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Kriterion vol.49 número118

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Academic year: 2018

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SOBRE DIREITOS HUMANOS

NA ERA DA BIO-POLÍTICA

Oswaldo Giacoia Junior* giacoia@tsp.com.br

Desde a Antigüidade clássica, fi lósofos e juristas têm se dedicado a uma refl exão profunda sobre o inesgotável tesouro espiritual de Antígona. Em sua Retórica (1373 b e seguintes) já observava Aristóteles: “Pois realmente há, como todos de certo modo intuem, uma justiça e uma injustiça naturais, compulsórias para todas as criaturas humanas, mesmo para as que não têm associação ou compromisso com as outras. É isso que a Antígona de Sófocles claramente quer exprimir quando diz que o funeral de Polinices era um ato justo apesar da proibição; ela pretende dizer que era justo por natureza.”

Em complementação, pode-se recorrer ao texto magno da mesma Retórica

de Aristóteles 1375 a 31: “Devemos enfatizar que os princípios de eqüidade são permanentes e imutáveis, e que a lei universal tampouco muda, pois se trata da lei natural, ao passo que as leis escritas muitas vezes mudam. Esse é o signifi cado dos versos da Antígona de Sófocles, onde Antígona defende que, ao enterrar seu irmão, violou as leis de Creonte, mas não violou as leis não-escritas.”

Esse tema recebe uma infl exão decisiva na aurora da modernidade política, no século XVII, depois do esfacelamento do poder espiritual concentrado no papado romano, por força dos movimentos de reforma protestante, assim como com o surgimento dos modernos estados nacionais, surgidos em decorrência do desmoronamento da autoridade ainda centralizada na unidade política do sacro império romano-germânico. Começa a se fi rmar, então, com

* Professor do Departamento de Filosofia da UNICAMP.

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Grotius e Hobbes, a teoria jusnaturalista dos direitos do homem, cuja sede e fundamentação seria a própria natureza racional e afetiva – a humanitas do

homo humanus.

Daí porque, sobretudo desde o século XVII, pode-se constatar a transição, perfeitamente justifi cável em termos de racionalidade, entre direitos naturais e direitos humanos - de modo que os deveres impostos pelas leis não escritas de Antígona acabaram por assumir a forma histórica dos direitos humanos, ou dos direitos políticos fundamentais.

É nesse sentido que se encaminha a abordagem que pretendo fazer de

Antígona. A importância da questão, para a discussão jusfi losófi ca atual, mal pode ser exagerada, tanto mais quando se atenta para o fato de que esse direito natural, expresso em leis não-escritas, a que Antígona recorre contra o edito positivo, sacrílego e autoritário de Creonte, encontra-se positivado, a partir das modernas constituições dos estados democráticos de direito, sob a forma de direitos humanos fundamentais em nosso constitucionalismo moderno. Acredito poder afi rmar, sem grande temor de erro, que a maior parte da fi losofi a política contemporânea tem como eixo teórico a refl exão sobre os direitos humanos, em particular sob a ótica da relação entre eles e a democracia, como se atesta pelo livro de Habermas Direito e Democracia.

São esses direitos, constitucionalmente assegurados como liberdades públicas, que, desde sua positivação, demarcaram as trincheiras de resistência do cidadão contra os excessos de arbítrio do poder soberano. Neles se concentram as razões da verdadeira justiça contra a violência, mesmo que revestida de legalidade. Contra toda forma de opressão e tirania, a Antígona

constitui um documento fundador e uma fonte de recurso legítimo à fonte da legitimidade em leis não escritas, porque ínsitas à natureza do ser humano.

Quando Creonte se dirige a Antígona, com a pergunta: “Sabias que um edito proibia o sepultamento de teu irmão?” – ou seja, sabias dos limites prescritos pelo direito positivo, a heroína trágica responde:

Mas Zeus não foi o arauto delas para mim, nem essas leis são as ditadas entre os homens pela Justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram. E não seria por temer homem algum, nem o mais arrogante, que me arriscaria a ser punida pelos deuses por violá-las.1

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A leitura de tais passagens registra a aguda consciência, desde os primórdios de nossa civilização, de leis não escritas, iniludíveis, das quais não se pode dizer quando nem onde surgiram, mas que são cogentes como princípios objetivos, transcendendo fronteiras e limitações tanto espaciais como temporais, de modo que puderam ser interpretadas pelos jusfi lósofos dos séculos XVII e XVIII como a expressão de direitos naturais universais, ínsitos à própria natureza humana.

São esses os direitos que, como resultado da memorável e prodigiosa epopéia democrática da história do Ocidente, foram positivados nos ordenamentos jurídicos dos modernos estados de direito, inicialmente nas constituições brotadas dos movimentos revolucionários inspirados no ideário

fi losófi co das Luzes, no fi nal do século XVIII. Testemunham-no a Declaração da Virgínia de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da constituinte francesa de 1789.

Assim, nos termos do terceiro artigo da Declaração de Direitos da Virgínia

o governo é, ou deverá ser, instituído para o benefício comum, a proteção do povo, da nação, ou da comunidade; de todas as várias formas e modos de governo a melhor é aquela que é capaz de produzir o maior grau de felicidade e segurança, e que se encontra mais efetivamente garantida contra o perigo da má-administração; e que onde quer que qualquer governo seja considerado inadequado ou contrário a esses propósitos, a maioria da comunidade tem um indubitável, inalienável, e irrevogável direito de o reformar, alterar, ou abolir, do modo que seja considerado melhor conducente ao bem-estar público.

Em acréscimo e reforço do argumento, cito o segundo artigo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789, diretamente emanada da mesma atmosfera espiritual que conduziu à Revolução Francesa e ao republicanismo contemporâneo: “O objetivo de qualquer associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”

Esse mesmo diapasão é ratifi cado pelo documento que constitui talvez a expressão mais radical do entendimento moderno de política e soberania: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Constituição Francesa de 24 de junho de 1793, cujos artigos primeiro e segundo dispõem: “O objetivo da sociedade é a felicidade comum. O governo é instituído para garantir ao homem o usufruto dos seus direitos naturais e imprescritíveis. Esses direitos são a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade”.

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encontram mais na vontade de Deus, nos costumes herdados pela tradição, nem mesmo na história, mas solidamente plantados na natureza humana. Dela brotam direitos fundamentais e inalienáveis – o mesmo que, recorrendo a leis não-escritas, Antígona contrapunha ao edito positivo de Creonte – direitos legitimamente atribuíveis a todo homem em função de sua humanidade, prerrogativas éticas e jurídicas universais, cuja validade se sobrepõe aos ordenamentos jurídico-políticos empíricos, que, com efeito, teriam a função precípua justamente de assegurá-los e torná-los efetivos.

Retomando uma perspectiva kantiana em fi losofi a da história, o jusfi lósofo Norberto Bobbio procura identifi car, em nossos dias, um signo premonitório, a partir do qual, pelo diagnóstico do presente, pudesse lançar um olhar confi ante sobre o futuro, interpretando esse sinal dos tempos, na esteira história profética de Kant, como indicativo de uma tendência da humanidade para seu aperfeiçoamento moral. Sob essa ótica, o jurista italiano considera o debate atual sobre os direitos humanos – “cada vez mais amplo, cada vez mais intenso, tão amplo que agora envolveu todos os povos da terra, tão intenso que foi posto na ordem do dia pelas mais autorizadas assembléias internacionais”2

– como signum prognosticum da marcha histórica do gênero humano para “o melhor”.

É nesse horizonte histórico-fi losófi co que Bobbio insere sua reconstituição do desenvolvimento histórico dos direitos do homem, na qual se entrecruzam as linhas da sucessão cronológica – que considera tais direitos do ponto de vista objetivo (direitos civis ou políticos, de primeira geração; direitos sociais, de segunda geração; os direitos de titularidade difusa, de terceira geração) – com as linhas concernentes à sua positivação no direito constitucional, sem desconsiderar a especifi cação progressiva de sua titularidade, que inclui o aspecto atual de sua irreversível internacionalização.

