A
Palavra
emThe Waves
(Virginia
Woolf)
egua
Viva
(Clarice Lispector)
A
Palavra
emThe Waves
(Virginia
Woolf)
eAgua
Viva
(Clarice
Lispector)
i'"'i&
-h;
/'V- ~'/A:
1-' Tilli ''W
C
". .'"- - 'vV';v-'
V'
>//fff
. "'-v>._ .-'c., ._-.yDisserta9o
de
Mestrado
emEstudos
Literrios
Comparados
sob
aorienta9ao
da
Prof.a
Doutora
Alda
Correia
apresentada
naEaculdade de Cincias Sociais
eHumanas
da Universidade
Nova de
Lisboa
Lisboa
2002
1.
Real,
referncia
econstru9o
do
mundo
1.1.
A
constru9o
do mundo
5
1 .2.
A
realdade
nomundo
e arealidade
naobra
1 4
1
.3.
0 referente
e asuspenso
do referente
23
1.4.
A
rela9o
entre opensamento
e apalavra
3 1
1.5.
O
reflexo
produzido
pelo
tempo
noreal
33
2.
A
palavra
para
Virginia
Woolf
eClarice
Lispector
2.1.
As
obras:
77?^
Waves
eAgua
Viva
36
2.2.
O percurso
tra9ado pelas
autoras38
2.3.
0
afastamento da
narrativa tradicional
43
2.4.
Um percurso
fragmentrio
ordenado
pela palavra
47
2.5.
A
escrita
para
as autoras53
3.
gua
Viva
eThe Waves
-A
problematiza9o
da
palavra
3.1.
A
busca da
essncia: essncia
/
aparncia
68
3.2.
A
fragmenta9o
do
eu:fragmenta9o
/ unidade
74
3.3.
A
eternidade da
natureza:eternidade / efemeridade
1
05
3.4.
0 escndalo da
morte: morte/
vida
1 1 8
3.5.
A
palavra
reinventada
1 3
1
4. A
palavra
e osilncio
4.1.
A
incapacidade
da
palavra
traduzida
nosilncio
1
63
Interpreta9es
de
silncio
166
O silncio
emAgua
Viva
eThe Waves
1
7 1
Momentos
visionrios
positivos
1
75
Momentos
visionrios
negativos
1
79
O
Eterno
Retorno
1
8
1
4.2
4.3
4.4
4.5
4.6
Concluso
185
Bibliografia
Bibliografa
Primria
188
Bibliografa
Secundria
190
Neste estudo
pretende-se
elaborar umaanlise
comparativa
de duas obras:
Agua
Viva de Clarice
Lispector
e The Waves deVirginia
Woolf. O seuobjectivo
relectir
sobre o percurso efectuado
pela palavra,
enquanto
tema etcnica,
emdirec9o
a umindefinvel que
ultrapassa
o evidenteimediato,
impondo
a necessidade de apreensao deum "ausente"
percepcionado
atravs
de umaintui9o
que oma a suaexistncia
comocerteza.
Assim,
efectuada uma anlise dapalavra
enquanto
matria-prima
einstrumento
indispensvel
constru9o
do mundo na escrita deVirginia
Woolf
eClarice
Lspector.
Relativamente
aoponto
de vistaadoptado
noestudo
dasobras
The Waves eAgua
Viva,
importante
referir
apredominncia
daabordagem
fenomenologica;
as personagensso caracterizadas por atitudes
filosficas
eexistenciais,
verifca-se
a invaso de uinadimenso desconhecida
doquotidiano,
onde surgemindaga9es
fragmentrias
sobre o sere a
existncia,
que visamatingir
uma dimenso dentro do invisvel e doincorpreo.
Aimportncia
dos contedos abordados nas obras no reside no facto deies serem reais ouirreais,
mas na sua presen9aenquanto
elementos do mundo e emre!a9o
com o ser. Tudobnte de
conhecimento
e cadaelemento
que surge intuitivamente deve ser considerado talcomo se
apresenta,
uma vez quepela intui9o
que os elementos se revelam ao ser. e sposteriormente
seprocede
sua converso empalavTas.
com oobjectivo
de se evoluir nopercurso
cuja
trajectria
sedirige
para o inefvel.Para
Virginia
Woolf e ClariceLispector,
atravs dalinguagem
que se procuraanalisar o ser e o
mundo,
partindo
em busca da essncia de tudo o que existe. Nessepercurso, o entendimento
graduaL
uma vez que o ser necessita deevoluir,
fragmentando-se, sintetizando os
opostos
emalgo
mais que a sua meraassocia^o.
A reflexo inicialincide sobre a
problemtica
que o conceito depalavTa implica,
no spela
sualigaco
comfixando o momento, mas tambm
pela rela^o
que aprpria palavra
estabelece
com oconceito
dereferncia,
uma vez que se tornaimpossvel
para alinguagem exprimir
ono-referencial.
Posteriormente esta
reflexo
centrar-se- nasobras The Waves
eAgua
Viva,
nasquais
assistimos
a umaconstru9o
demundo efectuada
pela linguagem,
onde
sefaz
aluso ao estreito limite que separa o
real
naobra,
do realpalpvel,
assim como aocontributo
dadopelo
pensamento
epelo
tempo
para essa mesmaconstru9o.
eectuada,
nasobras,
umaabordagem
dano9o
de
complexidade
davida,
atravs da
linguagem exploratria,
quepermite
asintetiza^o
deopostos
e o grau dedespersonaliza9o
necessrio de modo a que aprpria linguagem
seassemelhe
vida,
tambm
fragmentria.
Estacapacidade
defragmenta9o
do eu e dalinguagem
estintimamente
ligada
no9o
de inconsciente. Apalavra
resulta muitas vezes da necessidadeque o ser tem
de
exprimir
o queapreendido
por si no seuntimo,
resultando esseconhecimento de
umadescida do
euconsciente
ao euinconsciente,
onde surge umentendimento
fragmentrio
davida,
que vai reclamar umalinguagem
que o possatransmitir.
As autoras procuram ir sempre mais
alm,
num processo que sabem vedado aohomem, enquanto
ser limitadopela
sua condicuo humana e atpela prpria
linguagem.
