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A docência em escrileituras: cartografia de um estilo animal.

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Faculdade de Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação

TESE

Josimara Wikboldt Schwantz

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Josimara Wikboldt Schwantz

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação.

Orientadora: Profª. Dra. Carla Gonçalves Rodrigues

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Josimara Wikboldt Schwantz

A docência em escrileituras: cartografia de um estilo animal

Tese aprovada, como requisito parcial, para obtenção do grau de Doutora em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas.

Data da Defesa: 28/02/2019

Banca examinadora:

... Profa. Dra. Carla Gonçalves Rodrigues (Orientadora)

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

... Profa. Dra. Ester Maria Dreher Heuser – PPGF/UNIOESTE

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

... Profa. Dra. Cynthia Farina – PPGEdu/IFSul

Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Barcelona

... Profa. Dra. Lúcia Maria Vaz Peres – PPGE/UFPel

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

... Prof. Dr. Jarbas Santos Vieira – PPGE/UFPel

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À Carla, orientadora e amiga, por permitir o acontecimento desta pesquisa e acompanhar (mais uma vez) as transformações de um estilo docente.

Ao meu esposo André, pela colaboração e paciência neste tempo dedicado aos estudos. Aos meus pais, família e amigos, que souberam tão bem me cuidar e entender a ausência de alguém que pesquisa.

À Universidade Federal de Pelotas, Faculdade de Educação e ao Programa de Pós-Graduação em Educação, pela oportunidade e a qualidade oferecida para que esta investigação pudesse acontecer.

À CAPES, pelo financiamento da pesquisa, bem como da bolsa de estudos oferecida pelo Programa Doutorado Sanduíche no Exterior, realizado em Lisboa, Portugal (2017/2018).

À Universidade Nova de Lisboa e à professora Rita Basílio, pelo acolhimento e co-orientação realizada nos seis meses vividos em período de estudos em Portugal.

Aos meus colegas de Grupo de Pesquisa, pelo cuidado e amizade.

Aos professores da banca, Esther, Cynthia, Lúcia e Jarbas, pelas contribuições no momento de qualificação do Projeto e de defesa desta tese.

À literatura, pela liberdade.

À Deus, por disponibilizar a energia necessária.

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Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar. É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto. É ela !!! Todo mundo sabe, sou uma lisa flor de pessoa, Sem espinho de roseira nem áspera lixa de folha de figueira.

Esta amante da balbúrdia cavalga encostada ao meu sóbrio ombro Vixe!!! Enquanto caminho a pé, pedestre -- peregrino atônito até a morte. Sem motivo nenhum de pranto ou angústia rouca ou desalento: Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar. É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto E se apossou do estojo de minha figura e dela expeliu o estofo.

Quem corre desabrida Sem ceder a concha do ouvido A ninguém que dela discorde É esta Selvagem sombra acavalada que faz versos como quem morde.

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SCHWANTZ, Josimara Wikboldt. A docência em escrileituras: cartografia de

um estilo animal. 2019. 141f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de

Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019.

Esta tese percorre caminhos da docência enquanto temática de pesquisa. Para tal, compõe um atlas ao inventariá-la, a partir de escrileituras, desde as possibilidades existenciais e pedagógicas. Utiliza-se o referencial teórico-filosófico de Deleuze e Guattari, intercessores artísticos e científicos. Esta proposição justifica-se pela inquietação denotada na produção radiofônica realizada por professores em formação inicial e continuada da Oficina Conatus, em que disparam zonas de indeterminação ao dizerem de acontecimentos de um cotidiano escolar. Também se desbrava o conceito de estilo, para acompanhar o movimento, a composição, a variação e a fuga de uma prática educacional. Moveu-se na circunstância de um problema a pensar: Como a constituição de um estilo afeta os modos de ser professor? Num deslocamento cartográfico, mapeia-se em planos extensivos (por meio de matérias e rastros deixados pela Oficina) e intensivos (captura das forças e signos, concebendo a escrita de um bestiário em devir). Considerou-se que a ação de escrever-ler favoreceu o aparecimento de um estilo animal na docência, evidenciando a necessidade de brechas de respiro de um fazer que diminui a força de agir. Para tal, a animalidade, enquanto estado de sensação, não se produz pela perda de nossas formas, mas ensina a viver numa multiplicidade. Ela captura singularidades ao falar e agir em nome próprio, na capacidade de escuta e olhar de ursa, no estado de alerta de um inseto, no encontro da matilha que intensifique a vida, com a persistência de uma rata para adequar-se aos próprios limites subjetivos. Esta condição docente determina-se a partir das forças e das formas como se exerce a profissão. Quanto mais relações estabelecidas por um professor (entre seres, matérias, objetos, campos de conhecimentos) para ensinar e aprender, mais aumentará sua capacidade de afeto e potência.

Palavras-chave: Educação. Filosofias da diferença. Escrileituras. Cartografia. Docência. Estilo animal.

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SCHWANTZ, Josimara Wikboldt. L’enseignement em ecrilectures: cartographie d’um style animal. 2019. 141f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019.