Nesse sentido, viveríamos a era dos direitos, cuja primeira geração, centrada sobre a pessoa moral, seria constituída pelos direitos civis e políticos, que, como direitos de liberdade, asseguram ex parte populi a delimitação das prerrogativas ex parte principis, como restrições legais à discricionariedade e autocracia da tradicional razão de estado. Daí seria decorrente a relação entre direitos humanos e democracia, direitos humanos e estado de direito. “O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem são a base das constituições democráticas, e, ao mesmo tempo, a paz é o pressuposto

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necessário para a proteção efetiva dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional. Vale sempre o velho ditado – e recentemente tivemos uma nova experiência – que diz inter arma silent leges. Hoje, estamos cada vez mais convencidos de que o ideal da paz perpétua só pode ser perseguido através de uma democratização progressiva do sistema internacional e que essa democratização não pode estar separada da gradual e cada vez mais efetiva proteção dos direitos do homem acima de cada um dos Estados.”3

Como exemplos - próximos e concretos -, podemos tomar a resistência às ditaduras na América do Sul, que dominaram o panorama político nos anos 70 e 80 do século passado, os movimentos contra a discriminação racial nos Estados Unidos da América e contra o apartheid no sul da África. A essa etapa corresponde a positivação dos direitos civis, sob a forma das declarações de direitos e garantias fundamentais, que estão na base do constitucionalismo moderno. Assim o atesta, como eco tardio, o reconhecimento pelo artigo 5 de nossa Constituição Federal, a título de princípio fundamental, da igualdade e da não discriminação entre os seres humanos.

A segunda geração dos direitos humanos, com titularidade centrada na pessoa social, é constituída pelos direitos econômicos, sociais e culturais, cuja positivação resulta tanto dos imperativos de justiça social surgidos no curso do desenvolvimento do capitalismo industrial, na passagem do século XIX para o XX – com sua exigência de igualdade concreta em contrapartida ao formalismo jurídico característico da conquista dos direitos civis – quanto dos movimentos políticos que levaram ao socialismo real, e da infl uência moral e política exercida pela doutrina social da Igreja Católica. Trata-se, em verdade, de uma especifi cação da titularidade dos direitos humanos que marca a passagem do plano abstrato do destinatário genérico – “o homem”, o gênero humano – para categorias concretas ou grupos sociais específi cos (trabalhador, idoso, mulher, criança, adolescente, defi ciente, consumidor, etc.).

Numa terceira geração, surgem os direitos coletivos, de solidariedade ou de titularidade difusa, sendo também o momento histórico em que predomina a tendência à internacionalização dos direitos humanos. Ocorre, então, a positivação, tanto no plano das constituições dos Estados nacionais, quanto principalmente naquele do direito internacional público, da proteção aos direitos que concernem solidariamente à humanidade. Por exemplo, aqueles ligados à paz, ao desenvolvimento, à conservação do meio ambiente, ao desenvolvimento sustentado, ao patrimônio genético, ameaçados pelas

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conseqüências indesejáveis do extraordinário progresso e da extensão planetária da técno-ciência, sobre cuja dinâmica se assenta a confi guração atual da sociedade, tanto no âmbito da produção e circulação de bens, como naquele do consumo e lazer.

No interior desse quadro, gostaria de destacar especialmente a linha de especifi cação - que, nos próprios termos de Bobbio, pode ser compreendida como a manifestação, “nestes últimos anos, de uma nova linha de tendência; ela consiste na passagem gradual, porém cada vez mais acentuada, para uma ulterior determinação dos sujeitos de direito”4. Essa tendência progressiva

da implementação dos direitos humanos, na linha da titularidade subjetiva dos mesmos, parte de uma especifi cação inicial abstrata, do “homem” como “cidadão”, passando pelos sociais conferidos a determinadas categorias - por determinações ligadas aos gêneros (diferença entre homem e mulher), às etapas da vida (idosos, crianças, adolescentes), a estados e condições da vida humana (doentes mentais, defi cientes físicos), para de novo retornar, na forma dos direitos de solidariedade, a uma titularidade universal (direito ao desenvolvimento, ao meio ambiente não poluído, ao patrimônio genético da humanidade).

Trata-se, assim, de uma linha de desenvolvimento que acopla a especifi cação progressiva com o predomínio da tendência à internacionalização dos direitos humanos. Essa integração, por sua vez, transforma o vínculo inicialmente abstrato e jurídico-formal entre homem e cidadão no atual programa de tutela internacional da cidadania, como possibilidade de uma tutela jurisdicional que reforce - pela possibilidade de recorrer a esse plano internacional da tutela jurídica - a efetividade daquela que opera no plano das jurisdições nacionais. A realidade efetiva dessa tendência pode ser comprovada pelos tratados e convenções decorrentes da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e da Carta das Nações Unidas de 1948. Assim, por exemplo: pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), pelo Estatuto dos Refugiados (1951), pelo Estatuto dos Apátridas (1954), pela Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação (1965), e, mais recentemente, pela Convenção Européia dos Direitos Humanos, pelo Pacto de São José para a América Latina, e pela atuação efetiva do Tribunal Penal Internacional.

Desse modo, o reforço no sentido da internacionalização subtrairia a condição por meio da qual se realizam e efetivam os direitos do homem

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(isto é, a cidadania) de sua limitação à esfera de poder discricionário e tendencialmente autocrático dos Estados nacionais, cuja permanente crise estrutural propiciou o advento das modernas experiências totalitárias, com seu cortejo de atrocidades inauditas. A memória dessa barbárie sem precedentes – interpretada como ruptura com a tradição ocidental da racionalidade política e jurídica – recoloca com urgência a inadiável tarefa de repensar os laços entre homem e cidadão, de traçar um novo desenho de ordem jurídica mundial, assegurando o direito à cidadania no âmbito do direito internacional público, como esfera complementar e subsidiária de efetivação dos direitos humanos, garantindo o respeito universal à dignidade da pessoa.

Mesmo hoje, quando o inteiro decurso histórico da humanidade parece ameaçado de morte, há zonas de luz que até o mais convicto dos pessimistas não pode ignorar: a abolição da escravidão, a supressão em muitos países dos suplícios que outrora acompanhavam a pena de morte e da própria pena de morte. É nessa zona de luz que coloco, em primeiro lugar, juntamente com os movimentos ecológicos e pacifi stas, o interesse crescente de movimentos, partidos e governos, pela afi rmação, reconhecimento e proteção dos direitos do homem.5

Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Carta das Nações Unidas seriam marcos históricos inequívocos do reconhecimento da dignidade inerente a toda pessoa humana, bem como a garantia de direitos iguais e inalienáveis, como fundamento da liberdade, justiça e paz no mundo, preservando as futuras gerações de seres humanos da repetição dos fl agelos da guerra e da barbárie.

A consciência dessa tarefa e de sua urgência leva Bobbio a abandonar, em seu tratamento dos direitos humanos, a preocupação até hoje obsessiva com o problema de sua fundamentação defi nitiva, dando prioridade a vis directiva

das medidas aptas a garantir sua proteção e realização efi caz. Não se trataria mais de um problema fi losófi co de fundamentação, mas de um problema político de efetivação e segurança jurídica.

É inegável que, no mundo contemporâneo, com a crise da razão, ocorre também uma crise de fundamentos – uma funda descrença na própria possibilidade de fundamentação em última instância. Toda tentativa desse gênero teria inevitavelmente de recorrer a alguma modalidade de absoluto, como substitutivo para o absoluto que historicamente se esvaziou de sentido. Para Bobbio, nossa necessidade premente é, ao mesmo tempo, muito mais modesta e imperiosa, embora nem por isso mais fácil. Não se trata mais

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de encontrar um sucedâneo do fundamento absoluto – empreendimento sublime, mas desesperado –, mas de buscar, em cada caso concreto, os vários fundamentos possíveis.