Virginia
Woolf e ClariceLispector
sentem-seimpelidas
a reinventar apalavra,
quesurge como veculo do
desconhecido,
ouseja,
reveladora de uma nova realidade. Estacapacidade
daspalavras,
que supera acomunica9o
eatinge
acria^o,
logo
sedepara
coma
impossibilidade
que lheimposta pelo
silncio. Esterepresenta
um fim e umanecessidade,
uma vez que contm em si no s o que secreto, e como tal no sepode
dizer.
mas tambm apossibilidade,
ouseja,
o que ainda no foi dito.Apesar
do silncioautoras, verificamos que ele no
suficiente
em si mesmo e vaireclamar
de novo aexpresso
do
que emsi
intudo,
o queimplica
a sucesso contnua einevitvel
entrepalavra
esilncio,
de modo apermitir
oressurgimento
contnuo de uma realidade nova,num movimento de
anula9o
do queexiste,
para sepoder
criar um novomundo,
o quenos remete paraa
no9o
de eterno retorno.O
presente
trabalho constituiu
umimportante
desafio,
nomeadamentepelo
contactopermanente
com novas emltiplas significa9es implcitas
emThe
Waves eAgua
Viva. Noentanto.
importa
referir que o processo depesquisa
foi
algo
frustrante,
uma vez que, emPortugal,
as obras crticasexistentes,
sobie
as autorasestudadas,
so escassas.Relativamente a
Virginia
Woolf tornou-sefcil
aceder a materialbiliogrfico,
atravsde
emprstimos
pela
BibilotecaNacional
oupelo
Centro de
Documenta9o
Cientfica
eTcnica;
no que dizrespeito
aomaterial crtico sobre
ClariceLispector,
o processofoi
muito mais
complexo,
uma vez que ospedidos
dematerial
no obtinhamqualquer
resposta
ou eram
recusados.
Assim,
no posso deLxar deagradecer
Pontificia LJniversidadeCatlica do Rio Grande do Sul e Universidade Federal do Rio Grande do
Sul,
nomeadamente aos
responsveis
pelas
hemerotecas,
que contacteipessoalmente,
e quetiveram
agentileza
de
aceder aos meuspedidos.
No possotambm
deLxar deagradecer
aos
professores
de Mestrado.principalmente
minha orientadora, aosprotessores
deQue
que eu posso escrever? Como recome^ara anotar frases? Apalavra
omeu meio de comunicaco. Eu s
poderia
am-la. Eujogo
com elas como seIan9am
dados: acaso e fatalidade. Apalavra
to forte que atravessa a barreira do som. Cadapalavra
uma idia. Cadapalavra
materializa oesprito.
Quantas
maispalavras
euconheco,
mais sou capaz depensar o meu sentimento. Devemos modelar nossaspalavras
at se tornarem o mais finoinvlucro dos nossos pensamentos.
Sempre
achei queotraco de um escultoridentificvel por uma extrema
simplicidade
de linhas. Todas aspalavras
quedigo
-por esconderem outras
palavras.
Equal
mesmo apalavra
secreta? No sei porqueaouso? Sno sei porque no ousodiz-la?Sinto que existe uma
palavra,
talvez unicamente uma, que nopode
e no deve serpronunciada.
Parece-me que todo o resto noproibido.
Masacontece que eu quero exatamente me unira essa
palavra
proibida.
Ou ser0Se eu encontrar essa
palavra,
s a direi em boca fechada, para mim mesma,senocorro orisco de virar alma
perdida
por toda aeternidade[...1
0 que nosei dizer mais
importante
do que o quc cudigo. f...]
Cada vez mais euescrevo com menos
palavras.
Meu livro melhor acontecerquando
eu de todono escrever.
[...]
Todo homem tem sina obscura de pensamento que
pode
ser o de umcrepsculo
epode
ser umaaurora.Simplesmente
aspalavras
dohomem.1
1
Olga
Borelli - Clarice1.
Real,
referncia
econstru^o
do
mundo
O mundo: um emaranhado de fios
telegrficos
em ericamento."1.1. A
Constru9o
do MundoVirginia
Woolf
e ClariceLispector questionam,
nas obras The Waves eAgua
Viva,
respectivamente,
a existncia das coisas em si mesmas, com o intuito de obter arela9o
entre as que existem individualmente e as que surgem comoimagem
naescrita.
A
questo
que se coloca aseguinte:
ser que, na tentativa de expressar oreal,
o queest escrito
adquire
tambm umaindividualidade,
uma existncia autntica eindependente?
As obras surgem,portanto,
como uma tentativa deresposta,
um percursode
aprendizagem.
que vai elaborando umaconcep9o
de mundo,
sendo este ltimoconstrudo atravs
das
palavras.
Benedito
Nunesrefere-se
a esse mesmoaparecimento
de um mundo novo, na obra
escrita,
afirmando que ele resulta da atitude doartista
eda
sua
interpreta9o
darealidade:
sempre
possvel
encontrar, na literatura deficco,
principalmente
na escala do romance, umaconcep^o-de-mundo,
inerente obra considerada em si mesma,concepco
esta quederiva da atitude criadora doartista,
configurando
einterpretando
arealidade3.
Tambm a
prpria
autora, ClariceLispector,
serefere
aopapel
do artista nacria9o
de um mundo "outro"pelo
texto, afirmando que ele[artista]
um ser dinmico.que no se limita a receber dados da
realidade,
ouseja,
um membro activo que est sempre emcomunica9o
com o que orodeia;
ele,
ao escrever, revela o mundo e asrela9es
que o ser estabelececonsigo prprio
e com os outros seres. No entanto,Lispector
refere que. apesar do escritor intuir que atravs da escrita que as coisas
adquirem
significado,
ele nemsempre est consciente do seupapel
derevelador das coisas:O escritor no um scr
passivo
que se limita a rccolher dados da rcnlidade, mas deveestar nomundocomopreseneaactiva, emcomunicacocomoqueo cerca."
Clarice
Lispector
Agua
Viva. Rio deJaneiro, FranciscoAlves, 1993,p. 30. 'BeneditoNunes- ODorso do
Na atividade de escrever o homem deve exercer a
a^o
pordesnudamento,
revelar omundo,
ohomem aosoutros homens.[...]
Ele tem ou no a conscincia do seu
papel
de 'reveladof dascoisas,
o meio atravs doqual
elas se manifestam eadquirem
significado.
Mas, apesar de ser o detector darealidade,
a realidade no seuproduto,
isto , apesar de o escritor ser o revelador do mundo, isto no essencial a ele. mas sim torna-se essencial suaobra,
pois
quesua obranoexistiria seno fosseele4.
Assim,
podemos
concluir que opoeta
temalguma
responsabilidade
perante
omundo que
instaura,
uma vez que a sua escrita cria uma novaperspectiva
do que existe:*vo
poeta
responsvel
perante
omundo,
pois
sempre que age comopoeta
cria novasrela9es,
revoluciona aprpria
visao domundo,
liberta-o dos seusesteriotipos'0.
Ambas
asobras consistem
numamedita9o
do
ser humano em torno desi
prprio,
estabelecendo este uma
rela9o recproca
e dinmica com oobjecto,
como refere Eaii E.Fitz,
relativamentefic9o
deLispector:
Outra
tradi9o
a que pertence ClariceLispector
a que se vincula aoromance filosofico, emparticular,
o romance que expressa uma visofenomenolgica
da existencia.[...]
afic9o
fenomenolgica
de ClariceLispector
uma meditaco(sempre potica)
em torno do atocognitivo
do ser humano, um ato semprerecproco
em que osujeito
(a
conscinciahumana)
e oobjeto
(as
outras"'coisas"nomundo)
se relatamdinamicamente6.
