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32 AS BASES FILOSÓFICAS DA PSICOLOGIA SOVIÉTICA:

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32 AS BASES FILOSÓFICAS DA PSICOLOGIA SOVIÉTICA:

ESTUDOS INTRODUTÓRIOS NA PERSPECTIVA DA ESCOLA DE VIGOTSKI 1

Adéle Cristina Braga Araújo

2

Dávillo de Lima Ferreira

3

Natasha Alves Correia Lima

4

Ruth Maria de Paula Gonçalves

5

Resumo

Esta concisa apreciação, alicerçada no estudo da obra La psicologia soviética tal como yo la veo, da psicóloga argentina Marta Shuare, busca realizar uma investigação introdutória acerca das bases filosóficas assentes ao materialismo dialético na Escola Soviética, ressaltando o papel da Escola de Vigotski nesta inserção. Indica-se que a Psicologia soviética constitui-se como ciência sobre a base da filosofia materialista dialética. Ademais, considera-se que as concepções filosóficas, seus postulados fundamentais, têm para as diferentes ciências um maior ou menor valor metodológico, o qual depende, por uma parte, do conteúdo de tais concepções filosóficas, e, por outra, do objeto das ciências particulares, em seu próprio nível de desenvolvimento e demanda social da época dada. Indica-se, nesta premissa, que algumas categorias, tais como: a concepção materialista da dialética, a teoria do reflexo, a categoria da atividade e a natureza social do homem, têm uma relevância fundamental na presente discussão.

Palavras-chave: Escola Soviética. Materialismo Dialético. Ciência Psicológica.

      

1

Trabalho apresentado na VII Semana de Humanidades da UFC e UECE, realizada em maio de 2010. Trata-se de uma pesquisa surgida no contexto dos estudos realizados no Grupo de Estudos: Psicologia Histórico-Cultural e Educação: uma leitura na perspectiva marxiana- lukácsiana, desenvolvido no Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO/UECE, sob a orientação e coordenação da Prof.ª Dr.ª Ruth Maria de Paula Gonçalves e da Prof.ª Dr.ª Betânia Moreira de Moraes.

2

Mestranda do Curso de Mestrado Acadêmico em Educação da Universidade Estadual do Ceará – CMAE/UECE. Pesquisadora-Colaboradora do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO/UECE. E-mail: adele_arte@yahoo.com.br.

3

Graduando do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Ceará – UECE.

Pesquisador-Colaborador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO/UECE. E-mail: davillodelima@hotmail.com.

4

Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Pesquisadora- Colaboradora do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO/UECE. E- mail: natasha_acl@yahoo.com.br.

5

Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Professora da Universidade Estadual do Ceará – UECE. Pesquisadora-Orientadora do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário da Universidade Estadual do Ceará – IMO/UECE. E-mail:

ruthm@secrel.com.br.

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33 THE PHILOSOPHYCAL BASES OF SOVIET PSYCHOLOGY:

INTRODUCTORY STUDIES FROM THE POINT OF VIEW OF THE VIGOTSKIAN SCHOOL

Abstract

This concise appreciation, based upon the studies about the work La psicologia soviética tal como yo la veo, written by the Argentinean Psychologist Marta Shuare, is associated to an introductory investigation about the philosophical foundations related to dialectical materialism in Soviet School, emphasizing the role of Vigotskian School in this context. It is taken into account that Soviet Psychology is built as a science on the dialectical materialist philosophical base.

Moreover, it is known that the philosophical conceptions, their fundamental postulates, have, for the different sciences, a greater or a lesser methodological value, which depends, on one hand, on the content of such philosophical conceptions, and, on the other, on the object of each science, in its very level of development and social demands of a given time. It is indicated, then, that some categories, such as: materialistic conception of dialectics, the reflex theory, the activity category and the social nature of humans have a fundamental importance for the discussion proposed herein.

Keywords: Soviet School. Dialectical materialism. Psychological science.