É nesse quadro histórico que gostaria de situar a tentativa do jusfi lósofo brasileiro Celso Lafer de empreender, numa confl uência entre as fi losofi as de Hannah Arendt e Norberto Bobbio, sua grandiosa e meritória tarefa de reconstrução dos direitos humanos:

No meu percurso refl exivo confl uem os temas, os métodos e as maneiras de ver as coisas de Hannah Arendt e de Norberto Bobbio. Em A Reconstrução dos Direitos Humanos – un diálogo com o pensamento de Hannah Arendt isto é muito explícito, como também o é no meu ensaio sobre a mentira e em outros trabalhos. Não creio, no entanto, que esta confl uência é arbitrária. Tomo, neste sentido, a liberdade de lembrar que José Guilherme Merquior, já em 1980, com antevisão observa a equilibradora complementaridade na minha refl exão da gravitação simultânea de Hannah Arendt e Norberto Bobbio6.

Lafer alia à sua própria tentativa jusfi losófi ca de reconstrução dos direitos humanos aqueles dois poderosos precursores, considerando-os, principalmente, como membros de uma geração que viveu e pensou radicalmente o século XX, partilhando uma visão de responsabilidade coletiva, imposta e justifi cada como tarefa política de empenhar-se em afastar de nosso horizonte histórico a eventualidade de uma repetição dos horrores do totalitarismo – num empenho solidário em prol do que Arendt denominou amor mundi.

Testemunhas das barbáries perpetradas pelo nazi-fascismo e pelo stalinismo, assim como da crise profunda dos estados nacionais, que, entre outros fatores, ocasionou a segunda guerra mundial, Hannah Arendt e Norberto Bobbio, descrêem de que a mera positivação jurídica dos direitos humanos nas constituições dos Estados constitua razão e meio efi caz para a efetiva realização dos mesmos. Para Arendt, do mesmo modo como para Bobbio, seria indispensável uma tutela internacional da cidadania para assegurar, num espaço público ampliado, a efetiva condição fundamental a partir da qual poder-se-ia fazer valer direitos - ou seja, o reconhecimento prévio de um direito a ter direitos.

Condição de efetividade que, por sua vez, teria como pressuposto a igualdade em dignidade e direitos de todos os seres humanos, abstração feita de sua nacionalidade. Nesse sentido, para Arendt e Bobbio, a cidadania

deveria ser entendida num sentido ampliado, cujo efetivo exercício restauraria

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a dignidade da política, entendida como atuação conjunta num espaço para asseguramento do um direito a um mundo compartilhado – numa inegável evocação (como também ocorre em Bobbio) do direito cosmopolita de Kant.

Em seus trabalhos mais recentes Celso Lafer faz menção também à obra do jusfi lósofo italiano Giorgio Agamben, concectando-a com a perplexidade de Arendt e Bobbio, bem como com sua própria, em face da impossibilidade de compreender e explicar, com auxílio das categorias tradicionais da fi losofi a política e da racionalidade jurídica ocidental, a barbárie nazista:

As considerações de Hannah Arendt sobre a inaplicabilidade da razão de estado clássica permeiam a recente refl exão de Giorgio Agamben sobre o estado de exceção no mundo contemporâneo. Observa Agamben – e este é o seu ponto de partida – que o Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou doze anos e que o totalitarismo pode ser defi nido como um estado de exceção instaurador de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não somente dos adversários políticos, mas de classes inteiras de cidadãos que, por uma razão ou outra, parecem não integráveis no sistema político.7

Em outra referência pertinente ao tema, Lafer menciona mais uma vez Agamben, desta feita no contexto de sua análise da inaplicabilidade do conceito de estado de necessidade, e da lógica jurídica que o disciplina, à situação confi gurada pelas atrocidades do regime nazista.

O que torna o horror do Holocausto ainda mais incompreensível – para a razoabilidade que caracteriza a lógica jurídica – é precisamente o fato de não ser a conseqüência de um estado de necessidade. Com efeito, o totalitarismo – e o Terceiro Reich em especial – pode ser considerado do ponto de vista jurídico como um estado de exceção permanente. Foi, como diz Giorgio Agamben em seu O Estado de Exceção, a instauração, por meio da exceção à ordem jurídica, de uma guerra civil legal.8

Uma vez que essa questão confi gura um aspecto importante também no âmbito do debate atual sobre os direitos humanos, gostaria de apresentar o ponto de vista de acordo com o qual talvez Agamben não possa ser considerado um bom companheiro de viagem numa inegavelmente corajosa e meritória empreitada de reconstrução dos direitos humanos – ainda mesmo quando, como no caso do professor Lafer, essa tarefa deva ser concebida e proposta como

7 Lafer, C. Hannah Arendt e Norberto Bobbio – Uma Proposta de Aproximação. In: Correia, A. (Org): Hannah Arendt e a Condição Humana. Salvador: Quarteto, 2006, p. 28. Cf. também Lafer, C. A Reconstrução dos Direitos Humanos. Um Diálogo com Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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implicando necessariamente a internacionalização dos direitos do homem, com base no princípio, inspirado em Arendt, de uma tutela internacional da cidadania como direito a ter direitos.

Tais seriam os direitos individuais ou políticos, como o direito à vida, à segurança, o direito de ir e vir, de liberdade religiosa, de opinião e expressão, cuja positivação nas constituições dos Estados constituiria a melhor garantia de proteção dos indivíduos contra as arbitrariedades atual ou virtualmente presentes do poder soberano. Essa foi a tendência de positivação que se confi gurou, de modo concreto, nos preâmbulos das constituições dos modernos estados nacionais, desde as revoluções americana e francesa, e que, desde muito cedo, não escapou ao escrutínio de críticos mais atilados.

Excurso: Marx e os Direitos do Homem e do Cidadão

Ora, muito precocemente, já no início do século XIX, esse entendimento jusnaturalista dos direitos humanos, como prerrogativas inalienáveis, naturais e universais, de que os homens seriam titulares em razão de sua humanidade, começaram a ser colocados sob o crivo da suspeita fi losófi ca. Nesse sentido, Karl Marx talvez tenha sido o grande precursor na denúncia de mistifi cação ideológica dos direitos humanos abstratos.

Para o autor de O Capital, seria necessário atentar para um hiato mal ocultado pelo conectivo “e” nas primeiras declarações de direito das constituições americana e francesa. Um conectivo que, na verdade, ao mesmo tempo liga e separa homem e cidadão encobrindo uma diferença – mais que isso –, uma contradição real que tem suas bases em relações sociais de exploração e domínio. Para Marx, a superestrutura jurídico-política do Estado liberal, sobretudo na forma dos modernos estados nacionais, proveria a moldura institucional exigida pela correspondente confi guração da sociedade civil burguesa.

Os direitos humanos formais seriam a expressão simbólica e jurídica do domínio econômico e da hegemonia política da burguesia, a tradução legal do princípio dominante da sociedade - o princípio dos egoísmos privados, dos confl itos de interesses entre pessoas singulares ou grupos organizados, a persecução utilitária de vantagens econômicas particulares.

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O homem, enquanto membro da sociedade burguesa, é considerado como o verdadeiro

homem, distinto do citoyen, por se tratar do homem em sua existência sensível e individual, imediata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artifi cial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma do indivíduo

egoísta; e o homem verdadeiro, somente sob a forma do citoyen abstrato.9

Nesse sentido, a emancipação política, representada pelas declarações de direitos humanos seria a emancipação do homem natural, isto é, do indivíduo privado, da fi gura burguesa do sujeito equivocadamente considerado como “o homem” por antonomásia. O reconhecimento da livre personalidade, a instituição da pessoa como titular de direitos subjetivos inalienáveis – dentre os quais o principal é a capacidade de empenhar-se por contrato e a livre disposição sobre a mercadoria força de trabalho –, seriam a condição jurídica

sine qua non para a criação da mais valia e para a valorização do capital. Para Marx, a pretensão burguesa à emancipação encerra uma contradição que se expressa, em termos políticos, entre os direitos do homem (considerado em seu estado natural de indivíduo privado e egoísta) e de cidadão (agora considerado do ponto de vista de sua pertença a uma comunidade política baseada no reconhecimento de direitos civis). Contudo, a esfera do Estado não é mais do que a instância de organização jurídico-política, que assegura e perpetua a diferença e a dominação de classes, a exploração e os interesses econômicos da burguesia, detentora do poder político.

