• Nenhum resultado encontrado

RIOBALDO ENTRE DEUS E O DIABO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA*

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "RIOBALDO ENTRE DEUS E O DIABO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA*"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

Artigos

RIOBALDO ENTRE DEUS E O DIABO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA*

Erik Dorff Schmitz**

* Recebido em: 09.04.2019. Aprovado em: 04.05.2020

** Doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Literatura pela Uni- versidade Federal de Santa Catarina – UFSC (2019). Bacharel em Filosofia pela Faculdade São Luiz - FSL (2011) e em Teologia pela Faculdade Católica de Santa Catarina - FACASC (2015). Graduando em Letras Resumo: o presente artigo apresenta a saga do personagem Riobaldo, da obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, entre os personagens metafísicos Deus e Diabo.

Faremos uma leitura breve da subjetividade do personagem Riobaldo entre os personagens de Deus e do Diabo (e outras) no romance através da Teopoética, relacionando Teologia e Literatura. Primeiramente exporemos o problema central da Teodiceia – o problema do mal. Após isso, apresentaremos como o ser humano se encontra na obra de Rosa en- tre Deus e o Diabo, figuras do bem e do mal. Também será exposto as noções claras ou confusas da existência ou não de Deus e do Diabo nesse romance, que aponta então para as visibilidades e invisibilidades desses personagens expostas através da escrita original e própria de Rosa. Por fim, queremos ressaltar como a travessia de Riobaldo nessa saga se assemelha a caminhada de todo ser humano que se indaga sobre a existência de si e do mundo, tanto na história como na atualidade.

Palavras-chave: Grande Sertão: Veredas. João Guimarães Rosa. Riobaldo. Deus. Diabo RIOBALDO BETWEEN GOD AND THE DEVIL IN GRANDE SERTÃO:

VEREDAS, BY JOÃO GUIMARÃES ROSA

Abstract: this article presents the saga of the character Riobaldo, from the work Grande Sertão: Veredas, by João Guimarães Rosa, between the metaphysical characters God and Devil. We will make a brief reading of the subjectivity of the character Riobaldo between the characters of God and the Devil (and others) in the novel through Theopoetics, relating Theology and Literature. First we will expose the central problem of Theodicy - the pro- blem of evil. After this, we will present how the human being finds himself in the work of Rosa between God and the Devil, figures of good and evil. Also will be exposed the clear or confused notions of the existence or not of God and of the Devil in this novel, which

(2)

points then to the visibilities and invisibilities of these characters exposed through the original and own writing of Rosa. Finally, we want to highlight how Riobaldo’s crossing in this saga resembles the journey of every human being who inquires about the existence of himself and of the world, both in history and in the present time.

Keywords: Great Sertão. Veredas. João Guimarães Rosa. Riobaldo. God. Devil.

“Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança:

sempre um milagre é possível, o mundo se resolve”.

(João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas) A TEODICEIA NO SERTÃO: O ETERNO PROBLEMA DO MAL NA TEOLOGIA E LITERATURA

A

obra-prima de Guimarães Rosa, considerada por muitos a maior obra em romance da litera- tura brasileira, traz um tema familiar para a reflexão teológica e literária: o drama de amor e ódio, de salvação e perdição que constitui a saga do jagunço Riobaldo, seu desejo de amar, seus encontros e desencontros, diante da relação com Diadorim, que constituirá sua epifania sobre o sentido maior da vida. Todo o problema da Teodiceia – o questionamento sobre a compatibilidade entre a existência de Deus e a realidade do mal – está exposto na construção que faz Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas1.

Desde os primeiros momentos de sua existência, a fé cristã tenta explicar o problema e a exis- tência do mal sobre a terra. O problema porém não é levantado somente pelo cristianismo. Já havia sido feito pela filosofia grega 300 anos antes do início dessa religião. E também antes dos gregos, por muitos mitos e crenças ancestrais. Expomos aqui como se dá o problema da Teodiceia na obra que lemos, Grande Sertão: Veredas.

Um primeiro resumo desse problema está na proposição de Epicuro:

Ou Deus quer eliminar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não quer fazê-lo; ou não pode e nem quer fazê-lo; ou pode e quer eliminá-lo. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer e nem pode, além de não ser um Deus bondoso, é impotente;

se pode e quer – e esta é a única alternativa que, como Deus, lhe diz respeito – de onde vem, então, o mal real, e por que não o elimina de uma vez por todas? (SOARES, 2003, p. 13 apud BINGEMER, 2015, p. 113).