Introdução

A Psicologia Soviética marca o início de uma nova compreensão acerca da natureza da psique e suas determinações, diferenciando-se de outros sistemas científicos, pois a partir dela foi inaugurado um novo modelo de entendimento do indivíduo, alicerçado nas relações intrínsecas entre a ciência psicológica e a ciência filosófica. Um dos pontos relevantes da Psicologia Soviética é o fato de que a mesma busca a sua concepção filosófica assente ao materialismo dialético e histórico, dentro do qual desenvolve sua investigação científica.

Segundo Shuare (1990), qualquer teoria científica deve objetar a uma conceituação geral da essência humana, de sua origem e da natureza do conhecimento. Em particular, a Filosofia, apresenta uma dupla função: 1) “[...]

realiza a crítica construtiva do conhecimento científico desde o ponto de vista

das condições e limites de aplicação, da adequação de seu fundamento

(3)

34 metodológico e das tendências gerais de seu desenvolvimento;” (SHUARE, p.13-14 – tradução nossa); 2) “[...] a filosofia dá a interpretação global dos resultados científicos desde o ponto de vista de uma ou outra visão do mundo.”

(SHUARE, p.14 – tradução nossa).

Para Shuare (1990), não se trata de aceitar ou não a Filosofia enquanto conhecimento científico, mas de compreender as relações entre estes dois tipos de reflexo da realidade, bem como de exercer a função de se relacionar com outros níveis do saber metodológico. Barroco (2007, p. 40), a respeito do papel da Filosofia, aponta que:

O papel da filosofia seria liberar o homem das ilusões, indicando-lhe as origens das mesmas. Nesse sentido, o papel crítico e criador, o papel educativo e ativo da filosofia só pode ser desempenhado quando ela é convertida em arma do proletariado para a sua luta.

Desse modo, para Marx, a filosofia encontra no proletariado as suas armas materiais e o proletariado encontra na filosofia as suas armas espirituais.

Destarte, nesse artigo, trataremos, inicialmente, sob o papel da Filosofia marxista em reflexo com o real, do trabalho resgatado na perspectiva onto- histórica como elemento fundante do ser social e de como a Psicologia Soviética se constitui como ciência sobre a base da filosofia materialista dialética. Em seguida, abordaremos, ainda que de forma introdutória, categorias relevantes do pensamento vigotskiano, apresentados por Shuare em seu livro La psicologia soviética tal como yo la veo, quais sejam: a concepção materialista da dialética, a teoria do reflexo, a categoria da atividade e a natureza social do homem.

A filosofia marxista como ponto de partida do pensamento psicológico

Segundo Sader (2006), a Filosofia moderna é centrada no aspecto

gnosiológico, que constituiu os parâmetros de racionalidade e da cientificidade

hegemônicos. Essa perspectiva metodológica alicerçou o modelo filosófico

burguês. A atividade científica dentro deste modelo é marcada pela crescente

(4)

35 divisão social do trabalho refletida na categoria da “ciência”, na qual cada

“ciência” trabalha com um momento isolado do ser.

Marx rompe com essa postura gnosiológica ao inaugurar a perspectiva onto-histórica:

O conhecimento da realidade, o modo e a possibilidade de conhecer a realidade dependem, afinal, de uma concepção da realidade, explicita ou implícita. A questão: como se pode conhecer a realidade?

é sempre precedida por uma questão mais fundamental: que é a realidade? (KOSIK, 1976, p. 35).

No entanto, esclarecemos que a abordagem ontológica não torna irrisória a abordagem gnosiológica, Lukács esclarece esta afirmação ao alegar que

[...] muito tempo a gnosiologia foi um complemento e um acessório para a ontologia: sua finalidade era o conhecimento da efetividade existente em si, e por isso a concordância com o objeto era o critério de todo enunciado correto (LUKÁCS apud COSTA, 2009, p. 29).

