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A mística do sagrado e os preceitos da religiosidade africana e universal

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Academic year: 2022

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REFERÊNCIAS À MÚSICA NA POÉTICA  DE AGOSTINHO NETO

A mística do sagrado e os preceitos da religiosidade africana e universal

Jomo Fortunato |

Uma das definições mais seguras e sensíveis da génese da poesia de Agostinho Neto, encontramos no prefácio “A esperança das utopias possíveis” da autoria de Maria Eugénia Neto, do livro “Agostinho Neto, obra poética completa”, 2016, que reúne a totalidade dos textos poéticos dos livros: “Sagrada Esperança”, “Renúncia Impossível”, e “Amanhecer”. No referido prefácio a viúva do poeta caracteriza, nos seguintes termos, a poesia de Neto: “A poesia netiana não é um exercício estéril de lamúrias depressivas. Para Agostinho Neto, escrever significava lutar: No seu projecto estético, as palavras contêm a esperança da libertação, a audácia da desalienação e insuflam a necessidade da acção libertadora do homem. Plantam esperança e colhem certezas. “`A sua poesia ilusoriamente simples, de crítica contundente mas sempre construtiva, contrapõe-se a agilidade e mestria com que Agostinho Neto explora os meios poéticos, cuja qualidade literária enobrece e transcende o conteúdo imediato dos poemas, transbordando as fronteiras regionais e tomando relevância universal. É uma voz inefável, encantadora, que nos fala- ao cérebro, sim mas também e principalmente, ao coração”, diria a sul-africana Jane Elizabeth Carter.

Neste modesto trabalho, baseado nas referências à música na poética  de Agostinho Neto, não é nossa intenção seleccionar, de forma exaustiva, as inúmeras referências à música na obra poética de Agostinho Neto. Durante o processo de releitura da poesia de Agostinho Neto, seleccionamos apenas  aqueles versos que nos pareceram, pela sua densidade literária e estética, mais propícios a uma sólida argumentação interpretativa, e que realçam a música, na sua dimensão simbólica, privilegiando os seus possíveis desdobramentos semânticos no

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universo da arte e da construção poética de Neto. 

Musicalidade

Há uma musicalidade intrínseca aos desígnios e propósitos mobilizadores da luta de libertação de Angola, referimo-nos às canções do conjunto “Nzaji” e a canção Dr.Neto, na qual a

liderança de Agostinho Neto teve um papel de suma importância,  e um outro segmento artístico, igualmente de índole musical, que celebra a mística do sagrado, realça os mais nobres preceitos da religiosidade africana e universal, está na base da essência da cultura angolana, e possui uma projecção abrangente na poética de Agostinho Neto.

Agostinho Neto terá sido influenciado pela liturgia da igreja protestante, o pai foi pastor, um aspecto da sua formação que ditou o ritmo e a génese temática dos seus versos, sendo evidentes, na globalidade da sua obra, as reiteradas referências à música, no sentido lato do termo.

 Os gritos de revolta ecoavam, intempestivos, na  música e na esperança do povo angolano, num compasso sincopado, rumo à heróica luta que ditou a independência e a consequente conquista da liberdade.  Foi assim no engajamento político e, de modo semelhante, ocorreu na arte poética de Agostinho Neto.  Política e literatura surgem assim como dois factores de clara socialização que se irmanam, “misturados em estranha orquestração”, numa poesia que se reputa intemporal, visionária, humanista e de clara afirmação universal.  

Ritmo, harmonia e melodia atravessam a poesia de Agostinho Neto: Ansiedade/ ao som da viola/ acompanhando uma voz/ que canta sambas indefinidos (...) (Sábado nos Musseques, in Sagrada Esperança)  eram assim as nostálgicas tertúlias dos musseques, retractados, em versos, nos encontros musicais da época.

Aspiração

 O poema «Aspiração» transborda literalmente de música: Ainda o meu canto dolente/e a minha tristeza/ no Congo, na Geórgia, no Amazonas (...). Aqui a musicalidade atravessa a história do mundo, particularizada pelo canto «triste» e «dolente» do poeta, numa voz que se divide ao longo dos trajectos escarpados da escravatura. Pode-se ainda subentender, nestes versos, o prenúncio da emanação dos primeiros acordes do jazz, na América do Norte, e a expansão da cultura africana pelo mundo.

 No mesmo poema, o poeta celebra a musicalidade da noite africana e do seu canto, entendidos como leitmotiv  do engajamento na luta anti-colonial: Ainda/ o meu sonho de

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batuque em noites de luar/ ainda os meus braços/ainda os meus olhos/ ainda os meus gritos/

Ainda o dorso vergastado/ o coração abandonado/ a alma entregue à fé/ ainda a dúvida// E sobre os meus cantos/ os meus sonhos/ os meus olhos/ os meus gritos/ sobre o meu mundo isolado/ o tempo parado (...) (Aspiração in Sagrada Esperança).

 A música também acontece como antídoto à  pobreza e ao sofrimento do homem africano plasmada na  sonoridade dos instrumentos: Ainda o meu espírito/ ainda o quissange/ a

marimba/ a viola/ o saxofone/ ainda os meus ritmos de ritual orgíaco (...) ... E nas sanzalas/ nas casas/ no subúrbios das cidades/ para lá das linhas/ nos recantos escuros das casas ricas/

onde os negros murmuram (...) Ainda// O meu desejo/ transformado em força inspirando as consciências desesperadas. (in Sagrada Esperança).