Cette thèse-ci parcourt des chemins de l’enseignement comme la thématique de recherche. Pour cela, elle compose un atlas quand on a fait un inventaire à partir d’écrilectures, dès les possibilités existentielles et pédagogiques. On a utilisé les références théoriques et philosophiques de Deleuze et Guattari, des intercesseurs artistiques et scientifiques. On justifie cette proposition par l’inquiétude dénotée dans la production radiophonique réalisée par des professeurs en formation initiale et continue de l’Atelier Conatus, où des zones d’indétermination déclanchent quand elles parlent des évènements du quotidien scolaire. On a aussi défriché le concept de style pour accompagner le mouvement, la composition, la variation et la fuite d’une pratique éducative. On

est mû vers la circonstance d’un problème à penser: Comment la constitution

d’un style affecte les manières d’être d’un professeur? Dans un déplacement cartographique, on a avons fait une carte aux plans extensifs (au moyen des matières et des pistes laissées par l’Atelier) et intensifs (la capture des forces et des signes, et on a conçu l’écriture d’un bestiaire em devenir). On a considéré que l’action d’écrire-lire a favorisé l’apparition d’un style animal dans l’enseignement et la rendu évidente la nécéssité de brèches de respiration d’une tâche qui réduit la force de l’action. Pour cela, l’animalité comme un état de sensation ne se produit pas par la perte de nos formes, mais elle enseigne à vivre dans une multiplicité. Elle capture des singularités quand elle parle et elle agit au nom propre, dans la capacité d’écoute et de regard d’une ourse, un état d’alerte comme un insecte, dans la recontre de la meute qui intensifie la vie, avec la

persistance d’une rate pour s’adapter aux limites propres subjectifs. Cette

condition enseignante est déterminée à partir des forces et des formes comme on exerce la profession. Plus les rélations établies par un professeur (entre des êtres, des matières, des objets, des champs de connaissance) pour enseigner et pour apprendre, plus leur capacité d’affection et de puissance.

Mots-clés: Education; Philosophies de la différence; écrilectures; Cartographie; Enseignement; Style animal.

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Nota para dizer das pessoas (Ela, Eu, Nós) ... 10

MAPAS EXTENSIVOS ... 11

MATÉRIAS E RASTROS ... 11

Mapas das matérias da Oficina Conatus ... 11

Era isso a docência, pois muito bem, outra vez! [Pas si simple] ... 18

Mapas das escrileituras radiofônicas ... 24

No rastro do nome próprio ... 41

No rastro do olhar ... 47 No rastro do som... 55 No rastro da doença ... 59 MAPAS INTENSIVOS ... 63 BESTIÁRIO DOCENTE ... 63 Antenada ... 64 Ursa ... 70 Amazona ... 76 Rata ... 82

UM SÓ OU VÁRIOS MAPAS: Cartografia de um arquivo escrileituras ... 88

Procedimentos da Oficina de Escrileituras Conatus ... 91

Atlas ... 98

Mapas extensivos das matérias ... 100

Mapas extensivos das escrileituras radiofônicas ... 103

Mapas intensivos – Bestiário docente ... 135

CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA DOCÊNCIA EM ESTILO ANIMAL NA RELAÇÃO COM ESCRILEITURAS ... 108

Entre matérias, rastros e animais: a constituição de um estilo na docência ... 110

Docência em estilo animal: pluralidade, transgressão e mutação ... 113

REFERÊNCIAS ... 120

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Uma terceira pessoa manifesta-se na tese. Surge para ser a primeira, ela, Josefina, no contar de alguém que narra sua existência, performances, delírios, fabulações e mutações na relação com escrileituras. O narrador não trata de definir quem é Josefina, mas atravessa zonas de indeterminações ao se constituir nos rastros do que fica de resto de um nome próprio, como antenada ou rata. Na captura do olhar de amazona em conjugação com seu cavalo, resisti à doença que paralisa um processo de vida de ursa.

Mas Josefina se encoraja e dá voz a sua primeira pessoa. Em devir, compõe escrituras singulares de um bestiário. Ocupada menos de fatos memorialísticos, apodera-se da força de uma transformação e de um aprender. Cria cenários para dizer dos acontecimentos e percursos realizados de uma investigação em Educação, afirmando um estilo na docência.

No entanto, esta mudança de pessoa não para por aí. Entre a terceira e a primeira, produz-se um coletivo (nós), pois Ela ou Eu são testemunhas guiadas por uma escrileitura e que não poderia acontecer de outra maneira que não esta. E, nos caminhos andarilhados de um atlas, todas elas (Ela, Eu, Nós) dão língua aos afetos, erigem um território de sensação e experiências que transcriam outras paisagens sobre a docência.

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- Sai do lugar, menina!

Diziam seus sapatos velhos2.

O escrever-ler (as escrileituras) foi a aposta para a menina sair do lugar comum, aquele lugarzinho que a deixa um tanto anestesiada, meio preguiçosa. Uma tarefa, por vezes, difícil de ser executada. Os sapatos gritam, as pernas tremem, o coração acelera. Calma! É só mais um pedido para estar no aqui e agora, fazer isto para menos sair voando. Precisava de um pouco mais de chão. Não que gostasse de calçá-los, mas a sensação de conforto que cabia a seus pés fazia com que a menina usasse o sapato sempre que caminhasse demais. Os trajetos sinuosos, com diferentes obstáculos, eram os que, sem sombra de dúvidas, a faziam calçar os sapatos gastos. O mesmo solado, os cadarços um tanto esfarrapados, a ponta colada numa tentativa de reaproveitá-lo um pouco mais. Mudar de sapatos exigia nova adaptação dos pés, do corpo, do percurso e dos desvios a serem realizados caso algum caminho estivesse interrompido, mesmo que temporariamente.