Em Marx, compreender um objeto do ponto de vista ontológico é entender seu ponto metodológico central, ou seja, sua gênese e seu processo de desenvolvimento, “[...] o próprio objeto que fornece o universo categorial para o seu conhecimento [...]” (COSTA, p. 30, 2009). Neste aspecto, tentamos revelar o real enquanto algo existente dentro de nossa sociabilidade. Para a apropriação do conhecimento real, deve-se analisar o objeto desvelando a

“coisa-em-si”. Kosik (1976, p. 9) garante tal posição ao proferir que o homem é

“[...] um ser que age, objetiva e praticamente [...] um indivíduo histórico que exerce a sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens [...]”.

Ressaltamos a importância do estudo marxiano, alicerçado na

perspectiva ontológica, por considerarmos que os fundamentos marxianos são

essenciais para a compreensão da totalidade social. Contrapondo-se às

interpretações de caráter economicista, determinista, positivista e dogmático da

obra de Marx, fundadas no imperialismo gnosiológico ou epistêmico que

dominou os estudos marxianos no período histórico vivido, apoiamo-nos nos

(5)

36 estudiosos que entendem que o caminho mais adequado para o resgate do caráter revolucionário do marxismo implica em apreender o legado de Marx como uma ontologia do ser social.

Deste modo, nossa pesquisa fundamenta-se no legado ontológico deixado por Marx e Lukács, através das contribuições de seus intérpretes, pois consideramos que esta é a única perspectiva filosófica que supera o modelo filosófico liberal, o qual se afirma em uma propositura subjetiva de cunho ético- utópico.

Lessa e Tonet (2008, p.18) reconhecem que, na teoria marxista, a concepção de existência humana está unicamente atrelada à transformação da natureza e que a reprodução da sociedade está relacionada a este processo.

Desta forma, os autores asseveram que “Por meio do trabalho os homens não apenas constroem materialmente a sociedade, mas também lançam as bases para que se construam como indivíduos”.

O trabalho

6

representa o salto evolutivo entre o humano e os demais seres vivos. De tal modo, defendemos que o trabalho é vontade humana posta em prática, uma vez que “[...] nenhum animal pôde imprimir na natureza o selo de sua vontade. Só o homem pôde fazê-lo.” (ENGELS, 2004, p.23). Diferente dos animais, cuja vida é circunscrita pelos limites impostos pela natureza, o homem torna-se mais humano quanto mais faz recuar as barreiras naturais, conforme explicitou Marx.

Nas palavras de Engels (2004, p.21-22):

Os animais, [...] também modificam com sua atividade a natureza exterior, embora não no mesmo grau que o homem; [...] a influência duradoura dos animais sobre a natureza que os rodeia é inteiramente involuntária e constitui, no que se refere aos animais, um fato acidental. Mas, quanto mais os homens se afastam dos animais, mais sua influência sobre a natureza adquire um caráter de uma ação intencional e planejada, cujo fim é alcançar objetivos projetados de antemão.

[...] só o que podem fazer os animais é utilizar a natureza e modificá- la pelo mero fato de sua presença nela. O homem, ao contrário, modifica a natureza e a obriga a servir-lhe, domina-a. E ai está, em última análise, a diferença essencial entre o homem e os demais       

6

Ver mais em: MORAES, B. M. Trabalho e individuação. In. FELISMINO, Sandra Cordeiro (et

al.) (orgs.).Trabalho e educação face à crise global do capitalismo. Fortaleza: LCR, 2002.

(6)

37

animais, diferença que, mais uma vez, resulta do trabalho (ENGELS, 2004, p.23).

O trabalho é atividade vital consciente, ou seja, diferencia-se das demais atividades vitais dos animais porque é mediado pela consciência. Através do trabalho, o homem transforma o meio natural, promovendo, desta forma, a criação de suas próprias condições de existência. A transformação do mundo natural em um mundo humano revela a dinâmica auto-constitutiva do gênero humano.

Pode-se referir a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém, esta distinção só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida, passo em frente que é conseqüência da sua organização corporal. Ao produzirem os seus meios de existência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material (MARX &

ENGELS, 2007, p.87).