Nessas condições, os direitos do homem, contrapostos aos do cidadão, fariam parte do dispositivo jurídico que, ao mesmo tempo, legitima e acoberta as relações de dominação sob a capa da igualdade formal de todos perante a lei universal.

Toda emancipação é a redução do mundo humano, das relações, ao próprio homem.

A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral. Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas ‘forces propres’ como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana.10

Invoco o testemunho de Marx para mostrar como, desde a aurora da positivação dos direitos humanos, instala-se uma dialética entre homem e cidadão, escamoteada tanto na declaração de direitos da constituição francesa de 1789,

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quanto nos documentos proclamados por ocasião da guerra de independência das colônias britânicas dos Estados Unidos da América do Norte.

É a esse enraizamento histórico que uma releitura de Antígona não pode deixar de fazer remissão, tanto mais quanto projetos de reconstrução dos direitos humanos retomam a antiga perspectiva universalista a respeito de direitos inerentes à pessoa humana, enquanto tal, reproduzindo, ainda que de modo inconsciente, uma concepção jusnaturalista dos direitos humanos. Nesse sentido, um alerta como o de Marx conserva sua pertinência como arma de defesa e de combate para evitar a repetição da barbárie a que o século passado trouxe à luz.

Excurso: Hannah Arendt e os Direitos Humanos

O genial e precoce diagnóstico de Marx encontrou sua deplorável atestação já nas primeiras décadas do século XX, com a crise, desde então tornada permanente, do Estado-Nação, na qual o vínculo entre o homem e o cidadão foi completamente rompido sob pressão das conjunturas históricas, revelando a precariedade e abstração da noção de direitos do homem, independentemente da cidadania política.

Os fenômenos de multiplicação de minorias decorrentes dos tratados de paz que puseram fi m à primeira guerra mundial – etnias diversas e desgarradas (sobretudo em razão da diáspora que se produziu com o esfacelamento das unidades políticas instituídas pelo czarismo russo e pelo império austro-húngaro), aleatoriamente agrupadas num mesmo território e compulsoriamente reunidas num único estado nacional – suscitaram a crise política de gestão da cidadania, que desde então afeta os estados nacionais.

Nas condições de que foram exemplo a antiga Iugoslávia, Tcheco- Eslováquia, a união entre servos e croatas, as etnias mais importantes e internacionalmente infl uentes acabaram por assumir as funções da soberania política, cabendo aos outros segmentos étnicos da população o status de minorias regidas por regramentos especiais, tutelados pela então existente Liga das Nações, antecessora da Organização das Nações Unidas. Tratava-se, portanto, de um fenômeno típico das sociedades européias do século XX, cuja importância, no entanto, ultrapassa suas fronteiras históricas.

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incapacidade dos modernos Estados-Nação de proteger legalmente indivíduos de origem nacional diversa, numa fl agrante demonstração do hiato, e não da sinonímia originalmente pretendida entre homem e cidadão.

A essas minorias, o século XX somou os apátridas - aqueles grupos humanos que não dispunham de nenhum estado nacional próprio, em razão da perda da cidadania original, decorrente de alguma revolução ou transtorno político: fenômeno de grandes proporções ocorrido na Europa nos anos que precederam a segunda guerra mundial, agravado pela massiva desnacionalização de judeus alemães, ciganos e armênios, pelas autoridades nazistas, num regime de exceção que, como exceção, durou mais de uma década. Esse fenômeno fez surgir o que Hannah Arendt denominou displaced persons.

Pessoas desnacionalizadas e permanentemente deslocadas demonstravam o paradoxo até então oculto na concepção de direitos humanos que remete à

Antígona - direitos radicados na natureza do homem, dedutíveis por operação da simples razão, precedentes e alheios à institucionalização política. Esses direitos, tal como os concebiam os jusnaturalistas clássicos, como Hobbes, Rousseau, Grotius e Locke, entre outros, estavam antropocentricamente ancorados na natureza do homem, podendo ser embasados em argumentos cogentes, universalmente válidos e irrecusáveis para qualquer ser de razão.

Ora, no século XX, em decorrência da confi guração da sociedade burguesa como uma sociedade de massas, emergente da revolução industrial, esses direitos passam a evidenciar seu inegável condicionamento histórico, assim como sua condição volátil, mostrando-se inexeqüíveis precisamente em relação a seres humanos despossuídos de todos os atributos e qualidades diversos da mera e nua pertença ao gênero humano. Desprovidos de um estatuto político defi nido e, portanto, desprovidos da proteção das comunidades jurídico-políticas nacionais, estavam também concretamente privados dos presumíveis direitos humanos universais. A esse respeito, ponderava já então Hannah Arendt com incomparável lucidez e discernimento:

Os direitos do Homem, supostamente inalienáveis, mostraram-se inexeqüíveis – mesmo nos países cujas constituições se baseavam neles – sempre que surgiam pessoas que não eram cidadãos de algum Estado soberano. A esse fato, por si já suficientemente desconcertante, deve acrescentar-se a confusão criada pelas numerosas tentativas de moldar o conceito de direitos humanos no sentido de defi ni-los com alguma convicção, em contraste com os direitos do cidadão, claramente delineados.11

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Esses indivíduos que não pertencem a nenhuma comunidade política, nem possuem um lugar no mundo no qual possam fi ncar raízes, tornam manifesta a histórica condição defi citária dos ‘direitos humanos’ em termos de conteúdo. Os direitos individuais e coletivos, mencionados por todas as declarações de direitos humanos, presumem um direito fundamental, ao qual estão ligados: a cidadania, cuja primazia emergiu enfi m sob a forma negativa da perda de uma comunidade política pelos refugiados e apátridas.

Não importa como tenham sido defi nidos no passado (direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade, de acordo com a fórmula americana; a igualdade perante a lei, a liberdade, a proteção da propriedade e a soberania nacional, segundo os franceses); não importa como se procure aperfeiçoar uma fórmula tão ambígua como a busca da felicidade, ou uma fórmula antiquada como o direito indiscutível à propriedade; a verdadeira situação daqueles a quem o século XX jogou fora do âmbito da lei mostra que esses são direitos cuja perda não leva à absoluta privação de direitos... A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião – fórmulas que se destinavam a resolver problemas dentro de certas comunidades –, mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade.12

Para Hannah Arendt, a garantia da efi cácia dos direitos humanos supõem e exigem a cidadania de que se pretendem desligados. A concepção jusnaturalista dos direitos humanos, na medida em que reconhecia o fundamento de tais direitos unicamente na mera natureza do homem, anconrando-os no indivíduo independentemente de sua interação política, pressupunha uma representação da vida social como exterior à determinação desses direitos, de modo que a fi nalidade da cives se traduzia na conservação de direitos naturais, cujo fundamento seria a humanitas.

Para Arendt, ao contrário, direitos humanos pressupõem a cidadania política como um fato fundamental, como condição de sua efetivação no plano prático. Pode-se dizer que, para Arendt, a cidadania política seria o pressuposto de efetividade dos direitos humanos.