Essa espinhosa questão não deve ser resolvida pela via da negação de Deus. A existência ou não de Deus não faz com que o mal e a dor sejam eliminados do mundo. Esse mal, pode ser físico, metafísico e moral, como se debruçaram inúmeros filósofos durante a história que não abordaremos linearmente aqui.

Na literatura esse problema também atrai escritores de todos os tempos e estilos. Antes de adentrarmos na obra de Rosa, citamos aqui Leandro Gomes de Barros (1865-1918), poeta cordelista que nesse belo cordel traz essa questão:

Se eu conversasse com Deus Iria lhe perguntar:

Por que é que sofremos tanto Quando viemos pra cá?

Que dívida é essa

Que a gente tem que morrer pra pagar?

Perguntaria também Como é que ele é feito

(3)

Que não dorme, que não come E assim vive satisfeito.

Por que foi que ele não fez A gente do mesmo jeito?

Por que existem uns felizes E outros que sofrem tanto?

Nascemos do mesmo jeito, Moramos no mesmo canto.

Quem foi temperar o choro E acabou salgando o pranto?

(Disponível em: https://www.pensador.com/frase/MjE1NjA3NQ/. Acesso em: 24 out. 2018).

Nesse cordel, Leandro Gomes de Barros toca no tema do mal e do sofrimento humano, tema discutido desde sempre pela filosofia, teologia e literatura. Estas realidades de bem e mal, alegria e dor, estão expressas nos cordéis nordestinos mas também no romance de Guimarães Rosa. Analisaremos como isso é abordado.

O mal físico é antes de tudo a dor. O romance se passa num sertão brasileiro indefinido (mas provavelmente na região que compreende o norte de Minas Gerais, oeste de Goiás e sul da Bahia), na qual a existência da dor é expressa nas deformações dos animais, nas raízes e nos frutos venenosos, que não alimentam, mas matam. Como diz o jagunço Riobaldo:

[...] o sertão está cheio desses... Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento?

[...] O senhor não vê? O que não é de Deus é estado do demônio (ROSA, 2015, p. 60, grifo nosso).

Outro sentido do mal, o mal moral se encontra na liberdade humana. No romance aparecem diversos personagens que fazem e cometem o mal, violências, oprimem os fracos, matam por matar.

Mas Riobaldo, o herói, dá um passo além e consegue enxergar o mal dentro de si mesmo, nas suas intenções, ações e operações. Esse misto de luz e trevas está dentro de cada um, e configura-se nas profundezas do coração humano, como ele diz: “a água só é limpa é nas cabeceiras. O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão” (ROSA, 2015, p. 90).

E além desses, o romance de Guimarães Rosa vai tratar também do mal metafísico. Este aparece no estado melancólico e depressivo que acompanha a subjetividade de Riobaldo. O personagem sente a negatividade do mundo, o nada da existência, a finitude humana. A expressão “nonada” – negativo do negativo – que abre a narrativa e a acompanha reaparece aqui e ali e demonstra a angústia humana de Riobaldo: “NONADA. TIROS QUE O SENHRO OUVIU foram de briga de homem não, Deus esteja” (ROSA, 2015, p. 19). Esse mistério do mal é o que fez e faz a humanidade se debater sempre com esse problema sem conseguir resolvê-lo.

Essas três realidades do mal são refletidas pelas ciências humanas durante séculos. Estão pre- sentes na obra de Rosa. Elas vão e vem durante a narrativa e parecem não serem resolvidas, pois não é o bem que vence o mal, e não é o mal que vence o bem, os dois coexistem em lugares comuns, tanto em união como em conflito, de maneira confusa. De onde provém o bem e o mal? Vem de dentro de cada um, e está sempre misturado.

ECLESIASTES DE NONADA: GRANDE SERTÃO: VEREDAS

O personagem principal de Grande Sertão: Veredas, Riobaldo, pode ser visto e interpretado como um protótipo do ser humano, que se debate durante toda sua vida entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo. Apresentaremos como o ser humano se encontra entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo na obra de Rosa.