Conforme a concepção lukácsiana, ressaltamos que o trabalho está ligado, na sua essencialidade, à criação do novo pelo homem, pois, a cada novo ato de trabalho, cria-se uma nova situação objetivada que anteriormente só existia na sua consciência. Ao produzir incessantemente o novo, o homem cria novas possibilidades e novas necessidades, bem como são adquiridas novas habilidades e novos conhecimentos.

7

A partir do discorrido e ressaltando a premissa discutida por Carmo (2008), compreendemos o complexo de conceitos postulado no conjunto da obra vigotskiana como algo que incorpora uma perspectiva ontológica. Na esteira dos estudos da autora, várias categorias configuram o entendimento da natureza onto-histórica humana, além de enxergar o homem como ser social cujas funções psicológicas superiores

8

, genuínas de seu gênero, se objetivam

      

7

Para aprofundamento dos conceitos referidos, ver mais em LUKÁCS, Georg. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Temas de Ciências Humanas, número 4. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.

8

As formas superiores de comportamento humano foram estabelecidas sobre as formas elementares e, devido ao desenvolvimento histórico da humanidade, fundado na atividade e nas formas de relações entre os homens, acabam por expandir as possibilidades humanas.  

Conforme Vigotski (2000, s/p ), “Todas as funções superiores constituíram-se na filogênese,

não biologicamente, mas socialmente. [...] Sua composição, gênese, função (maneira de agir) –

em uma palavra, sua natureza – são sociais. Mesmo sendo, na personalidade, transformadas

(7)

38 para além da esfera biológica. Acerca destas categorias, que podem ser encontradas na obra de Vigotski, percebemos que o autor discute conceitos como:

[...] trabalho; atividade prática; prática; atividade (prática social da criança); método; materialismo histórico; materialismo dialético;

sentido; significado; salto dialético; generalização; mediação;

gnoseologia; ontologia; instrumento; conceito; ciência; dialética;

marxismo; consciência; salto; linguagem; pensamento; análise;

desenvolvimento; ser social; personalidade; psiquismo; interiorização;

ferramentas; funções psíquicas superiores, funções psíquicas elementares. (CARMO, 2008, p. 175).

Carmo (2008) reconhece, portanto, que não se trata apenas de apontar algumas categorias do conjunto teórico de Vigotski, mas, sim, com efeito, a concepção efetiva do complexo categorial como sendo os últimos fundamentos no campo da Ciência e da Filosofia, que se encontram claramente tomados pelo autor na perspectiva do marxismo. Destarte, o autor soviético expõe abertamente que:

[...] o estudo científico é ao mesmo tempo tanto o estudo do fato quanto o do procedimento de cognição desse fato. Em outras palavras, é o trabalho metodológico sobre a própria ciência. [...]

Portanto, a ciência é filosófica até seus últimos elementos, até as palavras, está perpassada, poderíamos dizer de metodologia. Isso coincide com a concepção marxista da filosofia como a ciência das ciências como a síntese que penetra na ciência. (VIGOTSKI apud CARMO, 2008, p. 176).

O próprio autor, como afirma Carmo (2008), compreendeu e assumiu a perspectiva marxista como fundamento que dirige seu legado teórico e que o impulsionou à concepção de uma Psicologia histórico-cultural embebida de uma posição ontologicamente marcada.

Shuare (apud FACCI, 2004), acerca da influência do materialismo histórico e dialético da teoria de Vigotski, relata que o entendimento de todos

       em processos psicológicos –, elas permanecem ‘quase’-sociais. O individual, o pessoal – não é

‘contra’, mas uma forma superior de sociabilidade.”

(8)

39 os fatos e fenômenos da individualidade e psique humana está intrinsecamente relacionado à origem histórico social do homem. Assim, a autora enumera:

[...] alguns conceitos advindos do historicismo [...] 1º o tempo humano é história, tanto individual como social, e a atividade produtiva (transformadora) dos homens é ponto central para compreender o desenvolvimento humano; 2º a psique humana possui um desenvolvimento histórico e uma relação de dependência essencial dos fenômenos psíquicos com respeito à vida e à atividade social; 3º a psique humana é mediatizada, e as funções psíquicas superiores são o produto da própria interação mediatizada pelos objetos criados pelo homem (FACCI, 2004, p. 153).