Ileidegger
defensor destainterpreta9o
dosujeito
eminter-rela9o
com omundo que o rodeia.
Assim,
podemos
afirmar que nas obras osujeito
"irico"(no
casode
The Waves ajun9o
das seispersonagens)
se encontra numaposi9o
semelhantequela
desempenhada pela
no9o
de Da-sein defendida porIleidegger,
uma vez que oser existe no mundo consciente de si
prprio
edaquilo
que orodeia,
ouseja,
ele quequestiona
a sua existncia com vista aalcan9ar
a sua identidade. Mas que mundo esseque rodeia o ser? E que mundo
aquele
que surge nasobras e onde o ser se movimenta?li o mundo da nossa mente? O mundo real? E o mundo
primordial
oualgo
que surgecm
segundo
plano
face ao ser? Husserl sugere que ser esignificar
esto sempre4
Olga
Borelli op. cit.,p. 72-73. 5Antnio Ramos Rosa - -f Poesia Modernaea
/nterroga<,odo Real. Lisboa, Arcdia. 1980,p. 16. 6
Earl H. Fitz - "O
interligados,
ouseja,
no existe ser semobjecto,
nemobjecto
fora
dosujeito. Sujeito
eobjecto
sao duas faces da mesmamoeda,
assim como o so a mente e o mundo. Paraeste
pensador
o mundo constitudo poraquilo
que a menteconfigura,
estando apenasrelacionado com a conscincia do eu;
enquanto
que, paraWittgenstein
o mundo tudo oque acontece: "Le monde est tout ce
qui
arrive",
"Lemonde
est l'ensemble desfaits,
non pas de
choses"7.
Husserl v o
sujeito
como a fonte e aorigem
detodo
oconhecimento,
ele quecria o
mundo,
uma vez quepreexiste
a esse mesmo mundo. Emoposi9o
a estaposi9o
Heidegger,
um seudiscpulo.
afirma aexistncia
das coisasindependentemente
do queas
rodeia,
ouseja,
osujeito
nopreexiste
atudo,
nem o elemento em torno doqual
tudo se
organiza.
0sujeito
existe porque est no mundo e a so construdas todas asrela9es
constitutivasda
vida;
o ser emergeenquanto
sujeito
de umarealidade
quecompletamente
objectivada
e o mundo noalgo
quepode
serdissolvido,
uma vez queresiste aos nossos
projectos
ens,
sujeitos,
existimos apenas comoparte
desse mesmomundo,
emdilogo
com ele. O mundo o elemento esclarecedor dosentido,
noqual
oser se revela, e que antecede sempre o
sujeito,
oqual
agindo
ou conhecendo se relacionacom os
objectos:
no osujeito
que estabelecerela9es
comalgo
no mundo. mas simomundo que
primeiro
estabelece o contexto. apartir
decuja
compreenso
prvia
o serpode
acontecer. TambmWittgenstein
no v o ser com aconcep^o
deHusserl,
ouseja,
comopreexistente
aomundo,
mas simcomo um limite dessemesmo mundo: "Lesujet
n'appartient
pas au monde, mais il constitue une limite du monde" , sendoaquele
independente
da vontade do ser: "Le monde estindpendant
de mavolont**'
.Ileidegger
afirma que nunca se reconhece umsujeito
sem estar inserido noLudwig
Wittgenstein
- trataclus/g/co-philosophiques.
Tradu^o de Pierre Klossowski. Gallimard, 1961,p. 29-30.*
mundo e em
rela9o
com os outros, uma vez que acoexistncia
com o queexiste
surgeem
primeiro lugar
como umtra9o constitutivo
doestar-no-mundo.
Na obra TheWaves,
uma
semi-personagem
afirma: "The truth is that Ineed
the stimulus of otherpeople"
,o que vem
refor9ar
anecessidade
do ser se relacionar com o que o rodeiae, sassim,
seconstituir e existir no mundo. Tambm
Foucault
refere que o ser humanoexiste,
relacionando-se com tudo o que o envolve;
assim,
o ser estabelece uma unidade com omundo,
o que nosrecorda
aseguinte
afirma9o.
da obra deVirginia
Woolf: "We are notalways
awareby
any means; webreathe,
eat,sleep automatically.
We exist notonly
separately
but in undififerentiated blobs ofmatter"11.
Atravs destacompreenso
pr-ontolgica
do ser, o homemprivilegiado
emrela9o
a todo o ente restante queest
dentro do mundo. uma vez que ele que
inicia
asrela9es
com osdemais
serese/ou
coisas a existentes.
Nas
obras,
gua
Viva e TheWaves,
aconcepx^o
quejulgamos prevalecer
a deHeidegger,
uma vez que somosconfrontados
com asupremacia
domundo,
da naturezasobre o ser, atravs da
oposi9o
entre o carcter eternodaqueles
e o carcter finito do serhumano. Esta
oposi9o
dialctica ser alvo de umestudo
maisaprofundado
numcaptulo
posterior,
no entanto. parece-nospertinente
deLxaraqui
um comentrio de Benedito Nunessobre a
supremacia
da natureza e do mundo face vida humana: "Todas as coisas domundo resumem-se num s
ncleo,
neutro,inexpressivo.
Aglria
da naturezaesplende
sobreesseabismo sem
fundo"'\
No entanto, apesar do serhumano no
surgir
como ser supremo, verificamos queprivilegiada,
nasobras,
umaposi9o
existencialista,
uma vez tudo se constri emtorno do modo de estar do ser no mundo, afirmando-se a existncia como anterior
essncia;
existir para o ser estar em confronto com a suaprpria
vida, sendo esta10
Virginia
Woolf- The Waves. Oxford, OxfordL'nivcrsity
Press, 1998, p. 64. 11Iden?p.
205. |:ltima
amea9ada
pelo
nada,
o que lhe provoca asensa9o
deangstia.
Assim acontecenas obras
estudadas, onde
o ser est em constanteconfronto
com a morte, ovazio,
onada;
conhecer um modoangustiante, implcito
noestar-no-mundo,
distinguindo-se,
como faz
Heidegger,
aangstia
do medo. Tem-seangstia
sem se saber dequ,
sendo oseu
objecto
aexistncia
humana,
bruscamenterevelada
ao ser, umaexperincia
de
isolamento
metafsico;
Heidegger
identifica a vida com umrefugio
frustrado para o serhumano,
que se sabeconfrontado
com um fim doqual
est consciente.Assim,
nas obrasas personagens esto libertas de medos
especficos
eaquele
que sentemproveniente
da
angstia
existencial,
da conscincia do que no controlam.Mas o ser procura evoluir no seu auto-conhecimento e na
interpreta9o
do
mundo,
uma vez que aprpria
compreenso
fazparte
da estrutura da existnciahumana. O ser
projecta-se
sempre para afrente,
reconhecendo e realizando as suaspotencialidades,
no entanto, nuncaatingindo
ocompleto
conhecimento do eu, uma vezque a
existncia
no umobjecto
finito,
palpvel,
mas sim umleque
depossibilidades.