(4)

Como afirma Maria Clara Bingemer, ao longo do embate épico que tem a forma exterior da violência e da brutalidade, da jagunçagem e seu desejo de morte, atravessado pelo amor e beleza, Riobaldo faz uma viagem ao fundo de si mesmo. Dentro de si encontra o outro e faz uma experiência do mistério de Deus e do ser humano. Ele pergunta-se também sobre a existência do Diabo que na prosa Roseana vai aparecer tipificando o mal físico, moral e metafísico, já expostos. Na medida em que a presença do demônio parece latente dentro de Riobaldo, ele vai sentindo que esta presença se incorpora no interior humano e o suspende sobre um abismo. Aí acontece o confronto inevitável entre o ser humano e o Diabo (BINGEMER, 2015, p. 119).

Nessa viagem, jamais as coisas sobre o bem e o mal, o amor e o ódio, a vida e a morte vão estar claras e discriminadas para o jagunço Riobaldo. A opção por ser jagunço, ferir e matar acontece ao mesmo tempo em que cresce o amor por Diadorim, que confunde a mente e o coração de Riobaldo. Ele se assusta ao perceber que o que sente por Diadorim é mais do que companheirismo, amizade; é amor.

Em sua perspectiva um homem não pode sentir isso por outro homem (BINGEMER, 2015, p. 120).

No personagem Riobaldo há a atitude do ser humano que se confunde com aquilo que pertence a uma esfera maior e mais além de si mesmo: o transcendente, o sagrado, o santo. O ser humano é limitado. Mas diante do transcendente sente o mysterium fascinans e mysterium tremendum, como afirma Rudolf Otto, em sua obra O Sagrado. Esse mistério vai se apresentar durante as travessias do sertão, dentro de Riobaldo, e nas experiências mais fortes e emocionantes. A travessia do sertão, ou do Grande Sertão, feita pelo jagunço Riobaldo é um filme da travessia de todo ser humano pelo sertão da sua vida, feita de seca, pedras, espinhos, alívios e alentos.

Riobaldo no desejo de ser mais forte e vencer todas as lutas no sertão, decide fazer um pacto com o Diabo. Se encaminha para um lugar chamado Veredas Mortas. Ele procura a presença diabólica para permanecer seguro diante das intempéries do tempo, espaço e das lutas. Ele vê que Deus não conseguiria ser mais que o Diabo no sertão. Imagina que fazendo um pacto com o Diabo, seria pactário como o inimigo Hermógenes e poderia assim alcançar a vitória e a vingança, dando a entender que só se vence o mal com o mal. Pactuando com o Diabo ele seria mais forte diante de todos.

Além disso, o que move essa intenção de Riobaldo? Segundo Walnice Nogueira Galvão, o per- sonagem tenta impor uma estabilidade artificial numa realidade instável e mutável:

Uma busca pela garantia de certeza, o certo dentro do incerto, a certeza que mata e dana: morte real e morte abstrata. O pacto, como o crime, é algo que atenta contra a natureza do existir, na sua fluidez, na sua permanente transformação. É a tentativa de ter uma certeza dentro da incerteza do viver (GALVÃO, 1972, p. 121 apud SOARES, 2008, p. 37-8).

É o desejo da experiência “numinosa”, ou transcendente, que promete sempre estabilidade e proteção que conduz o jagunço ansiosamente para o pacto.

O romance carrega em muitos momentos uma presença bem dualista do bem e do mal. Em outros momentos, isso está misturado. As imagens que são descritas de um lado e de outro tem uma ligação bem clara entre a pessoa e o que se espera da pessoa: o bem ligado a Deus e o mal ligado ao Diabo. Deus e o Diabo são mostrados como contrários entre si. No meio de ambos está Riobaldo e a jagunçagem (SILVA, 2008, p. 269).

O que é o pacto com o Diabo? Utilizando a arqueologia de Michel Foucault percebemos que há uma distinção entre a feitiçaria e o pacto com o Diabo.

A feitiçaria seria, ao que tudo indica, uma espécie de fenômeno periférico. [...] Fenômeno peri- férico, por conseguinte mais rural que urbano; fenômeno que também encontramos nas regiões montanhescas [...] Quanto a possessão [...] seria muito mais um efeito interior do que exterior.