Caminha para sair do lugar comum de um pensamento dogmático preconcebido sobre ser professora, ao realizar uma pesquisa da diferença em Educação. Houve algo que fez com que ela lesse e escrevesse. Apostou na escrileitura como movimento filosófico e literário do pensamento e da palavra. Idas e vindas em (trans)criação (CORAZZA, 2015) exigiram uma predisposição para mudar de posição, de reescrita, de apagar e desfazer-se ali mesmo.

Em metamorfose, num corpo-escrita inseto, sentiu suas costas enrijecerem, as ideias se misturavam num processo lento de vir a ser. Foi dolorido. Capturava matérias que tivessem força suficiente para derrubar

pensamentos pesados e cheio de teias3

.

Josefina, apesar de seu nome

1 Não tão simples.

2 Referência à escrita poética “Sai do lugar” retirada do blog de Clarice Freire. In:

www.podelua.com. Acesso em 20/09/2018.

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próprio, intitulava-se como uma “agente de fluxos de invenção” (CORAZZA, 2013, p. 192).

Quando acordou, certa tarde, de uma sesta agitada, viu-se transformada.

Sua voz modificara-se, ouvia-se um horrível sibilar tremido, que

permeava cada palavra pedindo por água e socorro. Mas o que

aconteceu comigo? (PACHECO, 2010), pensou ela. Talvez teria almoçado um tanto mal, bebido demais; ou gritado demasiado com as crianças naquela manhã, pois mantiveram-se impertinentes e agitadas o tempo inteiro.

Como poderiam estar diferentes se ela própria tinha chegado com a sensação de um agitamento incomum naquele dia? Uma angústia desmedida,

comoum nó muito apertado bem no meio de seu sossego (FALCÃO,

2001, n/p) e que corrompia o pensamento. Talvez nada de grave; quem sabe apenas conflitos existenciais de uma professora em transformação? Tinha a sensação de que as quatro horas de trabalho não eram o suficiente para ensinar o que havia para ensinar, aconselhar o que achava necessário para eles. Por vezes, também achava que não era boa naquilo que exercia enquanto profissão. Sentia grandes responsabilidades sobre aqueles aprendizes.

Da vontade de criar uma rádio na escola, surgem lampejos de uma

oficina4 que desejava pôr a vazar ideias preconcebidas dos modos de ser, nas

finitudes de um cotidiano escolar. Buscava capturar singularidades das matérias utilizadas para a ação proposta, ao invés de estabelecer uma forma geral de

tratamento. Preocupava-se que sua nova forma fosse prejudicar

a vida pacífica que (PACHECO, 2010) a escola levava. Como a menina

de tanto que se explicava, as pessoas se irritavam

(

FALCÃO,

2001). Ali nada tinha para explicar, pois via-se apenas como um urso dos

canos dos prédios (CORTÁZAR, 2009) carregado de um discurso sobre o

que faz, vê, é e sente.

Josefina sabia que as relações que estabelecia com diferentes matérias para ensinar constituía um modo de ser e agir em suas atividades docentes. Algo a afetava, mas não conseguia dizer o que acometia aquele corpo, efetivamente.

4 Oficina de escrileituras (CORAZZA, 2011) como uma proposta para escrever-ler desde matérias

de arte, filosofia e ciência capazes de colocar o pensamento em cena. Desaloja metodologias predefinidas, fazendo-se por um modo de invenção capturado desde sentidos, afecções, conceitos e aprendizados que tais matérias são capazes de produzir.

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Também conhecia os desprazeres que atormentavam sua mente e alma. Mas havia alguma coisa ali não explicada, pouco questionada, que fazia o bigode

tremer. Como poderia ser realmente um animal, se ficava tão

emocionada com a música? (PACHECO, 2010). Uma desconfiança

permutava suas ideias (o que teria acontecido naquele corpo?) poisviu-se na

cama transformadae não era um sonho (KAFKA, 2016a).

Ela tentava afirmar a vida naquilo que viveu na tentativa de, assim, superar a dor de existir que também perfaz esta existência e não outra

(NIETZSCHE, 2012). Escrevia num período de clínica, encontrando nisto

qualquer coisa da nossa pobre e tão breve infância, de uma felicidade perdida que nunca poderá voltar a ser encontrada, mas há também qualquer coisa da vida ativa, do dia a dia, da sua pequena, incompreensível e apesar disso subsistente e

irreprimível alegria (KAFKA, 2016b, p. 297). Cantava. Que som

esplêndido! (PACHECO, 2010). Uma pequena musiquinha a alegrava, mas

via que outros, poucos, alegravam-se junto dela. A ideia se atualizava e a criação também. Escutaram suas vozes ecoando na caixa de som. O riso foi imediato.

Josefina desejava menos escrever e ler apenas pelo que é - a coisa em si, mas sim pelo seu entorno, no que também se produz em função e no meio desta ação. Buscava, aí, uma linha de fuga por onde algo escapasse, fazendo

ecoar expressões e enunciações desarticuladas, deformadas ou

metamorfoseadas, com a qual se misturava, como que vindo lá de

baixo, um piar doloroso, impossível de reprimir, que, na verdade, deixava expressar as palavras com clareza apenas no primeiro momento, para depois as destruir numa ressonância

tal que não se sabia se se tinha ouvido bem ou não (KAFKA,

2016a, p. 13).