Algo mais fundamental do que a liberdade e a justiça, que são os direitos do cidadão, está em jogo quando deixa de ser natural que um homem pertença a uma comunidade em que nasceu, e quando o não pertencer a ela não é um ato da sua livre escolha, ou quando está numa situação em que, a não ser que cometa um crime, receberá um tratamento independente do que ele faça ou deixe de fazer. Esse extremo, e nada mais, é a situação dos que são privados de seus direitos humanos. São privados não de seu

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direito à liberdade, mas do direito à ação; não do direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem. Privilégios (em alguns casos), injustiças (na maioria das vezes) bênçãos ou ruínas lhes serão dados ao sabor do acaso e sem qualquer relação com o que fazem, fi zeram ou venham a fazer.13

Percebemos como em Marx e Arendt ocorre uma distância crítica em relação à concepção jusnaturalista de direitos humanos. Para os fi ns que nos reúnem nessa ocasião, gostaria de ampliar ainda mais esse hiato, evocando uma crítica que coloca em questão não mais o défi cit entre os direitos humanos e sua realização, mas – muito mais radicalmente – a própria função histórica dos direitos humanos, numa modernidade onde o direito e política têm a vida como campo de incidência – bio-direito e bio-política, portanto.

Foucault, Agamben: para uma crítica bio-política dos direitos humanos

Uma retomada da crítica à concepção jusnaturalista dos direitos humanos é empreendida na fi losofi a do direito contemporânea, em sua versão talvez mais radical, pelo jusfi lósofo italiano Giorgio Agamben. É possível que, no confronto com ela, a consciência jurídica se depare hoje com seu mais temível desafi o.

Para Agamben, se é historicamente verdadeiro que: “o princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação; que nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer uma autoridade que não emane expressamente da Nação” -, então pode-se inferir daí um vínculo entre o conceito de Nação e o princípio de soberania legítima da autoridade política, numa transição que se estabelece pela mediação do nascimento/nacionalidade. Ora, de acordo com esse dispositivo, as declarações de direitos formulam o elenco dos princípios constitucionais que regram as relações entre cidadãos e soberanos, sob a égide dos modernos estados liberais, no mesmo passo em que isolando o nascimento

como elemento defi nidor da nacionalidade/Nação, inserem a vida como elemento político fundamental no interior da nova ordem estatal que sucedeu a derrocada do ancien régime.

Que, através dela, o ‘súdito’ se transforme em ‘cidadão’, signifi ca que o nascimento – isto é, a vida nua natural como tal – torna-se aqui pela primeira vez (com uma transformação cujas conseqüências biopolíticas somente hoje podemos começar a mensurar) o portador imediato da soberania. O princípio da natividade e o princípio

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da soberania, separados no antigo regime (onde o nascimento dava direito somente ao sujet, ao súdito), unem-se agora irrevogavelmente no corpo do Estado-nação. Não é possível compreender o desenvolvimento e a vocação ‘nacional’ e biopolítica do Estado moderno nos séculos XIX e XX, se esquecemos que em seu fundamento não está o homem como sujeito político livre e consciente, mas, antes de tudo, a sua vida nua, o simples nascimento que, na passagem do súdito ao cidadão, é investido como tal pelo princípio da soberania. A fi cção aqui implícita é a de que o nascimento torne-se imediatamente nação, de modo que entre os dois termos não possa haver resíduo algum. Os direitos são atribuídos ao homem (ou brotam dele) somente na medida em que ele é o fundamento imediatamente dissipante (e que, aliás, não deve nunca vir à luz como tal), do cidadão.14

Para Agamben, as declarações de direitos podem e devem ser entendidas tanto como mecanismo de asseguramento dos direitos individuais e liberdades públicas como também um instrumento de re-signifi cação e investimento jurídico político da vida no arcabouço institucional do Estado-nação.

Aquela vida nua natural que, no antigo regime, era politicamente indiferente e pertencia, como fruto da criação, a Deus, e no mundo clássico era (ao menos em aparência) claramente distinta como zoé da vida política (bios) entra agora em primeiro plano na estrutura do Estado e torna-se aliás o fundamento terreno de sua legitimidade soberana.15

Desse modo, as modernas declarações dos direitos devem então ser vistas como o local em que se efetua uma passagem da forma clássica da soberania régia, de origem divina, à nova fi gura histórica da soberania correspondente à fi gura dos modernos estados democráticos de direito. As declarações de direitos

asseguram a exceptio da vida na nova ordem estatal que deverá suceder à derrocada do ancien régime. Que, através dela, o ‘súdito’ se transforme, como foi observado, em ‘cidadão’, signifi ca que o nascimento – isto é, a vida nua natural como tal – torna-se aqui pela primeira vez (com uma transformação cujas contorna-seqüências biopolíticas somente hoje podemos começar a mensurar) o portador imediato da soberania.16

Se a constituição da esfera política da decisão soberana (consistente, como é sabido, no direito de vida e morte, direito de fazer morrer ou deixar viver) é o fato jurídico primordial, e se a exceção é a “estrutura originária na qual o direito

14 Agamben, G. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 135.

15 Agamben, G. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 134.

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se refere à vida e a inclui em si através de sua própria suspensão”,17 então a

interpretação dominante do contrato social - como fundamento racional de legitimidade do poder político - perde muito de sua força de convencimento. Para Agamben,

... teria chegado o momento de reler desde o princípio todo o mito de fundação da cidade moderna, de Hobbes a Rousseau… O relacionamento jurídico-político originário é o bando… que mantém unidos justamente a vida nua e o poder soberano. É preciso dispensar sem reservas todas as representações do ato político originário como um contrato ou uma convenção, que assinalaria de modo pontual e defi nido a passagem da natureza ao Estado. Existe aqui, ao invés, uma bem mais complexa zona de indiscernibilidade entre nómos e physis, na qual o liame estatal, tendo a forma do bando, é também desde sempre não estabilidade e pseudo natureza, e a natureza apresenta-se desde sempre como nómos e estado de exceção. Este mal entendido do mitologema hobbesiano em termos de contrato em vez de bando

condenou a democracia à impotência toda vez que se tratava de enfrentar o problema do poder soberano e, ao mesmo tempo, tornou-a constitutivamente incapaz de pensar verdadeiramente, na modernidade, uma política não estatal.18

Bando é a tradução portuguesa do termo alemão Bann, que signifi ca o poder de governo, a soberania, o direito de estatuir comandos e proibições, de impor e executar penas; também o direito de banir. Como conceito, mantém íntima relação com o instituto da Friedlosigkeit do antigo direito germânico e a correspondente fi gura do Friedlos, que designam a condição daquele que, banido e proscrito, está excluído da esfera de proteção do ordenamento jurídico da comunidade de origem, e, portanto, impossibilitado de gozar do privilégio da paz assegurada por esse ordenamento. Nesse sentido, o Friedlos

é o sem paz, o exposto às forças da natureza e à violência arbitrária de quem quer que seja.

Trata-se da fi gura do excluído, do pária cuja morte não constitui homicídio, ao qual o ordenamento que o penaliza se impõe sob a forma da suspensão de seus efeitos e da prerrogativa de sua invocação. É de se notar a homologia estrutural entre bando (Bann) exceção (exceptio, ex capere, “capturar fora”), paradoxo sobre o qual se constrói grande parte da argumentação de Agamben.

Tanto a exceptio quanto o bando nutrem-se da paradoxia: Como ex capere, a exceção signifi ca capturar fora, exclusão includente, tal como o banimento. Se, de fato, o que defi ne a soberania é a prerrogativa (normativa) de decidir sobre a suspensão do ordenamento jurídico-estatal, então o soberano

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é aquele a quem a lei se aplica, desaplicando-se, aquele que, por força de uma prerrogativa constitucional, pode decretar a suspensão total ou parcial da constituição, e dos direitos e garantias nela consolidados.

É a mesma relação de inclusão excludente, que caracteriza o abandono esta seria, para Agamben, a estrutura lógica originária de toda relação jurídico-política centrada na soberania:

A relação de abandono é, de fato, tão ambígua, que nada é mais difícil do que desligar-se dela. O bando é essencialmente o poder de remeter algo a si mesmo, ou seja, o poder de manter-se em relação com um irrelato pressuposto. O que foi posto em bando é remetido à própria separação e, juntamente, entregue à mercê de quem o abandona, ao mesmo tempo excluso e incluso, dispensado e, simultaneamente, capturado.19

O bando é, portanto, fundamentalmente, uma exceptio, e, como tal, insígnia da soberania. Sendo assim, seria preciso, então, deixar de considerar as modernas declarações de direitos fundamentais como proclamações de valores eternos meta-jurídicos, para poder também dar conta de sua função histórica real no surgimento das modernos estados confi gurados como soberanias nacionais.