[...] A feitiçaria tinha regularmente a forma de uma troca: “Tu me dás tua alma – dizia Satã à feiticeira -, e eu te darei uma parte do meu poder.” [...] Na possessão, ao contrário, não há pacto selado num ato, mas uma invasão, uma insidiosa e irresistível penetração do diabo no corpo (FOUCUALT, 2001, p. 259-263).

(5)

A feitiçaria é um fenômeno que se dá como um contrato entre o feiticeiro e o Diabo, se asse- melhando assim ao pacto de Riobaldo. Já a possessão é uma invasão do Diabo no corpo do possesso.

O que vemos na atitude de Riobaldo é um pacto semelhante a feitiçaria.

O próprio jagunço terá dúvidas diante dessa busca por segurança e certeza. Esse pacto, realizado ou não, terá implicações nas revelações finais do romance. Riobaldo, como todo ser humano, fica confuso:

Ao que fui, na encruzilhada, à meia-noite, nas Veredas Mortas. Atravessei meus fantasmas? Assim mais eu pensei, esse sistema, assim eu menos penso. O que era para haver, se houvesse, mas que não houve: esse negócio. Se pois o cujo nem não me apareceu, quando esperei, chamei por ele?

Vendi minha alma algum? Vendi minha alma a quem não existe? Não será o pior? ... Ah, não:

não declaro (ROSA, 2015, p. 394).

Riobaldo fica nas encruzilhadas entre Deus e o Diabo, entre o bem e o mal. Nessa relação de dualismo e ambiguidade há também um bem, lado entendido sempre como vitorioso, que não obtém a vitória sobre o mal nos combates narrados no romance, pelo contrário, é vencido pelo mal. Deus no sertão, não consegue vencer o Diabo (SILVA, 2008, p. 273).

DEUS E DIABO: EXISTÊNCIA E INEXISTÊNCIA

Nessa caminhada cheia de pedras, dúvidas, questionamentos, Riobaldo se depara sobre a in- terrogação da existência de Deus e do Diabo.

Como também afirma Bingemer, a revelação do amor na morte de Diadorim – que é revelada mulher somente após morrer – redime Riobaldo que decide abandonar a jagunçagem e recebe outra revelação: o Diabo não existe. O lugar onde ele tinha feito seu pacto com o Diabo, Veredas Mortas, na verdade se chama Veredas Altas, então o lugar do Diabo não existe. Logo, este não existe. Essa descrença no demônio vai fazer com que Riobaldo comece a ter uma nova visão de mundo onde nada é fixo, tudo muda e se transforma, e inclusive as pessoas ainda não forma terminadas. Nessas descobertas, Riobaldo tem também a percepção de que o Diabo, como síntese do mal, em sua essência é nada. Sendo ou pretendendo ser anulação do ser, o Diabo propriamente não existe. Riobaldo acaba afirmando que o Diabo não passa de um estado de espírito do próprio ser humano. O Diabo é o avesso, o ruim, a maldade do ser humano (BINGEMER, 2015, p. 127).

Quase no fim do romance, Riobaldo se apresenta mais maduro, depois da vingança concluída, da morte de Ricardão e Hermógenes, e da revelação que Diadorim era mulher, o narrador conclui – mas sem deixar de fazer questionamentos, de que o Diabo não existe.

O episódio do suposto pacto é desvendado por Riobaldo quando afirma que o pacto não foi efetivado: “E o diabo não há! Nenhum. É o que tanto digo. Eu não vendi minha alma” (ROSA, 2015, p. 394). Essa é a declaração que está também na última frase do romance.

O que essa afirmação do próprio personagem nos leva a entender? Podemos afirmar que:

[...] no sertão, na luta entre o bem e o mal, não há derrotas e vitórias, há sim, e tão somente, perdas e ganhos de uma vida vivida sem Deus (bem) e sem o Diabo (mal), uma total liberdade.

É possível entender que Riobaldo, mais amadurecido, chega a conclusão de aquilo que mais existe, na realidade da vida, é o que não existe; e que aquilo que menos existe ou não existe, na vida vivida, é o que mais existe (SILVA, 2008, p. 274-5, grifo nosso).