As referências expressas à música, e à generalidade dos ritmos negros do mundo, sustentam parte substancial da estética e da literariedade da poesia de Neto, ora como factor de equilíbrio entre a história e a construção literária, em contraponto à dimensão épica do texto, ora como alusões de uma filosofia endógena, concretizada por uma manifestação artística tipicamente africana. É uma homenagem à música e à dança, solidarizando-se ao sofrimento dos seus irmãos negros: Palpitam-me/ os sons do batuque/ e os ritmos melancólicos do blue// Ó negro esfarrapado do Harlem/ ó dançarino de Chicago/ ó negro servidor do

South

/ Ó negro de África/ negros de todo o mundo/ eu junto ao vosso canto/ a minha pobre voz/ os meus humildes ritmos./ (Voz do sangue, in Renúncia impossível)

Quando a música, e todo o universo semântico a ela ligada, não aparece de forma expressa, ocorre de forma metaforizada associada, amiúde, a elementos do mundo animal e vegetal:

Sons de grilhetas nas estradas/  cantos de pássaros/  sob a verdura húmida das florestas/ 

frescura na sinfonia adocicada/ dos coqueirais/ fogo/ fogo no capim/  fogo sobre o quente das chapas do Cayatte (...) e o reforço anafórico, a dado passo, do lexema «ritmo»: ritmo/ Ritmo na luz/ ritmo na cor/ ritmo no movimento/  ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços/   ritmo nas unhas descarnadas//   Mas ritmo/  ritmo. / /  Ó vozes dolorosas de África! (Fogo e Ritmo, in Sagrada Esperança)

Amanhecer

Um dos momentos mais musicais da poesia de Agostinho Neto, encontramos no poema

“Boogie-Woogie” do livro “Amanhecer”, obra póstuma, que reúne poemas descobertos mais tarde, o último dos quais datado de 1972, em plena luta de libertação nacional: “Canta, Calloway/

geme os teus sons roucos/que se vão estrangular no vácuo da vida/ Canta, Armstrong/grita em músicas alegres/ tuas finais de choro.//Canta, Robeson//tua música ambígua/triste, alegre,

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triste.//Saxofones, clarinetes de Harlem//África multidões, cantai! Contai a vossa história em audazes ritmos/de antifonias soluçantes.//Cantai/mostrai-me os fragmentos/de corações quebrados/nas síncopes musicais captadas/das florestas do Congo.//Cantai/ vossos ritmos/respirados ao luar/quentes como a luz sensual/das fogueiras/tristes como o vosso drama.//Entoai vossas orgias de sentimento/história triste duma raça.//Ó mágicos do som,/

contai a nossa história”. No poema “Boogie-Woogie” a música negra norte-americana

representa de forma simbólica a escravatura:  …”Ó mágicos do som,/ contai a nossa história

”, e a luta pelos direitos cívicos nos Estados Unidos da América, representada pelos cantores Cab Calloway, 1907-1994,  Louis Amstrong, 1901-1971, e Paul Robeson, 1898- 1976, o primeiro actor negro a interpretar a peça,  Otelo, de Shakespeare na Broadway. A designação do poema, “Boogie-Woogie” celebra os blues, género caracterizado pelo uso sincopado da mão esquerda ao piano., muito popular entre os negros nos anos 30 e anos 40 nos Estados Unidos.

Encontramos outros momentos musicais em “Amanhecer” dos quais destacamos o poema

“Docemente”, datado de 4 de Setembro de 1951, com os versos: E todas as aves cantaram no céu/ Esse dia alegra de amor poema… e o poema “Bailarico” prenhe de música e dança:

 Vamos dançar/ dançar/ dançar/ que amanhã é feriado/ ninguém trabalha./ Haja alegria,/

alegria.// Mais uma rumba/ uma conga/ um samba/ nada de valsas/ não queremos slows./

Venha o ritmo/ do nosso batuque/ no som da orquestra de Xavier Cugat./ Tudo dança/ minha gente./  Não há cerimónias/ podem dançar sem gravata/ sem casaco./ Não há aqui ninguém/

para nos acusar de selvagens….

Kissanguela

Sentindo a música, Agostinho Neto se revela, de forma criativa, se revê na sua africanidade, desconstruindo toda a intencionalidade que impõe, como únicos, os valores da cultura

ocidental. O  negro, e a sua cultura, são categorizados,  pela sua versificação, à condição de elementos de reflexão filosófica, conceptualizando uma dimensão existencial própria e

endógena.  Tanto é assim que ficou conhecida a afeição que Agostinho Neto nutria pelo

Agrupamento “Kissanguela”, 1974-1980, uma das formações musicais da fase mais criativa da Música Popular Angolana. Entendida como música “engagé”, de intervenção, revolucionária ou, simplesmente, canção política o certo é que, volvidos mais de trinta anos, ficou-se-nos na memória colectiva, a marca de uma arte romântica, nos seus motivos melódicos, e,

verdadeiramente eficaz, nos seus propósitos textuais e políticos. O Agrupamento Kissanguela acompanhou as caravanas presidenciais do Dr. Agostinho Neto, a Cabo Verde e Guiné

Conacry, factos que a história política e a cultura registam com imenso orgulho.

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Referências

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