Neste sentido, Facci (2004) indica que a teoria histórico-cultural foi fruto do ambiente político, social, cultural e intelectual da Rússia pós-revolução de outubro de 1917

9

. Nesta premissa, compreendemos que a obra de Vigotski foi fortemente influenciada pela perspectiva de construção de uma sociedade socialista

10

.

Os psicólogos da escola soviética (Vigotski, Leontiev e Luria etc.) construíram suas pesquisas baseadas em fundamentos marxistas. No entanto, no que concerne aos ideais de Vigotski, percebemos que seu pensamento foi, de certa forma, deturpado no ocidente. Duarte (apud FACCI, 2004, p. 135-136) relata que este processo de desfiguração da obra se dá a partir de três instâncias: 1) a tentativa de “[...] afastar a teoria de Vigotski da teoria de Leontiev”; 2) a substituição do que [...] Vigotski escreveu pelo que escreveram seus intérpretes ou mesmo apresentando traduções resumidas e censuradas dos textos escritos pelo autor”; e 3) o uso de meio-termos “[...] pelas aproximações entre a teoria de Piaget e a de Vigotski”.

Ainda segundo Facci (2009), autores como Van der Veer e Valsiner separam a teoria dos autores da escola soviética, procurando anular o cunho marxista e, ainda, tentam unificar o pensamento socialista ao regime stalinista,

      

9

Segundo Costa (2010, p.6), momento marcado pela conquista do poder pela classe operária russa, através da direção Vladimir Lênin e Leon Trotsky. “Pela primeira vez, além do breve e limitado episódio da Comuna de Paris, os trabalhadores puderam concretizar a perspectiva de superação do capitalismo e da sociedade burguesa.”

10

Para saber mais sobre o que entendemos por sociedade socialista, ler: TONET, Ivo. Sobre o

socialismo. Curitiba: HD Livros, 2002.

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40 indo de encontro aos preceitos neoliberais e pós-modernos voltados à reprodução do sistema do capital.

Os estudos de Vigotski fundamentados na teoria marxista foram realizados durante sua juventude, e não pressionados pelo contexto social da época, permeados pelo autoritarismo determinado pela ditadura stalinista.

Corroboramos com Rivièri (apud FACCI, 2004, p.145) ao dissertar que:

[...] a familiaridade que tinha Vigotski [...] com a dialética como método e os fundamentos mais profundos do pensamento marxista, lhe impediu sempre de desenvolver uma atitude reverencial ou escolástica como a que terminaria por impor-se nos tempos de Stálin.

O marxismo era, em Vigotski, uma ferramenta de pensamento próprio e não um conjunto de verdades reveladas [...] Porém o importante aqui é destacar que o marxismo de Vigotski não foi resultado de uma evolução [...] simultânea ou posterior à sua psicologia, mas sim uma atitude intelectual profunda, desenvolvida a partir do conhecimento e textos de Hegel, Marx e Engels [...].

Tal discussão é complementada por Carmo (2008) ao afirmar que vários dos projetos de Vigotski ficaram por se realizar, pois ele teve uma prematura morte, porém o seu legado ficou, e é através de suas indicações teóricas que se depreende o fundamento ontológico do seu complexo categorial deixado entrelinhas.

Conforme Carmo (2008), a acepção de Vigotski da categoria trabalho e o seu claro empenho em distingui-la de um conjunto de atividades postas em prática pelo homem, comungam com as elaborações de Lukács no momento em que este menciona o trabalho como exemplo da práxis social. Nesse sentido, Lukács (apud Carmo , 2008, p. 148) aponta que:

[...] o trabalho é um processo entre atividade humana e natureza:

seus atos tendem a transformar alguns objetos naturais em valor de uso. Junto a isso, nas formas ulteriores e mais evoluídas da práxis social, se destaca mais acentuadamente a ação sobre outros homens, cujo objetivo é, em última instância – mas somente em última instância – mediar a produção de valores de uso.