Ou seja, aquilo que não existe, o Diabo, por ser Diabo, precisa ser negado, mesmo que haja a impossibilidade de sua negação. Mesmo ele não existindo como ente físico ou espiritual, existe como ente imaginário no interior de cada um: “O diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum”

(ROSA, 2015, p. 21) e por outro lado, Deus para Riobaldo, não pode deixar de existir, pois é ele que cria sentido e impulso para a vida embrejada de todo ser humano: “Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve” (ROSA, 2015, p. 60).

(6)

Nessas dúvidas e questionamentos sobre a existência de Deus e do Diabo estão, podemos afirmar que estão também suas visibilidades e invisibilidades na subjetividade do autor, dos personagens e do leitor. Apresentamos como elas estão expostas no texto em si.

AS VISIBILIDADES E INVISIBILIDADES NO ROMANCE

Para além da existência de Deus e do Diabo, Guimarães Rosa escreve de uma maneira épica e ori- ginal que põe os personagens ora mais visíveis, ora mais invisíveis. Deus e o Diabo, junto com Riobaldo, são os principais personagens. Apresentamos agora onde estão visíveis e invisíveis esses dois entes juntos da narração, e também outras características marcantes do romance e do personagem principal Riobaldo.

A habilidade do autor em criar palavras, aproveitando os regionalismos locais entoam algu- mas características do romance. O jagunço Riobaldo é espontâneo e simples ao narrar sua saga pelo sertão, e o faz isso a um “doutor”: “Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração”

(ROSA, 2015, p. 24).

A crítica literária mostra que Guimarães Rosa - um erudito escritor – produz através de seu conhecimento do espaço e tempo onde se passa a narrativa, um personagem simples que conversa e fala a um “doutor”. O doutor que sempre fala as pessoas simples e “sem instrução” agora é quem ouve os “causos” do sertanejo, como afirma Silviano Santiago:

Riobaldo que apenas pode falar, e fala “em ignorância” a este “senhor” que a todo modo aflora silencioso na narrativa. Com isso, passa o intelectual, citadino e dono da cultura ocidental, a ser apenas ouvinte e escrevente, habitando o espaço textual – não com o seu enorme e inflado eu – mas com o seu silêncio. O intelectual é escrivão de “ideias instruídas”, que só pode pontuar o texto de Riobaldo, como diz a psicanálise e o próprio narrador: “Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto” (SANTIAGO, 1982, p. 34-5).

O doutor permanece durante todo o romance em silêncio. O sertanejo Riobaldo é quem dita o ritmo da narração e conta suas peripécias a partir de sua perspectiva. Riobaldo quer ser o chefe, mas falta-lhe a bravura e hombridade necessárias. Também como afirma Santiago:

O falar de Riobaldo se caracteriza sintomaticamente por um constante gaguejar de dúvidas e incertezas, cujo bom exemplo seria esta passagem: “O senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso direito com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito.”

O “contar direito” não pertence ao dominado (SANTIAGO, 1982, p. 35).

Rosa sendo um erudito, consegue criar um narrador-personagem que incorpora a situação da gente simples, dominada e invisível do interior brasileiro, numa época em que as elites figuravam no eixo cultural Rio-São Paulo. Esses grupos sociais ficaram em muitos momentos quase congelados no espaço e no tempo, social e religioso, como também mostra outra obra, Os Sertões de Euclides da Cunha, ao relatar realisticamente a comunidade de Canudos devastada pela violência do governo republicano. Nessa época ainda a instrução, o conhecimento e a literatura estavam vedadas as famílias de classe alta no Brasil.

Além disso, por toda a narrativa de Grande Sertão: Veredas, palavras conhecidas, regionalis- mos, gírias e jargões nordestinos - e termos criados por Rosa - são usados pelo narrador e deixam visíveis o tom de humanidade e profundidade subjetiva da obra. Essas expressões demonstram a face simples, lutadora e corajosa do sertanejo, mas também seus medos, dúvidas e inquietações.

Riobaldo logo deixa clara a sua forte personalidade: “Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo...

eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” (ROSA, 2015, p. 25). O sertanejo, no fim das contas, não é bobo.

O sertão é muito visível no percurso da obra, é o local se passam as lutas de Riobaldo. Lutas perigosas num ambiente hostil: “Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as

(7)

astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...”

(ROSA, 2015, p. 28). Por isso o sertanejo afirma várias vezes que: “Viver é muito perigoso...” (ROSA, 2015, p. 26).

