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De perto e de longe:

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Academic year: 2022

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De perto e de longe:

Guilherme Amaral Luz Resenha do livro: PÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefoucauld, Gonzaga, Silva Avarenga e Bocage, São Paulo: EdUSP, 2001.

Se é certo que a historiografia brasileira contemporânea - em especial a voltada para assuntos do período colonial ou da América portuguesa - tem se preocupado crescentemente com o tema da retórica, seja como auxílio na crítica dos documentos ou para redefinir seus estatutos, então, nomes como o de Alcir Pécora têm-se tornado cada vez mais presentes em bibliografias de trabalhos historiográficos. É com este interesse historiográfico em temas da retórica e da poética dos séculos XVI, XVII e XVIII que gostaríamos de apresentar o mais recente livro de Pécora, Máquina de Gêneros (EdUSP, 2001). Felizmente, por tratar-se de um livro de ensaios capazes de serem lidos tanto em isolado como em conjunto, uma exposição escolar do texto seria catastrófica. Para trazer um pouco da força do livro diante dos olhos de seu leitor potencial, preferimos o caminho do diálogo parcial com ele, apontando apenas alguns dos espinhos que o trabalho submete aos historiadores.

Já na capa do livro, os espinhos se nos apresentam de uma forma curiosa: através da imagem do porco-espinho, retirada de um escudo real, do qual eliminou-se os símbolos de maior pompa como o escrito latino que dizia "de perto e de longe", insinuante de sentidos altos para a escolha do animal, a princípio, tão baixo para representar a realeza. É aproveitando da rudeza simulada pela figura do porco espinho - e estimulados por ela - que gostaríamos de citar uma passagem da introdução do livro que se apresenta como um recado agudo aos historiadores:

"Se o sentido de 'o real', em literatura, mescla-se ao 'efeito de sentido' ou ao 'valor de uso' da 'realidade' que ela produz - este é o bloco sujo ou impuro que surge, inteiro, diante da 'consciência' ou do 'auditório' -, o passo seguinte a dar é reconhecer que o 'ambiente' não identifica uma verdade objetiva, no sentido de indiferente ou estranha àquela permeada pelos efeitos de sentido obtidos

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mediante a aplicação adequada de convenções e práticas datadas. O 'ambiente não literário', assim, não deverá ser considerado senão como peça de um outro gênero de argumentação em busca de acordos sobre o que deve ser julgado como 'o real'.

Uma ata de Câmara ou um despacho burocrático, nesse caso, não têm em relação ao texto de ficção senão uma diferença de gênero retórico - com toda a distância que isto implique, isto é, com a grandeza muito diversa de seus recursos de linguagem, suas matrizes letradas, suas estratégias de avaliação de mérito, seus âmbitos institucionais de vigência ou condições de performance" (p. 14).

A princípio, poderíamos ler a recusa da possibilidade de acesso a uma suposta realidade histórica fora de textos ou de convenções retóricas como uma postura céptica em relação a possibilidade do conhecimento histórico1. Entender o 'ambiente não literário' como peça de um gênero outro de argumentação com o qual um texto particular deve ser articulado é realmente distinto de uma postura "contextualista", segundo a qual os textos adquirem sentido ao se explicitar o momento histórico em que foi produzido. No entanto, não há nada aqui de uma recusa da História ou, menos ainda, da historicidade das construções retóricas, não aplicada como imagem refletida na representação textual ou como condições materiais de sua formulação, mas elaborada como convenções que possibilitam o alcance e a compreensão de efeitos verossímeis de sentido e "realidade" para o público ao qual cada texto se lança ao longo do tempo, nas suas durabilidade e finitude. O estudo das convenções, contudo, não se faz pela mera exposição das peças retóricas em bloco ou dos gêneros como preceptivas isoladas do tempo, mas dessas peças em movimento ou desses gêneros como uma máquina em funcionamento vivo, pois, como diz o autor:

"o gênero não tem de ser puro ou inalterável em suas disposições, assim como o objeto não é idêntico à aplicação de um conjunto de prescrições encontradas em determinada preceptiva do período (...). Ao contrário, a tendência histórica básica

1 Uma crítica exemplar deste tipo é a de Carlo Ginzburg em History, Rhetoric and Proof. Nele, o autor denomina esta postura como pós moderna, identificando-a com correntes influenciadas por autores como Nietzsche, Barthes e Foucault (Ver: GINZGURG, Carlo. History, rhetoric and proof: the Menahem Stern Jerusalem lectures, Hanover: University Press of New England, 1999). O adjetivo pós moderno (vago, pejorativo e mais negativo do que afirmativo) não se aplica ao livro de Pécora, que não pode, ainda, ser tomado como um texto céptico em relação a possibilidade de conhecimento. O conhecimento é possível, mas seu estatuto não é correspondente ao do "real" puro tal como ele ocorre. Antes, conhecimento é uma operação histórica e provisória capaz de formular sentidos e efeitos verossímeis de realidade.