Este processo de anlise do mundo e do eu
implica
porparte
deste
ltimo anecessidadede
sefragmentar,
com vista aposteriormente
atingir
aunidade;
tambm
estaoposi9o
ser alvo de uma anlise mais desenvolvida num
captulo
posterior.
No entanto.deixamos a
indica9o
de BeneditoNunes,
que afirma a necessidade dedesintegra9o
doeu para quepossa maistarde
atingir
a unidade:Nos romances de Clarice
Lispector
oEu,
reduto dapersonalidade.
que a exteriorizaco do serpsquico.
o Eu, como base da identidadepessoal
dosindivduos,
cai por terra. Desfeita num momento e refeita noutro,desintegrando-se
sempre, e sempre ameacada, a identidadepessoal
parece mais um ideal aatingir,
umproduto
daimagina9o,
uma meta a alcancar, do que um dado real. Ela no uma realidadepossuda,
e sim umprojccto,
umapossibilidade
acumprir-se'
\E
qual
opapel
dalinguagem
nesta construcao do eu e do mundo?Virginia
Woolfafirma,
atravs da voz de Bernard. em The Waves: '" 'But how describe the worldseen without a
self?
There are nowords"14,
o que nos colocaperante
asseguintes
questes:
Spossvel
descreveralgo
com a presen9ado
homem?Porqu?
Porque
soeste utiliza a
linguagem
ou porque as coisas s existem na suapresen9a?
Mas apalavra
tambm tem a
capacidade
de construirmundos,
uma vez que o seu carcter imaterialganha
materialidade ao colocar as ideias emescrita;
ela o meio decomunica9o
domundo,
seja
ele real ouficcional,
quevai,
aolongo
do
tempo,
inluenciar
apercep9o
do
homein,
devido
sua autonomia. O entendimento humano e alinguagem
que oprocura transmitir esto ambos limitados
pelas prprias
coisas epelas
palavras,
que sopalavras
e no as coisas em si mesmas; alinguagem "for9ada"
a transmitir o opaco, omistrio do
mundo,
uma vez que se senteimpelida
paraconseguir
ser e dizer oreal.
Michaei
Boyd
afirma mesmo: "Humanperception
andlanguage
are limitedby
theappearance of
things
andby
words that areonly
words and not thethings
themselves"13.
Assim.
alinguagem
distingue-se
da coisa emsi,
sendo adescri9o
apenasalgo
de outroque no o
prprio objecto.
No entanto,poder-se-,
atravs dessadescrico,
ouseja,
atravs da obra
escrita,
observar um novomundo,
anaisando
o outro lado dascoisas,
oque no visvel. Como afirma
Heidegger,
a obra abre um mundo quedomina,
uma vezque ser obra
significa
instalar um mundo que um acrscimo soma das coisasexistentes.
Nas obras em estudo. como para
Heidegger,
o mundo niiopassvel
de serdefinido,
contido em limitesdemarcados,
mas simprimordial;
o mundoalgo
quej
existe e anterior ao homem que nasce para esse mundo onde tudo
interrogado.
Aobra instala e mantm aberto o aberto do
mundo,
utilizando alinguagem,
que serve,tambm
segundo Heidegger,
para oentendimento,
englobando
presente e ausente.trazendo o ente
palavra
e ao que o rodeia. A concluso comum que nunca se14
Virginia
Woolf-op cit.,p. 239. Michael
Boyd
encontrar o homem
separado
dalinguagem;
no entanto,algo
separa aconcep9o
das autoras nas obras da deHeidegger.
Paraesteltimo,
o homem no inventa alinguagem,
pois
ela
j
existe;
pelo
contrrio,
paraWoolf
eLispector,
existe a necessidadede
seinventar novas
palavras,
uma vez que alinguagem
insuficiente esujeita
are-cria9o.
Clarice
Lispector
come9a por recusar ainven9o
de
novaspalavras,
apesar dereconhecer as
existentes
como insuficientes: "Faltam aspalavras.
Mas recuso-me ainventar
palavras
novas: as queexistem
j
devem dizer o que se consegue dizer e o queproibido.
E o queproibido
euadivinho"'6.
E,
posteriormente.
talvez mesmoinconscientemente,
v-seimpelida
acriar
novaspalavTas, real9ando
a suainexistncia
anterior: "Como o Deusno tem nome vou
dar
a Eleo nome deSimptar.
Nopertence
alngua
nenhuma. Eu
me dou o nomede
Amptala. Que
eu saiba no existe tal nome"'.
Mas como recriar a
linguagem?
Ser uma tarefa tosimples
como estasafirma9es
de Ciarice nosfazem
crer que ? Para executar essatarefa,
alinguagem
colocada emnovoscontextos, como defende
Heidegger,
e sugere-seacria9o
depalavTas
novas,uma vez que mesmo ainter-rela9o
do homemcom o que o rodeiapode
ser re-criada atravsda
linguagem.
Bienveniste,
ao comentar a viso deHeidegger
sobre
alinguagem.
indicaque o que existe no mundo o
homem,
estando ele afalar
a outrohomem, definindo-se
atravs da sua
prpria
fala.Assim,
na epela
linguagem
que o homem se constitui comosujeito,
porque s alinguagem
funda realmente na sua realidade. que a do ser, o conceito de ego.Segundo
Wittgenstein.
alinguagem acompanha
omundo,
oslimites do mundo so, para
ele,
osprprios
limites dalinguagem
e dalogica:
"Lalogique
[...]
remplit
le monde. Les limites du monde sontgalement
seslimites";
"La16
Clarice
Lispector
-op. cit., p. 33. 17
Idem. p. 50.
Emile Bienveniste- Ohometn
logique
remplit
le monde: les limites dumonde
sont aussi ses propres limites" . Noentanto, este autor sabe que existem coisas que no
podem
serditas,
uma vez que o quedito diz
respeito
aomundo limitado
noqual
o ser se insere:"[...]
il estimpossible
dedire
quoi
que ce soit ausujet
du monde considr comme un tout, de telle sorte que toutce que
Pon
pourra dire concernera desportions
limites du monde"" . Nesse mundo hcoisas que
podem
existir e no serempassveis
de seremditas ;"Ce
qui
peut
tre montrne
peut
pas tre dif2I.