Ainda, segundo, Carmo (2008, p.186), Vigotski registra o seu

entendimento de que o trabalho é o momento fundante do mundo dos homens,

bem como o atrelamento desta categoria ontológica às categorias usadas pelo

próprio psicólogo soviético. Deste modo, tomando como base este

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41 pensamento, “[...] Vigotski encontra-se, assim, com o sentido rigorosamente ontológico-marxiano do trabalho como ato-gênese do ser que saltou para adiante da esfera do mundo animal”.

Introdução às categorias marxianas do pensamento de Vigotski

À luz do pensamento vigotskiano e conforme as discussões anteriormente levantadas, Shuare (1990, p.15 – tradução nossa) sugere que, na Psicologia, os momentos mais produtivos “[...] são os que têm feito uma profunda reflexão sobre o objeto, os procedimentos de investigação e as funções do conhecimento psicológico”, ou seja, os períodos em que a Psicologia e a Filosofia estreitam suas relações de reflexão.

Assim sendo, a autora ressalta que o valor metodológico das concepções filosóficas nas diferentes ciências depende tanto do conteúdo destas concepções filosóficas como do intuito de cada ciência particular, expondo que “[...] a psicologia soviética declarou, desde seu início que pretendia constituir-se como ciência sobre a base da filosofia materialista dialética [...]” (SHUARE, 1990, p.17 – tradução nossa). No entanto, devemos ter em mente que a escolha desta base não inviabiliza a autonomia e as possíveis diferenças entre as formas como a Psicologia Soviética apreendeu a Filosofia materialista dialética.

Destarte, conforme a discussão levantada por Shuare, indicamos que algumas categorias, tais como: a concepção materialista da dialética, a teoria do reflexo, a categoria da atividade e a natureza social do homem, as quais dissertaremos de forma introdutória, por conseguinte, têm uma relevância fundamental na presente discussão.

Acerca da categoria da dialética, Shuare (1990, p.18 – tradução nossa) faz o levante de que, antes de tudo, devemos:

[...] destacar a dupla natureza ontológica, gnosiológica da dialética e

a significação que o método dialético tem para todas as ciências, já

que trata das leis mais gerais do desenvolvimento da natureza, a

sociedade e o pensamento humano. A psicologia, em vista da

complexidade de seu objeto, requer, em particular, a aplicação

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42

criadora do método dialético para a investigação e explicação dos fenômenos que estuda.

De acordo com Kosik (1976), a dialética é o pensamento crítico que se põe a entender o real. Tal pensamento pretende distinguir apropriadamente a realidade. Assim,

A dialética não considera os produtos fixados, as configurações e os objetos, todo o conjunto do mundo material reificado, como algo originário e independente. Do mesmo modo como assim não considera o mundo das representações e do pensamento comum, não os aceita sob o seu aspecto imediato: submete-os a um exame em que as formas reificadas do mundo objetivo e ideal se diluem, perdem a sua fixidez, naturalidade e pretensa originalidade para se mostrarem como fenômenos dereivados e mediatos, como sedimentos e produtos da práxis social da humanidade (KOSIK, 1976, p.16-17).

Desta forma, Duarte (2003, p. 46) afirma que o entendimento da essência do objeto não pode ser imediato, e sim mediado. Mediação esta realizada pelo processo de análise, ou seja, “Trata-se do método dialético de apropriação do concreto pelo pensamento científico por meio da mediação do abstrato.” A dialética de Marx sobre o processo de conhecimento, da qual Shuare (1990) e Duarte (2003) fazem referência divide-se em três momentos cruciais: síncrese, análise e síntese. Na obra vigotskiana, dois princípios da dialética de Marx são utilizados na construção do conhecimento científico na ciência psicológica: “[...] a abstração e a análise da forma mais desenvolvida”

(DUARTE, 2003, p.46).