Riobaldo vive no percorrer de sua saga os movimentos internos da subjetividade humana.

A vida vai ensinando ele. As pessoas estão sempre mudando, Riobaldo também, no meio do sertão:

“O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sem- pre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.

Verdade maior. É o que a vida me ensinou” (ROSA, 2015, p. 31). O próprio sertanejo que nasceu e cresceu no sertão via afinando e desafinando durante a vida. Nada é estável no sertão.

O Diabo é nomeado pelo narrador, e fica visível no romance, mesmo que no fim das contas ele existe mais dentro do ser humano do que fora:

O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Gallhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Côxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Dubá- Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe! [...] Ah, então: mas tem o Outro – o figura, o morcegão, o tunes, o cramulhão, o dêbo, o carocho, do pé-de-pato, o mal-encarado, aquele – o-que-não-existe! (ROSA, 2015, p. 44).

Estes são nomes que o senso comum, o folclore, e a cultura dão ao Diabo. Em diversos momentos Riobaldo questiona sua presença ou ausência, e o nomeia com estes ou outros termos.

O Diabo está na oposição de Deus. A dúvida paira constantemente na mente de Riobaldo:

O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo.

O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim:

mas um fim com depois dele a gente tudo vendo (ROSA, 2015, p. 60-61, grifo nosso).

Ambos, Deus e Diabo, ora se distinguem, ora se confundem na subjetividade de Riobaldo.

O real e o irreal confundem a mente do personagem principal: “Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas, não são de verdade!” (ROSA, 2015, p. 79). Não só Deus e o Diabo confundem na realidade ou irrealidade das suas existências, mas tudo, as pessoas, as coisas, o sertão, os amigos e inimigos, os sentimentos: são confusos. E a vida do jagunço e de todo ser humano é incerta, tem altos e baixos, ilusões e desilusões:

Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade (ROSA, 2015, p. 128).

O bem e o mal estão dentro de todos, a benevolência e a maldade. Riobaldo passa por todos esses momentos no sertão. Cada ser humano passa pelo seu Grande Sertão, suas Veredas Mortas pessoais durante a vida: “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo” (ROSA, 2015, p. 136).

É aparente a solidão de Riobaldo no sertão. Ao mesmo tempo que sente atração por Diadorim, sentimento contraditório que incomodará ele, tem dificuldades em se relacionar com os outros jagunços: “Viver perto das pessoas é sempre dificultoso, na face dos olhos” (ROSA, 2015, p. 152). Porém ele próprio tem momentos e expressões de leveza e humildade: “Sou ruim não, sou homem de gostar dos outros, quando não me aperreiam; sou de tolerar” (ROSA, 2015, p. 153). E sente a necessidade das amizades simples e verdadeiras: “Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado” (ROSA, 2015, p. 155).

A solidão e a melancolia são temas constantes da narração, e Riobaldo sente diante disso à flor de sua pele, suas emoções e sentimentos, carências e angústias:

(8)

Eu queria uma mulher, qualquer. Tem trechos em que a vida amolece a gente, tanto, que até um referver de mau desejo, no meio da quebreira, serve como benefício. [...] “Quanto mais ando querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago...” (ROSA, 2015, p. 239).

Essas são as inquietações de todo homem, de todo ser humano. Riobaldo mostra para o leitor as subjetividades mais profundas de si mesmo, que são também as do leitor que se identifica com o personagem. O sertão cada um sente de um modo, em um ou mais momentos da própria vida, não há como escapar dele, pois: “Sertão: é dentro da gente.” É mergulho de cada um no vale de Peniel (ROSA, 2015, p. 256).

Riobaldo como sertanejo, simples e humilde, mas corajoso e valente não se desencanta com as asperezas do mundo. A vida, a luta, o sonho pedem mais do que se entregar ao desespero:

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente apren- dendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! (ROSA, 2015, p. 263).

Essa coragem e ousadia é o que impulsiona Riobaldo pelo sertão. Impulsiona o sertanejo genuíno.

O romance vai se encaminhando para o fim após ser narrado por Riobaldo para um “senhor”

ou “doutor” como se fosse um tiro só, uma correria, sem parar. Além da revelação surpreendente de que Diadorim era mulher – feita após sua morte trágica - Riobaldo parece concluir que o Diabo – ora visível, ora invisível; ora presente, ora ausente – não existe: “Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigo somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia” (ROSA, 2015, p. 492).