Estasafirma9es
conduzem nocao de que apesardo
ser nopreexistir
ao mundo e no lhe sobreviver. a sua dimensoultrapassa
esse mesmo mundoem
direc9o
ao todo intudo.A
questo
que estpresente
por detrsdo conceito
de mimesis no em queextenso a
linguagem
representa
arealidade,
mas emque medida elapode
cri-la;
nuncapodemos
ter a certeza sobre se opoder
da mimesis reside no seuefeito sobre
"o real"(modificando
pela
imita9o
o quepr-existia
tentativa derepresentaco)
ou emalgo
que ainda
pertence
ao mundo dalinguagem, algo
quepode
ser entendido como real(criando
alinguagem
o realindependentemente
do que sepretende dizer).
Recuperando
o conceito de
mimesis,
verificamos que,segundo
Plato. o que estescrito apenasumaaparncia
e/'ou iluso doreal;
no entanto. paraAristteles,
aaparncia
de uma coisatambm urna
parte
daprpria
coisa;
assim,
aaparncia
do real tambmparte
constituinte do
prprio
real. Para Aristteles tambm existem dois mundos: um mundoilusorio que rodeia o eu e o mundo verdadeiro que est "do lado de
l";
adiferen9a
que. para
Aristteles,
oprimeiro
transitrio,
ouseja,
etapa
a atravessarparaatingir
overdadeiro. Para
Heidegger,
o real no apenasa Ideia de Plato. nem apenaso queestpara alm da
aparncia,
mas ajun9uo
de tudo: iluso em que o ser se insere e mundointudo que o
ultrapassa.
O real nao apenas o que intudopela
mente atravs da19
Ludwig
Wittgenstein-
op. cit., p. 16e86. 20Idem, p. 16. "
21
corrente de
conscincia,
nem o que se vfisicamente,
mas arela9o
entreambos,
algo
que
resulta
da unio esupera9o
dosopostos;
estajun9o
entre os dois universos:ideal
e
sensvel,
noimplica
que arealidade
possa serapreendida
na suatotalidade,
uma vezque
quando
se pensa terapreendido
o todo porque existealguma
falha no percurso,principalmente
porque tambm oreal
est sempre emmudan9a,
ouseja,
o real de ummomento ou de um mundo
pode divergir
de instante para instante e/ou de ser para ser.Barthes
afirma,
mesmo, que o que confere o carcter eterno obra de arte nao osentido que ela
impe,
mas o facto desugerir
sentidos diferentes a um mesmohomem,
ou
seja,
mesmo um nico serpode
ver naobra
um nmero infinito deinterpreta9es
esentidos:
Une oeuvre est ternelle. non parce
qu'elle
impose
un sensunique
des hommes diffrents, mais parcequ'elle suggre
des sens diffrents unhomme
unique,
qui parle
toujours
la mmelangue symbolique
travers des tempsmultiples:
l'uvrepropose, l'hommedispose22.
As obras
estudadas
esto "abertas" amltiplas
intrepreta9es,
confiindido-se,
assim,
o real queimpem
com o quepretendem
afirmar.Na sua
primeira
fbrma[...J
alinguagem
era umsinal das coisas absolutamentecertoetransparente
[...]
os nomes eram colocados sobre o que elesdesignavam,
assim como a fbr^ est escrita no corpodo leo, arealeza noolhar daguia [...]
Estatransparncia
foi destruda em Babel paracastigo
dos homens. Aslnguas
separaram-se umas das outras e tornaram-seincompatveis
so na medida em que se desvaneceu essasemelhan<,_a
com ascoisas que fbra a
primeira
razo de ser dalinguagem.
Aslnguas
que reconhecemos s asfalamos
hoje
base dessa similitudeperdida,
e noespa^oque eladeixavazio.23
1.2. A realidade no mundo e a realidade na obra
A
distin9o
entre a realidade dafic9o
e a realidade do "real" no facilmenteestabelecida,
uma vez que noconseguimos
definir comtoda
a certeza e exaustivamente o que o real e o que afic9o,
e nopodemos
afirmar
o que o mundo real ou mesmo se eleexiste.
Foucaultquestiona-se:
wtQual
a realidade equal
aimagem
projectada?""4
Relativamente ao ser, tambm no
podemos
indicar se ele existe como ser individual ou emfun9o
do mundo ou dos outrosseres, ouseja,
emrela9o
dedependncia
com o que o rodeia. Equal
opapel
da escrita nessaconstruco ourepresenta9o
do real?Nas obras que
estudamos,
Agua
Viva e TheWaves,
a Literatura e a escrita sovistas,
pelas
autoras, como uma tentativa desimboliza9o
do real. Alinguagem
no faz umaapresenta9o
doreal,
mas sim umasimboliza9o;
ela apenas insinuaaquilo
queexiste. A
escrita,
assim como aleitura,
uma tentativa dechegar
ao real,representando
umadupla fiin9o:
liberta9o
e/ouaproxima9o
do
real. Aun9o
deliberta9o
descrita porLispector quando
esta se refere escrita na obraAgua
Viva:"Deixo
ocavalo livTe correr
fogoso.
Eu,
que troto nervosa e s a realidade medelimita"25;
e afun9o
deaproxima9o
do real dadapela
necessidade de fazer a escritaacompanhar
avida e de
chegar
essncia do real,aspecto
tambm visvel na obra desta autora: 'TazMichei Foucault - As Palavras e
as Coisas. Tradutpo de Antnio Ramos Rosa. Lisboa, Edi^es 70. 1966 (edico
original),
p. 91.24
Idem, p, 75-76. 25Clarice
Lispector
parte
do trabalhoregistrar
o bvio . No entanto, o que bvio num instante deixa de oser no minuto
seguinte
para darlugar
aalgo
de outro. Oprprio significado
algo
instvel e sempre em
mudan9a;
da quesurjam,
nas entrelinhasdas
obras,
asseguintes
questes:
se a realidade construdapelo
nossoprprio
discurso em vez dereflectir
sobre
ele,
comopodemos
reconhecer a realidade em siprpria?
Ser que o que ditoapenas sobre o que dizemos ou sobre o real? Ser que existe um mundo de coisas ao
qual corresponde
um mundo depalavras?
Ou ser
que o nosso mundo de coisas umacria9o
do nosso mundo depalavras?
Retomando a
no9o
demimesis,
observamos que nosfinais
do sculoXIX.
coma crise do
positivismo,
o conceito de realidade come9a a serposto
em causa. o que vemtrazer tambm
consequncias
para aliteratura,
ouseja,
esta deixa derepresentar
umaimagem
do mundo e passa aafirmar.
muitas vezes, umaoposi9o
a esse mesmo mundo.Para resumir o
pensamento
sobre estano9o
[mimesis],
iniciado naprimeira
parte
destecaptulo,
convm agora relacion-lo com ano9o
derealidade;
verificamos
que acria9o
escrita do"poeta"
acrescentaalgo
de novo ao mundoreal,
uma vezquecria
algo
que vai mais alm
do
que aspercep9es
do dia-a-diapodem
abarcar.