No debate atual sobre direitos fundamentais, faz-se antes de tudo necessário tomar consciência da função histórico-política do trinômio: nação/ nacionalidade, soberania e poder jurídico sobre a vida. Quero dizer que, ao lado da função emancipatória das declarações de direitos fundamentais, seria também indispensável perceber que elas integram o dispositivo de

abandono da vida nua à violência dos mecanismos de poder. Ora, é nesse sentido que a arqueologia das sociedades européias modernas, confi guradas como sociedades bio-políticas ao longo do século XVIII e depois, fornece um instrumental teórico indispensável para as análises de Agamben.

Particularmente porque a arqueo-genealogia foucaultiana das tecnologias de poder disciplinar e regulamentar-previdenciário dão conta da inclusão da vida nos cálculos e estratégias do moderno poder soberano, de sua gestão e aproveitamento econômico nos quadros da racionalidade instrumental capitalista, própria de uma sociedade de massa, que emerge da revolução industrial – seja como técnicas de produção disciplinar de corpos (individuais) dóceis e úteis, seja como regulação previdenciária e controle global dos

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processos vitais das populações (técnicas de regulação do corpo biológico genérico da população).

Como bio-poder, o Estado moderno inclui a vida biológica – tanto ao nível individual dos corpos adestrados pelas disciplinas, como no registro genérico das populações, cujos ciclos vitais de saúde e morbidez, natalidade e mortalidade, reprodução, produtividade e improdutividade, devem ser calculados em termos de previdência e assistência social. É desse modo que, com a bio-política, a antiga soberania régia (que se encarnava no poder do monarca de fazer morrer e deixar viver) se converte num poder de fazer viver e deixar morrer. Mas nem por isso aquela violência congênita ao efetivo exercício do direito de vida e de morte se encontra derrogada pela bio-política e pela racionalidade do estado contemporâneo.

Ao contrário, para Foucault, ela continua ativa e operante em diferentes e insólitas re-signifi cações, como, por exemplo, no racismo político – a que Foucault dedica um dos seus cursos no Collège de France entre 1975 e 1976:

Vocês compreendem, em conseqüência, a importância – eu ia dizer a importância vital – do racismo no exercício de um poder assim: é a condição para que se possa exercer o direito de matar. Se o poder de normalização quer exercer o velho direito soberano de matar, ele tem de passar pelo racismo. E se, inversamente, um poder de soberania, ou seja, um poder que tem direito de vida e de morte, quer funcionar com os instrumentos, com os mecanismos, com a tecnologia de normalização, ele também tem de passar pelo racismo. É claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassinato direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.20

O que gostaria de empreender, no horizonte dessa crítica radical da teoria dos direitos humanos, é uma aproximação - que não me parece desautorizada pelo texto do próprio Agamben -, entre vida nua e vida sacra. E minha aproximação se deve tanto à ausência de uma defi nição explícita (e de um uso conceitualmente diferenciado) desse termo no Homo Sacer, como também na recusa, por parte de Agamben, de explicitar os termos e os traços distintos de uma forma política inteiramente emancipada do princípio jurídico da soberania. A meu ver, é a sacralidade – comum ao homo sacer

e ao caráter sagrado dos direitos humanos fundamentais - que institui uma insidiosa cumplicidade entre a vida nua e o poder (bio-político) do direito. Aqui Agamben recorre novamente à Benjamin, para quem em “toda tentativa

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de colocar em questionamento o domínio do direito sobre o vivente não é de nenhuma utilidade o princípio do caráter sagrado da vida, que nosso tempo refere à vida humana e, até mesmo, à vida animal em geral.”21

Por sugestão do próprio Benjamin, a fundada suspeita sobre a sacralidade da vida, como vida nua, como pura vida biológica, leva ao questionamento do que, de acordo com os modernos ordenamentos jurídicos, implica a sacralização da vida, sua intocabilidade, em termos dos direitos e garantias fundamentais, tal como positivado nas constituições modernas. Nesse sentido, é mais do que instrutiva a consulta ao Vocabulário das Instituições Indo-Européias, de Emile Benveniste:

O termo latino sacer encerra a representação para nós mais precisa e específi ca do ‘sagrado’. É em latim que melhor se manifesta a divisão entre o profano e o sagrado; é também em latim que se descobre o caráter ambíguo do ‘sagrado’: consagrado aos deuses e carregado de uma mácula indelével, augusto e maldito, digno de veneração e despertando horror. Esse duplo valor é próprio de sacer; ele contribui para a diferenciação entre sacer e sanctus, pois não afeta de maneira alguma o adjetivo aparentado sanctus.

Além disso, é a relação estabelecida entre sacer e sacrifi care que melhor nos permite compreender o mecanismo do sagrado e a relação com o sacrifício. O termo ‘sacrifício’, familiar a nós, associa uma concepção e uma operação que parecem nada ter em comum. Por que ‘sacrifi car’ quer de fato dizer ‘pôr à morte’, se signifi ca propriamente ‘tornar-se sagrado’?22

Seria ilustrativo contrapor a isso a instrutiva defi nição de Festo, segundo a qual o homo sacer é o portador de uma mácula que o coloca fora do direito divino e do direito humano, ele é insacrifi cável e sua morte não constitui homicídio:

Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrifi cá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que ‘se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida’. Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro. 23

A instituição da sacratio, como princípio, de um caráter sagrado da vida, todavia, seria de datação recente, embora se nos tenha tornado tão familiar

21 Agamben, G. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 73s.

22 Benveniste, E. Vocabulário das Instituições Indo-Européias. II. Trad. Denise Bottmann e Eleonora Bottmann. Campinas: Ed. Unicamp, 1995, p. 189.

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que nos faz esquecer do vínculo essencial entre sacralidade e sacrifício, entre o sacer e o impunemente matável – estranha fi gura jurídico-política do arcaico direito romano, a insinuar que a vida sacra é também aquela capturada sob o bando/proscrição soberana, portanto matável sem que sua eliminação constitua um homicídio, no sentido jurídico do termo.

E, com base nessa evocação, procuro conectar os elementos que foram examinados até agora com a discussão atual a respeito dos direitos humanos – precisamente nos termos propostos por Giorgio Agamben. Pois é corrente o entendimento dos mesmos como direitos ‘sagrados e inalienáveis’ do homem, o que lhes confere o status de princípios asseguradores dos valores cardinais positivados nas declarações de direitos das constituições dos estados modernos.

Evidentemente, não se trata, de modo algum, de questionar a importância fundamental das declarações de direitos como garantia das liberdades públicas; sua função histórica de emancipação e resistência ao arbítrio e à tirania, seu papel decisivo na história do constitucionalismo moderno não pode deixar de ser reconhecido, salvo por uma defi ciência de lucidez analítica. Minha intenção consiste apenas em indicar o caráter bifronte que também quanto a eles se pode reconhecer, como em todo e qualquer acontecimento de efetiva relevância histórica e política.