Não via sentido nas grandes organizações que consistiam em

aprisionar pessoas inocentes e instruir contra elas um processo

absurdo(KAFKA, 2017). A situação burocrática era algo a ser enfrentado, pois

fazia parte da experiência profissional a qual vivenciava. Como escapar disso,

considerando que a própria mentira é transformada em ordem

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Rabiscos, cortes e recortes. Escreve, apaga, escreve de novo. Balbucio, sussurros, meias palavras e risadas entre dentes. Expressões disparadas no momento em que escrevia e lia. A aposta pela saída se deu nas escrileituras. Uma aposta arriscada, bem sabia. Mas percebia que sua ação no escrever era impulsionada pelo pensamento que desejava ultrapassar a fronteira do senso

comum, juntamente com matérias5 que tinham por intercessoras. Um dizer em

escrita a manifestar a pluralidade de efeitos num corpo docente em experimentação com literatura, filosofia da diferença e educação.

Josefina sentia-se afectada6 por cada um destes campos de

conhecimento, porque outras paisagens em seu pensamento começaram a surgir. Passou a querer um tanto mais do outro e de si mesma, desde aquilo que foi produzido em seu corpo nos encontros em Oficinas de escrileituras. Não

foram apenas encontros7 com pessoas, mas com matérias as quais eram

oferecidas para a criação. Estes movimentos reunidos em acontecimentos, numa relação entre estas matérias, resultou, além da variação da potência de existir em Josefina, de uma expressão que se correlacionou com outras produções em criação (afectos, perceptos, conceitos e funções) para evidenciar um conteúdo.

5 Tais matérias deveriam ter força suficiente para deslocar o pensamento de um senso comum,

ao produzir escrileituras. Essa aposta vem da compreensão teórica que Deleuze e Guattari (2010) apresentam sobre três campos de conhecimento: a arte, a filosofia e a ciência. Para eles, esses campos têm a capacidade de criar. A arte cria afectos, perceptos e vazios, a filosofia cria conceitos e a ciência, funções. São chamadas de caóides, consideradas uma composição do caos, sendo possível traçar planos de cada uma delas, respectivamente: plano de composição, imanência, referência ou coordenação, podendo extrair elementos como a força da sensação (da arte), a forma do conceito (da filosofia) e a função do conhecimento (da ciência) e assim, orientar o pensamento no caos.

6 Afectada no sentido spinoziano de affectio= afecção, sendo o estado de um corpo considerado

como sofrendo uma ação de outro corpo, uma mistura de corpos que é capaz de modificar uma determinada natureza (Curso de Deleuze sobre Spinoza (conceito de ideia e afeto) em Vincennes - 24/01/1978).

7 A Oficina Conatus foi desenvolvida cinco vezes pelo Núcleo Escrileituras UFPel entre os anos

de 2012 e 2016. A primeira edição aconteceu no CPERS-Sindicato (Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul), núcleo Rio Grande em 2012. A terceira edição numa escola estadual na mesma localidade em 2013. A segunda, a quarta e a quinta edição aconteceram na Faculdade de Educação da UFPel em 2013, 2015 e 2016 sendo que as duas últimas ocorreram em função da oferta de dois seminários concentrados sob coordenação da profª Carla Rodrigues (Seminário Educação para Espíritos Livres e Seminário Estudos sobre subjetividades contemporâneas, PPGE/FaE/UFPel). Em 2018 oferecemos mais duas vezes, em um seminário na FURG (Rio Grande) e em uma proposta de Ateliê no IX Colóquio Internacional de Filosofia e Educação na UFRJ (Rio de Janeiro). Porém, estas duas não fazem parte do corpus desta investigação.

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Na alteração entre diferentes paixões manifestadas em sua trajetória, como a alegria, a tristeza e o desejo (enquanto apetite) (SPINOZA, 2007), Josefina aumenta sua potência de agir na escrileitura, dada pelo encontro,

novamente, que teve com a menina que tinha mania de explicação

.

Explicava até o que era Alegria, um bloco de carnaval que não liga se

não é fevereiro; e Culpa,quando você cisma que podia ter feito

diferente, mas geralmente não podia (FALCÃO, 2001, n/p), se viu

atrapalhada para dizer do Amor.

Também alegrou-se com o urso, que corre sem descanso, como ela,

que corria contra o tempo, num mundo que ia girando cada vez mais

veloz (LENINE, 1999). E, nas horas de silêncio, conseguia observar o

quanto era humanamente grande, desajeitada e tão só (CORTÁZAR,

2009).

A culpa permanecia nela eventualmente, como um morcego que tem preferência por noites escuras, na busca por esconderijos em que pudesse ocultar-se perante predadores e do calor em dias de sol. Causa-lhe um efeito

dispara(dor): Tu és considerada culpada. O teu processo talvez

dificilmente ultrapasse um tribunal de instância [...] tua

culpa é considerada como provada (KAFKA, 2017, p. 247). Mas do que

mesmo sentia-se culpada? Como é que um ser humano pode ser

culpado? (KAFKA, 2017, p. 247).