No entanto,verificamos. tambm.
que essacria9o
tem comoorigem
apropria
realidade.
uma vezque esta Ihe serve de base e
inspira9o.
Assim,
o real deveriasurgir
ao escritor nocomo
algo
definitivamentedado,
mas como um campo deindefmi9es
epossibilidades.
queainda no esto actualizadas.
A realidade que nos
chega
pela
conscincia,
como refere Maria AmliaBezerra de
Mello,
ambgua
e mutvel.Assim,
a necessidade que o homem tem deinterpretar
a realidade conduz aodesejo
de atranscender,
de ir alm do visvel e dasaparncias
(temtica
desenvolvida
posteriormente),
com oobjectivo
dcaprcender
aessncia. Este
desejo
estpresente
na obra deLispector,
onde osujeito
procura apalavra
ltima que se identifica com aprimeira:
"Sim,
quero apalavra
ltima quetambm to
primeira
quej
se confinde com aparte
intangvel
doreal"27,
ou ainda nasua obra Uma
Aprendizagem
ou o Livro dos Prazeres: "Estava numaplataforma
terrestre de
onde
por timos desegundos parecia
ver asupra-realidade
do queverdadeiramente
real"28.
Tambm em TheWaves,
assistimoscria9o
de uma realidadeoutra: kiRich and
heavy
sensations formonthe
roof ofmymind"29.
Alvaro Lins faz referncia ao facto
de,
na obra deClarice,
a realidade aparecer.muitas vezes, associada ao
sonho;
este autorfala
mesmo de umasupra-realidade,
queno a realidade em que
vivemos,
mas uma realidade outra, que se baseia no real masdestruindo-o e reconstruindo-o
ficcionalmente.
Arealidade
nofca
escondida,
elaapenas usada para outros
planos
maisprofiindos,
que nospermitem
tentar verificaraquilo
que baseado no real eaquilo
que dito ou acolocado
pela imagina9o.
Oobjectivo
seria fundir esses dois mundos(porque
o que existe no apenas o que se vmas tambm o que est l colocado
pelo imaginrio),
o que vem nasequncia
doobjectivo
das autoras: unir osopostos,
dar os dois lados da "coisa" existente. Clariceapela.
mesmo, para adesordem,
no sentidode
pelo
oposto
chegar
ordem suprema:"Quero
aprofunda
desordemorgnica
que no entanto d apressentir
uma ordemsubjacente.
Agrande
potncia
dapotencialidade"1".
uma vez que,segundo
a autora, oque est
subjacente
novisvel,
mas simintudo,
ouseja,
existe empotncia;
estapossibilidade
dadapelo
oposto
do que se queratingir.
pois.
como referido na obra de"'
Idem, p. 17.
Clarice
Lispector
- UmaAprendizagem
ou O Livrodos Prazeres. Lisboa,Relgio
D'Agua
Editores, 1999,p. 25.29
Virginia
Woolf-p.
cii.,p. 19.Clarice
Lispector
Habermas,
"A ausncia do ser oprprio
ser naqualidade
dessa ausncia" .Novamente, somos reenviados para o
conceito
deopostos,
existente naproblemtica
doreal e visvel nas obras
estudadas;
segundo
Mallarm,
ao voltarmos a literatura parasi
prpria.
verificamos
que oobjecto
real dalinguagem
potica
no nemrepresenta
oreal
objectivo,
ouseja,
oobjecto
real,
mas resulta dopoder
decria9o
que alinguagem
possui,
baseando-se no confronto deopostos (o
silncio
e/ouovazio),
que, ao recuperaro termo ausente, institui o
sentido,
uma vez que, comorefere Clarice
"noImpossvel
que est a
realidade"32
e "a realidadeinacreditvel"33.
Assim,
o sonhoganha
na suaobra um carcter, seno
superior, pelo
menos idntico aodo
real: "Era nessa base quesonhar era
superior
realidade:quando
sonhava sabia muito bem o que estavaacontecendo"34.
Verificamos que narrar
representa
sempre uma tenso entre apalavTa
e ano-palavra,
uma vez que a escritaquando
se escreve parece sero queexiste;
no entanto, acabapor
corromp-lo, pois
instituialgo
de outro.Assim.
paraapreender
o real as autorastm deo
criar,
juntando-lhe
oimaginrio,
o queimplica, segundo
FbioLucas,
um"fingimento"
por
parte
do que estescrito,
ao afirmar-se comoreaL
ouseja, aquilo
que surge tentavencer
aquilo
que realmente : "Estou fruindo o que existe.Calada.
area, no meugrande
sonho. Como nada entendo - ento adiro vacilante realidade mvel. O real eu
atinjo
atravs do sonho. Lu te
invento,
realidade"0.
Lispector
tentaacompanhar
o fluir da vida.estabelecendo
associa9es
entre essa vida e o sonho. No entanto,manifesta
a suaincapacidade
em entenderaquilo
que a rodeia e decidejuntar-se
realidademvel,
ouseja.
''
Jurgen
Habermas ()Discurso Filosfico da Modernidade. Lisboa, Publica^es D. Quixote, 1990, p. 135.Clarice
Lispector
- UmaAprendizagem
ou o Livrodos Prazeres,p. 93. "Idem, p. 29.
Clarice
Lispector
- AMaqnoEscuro. Lisboa,
Relogio
D'Agua Editores, 2000,p. 164. 'aceitar a
muta^o
doreal; sabendo,
no entanto, que so opoderia atingir
atravs dosonho,
pois
seste Ihepermite
irmais almdovisveL
inventando oreal.
Tambm
Fieidegger
recorre aosopostos, enquanto
mtodo para seatingir
algo;
segundo
ele,
o ser torna-se ser nalinguagem,
ouseja,
apalavra
designa
acoisa
transformando-a no
no-nada.
Mas sabendo que alinguagem
manipula
o realpeia
distncia e
pela
anula9ao
daprpria
coisa que evoca, ser que sepode atingir
a coisa emsi mesma? Para o
fazer,
serianecessrio retirar
a obra de todas asrela9es
comaquilo
que outro que no ela mesma,
provocando
um isolamento que Ihepermitisse
repousarsobre si
prpria;
noentanto,
sabemosimpossvel
esseprocedimento.
o queimplica
umano
liberta9o
da obra.A
linguagem
funciona para as autoras, no como uminstrumento,
mas comoaigo
que as constitui.algo
que est semprepresente
na conscincia deambas;
algo
que
est sempre a teimar em escapar ao controlo do ser, o que
conduz
a que o quedito
nem sempre o que se
pretende
dizer. Tambm esteaspecto
serexplorado
numcaptulo
posterior.
Ficamos apenas comaindica9o
de que, para tudoabranger,
osujeito
tem necessidade de ir alm do
real.
'lransfigurando
arealidade",
comorefere
aprpria
Clarice
Lispector:
"Estoutransfigurando
a realidade - oque que est me
escapando?
por que no estendo a mo e
pego?