Tudo se passa, portanto, como se, “a partir de um certo ponto, todo evento político decisivo tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos adquirem no seu confl ito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância ao poder soberano, do qual desejariam liberar-se.”24

Uma vez mais a intervenção de Foucault é pertinente nesse contexto. Não se trata de contrapor, de modo ingênuo, o direito de soberania contra o bio-direito das disciplinas e da regulamentação previdenciária. Trata-se antes de superar essa oposição pelo reconhecimento da função bio-política do próprio direito de soberania (formal, liberal e burguês):

Que fazem o sindicato da magistratura ou outras instituições como esta? Que se faz senão precisamente invocar esse direito, esse famoso direito formal e burguês, que na realidade é o direito de soberania? E eu creio que nos encontramos aqui numa espécie de ponto de estrangulamento, que não podemos continuar a fazer que funcione

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indefi nidamente dessa maneira: não é recorrendo à soberania contra a disciplina que poderemos limitar os próprios efeitos do poder disciplinar.25

O que pretendo sugerir com mais essa lembrança é que, para uma crítica atual dos direitos humanos, seria indispensável levar em conta a fi gura mais dramática e vulnerável assumida hoje pelo homo sacer: o refugiado, no qual reconhecemos o bandido de nossos tempos. Para Agamben, é antes de tudo necessário

desembaraçar resolutamente o conceito de refugiado (e a fi gura da vida que ele representa) daquele dos direitos do homem, e levar a sério a tese de Arendt, que ligava os destinos dos direitos àqueles do Estado-Nação moderno, de modo que o declínio e a crise deste implicam necessariamente o tornar-se obsoletos daqueles. O refugiado deve ser considerado por aquilo que é, ou seja, nada menos que um conceito limite que põe em crise radical as categorias fundamentais do Estado-Nação, do nexo nascimento-nação àquele homem-cidadão, e permite assim desobstruir o campo para uma renovação categorial atualmente inadiável, em vista de uma política em que a vida nua não seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal, nem mesmo através da fi gura dos direitos humanos.26

Num contexto histórico em que se identifi cariam direito e vida, regra e exceção, sem qualquer possibilidade de distinguir um elemento mínimo (como a decisão soberana de Carl Schmitt) que ainda pudesse servir de princípio residual de diferenciação - a aspiração foucaultiana por um “novo direito” encerra relevância e atualidade:

Para dizer a verdade, para lutar contra as disciplinas, ou melhor, contra o poder disciplinar, na busca de um poder não disciplinar, não é na direção do antigo direito da soberania que se deveria ir; seria antes na direção de um direito novo, que seria antidisciplinar, mas que estaria ao mesmo tempo liberto do princípio da soberania.27

Justamente essa constitui a preocupação medular de Agamben, em O Poder Soberano e a Vida Nua I, assim como em Estado de Exceção: sua crítica radical da doutrina dos direitos humanos tem em vista liberar a política do paradigma do bio-poder, separá-la de sua vinculação sempiterna com o Estado e com o Direito. Essa preocupação se desdobra num exame minucioso sobre o laço entre soberania e vida nua, sobre a lógica paradoxal do abandono da vida ao poder soberano, que pretende dissolver o vínculo mítico e ancestral entre

25 Foucault, M. Em Defesa da Sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, p. 47. 26 Agamben, G. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2002, p. 140s.

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Direito e violência. Por essa razão, um ensaio de Walter Benjamin: Crítica da Violência – Crítica do Poder assume magna importância no interior da refl exão crítica de Agamben.

Tomo como primeiro elemento de aproximação uma passagem de Benjamin que mostra, sem qualquer reserva, que a institucionalização da violência como princípio da instituição do direito representa também, ao mesmo tempo, a inclusão da vida (indefesa) na esfera sangrenta do poder soberano.

O poder (Macht) é o princípio de toda institucionalização mítica do direito. Este princípio tem uma aplicação de conseqüências muito sérias no direito constitucional. Pois na sua área, o estabelecimento de limites, antecipado pela ‘paz’ de todas as guerras na era mítica, é o arquifenômeno do poder instituinte do direito. Há ainda um outro aspecto, sob o qual o estabelecimento de limites é importante para o conhecimento do direito. Limites estabelecidos e reconhecidos são, ao menos em tempos arcaicos, leis não escritas. O homem pode transgredi-los sem saber e assim

fi ca sujeito à penitência. A intervenção do direito, motivada pela transgressão da lei não escrita e desconhecida, chama-se ‘penitência’, para distingui-la da ‘punição’.28

Esses limites, ou o estabelecimento de fronteiras reconhecidas como território instituído e mantido pelo monopólio jurídico da força é também a zona de inclusão da vida sacra como a “contra-face” da decisão soberana fazer viver ou deixar morrer. De modo que a sacralização da vida é o correspondente moderno da violência mítica arcaica – poder sangrento sobre a vida (nua).

“Haver exposto, sem reservas, o nexo irredutível que une violência e direito faz da Crítica benjaminiana a premissa necessária, e ainda hoje insuperada, de todo estudo sobre a soberania. Na análise de Benjamin, esse nexo se mostra como uma oscilação dialética entre violência que põe o direito e violência que o conserva. Daí a necessidade de uma terceira fi gura, que rompa a dialética circular entre essas duas formas de violência.”29

A singularidade da Crítica de Benjamin e seu valor único para a refl exão de Agamben justifi cam-se à luz do que o fi lósofo italiano entende como a necessidade de uma terceira fi gura, que rompa a dialética circular entre essas duas formas de violência jurídica (instituinte e instituída/executória).

Justamente porque, nesse ensaio, Benjamin distingue um tipo especial de violência – a violência divina – , que não institui (põe, setzt) nem conserva

28 Benjamin, W. Crítica da Violência – Crítica do Poder. In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. Trad. Willi Bolle. São Paulo: Cultrix-Edusp, 1986, p. 172.

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o direito, senão que o depõe (entsetzt), dissolvendo de vez o vínculo entre direito e violência. No ensaio a respeito da crítica da violência e do poder, o objetivo de Benjamin seria, de acordo com a interpretação de Agamben,

garantir a possibilidade de uma violência (o termo alemão Gewalt signifi ca também simplesmente ‘poder’) absolutamente ‘fora’ (ausserhalb) e ‘além’ (jenseits) do direito e que, como tal, poderia quebrar a dialética entre violência que funda o direito e violência que o conserva (rechtsetzende und rechtserhaltende Gewalt). Benjamin chama essa outra fi gura da violência de ‘pura’ (reine Gewalt) ou de ‘divina’ e, na esfera humana, de ‘revolucionária’. O que o direito não pode tolerar de modo algum, o que sente como uma ameaça contra a qual é impossível transigir, é a exigência de uma violência fora do direito; não porque os fi ns de tal violência sejam incompatíveis com o direito, mas ‘pelo simples fato de sua existência fora do direito’.30

Os efeitos dessa crítica - que se esforça por provar a efetividade de uma “violência pura” - são intoleráveis para todo jusfi lósofo que, como Hans Kelsen ou Carl Schmitt, dedicam sua obra à re-inserção da violência no nómos;

seja, como Kelsen, identifi cando monopólio da força e ordenamento jurídico (identifi cação entre Estado e ordenamento jurídico), seja como Schmitt, para quem a exceção – o decisionismo soberano – é uma modalidade de aplicação

do ordenamento jurídico precisamente por meio de sua suspensão - situação excepcional em que a lei se aplica, ao suspender-se, num estado de pura vigência: nele, o ordenamento prescreve, na hipótese de um caso insusceptível de prévia tipifi cação legal, a hipótese de sua própria suspensão. É nesses termos que, para Carl Schmitt, soberano é aquele a quem o ordenamento concede a faculdade de suspender a vigência (e, portanto, aplicar, por suspensão) (d)o próprio ordenamento.

Essa relação essencial entre Direito, Estado e violência instrumentalizada inclui um elemento decisivo para a compreensão das posições de Giorgio Agamben sobre direitos humanos, e que também está relacionado à problemática tematizada por Walter Benjamin, em sua crítica da violência/ poder (Kritik der Gewalt): dialética que se desenvolve entre, por um lado, o poder ou violência que institui originariamente o direito, como constituição jurídica da sociedade política (e, nesse sentido, idêntica ao poder soberano), e, por outro lado, os poderes constituídos por essa mesma constituição, aos quais se reserva o monopólio estatal da violência, que conserva e aplica o direito.