Lembrava-se do que fazia para continuar. Lia muita literatura. Sentiu que, quanto mais lia, mais do mundo conhecia sem precisar sair do lugar com aqueles

sapatos velhos. Esforçava-se para isso, mas quando, após um esforço

idêntico, voltou a ficar deitada, a suspirar como dantes, viu de novo as suas patinhas lutando umas contra as outras, porventura ainda com mais força (KAFKA, 2016a, p. 16-17).

Ao transpor obstáculos externos e internos que possam impedir a invenção da vida como obra de arte e não descortinando nenhuma possibilidade de impor ordem e sossego nesta arbitrariedade, disse de novo para si própria que era impossível continuar deitada e que o mais razoável seria sacrificar tudo, caso houvesse a mais pequena esperança de, assim, se libertar

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(KAFKA, 2016a, p. 16-17). Busca pela liberdade de uma moral de animal

de rebanho (NIETZSCHE, 2005, p. 89), em que precisa aceitar pacífica e pacientemente as imposições ditadas sobre como deve ser e o que deve fazer. Por que apenas um jeito de ser e fazer?

Algumas questões levam a produzir perspectivas que não a paralisam, esgotando sua vontade de agir. Potência para e na vida: uma questão de princípio? A lógica é inabalável, mas não resiste a uma mulher

que quer viver (KAFKA, 2017, p. 266).

Certo dia, ficou encabulada com a ideia de ter de falar diante de um microfone. Então, rabiscava em seu caderninho. Estava nervosa, querendo encontrar a perfeição das palavras e cenas que estavam por nascer. Primeira tentativa. Falha. Retorno. Grava de novo. Canta, não canta. Decisões que tinham de ser tomadas no momento da experimentação. Não havia tempo suficiente para refazer a cena. Improviso. Riso.

Tratou a escrita livre de regras, pretendendo acionar fabulações, atingir visões a partir do que se viveu. Buscou abrir uma fenda de passagem da vida pela linguagem na ideia de escrileituras como ação de escrever sobre aquilo que se lê e vice-versa a partir do que pulsa no pensamento, conduzido por acontecimentos (CORAZZA, 2011). Então, era isso sua docência? Pois muito bem. Agora, outra vez!

- Sai do lugar, menina! Diziam seus sapatos velhos. O ler-escrever [...]

[...] viu-se transformada.

Sua voz modificara-se, ouvia-se um horrível sibilar tremido, [...]

[...] via-se apenas como um urso dos canos dos prédios [...]

[...] Potência para e na vida: uma questão de princípio? A lógica é

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Um nome próprio é um nome que remete ao incomparável. (Barthes, Como viver junto, p. 196) Na sequência de matérias que se conectam ao pensamento, ela escreve. O som do estalar de uma máquina de escrever produz algo ao ouvido que traz às pontas dos dedos um personagem. Esse personagem diz palavras de si para si, consigo ali. Mas qualquer coisa muda. O pedido de uma união-dupla transmuta o texto em construção. O nome próprio que antes era sEU, agora esfacela-se, metamorfoseia-se, atravessa sua formação: uma trans(form_ação). Algo se despersonaliza, deformando-se pela força dos encontros (DELEUZE; GUATTARI, 1995a) (com livros, ideias, pessoas, seres, pensamentos) que, ao se chocarem, arrebatam sentidos e criam novas conexões (CRIZEL; MUNHOZ, 2016).

Entram mais dois integrantes ao grupo. Novamente a escrita e o nome próprio se acham numa instância de modificações. Mutações de nomes, de

gente, de coisas em cores no instante em que Ana verde voltava pra

casa, e seu corpo estava dolorido, debilitado. Mas também por que escolher aquele filme? Injusta (eco). Justo aquele filme [...]Cor que transforma com a doença do outro. Contamina. E Ana violeta inaugura um possível... um possível

[...]8

Um ser que se desloca de um determinado território, desterritorializando-se para constituir-desterritorializando-se em um novo. Pelo nome próprio, há a transfiguração de uma formação que marca o estabelecimento de um domínio, uma morada (DELEUZE; GUATTARI, 2012a). Maria Joana da Silva, mãe de dois filhos. Esposa. Mora em uma cidade cinza. Trabalha todo dia: louça, roupa, chão. Maria sente dor e solidão. Este é o lar de Maria [...]Como galho Maria fica confusa. Olhando pro seu corpo percebe fissuras em si. Como galho, Maria está

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quebrando. Se joga no lago em busca da morte, seca e impotente (ploft). De repente ela percebe que, como galho, ao invés de quebrar-se, abre-se um broto. Maria não morre,

vira flor9. De um domínio mulher dona de casa, ela devém coisa-galho-flor,

transmutações na escrita da expressão de uma subjetividade feminina, mulher-docente em transformação.

O nome próprio, adotado nesta perspectiva teórica, não diz de pessoas ou objetos, mas sim de matérias e funções (DELEUZE; GUATTARI, 1995b), de algo que se coloca em relação e em funcionamento como uma máquina. A matéria apresenta um certo grau de intensidade, e o seu conteúdo emite signos para que possam ser relacionados. A função tem traço de expressão de um coletivo que salta de um conteúdo (escritas-leituras), de modo que produz tensores no pensar.

É por uma maquinaria que se extrai essa expressão e conteúdo da matéria e sua função. Alguns nomes próprios destacam-se nas escrileituras radiofônicas não apenas para designarem uma identidade professoral que emerge daquela experiência, mas surgem da intensidade com que esta experiência, enquanto máquina do pensar sobre a docência, acionando escrever-ler por meio das multiplicidades de matérias artísticas, filosóficas e científicas ofertadas na Oficina, dá outro funcionamento à temática desbravada naquela circunstância (o adoecimento docente).