E porque apenas sonhei com omundo
masjamais
ov\"3b.
No entanto, nem assim o realatingido
e o que existe substitudo poralgo
denovo:
Para me
interpretar
e formular-mepreciso
de novos sinais earticula^es
novas em formas que se localizemaqum
e alm de minha histria humana.Transfiguro
a realidade eento outra realidade sonhadora e sonmbula. me cria. E eu inteira rolo e medida que rolo no cho vou me acrescentando em folhas, eu, obra annima de uma realidade annima sjustificvel
enquanto dura a minhavida.Edepois?
depois
mdooqucvivi ser deumpobre
suprfluo".
56
Idem, p. 70-71.
37
Ser que a
linguagem
distorce sempre o real? Ser que noexiste
umalinguagem
que, como
refere
Barthes,
forneca arealidade,
nodistorcendo
oobjecto/coisa
nas formassubjectivas,
masrepresentando
o mundo como Deus oteria
feito. Osigno
seria umaentidade
estvel,
determinadopelas
regras dossistemas,
algo
transparente
para oobjecto
epara a
prpria
mente; o vecub de umsignificado
concebidoindependentemente
dele.Neste
sentido
segue,tambm.
opensamento
de
Wittgenstein,
queafirma:
"Laproposition
est une
image
de la
ralit. Laproposition
est unetransposition
de la ralit telle que nousla
pensons"38.
Emoposi9o.
Artaud. de modo semelhante ao que acontece nas obrasestudadas,
retrata alinguagem
comoincapaz
face ao sentimento humano- "Todo osentimento verdadeiro
intraduzvel.
Exprimi-lo atrai9o-lo.
Mas traduzi-lodissimui-/o"3y.
TambmBlanchot
segue esta linha depensamento,
afirmando que o que o surge naescrita no a
designaco
dacoisa,
mas atransforma9o
daimagem
primeira,
identificando
palavra
e ausncia da coisa em si.Assim.
o acto de comunicar nega aexistnciado quesediz.
Podemos concluir que o ser
ultrapassa
apalavra?
Entendemosvlida
estaafirma9o
face s obrasestudadas,
uma vez que, como refereHeidegger,
o ser no sepode
conhecer na totalidade. Este autorfaz
adistin9o
entre ser e ente, indicando queoente est no ser, sendo que o ser mais
abrangente,
uma vez que o homem apenasdomina o ente, ou
seja,
o pouco que conhecido. Ambas as obras circulam em tomo deuma viso sobre a existncia
humana.
umdesejo
deaprorundar
o conhecimento do sersobre si
prprio, algo
que se sabeimpossvel:
"Eu meaprofundei
mas no acredito emmim porque meu
pensamento
inventado'*40,
uma vez que a nica certeza que o entetem a da sua
prpria
morte. O processo deaprofundamento
no interior de siprprio,
,H
Ludwig Wittgenstein
op. cit., p. 46.,9
Antonin Artaud- Oteatroe o seu
duplo. Tradu^o
Fiama HassePaisBrando. Lisboa, Fenda, 1996. p.70.
Clarice
Lispector
efectuado
pelo
ser,apoiado pela linguagem,
conduzimpossibilidade.
William
Jamesrefere a
incompatibilidade
entre alinguagem
e ano9o
de verdade:"Here,
again,
language
worksagainst
ourperception
of the truth. We name ourthoughts simply,
each
alier its
thing,
as ifeach knewits
ownthing
and
nothing
else"41.
Assim,
o"mergulho"
do
ser nointerior
de siprprio
conduz apenasno9o
de vazio
e desilncio,
comoreferido
por Benedito Nunes: "EmClarice
Lispector,
atranscendncia assemelha-se
mais a uma trans-descendncia. uma
espcie
demergulho
naspotncias
obscurasda
vida,
atravs danega9o
do
mundo,
das relaces
humanas,
da
tica. Na suaviso de
realidade,
o Ser e o Nada seidentificam"42,
epela prpria
Clarice
Lispector
naobra
APaixo
segundo
G. II.: "Mas quetambm
nosei
queforma dar
ao que me aconteceu.E sem
dar
umaforma,
nada meexiste.
E - e se arealidade
mesmoque
nada existiu?!
quem sabe
nada
me aconteceu? S possocompreender
o que me acontece mas sacontece o que eu
compreendo
-que sei do resto? o resto no existiu.
Quem
sabe nadaexistiu .
Conclumos que a realidade no
passvel
de serapreendida
como umtodo,
nos porque
faz-lo de
uma s vez noseria
possvel,
mas tambm porque, se ofosse,
asconsequncias
para
o ser seriamfatais,
traduzindo-se naloucura
ou na morte. CarlosFelipe
Moiss faz refernciaa esteaspecto:
Partcs. detalhes,
fragmentos:
a realidadejamais
buscada como um todo,pelo
temor de que a suacompletude avantajada
venha a sufocar afragilidade
do mundo interior. A conscincia curiosa circula errtica
pelo
dorso da realidade, num misto de fascnio edesconfian^a,
no porque desdenhe assenhorear-se do espaco que se estende adiante, oferecidopercepco,
mas porquc receiaperder-se,
diluir-se na estranheza alheia ."
Richard Eilmann e Charles Feidelson Jr., eds. The Modern Tradition
-Background of
Modern Literature. (William James - ThePrinciples
of Psychology.
New York, 1890) New York, OxfordUniversity
Press, 1965. p. 718.42
Benedito Nunes
-op. cit., p. 138-139 43
Clarice
Lispector
- A Paixosegundo
G. H. Lisboa,Relgio
D'gua
Editores, 2000,p. 1 1.44
Carlos
Felipe
Moiss- "ClariceAssim,
e porque, comorefere
Bataille,
"a vida movimento enada
nomovimento est
protegido
domovimento"45,
a tentativa serapreender
o instanteenele
o mximo de
perspectivas
possveis
sobre
umdado
elemento.Assim
o refere WilliamJames
quando
escreve sobrea corrente deconscincia:
Every thought
we have of agiven
factis,
strictly
speaking,
unique,
andonly
bears a resemblance of kind with our other
thoughts
ofthe same fact. When theidentical fact recurs, we must think of it in a fresh manner, see it under a
somewhat different
angle,
appreliend
it in different relations from those in which it lastappeared. [...]
Often we are ourselves struck at the strange differences in our successive views of the samething.
We wonder how we ever could haveopined
as wedid last monthaboutacertainmatter .Ao
questionarmos
a noco de reaLquestionamos
tambm aquesto
darepresentaco.
Sendo a realidademutavel,
Barthes refere que aorepresentar
estamosapenas a indicar o ltimo estado da realidade: "Autre chose se passe, attach sans doute
un autre sens du mot
reprsentation.