Sobre a teoria do reflexo, Shuare (1990) expõe que este é um dos aspectos menos compreendidos na Filosofia materialista dialética, pois é muito comum o reflexo ser interpretado como cópia da realidade pelo psíquico. A teoria do reflexo também não pode ser confundida com a teoria dos reflexos condicionados de Pavlov

11

, o qual traz uma discussão de caráter fisiológico.

      

11

Ivan Petrovich Pavlov (1849 —1936) foi um fisiólogo russo. Premiado com o Nobel de Fisiologia de 1904, por suas descobertas sobre os processos digestivos de animais. Pavlov veio, no entanto, a entrar para a história por sua pesquisa em um campo que se apresentou a ele quase que por acaso: o papel do condicionamento na Psicologia do comportamento (reflexo condicionado). Ver mais em SHUARE, M. La psicologia soviética tal como la veo. Moscú:

Progresso, 1990.p. 46-49.

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43 Deste modo, Shuare (1990), sobre o reflexo psíquico da realidade, aponta que este é um pressuposto básico da teoria do conhecimento e postula dois princípios fundamentais: a subjetivação do objetivo e a objetivação do subjetivo, fazendo com que este reflexo seja compreendido como imagem subjetiva da realidade objetiva.

Afirma ainda que, dentro desta premissa, a teoria gnosiológica do reflexo surge, entre outras coisas, com o intuito de “[...] investigar o surgimento e o desenvolvimento das formas de reflexo, incluindo a própria consciência e as peculiaridades da atividade cognoscitiva do homem [...]” (SHUARE, 1990, p.19- 20 – tradução nossa). Sendo assim, o homem estabelece uma relação com a realidade objetiva de modo funcional, indagando o aparecimento e o desenvolvimento do modo como se dão as configurações do reflexo em suas atividades.

Outro destaque feito por Shuare (1990) é a valoração que a teoria do reflexo tem como proposição do conhecimento para a Psicologia Soviética, sinalizando que

[...] o reflexo psíquico da realidade é a imagem subjetiva que significa:

1) o reconhecimento da especificidade do mesmo, 2) a pertinência do sujeito concreto, real; 3) a definição da essência ativa do processo de reflexo, 4) a inclusão da atividade humana, em particular, a sua atividade prática, essencialmente social na origem e natureza, a teoria do conhecimento (SHUARE, 1990, p.20 – tradução nossa).

Segundo Shuare (1990), o marxismo supera a ruptura entre teoria e prática ao se fundamentar no conceito de atividade como unidade orgânica, composta pela dialética. A atividade sintetiza-se no conceito de prática, colocando, em sua base, o trabalho como ato fundante do ser social. Desta forma, a mesma determina os objetos produzidos historicamente pelo homem, de modo que, a criação desses objetos se estabelece de acordo com a necessidade.

Shuare (1990) refere-se à atividade como sendo o conteúdo da cultura

humana e do mundo, criado pelo ser social. Desse modo, para a Filosofia

materialista dialética, se faz importante dois momentos, quais sejam:

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[...] o primeiro consiste em que o sujeito da atividade é considerado sócio-historicamente, o segundo em que a atividade é conceituada materialisticamente, ou seja, como uma atividade objeto. Isto, por sua vez, significa que ela tem uma dupla determinação: de acordo com a lógica do objeto (o que corresponde ao princípio da prioridade do material) e de acordo com a lógica da mesma atividade (que corresponde a um criador do mesmo) (SHUARE, 1990, p.21 – tradução nossa).

A constituição da atividade parte da necessidade, contudo esta não decide o seu motor. A atividade relaciona-se com seu intuito para o fim de uma ação de acordo com o processo histórico. Leontiev (2004, p. 115) assegura que:

A primeira condição de toda a atividade é uma necessidade. Todavia, em si, a necessidade não pode determinar a orientação concreta de uma atividade, pois é apenas no objeto da atividade que ela encontra a sua determinação; deve, por assim dizer, encontrar-se nele. Uma vez que a necessidade encontra a sua determinação no objeto (se

"objetiva" nele), o dito objeto torna-se motivo da atividade, aquilo que o estimula.