Trata-se de um topos obrigatório para muitos teóricos do direito europeus nas primeiras décadas do século passado, e, na época, particularmente

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infl uenciada pela contraposição entre o normativismo jurídico de Hans Kelsen e o decisionismo de Carl Schmitt. Agamben e vários outros insistiram muito no relacionamento problemático entre Benjamin e Schmitt, porém passou desapercebida a possível interferência da teoria pura do direito de Kelsen nesse debate31.

Indício a ser levado em conta, em primeiro lugar, pela própria terminologia: Kelsen se esforça, fi liando-se a uma linhagem neo-kantiana, por fundar uma ciência jurídica sobre uma lógica do dever-ser e uma teoria pura do direito, depurada de qualquer contaminação ideológica (política, moral ou religiosa). Benjamin, por sua vez, esforça-se para defender um uso puro, não instrumental

da violência – isto é, totalmente desvinculado da razão instrumental que, para Kelsen, identifi ca direito e ordenamento jurídico, baseado no monopólio legítimo da força como meio para a consecução dos fi ns socialmente almejados, numa relação em que o direito aparece como tecnologia política de disposição de meios com vistas a fi ns:

Entre os paradoxos da técnica social aqui caracterizada como ordem coercitiva encontra-se o fato de o seu instrumento específi co, o ato coercitivo de sanção, ser exatamente do mesmo tipo que o ato que ele busca prevenir nas relações dos indivíduos, o delito; o fato de que a sanção contra uma conduta socialmente danosa é, ela própria, uma conduta similar. Pois o que deve ser obtido através da ameaça de perda de vida, saúde, liberdade ou propriedade é precisamente que os homens, em suas relações mútuas, se abstenham de privar um ao outro de vida, saúde, liberdade ou propriedade. A força é empregada para prevenir o emprego da força na sociedade. Aparentemente trata-se de uma antinomia; e o esforço para evitar essa antinomia leva à doutrina do anarquismo absoluto, que proscreve a força como sanção. O anarquismo tende a estabelecer a ordem social baseada unicamente na obediência voluntária dos indivíduos. Ele rejeita a técnica de uma ordem coercitiva e, portanto, rejeita o Direito como forma de organização.

A antinomia, no entanto, é apenas aparente. O Direito, com certeza, é uma ordenação que tem como fi m a promoção da paz, na medida em que proíbe o uso da força nas relações entre os membros da comunidade. Contudo, ele não exclui absolutamente o uso da força. O Direito e a força não devem ser compreendidos como absolutamente antagônicos. O Direito é uma organização da força... Por conseguinte, pode-se dizer que o Direito faz do uso da força um monopólio da comunidade. E, precisamente por fazê-lo, o Direito pacifi ca a comunidade.32

31 Cabe observar que Die Hauptprobleme der Staatsrechtslehre – talvez a primeira exposição do que seria uma teoria pura do direito, de Hans Kelsen, foi publicada em 1911, e polarizou o debate entre Schmitt e Kelsen durante as décadas posteriores a respeito do estado de direito. Como as relações entre Benjamin e Schmitt estão longe de ter sido suficientemente exauridas, talvez a referência a Kelsen não seja despropositada, conquanto surpreendente.

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Temos aqui, como se pode constatar, uma versão “juspositivista” da dialética circular entre poder constituinte (em sua quase indiscernibilidade com o poder soberano) e poder constituído, cuja dissolução constitui para Agamben uma tarefa tão essencial e difícil, que exige a transição da fi losofi a prática (jus-política, em especial), para o plano da ontologia.

Somente uma conjugação inteiramente nova de possibilidade e realidade, de contingência e necessidade e dos outros páthe toû óntos, poderá, de fato, permitir que se fenda o nó que une soberania e poder constituinte: e somente se conseguirmos pensar de modo diverso a relação entre potência e ato, e, aliás, além dela, será possível conceber um poder constituinte inteiramente livre do bando soberano. Até que uma nova e coerente ontologia da potência (mais além dos passos que nesta direção moveram Spinoza, Schelling, Nietzsche e Heidegger) não tenha substituído a ontologia fundada sobre a primazia do ato e sobre sua relação com a potência, uma teoria política subtraída às aporias das soberanias permanece impensável.33

É para auxiliar na resolução dessa tarefa que Agamben mobiliza a tese benjaminiana de uma violência pura – isto é, não instrumentalizada, não instituidora nem mantenedora do direito. Violência que não é meio para um

fi m, mas pura manifestação e, como tal, pode promover o ultrapassamento do círculo perverso que liga as duas formas de violência estatal: instituinte e mantenedora:

Um olhar dirigido apenas para as coisas mais próximas perceberá, quando muito, um movimento dialético de altos e baixos nas confi gurações do poder enquanto instituinte e mantenedor do direito. A lei dessas oscilações consiste em que todo poder mantenedor do direito, no decorrer do tempo, acaba enfraquecendo indiretamente o poder instituinte do direito representado por ele, através da opressão dos antigos inimigos… Isso dura até que novos poderes ou os anteriormente oprimidos vençam o poder até então instituinte do direito, estabelecendo assim um novo direito sujeito a uma nova decadência.34

No entanto, pensar com tal radicalidade o princípio dessa potência – não apenas em ruptura com a primazia tradicionalmente concedida ao ato como

realização e efetivação da potência (o que redundaria na supressão desta última, enquanto potência) –, mas também pensar para além da relação entre ato e potência, é “justamente o que muitos hoje não estão dispostos a fazer por preço algum.”35 E, no entanto, somente assim se poderia pensar uma potência

33 Agamben, G. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 51s.

34 Benjamin, W. Crítica da Violência – Crítica do Poder. In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. Trad. Willi Bolle. São Paulo: Cultrix-Edusp, 1986, p. 174s.

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inteiramente emancipada do princípio da soberania e, portanto, do Estado e do Direito, nos moldes do que Benjamin permite entrever como a violência divina ou revolucionária, deponente e não instituidora do Direito.

Todavia, Benjamin não defi ne essa violência divina, mas num limiar em que apenas se anuncia essa defi nição, seu ensaio transita para uma fi gura que é suporte e portadora do nexo entre direito e violência, cuja importância decisiva não teria recebido até hoje. Justamente esta é a fi gura nevrálgica do pensamento de Agamben: “vida nua” (das blosse Leben). É nela, segundo Agamben, que se apóia o vínculo essencial entre a vida e a violência jurídica.

Não somente o domínio do direito sobre o vivente é co-extensivo à vida nua e cessa com esta, mas também a dissolução da violência jurídica, que é em um certo sentido o objetivo do ensaio, ‘remonta à culpabilidade da vida nua natural, a qual entrega o vivente, inocente e infeliz, à pena, que expia (sühnt) a sua culpa e purifi ca (entsühnt) também o culpado, não porém de uma culpa, e sim do direito’.36

Fica claro, porém, que essa violência pura não pode ser enquadrada jamais no esquema jurídico-político da violência que institui ou aplica/assegura o direito. Para Benjamin, a dialética entre essas duas formas de violência é identifi cada com a violência mítica, que se manifesta como violência jurídica:

Longe de abrir uma perspectiva mais pura, a manifestação do poder imediato mostra-se profundamente idêntica a todo poder jurídico, fazendo com que a suspeita de sua problemática se transforme em certeza do caráter nefasto de sua função histórica, levando assim à proposta de seu aniquilamento. Tal tarefa suscita, em última instância, mais uma vez, a questão de um poder puro, imediato, que possa impedir a marcha do poder mítico.37

Em seu diagnóstico da crise permanente da modernidade bio-política, a análise por Agamben dos princípios que fornecem os operadores jurídicos indispensáveis para o bom funcionamento do poder detecta uma disfunção estrutural no sistema que viabilizou a emergência e o funcionamento do modelo dos modernos estados nacionais. Trata-se, segundo esse diagnóstico, de um desarranjo irreparável por meio de reformas tópicas, ou mesmo de qualquer medida que não seja radicalmente subversiva, no sentido de total abolição da própria estrutura (bio) política da soberania moderna, como imperativo

36 Agamben, G. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 73

Referências

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