É pelo nome próprio que um coletivo de vozes emerge, agenciando, naquele que escreve, um “outro de si, composto de muitos” (CRIZEL, MUNHOZ,

2016, p. 947). Porque conta histórias de vidas, dos sonhos do

João, da Maria, da Michele, do Tiago, do Mateus, do Gabriel,

da Rosa e por aí vai10, deixa impregnar uma força acometida pelos

encontros que se efetivam (DELEUZE; GUATTARI, 2012a). Encontros esses sejam eles na escrita, na leitura, ou na audição das escrileituras radiofônicas que dizem das cenas de uma vida de professora (CORAZZA, 2005).

Qual a necessidade de trazer o nome próprio nesta configuração que buscou uma forma de expressão em escrileituras para dizer de uma docência?

9 Fragmento da escrileitura radiofônica O despertar de Maria. 10 Fragmento da escrileitura radiofônica Costucantarolando.

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Este rastro apareceu no mapeamento realizado das criações radiofônicas produzidas nas edições da Oficina Conatus. Em seis delas, ele já se mostra desde o título. Duas destas seis apresentam peculiares nomes relembrando personagens da literatura (Bartleby, personagem da história de Herman Melville intitulado Bartleby, o escrivão; Dorothy, personagem de O mágico de Oz de L. Frank Baum). Outras quatro dizem de um personagem que, no desenvolver de uma história, apresenta um nome a partir do ínfimo de uma vida, como um biografema (BARTHES, 2003), que se cruza com outros acontecimentos.

A invenção de um nome próprio sugere uma ruptura com o mundo “de todo mundo” (BARTHES, 2013, p. 194). Busca uma conversão em relação ao

nome de batismo. Olhou para o lado e avistou um fósforo. Sua

boa intenção parecia ter sido reconhecida. – O fósforo sou eu, vou esperar que me risque, ou vou buscar minha própria

chama? [...]11

A personagem de nome Saludi, ao avistar um fósforo, faz referência à potência de uma vida que não deve ser apagada, como uma chama. Busca fugir de uma zona de clausura que impede a evolução de seu ser, rompendo com as predefinições de como deve ser, para, assim, poder criar seu nome próprio.

Na ocasião da morte do companheiro, a personagem vai em busca de

outras formas para viver junto, tentando superar a dor de existir só. Dali em

diante, sem Dorivaldo, a vida de Saludi era afogada em

tristeza. A mudança estabelece-se como um portal, na orientação de uma

vida. Ela nomeia-se como fósforo. Mudar o nome, a própria língua, é o início de uma inovação, de nascimentos e outras integrações (em outra aldeia, comunidade, modos de ser e fazer) (BARTHES, 2013).

Há um substituto pronominal do nome próprio – ele ou ela – que torna o outro ausente, aquele ou aquela a quem está-se referindo (BARTHES, 2013).

Ele nunca conseguiu acreditar12.Sabe-se da existência de um ser que

não é necessariamente nomeado mas que é definido, nesta substituição, juntamente com sua ação de não ter conseguido acreditar.

11 Fragmento da escrileitura radiofônica Dorivaldo. 12 Fragmento da escrileitura radiofônica Bartleby.

(43)

43

Também nomeiam-se coisas para sentir que estão próximas ou, até mesmo, que pertencem a alguém, uma comunidade ou família. O homem é o ser que anuncia a si mesmo, chama-se por um nome que ele acredita se dar, nomeando-se, diferenciando-se; nomeia-se para diferenciar-se. Tem a presunção de conferir ou extirpar a existência de algumas faculdades naqueles

considerados não humanos (DERRIDA, 2011). Aquela vaca me paga!

(muuuuu)13.

Josefina fala de si para muitos e é por muitos (intercessores) que é capaz de dizer e escrever a palavra em tese. Escrever, para ela, é um ato de temor, mas que treme cada vez que relê aquilo que acharia incapaz de escrever. Aquilo que digita fere a alma, esvoaça a razão, põe e dispõe de estruturas que achava que cabia dentro.

Lembrou-se do guarda-roupas, local onde passava algumas horas (ou seriam minutos?) imaginando ser um portal para outro mundo em que todas as crianças poderiam brincar de ser gente e bicho. Mudava de nome, não se chamava mais Josefina. Naquele seu mundo, cantava canções que se deixavam atravessar. Uma travessia que dizia mais dela do que ela de alguém, um infinitivo que se constituía naquele nome próprio, impessoal, descabido, desconhecido, não batizado, indefinido.

Uma Josefina em transformação, de modo que suas costas foram

ficando um pouco mais endurecidas, avermelhando e desenhando em si pequenas bolotas pretas. Era o corpo de uma pequena-grande joaninha, com pernas de menina-mulher. Um mundo novo

se redesenhava14. Remetia-se ao incomparável, nomeava apenas o que

achava que merecia ser nomeado (BARTHES, 2013). Nesta ação, observava que a língua também servia para dizer de uma dada realidade, mas qual

realidade se mantém em pé nas escrileituras? Não seriam perceptos15 em ação?