Sobre a categoria natureza social do homem, entendemos que o indivíduo é sujeito e objeto das relações sociais, ligadas essencialmente ao ato fundante do ser social, o trabalho, visto que, o mesmo permite a transformação da natureza e do homem, percebidas, no âmbito social, através novas situações históricas e de novas relações sociais. De tal modo, entendemos que a categoria em questão é essencial para atividade social produtiva, ou seja,

“[...] a existência e a essência genérica do homem que é determinada pelo caráter intrínseco à sua atividade consciente e livre efetiva-se somente como interatividade de indivíduos sociais” (MORAES, 2007, p. 107). Como assevera Leontiev (apud SHUARE, 1990, p.22 – tradução nossa):

[...] “as alterações biológicas, transmitidas hereditariamente, não condicionam o desenvolvimento social e histórico do homem e da humanidade [...] o processo é movido por outras forças, e não pelas leis da herança biológica" Ele também disse: "Cada homem aprende a ser. Para viver em sociedade não é suficiente com o que a natureza dá ao nascer. Ele tem que dominar aquilo que foi conseguido no desenvolvimento histórico da sociedade humana.”

Como lembra Moraes (2007, p. 107), a generidade humana é

radicalmente distinta do gênero natural, pois enquanto este agrupa, a partir de

características específicas comuns, os distintos exemplares de uma mesma

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45 espécie, o homem, dotado de atividade livre e consciente, “[...] não é um ser mudo frente a sua existência, ao passo em que se relaciona consigo mesmo como gênero vivo [...]”, sendo “[...] o único ser que se efetiva e se reconhece como objetividade genérica”. A autora acrescenta, ainda, que

Dizendo de outro modo, só em sociedade, e não por ato isolado, o homem pôde romper as amarras naturais de sua existência e por intermédio da interatividade entre seus pares desenvolver-se humanamente. Portanto, como complexo ontológico unitário, o ato de produzir materialmente a vida é simultaneamente o ato no qual os produtores se produzem como entes sociais, cujas condições e relações sociais de produção dão origem às particularidades próprias, genérico-individual, à formação social de cada época no decorrer do evolver histórico. (MORAES, 2007, p. 107-108).

A partir desta premissa, ressaltamos que nenhum ato do indivíduo é desligado da totalidade social, ou seja, todos os atos estão inseridos em uma realidade e relacionados a formas mediatizadas e complexas, sendo o trabalho protoforma da atividade humana.

Considerações finais

Diante dos lineamentos teóricos aqui expostos, compreendemos, a partir do pensamento vigotskiano, que a formação do indivíduo em seus aspectos objetivo e subjetivo, corresponde ao modo de produção da sociedade, caracterizando assim, sua essência histórica e as formas específicas das funções psíquicas humanas. Com efeito, qualquer ciência, dentre elas a Ciência Psicológica, para que se efetive como tal, deve resguardar como premissa o estudo do homem como sujeito social e historicamente mediado, por conseguinte perspectivado na transformação histórica da humanidade.

Deste modo, reconhecemos a importância da leitura dos escritos de Marx e de

Lukács para a compreensão da teoria histórico-cultural de Vigotski, uma vez

que, a partir do complexo categorial marxiano, os autores que construíram esta

corrente de pensamento consolidaram seu marco teórico e aprofundaram o

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46 entendimento do psiquismo e das determinações da base material na constituição do gênero humano.

Referências

BARROCO, Sonia Mari Shima. A educação especial do novo homem soviético e a psicologia de L. S. Vigotski: implicações e contribuições para a psicologia e a educação atuais. 2007. Tese (doutorado) - Programa de Pós- Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Campus de Araraquara, São Paulo.

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