Lorsque,
dans undbat,
quelqu'un
reprsente
quelque
chose soninterlocuteur,
il ne fait pasqu'allguer
le dernier tat de laralit.
l'intraitable
qui
est enelle"47.
Tambm nas obrasestudadas
se coloca emquesto
a realidade ou arepresenta^o
desse realenquanto
imagem
fiel.Assim,
Virginia
Wool
pela
voz de uma das personagens
de
TheWaves,
afirma a dubitabilidade do real e a constante mutabilidade do mundo:'I
begin
now toforget;
Ibegin
to doubt thefixity
of tables, thereality
of here and now. to tap my knucklessmartly
upon tlieedges
ofapparently
solidobjects
and say, "Are you hard?" I have seen so many differentthings.
have made somany different
sentences48.
No entanto, o inverso tambm acontece. ou
seja,
tudo o que est escrito parece aqualquer
momento capaz de instaurar uma realidade nova, uma realidade outra que no aque nosrodeia:
45
Georges
Bataille OErotismo.Tradu<?o
de Joo Bnard daCosta. Lisboa, 33edico,Antgona,
1988, p. 88.46 Richard Ellmann
eCharles FeidelsonJr.
-op. cit., p. 715.
47
Roland Barthes - LePlaisir du Texte. Paris,
ditions
du Seuil, 1973,p. 73. 48Tudo ao seu redor
pareceu-lhe
entocontagiado pela
mesmapossibilidade
devir a se tornar real, uma
possibilidade
de sbito docemente revelada: a rvorequase intata no entanto
pronta
a sequebrar,
o sol dehoje
que noera seno achuva de ontem, tudo oque era slido no entanto sempre pronto a se
quebrar
- eat nos olhos do homem a mulher quase adivinhou o pontocomovido que h nosolhosmais frios, opontovulnervel: a
possibilidade
.Clarice
Lispector
- AAlguma
coisa como um querer ou umafonpa
vaisurgir
naexperincia
moderna - constituindo-a, talvez, assinalando em todo o caso que a idadeclssica acaba de morrer e com ela o reino do
discurso
representativo,
a dinastia de umarepresenta^o significando-se
a si mesma eenunciando na
sequncia
das suaspalavTas
a ordem adormecidadascoisas .501.3. O referente e a
suspenso
do referenteA
representaco
tidacomo umacpia
ouimita9ao
doreal;
Plato defendia quea verdadeira mimesis
reproduziria
a naturezareal do
objecto,
assim como as suasexactas
propor9es.
Porexemplo,
para ele. os nomesquando
verdadeiramenteapropriados,
assemelhar-se-iam
aosobjectos,
uncionando como umaadequa9o
scoisas. Tambm Julia Kristeva nos indica que, numa
concep^o
clssica da arte, apintura
considerada como umarepresentago
doreal,
face
aoqual
seencontraria
naposi9o
deespelho3'.
Mas,
o conceito demimesis,
comoj
foireferido
anteriormente,
sofreu
algumas
alteracoes. Aristteles redefiniu a mimesisplatnica
parasignificar
nouma
imita9o
darealidade
sensvel. mas umarepresenta9o
dos seusuniversais,
do quepermanente
nospensamentos,
sentimentos eac9es
humanos. Para ofazer,
opoeta
tem de ser um criador que
responsvel pela
elabora9o
da estrutura dosacontecimentos da sua histria. A
representa9o
passou.assim.
a ser, no uma servilcpia
dovisvel,
masalgo
que retratava as acces do ser humano. Em 1919, Jakobsoncitava
Mallarm,
referindo-se sua ideiade
quea"flor
potiea"
estausente detodos
osbouquets,
defendendo a no-referencialidade dapalavTa; segundo
ele,
alin9o
potica
supera a
fun9o
referencial,
mas no adestri,
antes a tornaambgua:
"Lasuprmacie
de ia
fonction potique
sur lafonction
rfrentielle
n'oblitre pas larfrence
(la
dnolation),
maisia rendambigue"
".Michel Foucault
-op. cit.,p. 255. 51
Julia Kristeva - Historia da
Linguagem. Tradu^o: Maria
Margarida
Barahona. Lisboa,Edi^es
70, 1969(l3ed.), p. 356.52
Rosa Maria Martelo- Carlosde Oliveirae a
Com a
evolu9o
dalinguagem,
a referencialidade,
cada vezmais,
afastada doreal,
e come9a arepresentar
umaresistncia
aosentido.
Barthes refere-se aestarela9o:
"La
reprsentation
pure etsimple
durel,
la relation
nue de cequi
est(ou
at)
apparat
ainsi comme une rsistance ausens"53.
Verificamos que, cada vezmais,
omundo do texto se
sobrepe
ao mundo consideradoreal; assim,
Clariceafirma:
"Literatura o
lugar
possvel
da existncia dacoisa;
o literrio no spermite
apresen9a da
coisa,
como aprefere".
TambmHeidegger
encara a obra de arte, nocomo uma
reprodu9o
do queexiste,
mas sim comoalgo geral,
queabrange
o visvel eo
invisvel.
Aobra
de arte vaiconduzir
a umamudan9a
no mundo que existe e nomundo que
instaura,
uma vez que o ser cria aobra,
mas simultaneamente por elacriado. Nesta linha de
pensamento,
e fazendo umadistin9o
mais marcada entre real ereferncia,
surge opensamento
deDerrida,
autor para oqual
a escrita evoluipela
diferen9a,
sendo que esta no umconceito,
noalgo
quepode
serpensado.
Alinguagem
para Derrida est sempre a tentar escapar, nao se deLxando conter numsentido
prprio.
Paraele,
asoposi9es
sonecessrias,
uma vez que adefini9o
dadapela
anttese,
ouseja,
o que est directamenteligado
ao que no .Tambm,
nasobras,
as autoras se servem dadiferen9a.
dooposto do
que . paraatingir
o sentido.Clarice
Lispector
afirma a necessidade de evoluirpela
"diferenca" do que .nomeadamente na
obra
A Paixosegundo
G. II:Eu era a
imagem
do que eu no era, e essaimagem
do no-ser me cumulavatoda: um dos modos mais fortes ser
negativamente.
Como eu no sabia o que era, ento no-ser era a tninha maioraproximaco
da verdade:pelo
menos eutinha o lado avesso: eu
pelo
menos tinha o no. tinha o meu oposto. O meubem eu no sabia
qual
era, ento vivia comalgum pr-fervor
o que era o meumal.
E vivendo o meu mal. eu vivia o lado avesso
daquilo
que nem sequer euconseguiria
querer ou tentar. Assim como quem segue risca e com amor uma vida dedevassido,
epeo
menos tem o oposto do que no conhece nempode
nem quer: uma vida de freira. S agora sei que euj
tinha tudo,Roland Barthes - "L'effet de ReL in Liltratureet Rcalit. Direction de Grard Genette et Tzvetan