13 Fragmento da escrileitura radiofônica A vaca. 14 Fragmento da escrileitura radiofônica Dorothy.

15 O conceito é movimentado ao lado da ideia de afecto, como aquilo que a arte, com suas

possibilidades, cria: afectos, perceptos e vazios. Trata-se de um desenho de novas paisagens ao pensamento na medida em que nos relacionamos com matérias (corpóreas ou incorpóreas) e estas, por vezes, produzem algo em nós. É da ordem das sensações, operando num plano da composição, de modo a extrair deste plano a força da sensação, fazendo aparecer daí figuras estéticas (DELEUZE; GUATTARI, 2010).

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Qual o seu nome? perguntou uma menina enquanto ela esperava ser atendida pela diretora no primeiro dia em que assumiu o trabalho na escola. Parada, ficou procurando alternativas de uma resposta que não a identificassem de imediato. Olhou para a menina, que não esperou pela resposta, saiu correndo ao encontro das outras crianças, aos gritos: é a nova professora, é a nova

professora! Começa a pensar nas consequências16 disso tudo.

Achava que o nome que lhe atribuía fazia algum sentido. Josefina, uma joia rara, muito fina. Ou talvez tudo fazia parte de um convencionalismo? Qual a

função de seu nome próprio? (PLATÃO, 1988). As palavras do chefe da

vigilância sanitária se confundiam com a água que escorria

pela crina de Bartleby (barulho de chuva e vento)17. Este

também fora seu nome.

Existem seres que são desprovidos de uma linguagem. Essa melancolia tão aparente dizia do ato de ter sido nomeada por outrem. Não tendo o poder de nomear-se, priva-se, então, de uma resposta. As palavras são água. As palavras não param de cair. As palavras inundam tudo ao redor na ausência de resposta ao não aceitamento do nome atribuído a si (DERRIDA,

2011), emite outra vez: Preferiria não!

Preferiria ler poemas aos contos, os animais aos homens, falar alto ao invés de sussurrar. Preferiria não dar aulas, mas fazê-las proliferarem das

próprias crianças. Preferiria escutar ao falar, também utilizava-se das

palavras para agredir as pessoas18

.

Nada tinha ali a doar, apenas a

receber. Preferiria não memorizar ao relacionar, observar como os números sabiam a arte de combinar em razão e proporção. Gostava de trabalhos de pesquisa, preferiria não fazer provas que nada provavam, aliás, lhe causavam grande esforço para realizá-las, corrigi-las e atribuir uma nota a quem respondesse conforme o esperado. Preferiria, ao modo animal, não esperar por nada e nada ter que responder.

Não sei, nunca senti coisa parecida!19 Aderia à essência do

mutismo (DERRIDA, 2011), mas as vozes dos ratos ainda retumbavam

16 Fragmento da escrileitura radiofônica Frederico no HPS. 17 Fragmento da escrileitura radiofônica Bartleby.

18 Fragmento da escrileitura radiofônica O direito de ver. 19 Fragmento da escrileitura radiofônica Dorothy.

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os pensamentos20 dela. O animal, como um sopro de vida, anima21 a sua

alma. Assim, ela podia voar. Neste exercício de despersonalização

(DELEUZE; GUATTARI, 1995a), individua-se pelo acontecimento de escrever e ler-se. Busca extrair expressão e conteúdo enquanto matéria e função. Apresenta graus de intensidade e tensores na sua escrita, pois, ao transformar uma matéria sem forma em uma substância, faz surgir outra expressão. Desterritorializa-se pelo próprio nome próprio que não mais indica sua identidade professoral, fugindo da ação de falar em nome do outro mas assume uma posição, numa coletividade que recolhe modos de ser, selecionando ruídos que produzem novos enunciados sobre maneiras de dizer quem é.

20 Fragmento da escrileitura radiofônica Saída do cinema.

21 Etimologicamente, a palavra animal provém do termo anima, que significa fôlego vital,

respiração, sopro de vida. Também se refere, no latim, à alma. Podemos dizer que animal é um ser que respira, e, também, possui alma.

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As visibilidades não se confundem com elementos visuais [...]. É necessário fender as coisas, parti-las. [...]. Abrir as palavras, as frases e as proposições, abrir as qualidades, as coisas, os objetos.

(Deleuze, Foucault, p. 75) Por que se torna tão difícil Josefina (re)ver aquilo que já passou, considerando o que era e o que fez? Refere-se menos a um exame de consciência ou uma avaliação do passado, mas mais a um eterno retorno (NIETZSCHE, 2012), um tempo circular que direciona ver, também, para a frente, para os lados, para trás, em várias direções e tempos possíveis de uma existência. É deste modo que passa pelas fronteiras de sua humanidade (DERRIDA, 2011).

Como operar uma fala cega e uma visão muda? Como que a não relação se torna uma relação? (DELEUZE, 2012, p. 92). Ali onde parece que não há nada a ver e dizer, Josefina tenta criar algo. Em escrileituras, as relações estão vivas e são emitidas como signos que se engendram numa dada circunstância

e necessidade, passando por uma diferença de ponto de vista22.

Não se trata de realizar um trabalho empírico, que demonstre um resultado real. Difícil manter as coisas e as palavras a partir de um movimento entre aquilo que se vê e aquilo que se fala. Mas, a partir do instante em que volta à experiência de abrir as coisas e as palavras, a fala e a visão elevam-se a um exercício de maior impacto (DELEUZE, 2012). Há um movimento pela busca do limite que separa essas instâncias do ver e do falar para além de apresentar o visível como aquilo que só pode ser visto e um enunciável como o que só pode ser falado. De que maneira o olhar é capturado nas escrileituras radiofônicas?