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dos mais diferentes gêneros é a de desenvolver formas 'mistas', com dinamicidade relativa nos distintos períodos, que impedem definitivamente a descrição de qualquer objeto como simples coleção de aplicações genéricas" (p. 12).

A História, assim, faz-se presente no texto de Pécora não como mero instrumento metodológico interdisciplinar de um crítico literário ou professor de retórica. Ela invade o texto como objeto de elaboração discursiva, rompendo as barreiras institucionais entre o que é isto ou aquilo, mostrando-se aos historiadores como nova possibilidade de investigação alternativa à ilusão realista - ora camuflada ora combatida contemporaneamente - da história que se narra "tal como ela efetivamente foi". A História que se percebe nas considerações de Pécora sobre gêneros também não se resume ao fruto dos desejos subjetivos daqueles que a fazem e escrevem. Ela é efeito de realidade que se faz na formulação de lugares verossímeis formais que se estabelecem mediante a acordos públicos e datados, sendo a sua eficácia proporcional à capacidade de convencer e persuadir a audiência que lhe dá legitimidade. Esta historicidade inalienável das formas retóricas faz dos gêneros, ao mesmo tempo, "atos de criação" e "efeitos criados", apresentando-se como o espinho mais agudo para os historiadores acostumados a buscar a dimensão puramente conteudística dos objetos culturais do passado.

Se, por um lado, o "historiador sugerido" do livro de Pécora recusa a historicidade como reflexos do real no texto ou como sombras da realidade que vazam conteúdos nas diversas formas genéricas apresentadas; por outro lado, o crítico literário recusa-se a isolar os objetos textuais em questão de suas intenções éticas e aspirações intervencionistas no mundo em que se inserem. Um dos ensaios do livro é paradigmático nesse sentido: "As artes e os feitos", dedicado aos sermões de Pe. Antônio Vieira e aos Lusíadas de Luís de Camões. Em ambos os casos, Pécora critica a formulação romântica de que eles seriam cânones da "boa escrita" em língua portuguesa mesmo que suas artes fossem consideradas fora de suas próprias práticas e aspirações de futuro. Isso não quer dizer que Vieira e Camões não são grandes oradores ou escritores da língua portuguesa, mas suas artes, diria Pécora, não podem ser dissociadas dos feitos a que estão associadas: o feito da pregação, como no caso de Vieira, e os feitos ultramarinos portugueses, como no caso de Camões.

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Tomando como exemplo Camões, a arte (as letras) funciona como complemento necessário aos feitos grandiosos e, ao mesmo tempo, só tem valor maior quando encontra- se com os feitos. De maneira resumida, poderíamos dizer que a epopéia precisa dos feitos para ser realizada assim como os feitos precisam da epopéia para que o bem da proeza ser integralmente cumprida. O motivo principal para esta função da epopéia estaria na constatação camoniana de que não se pode compreender "toda a extensão do feito sem que a penetração do engenho e o rigor da arte descubra nele o seu móvel superior e o proponha como modelo de virtude heróica" (p. 151). O reconhecimento, portanto, do orador épico pelo público é mais do que um reconhecimento de maestria estética. Dele depende o sucesso do empreendimento político na sua integra. Em Vieira, pode-se pensar o reconhecimento do pregador de forma semelhante. O que está em jogo em um sermão não é o reconhecimento da competência estética do pregador, mas a produção de um efeito da providência sobre a audiência devota que lhe faz tomar consciência do modelo de virtude cristã, ainda que seja dolorosa e pelo caminho do desengano. Nos dois casos, os modelos de virtude servem para efetivar, no futuro, o anúncio de um tempo promissor. No caso camoniano, a formação do Império português ultramarino e, no caso de Vieira, a propagação da fé para as quatro partes do orbe a ser encabeçada pelos portugueses.

