), a pessoa que desenvolve o raciocínio acerca do texto e, principalmente, o momento histórico e/ou político em que tal processo ocorre.

A hermenêutica feminista proposta por aquelas que aderiram e/ou desenvolveram o paradigma do feminismo islâmico possuía algumas premissas, tais como: a) questionar a noção de um laço inerente entre os ideais islâmicos e o patriarcado, argumentando que o Alcorão afirma o princípio de igualdade de todos os seres humanos, mas a prática desta igualdade era impedida ou subvertida pela ideologia patriarcal relacionadas às práticas da sociedade no século IX em que a jurisprudência islâmica foi consolidada, e pelo uso dos

hadiths (atribuídos ao Profeta Maomé) de origem questionável ; b) a ideia de que não existe

contradição entre a fé e a demanda pela igualdade de gênero; e c) a ênfase na polissemia do idioma árabe, talvez o aspecto mais importante devido a sua capacidade interpretativa, visto que as feministas islâmicas reforçam a diferença dos sentidos literal, contextual e temporal de algumas palavras consideradas centrais e encontram-se no Alcorão (MIR-HOSSEINI, 2011, p.74-75; BADRAN, 2009, p.248). Desta forma, ao debruçarem-se sobre a interpretação independente das fontes religiosas – sobretudo o Alcorão, mas também os hadiths – as expoentes deste novo paradigma feminista apontaram suratas e versos que de forma clara (de acordo com essa nova reinterpretação) anunciam a igualdade entre homens e mulheres – como, por exemplo, a surata 9, verso 71 em que enuncia-se que “ os crentes e as crentes são aliados uns dos outros”, ou seja, insere-se o principio da colaboração entre homens e mulheres, ao invés da noção de hierarquização –, e, atuaram de forma a desconstruir a interpretação feita de passagens acerca das diferenças entre os gêneros que eram utilizadas para acentuar e manter a noção de superioridade masculina.

Após mais de duas décadas de seu surgimento, o feminismo islâmico trouxe, simultaneamente, esperanças e questionamentos acerca de suas possibilidades e usos políticos. Badran (2009, p.311-318) ao longo de seus extensos estudos acerca dos movimentos de mulheres no Oriente Médio argumenta que o feminismo islâmico possui o potencial de quebrar as barreiras, desenvolvidas no plano teórico, acerca da interação entre o feminismo secular e islâmico ao observar que este último possui aspectos que o ligam às

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formas vivenciadas do feminismo secular, como por exemplo, o uso e argumentos religiosos para demandar os direitos das mulheres à igualdade, educação e direitos políticos, bem como a demanda pela revisão do código muçulmano de status pessoal em diversos países. Além disso, segundo a referida autora o feminismo islâmico possuiria o potencial de retomar o caráter holístico do Islã (em que os elementos nacionais e religiosos se complementam), promovendo uma revolução de gênero no Oriente Médio e região. Em sua análise crítica acerca da experiência vivenciada na República Islâmica do Irã, Mojab (2001, p.141-143) argumenta que o feminismo islâmico não possuiria o potencial de desafiar seriamente o patriarcado, visto que ao invés de ser uma alternativa aos movimentos anteriores (ligados ao nacionalismo e as forças políticas emergentes no século XX) o novo paradigma pode ser lido também como uma forma de justificar as relações desiguais entre os gêneros, sobretudo porque este parte de um fundamento inicial (que pode não ser sustentado) de interrogar os textos de forma a responder aos anseios dos direitos das mulheres.

Fuente (2015, p.21-22) fala da possibilidade de incorrer nas narrativas e discursos que - ao resgatar as contribuições de Célia Amorós - chama de nova mulher (ou companheira ilustrada) e a noção de idealização da igualdade. Este discurso da nova mulher surgiu no século XX e foi apropriado por representantes do Islã (como na Revolução Iraniana) reconhece a contribuição que a mulher pode exercer no espaço público, porém ao mesmo tempo mantém o caráter patriarcal e disciplinar, ou seja, definindo as mulheres através de seu papel como mães e esposas comprometidas com seus filhos e família, discurso este que propicia, desta forma, o controle do corpo e identidade da mulher e reforça a noção de idealização da igualdade ao argumentar que o Alcorão já trazia em seus textos a elevação da condição feminina em relação aos esquemas tribais de sociedades pré-islâmicas ao trazer a igualdade entre os seres humanos e reconhece seus direitos.

Considerações Finais

De maneira histórica, conforme apresentado ao longo deste texto, as mulheres muçulmanas desenvolveram o que estudiosos denominam de dois paradigmas centrais de feminismo,

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que na literatura especializada foram descritos como feminismo secular e mais recentemente (sobretudo ao longo da década de 1990) o feminismo islâmico, e embora estes não operem necessariamente como movimentos apartados ou rivais como a primeira vista possa parecer, aspecto este debatido recentemente por Margot Badran, Nayreh Tohidi e Diane Singerman acerca da justaposição de discursos e práticas que possibilitaram o movimento feminista de forma geral, às vezes persiste certa confusão acerca dos referidos movimentos.

O movimento feminista secular emergiu em países do Oriente Médio e Norte da África ainda no final do século XIX e primeira metade do século XX, momento em que os países da região passavam por um processo de modernização baseada nos movimentos anti-coloniais e na busca da formação de Estados independentes, e desta forma desenvolveu um movimento cujo discurso era uma espécie de intersecção entre os discursos nacional secular, reformista islâmico (que buscava discutir e até mesmo alterar a interpretação de elementos religiosos, como foi o caso do código muçulmano de status pessoal no Egito) e humanitário.

O feminismo islâmico desenvolveu-se em diversos países do Oriente Médio e Norte da África, bem como em países do Ocidente (devido à imigração) no final do século XX, no contexto posterior ao movimento anti-colonial e do desenvolvimento do movimento do Islã político, sobretudo em países como a República Islâmica do Irã, o Egito e o Sudão. O referido movimento teve como método a ijtihad (interpretação independente) do Alcorão e demais fontes religiosas e desenvolveu um discurso crítico que abordava a igualdade de gênero, articulando um discurso de direitos das mulheres e igualdade de gênero com a reinterpretação de textos sagrados, fato que questionava, por exemplo, o modelo patriarcal de família, argumentando que este não estaria de acordo com os princípios corânicos de igualdade humana e justiça de gênero.

Um aspecto que ficou evidente ao longo do texto é o de que ambos os paradigmas de feminismo desenvolvidos no Oriente Médio e Norte da África – o secular e o islâmico – embora se baseassem na busca pela igualdade de gênero e direitos das mulheres, tinham

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uma abordagem diferente acerca da dimensão da referida igualdade, ou seja, a dinâmica entre espaço público e privado. As ativistas do feminismo islâmico buscaram promover a igualdade de gênero através de uma linguagem religiosa e através de um contínuo fluido da noção público-privado, estendendo assim tal igualdade na sociedade e família, respectivamente. Além disso, enfatizavam a necessidade das mulheres capacitarem-se para o estudo e interpretação de textos, com o intuito de acessarem espaços públicos religiosos, sobretudo nas mesquitas. As pioneiras do feminismo secular enfatizavam a igualdade de gênero na esfera pública, enquanto que na esfera privada (âmbito familiar) persistia a noção de complementação de gênero; e a interpretação proposta pelo feminismo islâmico entendia de maneira fluída os espaços público e privado e demandava que a igualdade em ambos.

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Referências

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