O SER HUMANO E SEUS “GRANDES SERTÕES”

Nesse romance as experiências do passado são expostas no presente por Riobaldo através de um conjunto de angustiadas interrogações sobre o destino individual e sobre a condição humana, sobre Deus e o Diabo, sobre o amor e o ódio, sobre a passagem do tempo e a morte.

Podemos afirmar que nessa leitura da subjetividade de Riobaldo entre Deus e o Diabo estão as principais inquietações que vão e vem durante toda a obra de Guimarães Rosa. São sentimentos tão humanos que se identificam com a subjetividade do autor, do leitor e dos personagens: amor, alegria, paz, angústia, melancolia, medo, raiva, desejos, inquietudes, dúvidas, coragem etc.

Ao escrever essa obra-prima, Guimarães Rosa parece situar a origem do mal no interior obs- curo do próprio ser humano ou nas forças sociais de domínio por ele criadas. O pacto com o Diabo é estratégia do autor para afirmar sua não existência e passar a responsabilidade para o ser humano pelo que acontece no mundo que lhe foi dado por Deus e que ele é, por este, chamado a transformar.

Para o sertanejo daquela época, o bem e o mal, Deus e o Diabo, a alegria e a tristeza eram vi- síveis nos males que assolavam o tempo, o espaço, o corpo e a mente das pessoas, era a seca, a fome e as lutas. Eram as solidões, depressões e melancolias diante das instabilidades de cada dia. Estas se tornavam visíveis e sensíveis em todos os dias. Elas permanecem hoje, no povo sertanejo do interior, mas em novos “Grandes Sertões” onde o ser humano, o brasileiro “instruído ou não instruído” sente as contrariedades, asperezas, injustiças e instabilidades de um Brasil ainda por se fazer, ainda “certo e incerto”, como diria Riobaldo.

A travessia continua, enquanto estamos vivos sempre haverá o sertã ao nossa frente. Resta a cada um escolher suas veredas, fazer sua ascese.

(9)

Notas

1 Utilizaremos nesse artigo a 21 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

Referências

BINGEMER, Maria Clara. Teologia e Literatura: afinidades e segredos compartilhados. Petrópolis:

Vozes, 2015.

FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional.

Trad. Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 21. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. Se eu conversasse com Deus... Disponível em: https://www.pensador.com/frase/MjE1NjA3NQ/. Acesso em: 24 out. 2018.

SILVA, Clademilson Fernades Paulino da. Sobre o mistério cósmico: Deus e o Diabo lidos no Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. In: FERRAZ, Salma (org.). Deuses em poéticas: estudos de lite- ratura e teologia. João Pessoa: UEPB, 2008.

SOARES, Andrei. Vendido a um-que-não-existe: privação, presença e confissão no Grande Sertão.

In: FERRAZ, Salma (org.). Deuses em poéticas: estudos de literatura e teologia. João Pessoa: UEPB, 2008.

Referências

Documentos relacionados

R: Sim, mas caso não seja ofertado o serviço de cadastramento pelo Município, o Estado que deverá realizar o cadastro do estabelecimento, e as fichas com o

Mova a alavanca de acionamento para frente para elevação e depois para traz para descida do garfo certificando se o mesmo encontrasse normal.. Depois desta inspeção, se não

integral do indivíduo”. É necessário que a escola como no todo faça reflexões enquanto sua mediação pedagógica. O incentivo a leitura é essa ponte que

(B) Criar uma função Materia fillMateria(Materia m1, int numAlunos) que preenche os campos de uma variável m1 do tipo Materia realizando chamadas a função fillAluno em um

Período Unidade de Ensino Professor aplicador Dia Horário Sala.. Filosofia do

A massa especifica é a relação entre a massa e o volume do fluido, com as análises podemos observar que o óleo de fritura residual apresenta uma menor densidade visto que o

Nossa proposta em criar pontes entre estas grandes áreas dos estudos linguísticos decorre das necessidades de (i) entendermos analiticamente quais os processos que subjazem

Em cada painel de Júri deverá, tanto quanto possível, ser garantida a representatividade por agrupamento de escolas ou escola não agrupada - fase local, por