O elemento axiológico dos textos e gêneros tratados no livro de Pécora é um eixo capaz de articular todos os ensaios. Em todos eles, há um compromisso dos textos com os temas éticos de seu tempo. As cartas jesuíticas são exemplares de estratégias inacianas de reunião das partes da Companhia dispersas pelos vários cantos do mundo em um único corpo de ação comprometido com a evangelização do mundo; o Galateo de Giovanni Della Casa é paradigmático das aspirações de vida política civilizada com base na lapidação do uso da razão pelos bons hábitos de convivência em companhia; o Diálogo de Manuel da Nóbrega faz parte da formulação dos caminhos mais adequados para a propagação da fé entre os índios da América portuguesa e, como um último exemplo, as máximas de La Rochefoucald funcionam como possibilidade de descoberta, pelo "homem honesto", de sua própria dimensão a despeito da representação grandiosa que seu amor próprio faz de seus merecimentos, colaborando para testemunhar "o fracasso do remédio da sociedade para domar a má inclinação do homem" (p. 132). Em todos os casos, para além desses poucos

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exemplos que selecionamos, as formas genéricas estão totalmente inseridas nas preocupações éticas de seus mundos, formulando seus limites e desenhando seus caminhos futuros.

Uma questão pode ser, neste momento, colocada. Como pode o historiador ou o crítico literário avaliar a inserção das formas genéricas em seu mundo, quando reconhece- se uma distância qualitativa bastante considerável entre o mundo dos textos e o mundo em que o historiador ou crítico está inserido? A postura modesta do porco-espinho é uma metáfora possível para a maneira que Pécora insinua sua resposta para essa pergunta. Ao assumir-se na sua própria baixeza, o porco-espinho recusa o poder supra histórico ou teológico de formular verdades perenes para o passado, atacando, de longe, a ilusão de recuperação de um passado tal como ele foi. Todo conhecimento produzido sobre o passado é considerado no seu valor de uso presente, ou seja, o que se produz de conhecimento sobre Vieira, Castiglione ou Silva Avarenga hoje é o que se interessa dizer sobre eles no interior das preocupações atuais. Por outro lado, ataca-se de perto as imagens anacrônicas formuladas ao longo de tradições críticas a respeito dos objetos do passado, adotando-se uma postura de desconfiança com o reconhecimento imediato de sentidos atuais em formas passadas e com os reflexos de desejos de uma poética do presente sobre uma outra que lhe é distante.

Um bom exemplo de postura crítica em relação aos anacronismos está na busca quase obsessiva do autor em precisar os sentidos dos conceitos mais chaves de cada gênero em evidência, diferenciando do sentido atual que a mesma palavra teria hoje em línguas modernas. No ensaio sobre o Galateo de Della Casa, percebe-se este esforço com a palavra

"companhia". No ensaio sobre as máximas de La Rochefoucauld, o mesmo acontece com palavras como "homem honesto" e, em cada ensaio, muitas outras palavras de uso corrente no português atual vão sendo (re)apresentadas ao leitor de uma maneira diferente e nova e de acordo com o conjunto da qual fazem parte no interior dos discursos próximos a elas no tempo. Ao lado disso, Pécora incansavelmente aponta como poetas e críticos posteriores leram os textos que apresenta de acordo com as poéticas que propunham e com a ética com as quais se comprometiam. Por exemplo, critica Fernando Pessoa, ao considerar Vieira

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simplesmente como "Imperador da língua portuguesa", e Oscar Wilde, ao tomar as máximas como tendo um poder crítico à moral burguesa, ainda inexistente quando La Rochefoucauld escrevia no século XVII.

A identificação de anacronismos e sua repulsa, no entanto, só é possível porque há diferenças entre as leituras no tempo. O crítico contemporâneo não é um ser tão poderoso a ponto de contrapor essas leituras ao suposto referencial puro dos textos no passado do qual teria total conhecimento. O que ele pode fazer é um esforço hermenêutico e crítico de confrontação do que imagina atualmente como verdadeiro sobre um texto do passado com os sentidos novos e verossímeis que podem vir à tona mediante a um trabalho mais detido de avaliação do conjunto dos resíduos de sentido do passado. De perto e de longe, a máquina de gêneros apresentada por Pécora dá sinais de funcionamento ao leitor e, na fricção produzida por suas peças, oferece a possibilidade de visualização dos movimentos que fazem surgir e desaparecer certezas sobre textos escritos há 500, 400, 300 anos de distância de nós.

Referências

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