A começar, diferentes foram as formas e palavras utilizadas nas escrileituras para mostrar que ali havia algo que olhava ou era olhado. Josefina foi compondo. Na sala de aula, sentada em sua classe à frente dos alunos, sentia-se observada por eles. Ao fundo, um menino, sozinho, percorria aquele

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47

lugar com os olhos passivos, sem cansar de olhar (CHAUÍ, 1988). Seus olhos

se encontram23, sabia que ele a fitava, sem estar certa de que realmente

estava sendo vista.

Uma distorção inconcebível (como era possível olhar sem ver?) Seria uma separação entre percepção e perceptos? (BARTHES, 2015). Achava que, ao

arremessar um sinalizador24, Josefina o visse, mas era pequeno, com

um olho só, conseguia ver apenas a metade do que estava a

sua frente25. Ela sabia que o filho de Adolfo tinha sido reprovado no exame

final. Por vezes, acreditava em culpa da família, por não ter dado o apoio necessário àquele menino. Em outra ocasião, sentenciava-o pela sua imaturidade percebida nas ações do dia a dia.

A tarefa mais difícil era a de rever sua prática. Lapsos de pensamento a fizeram notar o pouco olhar dedicado a esse menino para alcançar a tão sonhada aprovação e sistematização de um conhecimento. De fato, esses lapsos se tornavam quase memórias, o que abandonava toda vez que via o grau de dificuldade em relação a sua tarefa de educar e ser Josefina naquele ano.

Afinal, as férias estavam chegando, necessitava de descanso para tentar romper com a insistência do corpo que não prendia o sono, vivia na urgência de... (tic tac... tic tac... tic tac...) um nada, apenas descanso (tic tac... tic tac... tic tac...). Havia sido receitado um remédio pros olhos vermelhos de tanto provocar sintomas. O sono não vinha (tic tac... tic tac...

tic tac...), vivia a urgência de... um nada26.

E o menino? Ah, ele teria mais uma chance para aprender. Um ano

inteirinho para olhar o conteúdo novo, de novo. O menino, filho de Adolfo,

advogado especialista em libertar traficantes27

,

sentia-se como

um animal abandonado28, podia ver Josefina. Via seu rosto refletido

na janela, a pressão subia (suspiro). Vivia na urgência de

uma atenção, de um cuidado.

23 Fragmento da escrileitura radiofônica Bartleby. 24 Fragmento da escrileitura radiofônica A vaca.

25 Fragmento da escrileitura radiofônica O direito de ver. 26 Fragmento da escrileitura radiofônica Animal abandonado. 27 Fragmento da escrileitura radiofônica A vaca.

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O menino com aqueles olhos, que observava a professora, avermelhava-se toda vez que pensava nela. Como um artista da fome (KAFKA, 1998), jazia naquele lugar. Já não mais se satisfazia com o espetáculo que ele próprio causava com sua apresentação, queria desafiar-se. Espectadores a todo

momento vinham para prestigiar o ser inanimado do circo29. Teria aflorado

alguma paixão pela vida? Que caminho escolhera para si este menino? Teria escolha? O dono do circo nada fazia por ele, pensava apenas em sua nova admiradora. Sentia-se apaixonado por seus belos olhos. Foi ela quem trouxe luz

à vida do homem que vivia amargurado e insatisfeito. A paixão pelas

conquistas, pela vida, aflorou repentinamente.

Durante suas férias, na praia, Josefina se depara com um anúncio num cartaz colado na barraquinha de picolé:

Figura 1: Cartaz com figura ao fundo retirada da obra de Georges Seurat, Le cirque Fonte: Da pesquisadora.

Interessou-se pelos meninos e os artistas da fome. Às 21h estava lá, sentada na primeira fila da arquibancada para bem conseguir ver o espetáculo.

A espectadora, Josefina, em suas férias de verão, enxerga o menino. Vejo,

ainda com alguma sensibilidade que me resta30, aquele menino do

29 Fragmento da escrileitura radiofônica O circo. 30 Fragmento da escrileitura radiofônica Leito de morte.

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ano letivo. Espantou-se com a animação da plateia perante o espírito circense que perambulava pelo espaço.

F. certamente a viu também, na segunda e última apresentação que fazia naquele lugar. Na oportunidade que teve para sair dali, F. adoece, furúnculos aparecem por todo seu corpo. O médico recomenda voltar (ROZSAS, 2009). F.

vai parar no HPS31, numa situação não tão glamorosa, sentiu-se mal. Começa

a olhar ao redor e percebe, ao seu lado, um sujeito de semblante

tranquilo.

Uma segunda tentativa o faz retornar ao trabalho de artista da fome, (KAFKA, 1998) apesar de sua saúde frágil. Na jaula, não come, mas escreve sob

uma nova perspectiva32

.

F. escreve observando a imagem da amazona em

cima do cavalo e o olhar do diretor daquele circo para ela. Os aplausos dos espectadores, exceto de um que sente vontade de descer as escadarias da galeria, gritando um basta para aquela cena agonizante de uma jovem moça sendo impelida a andar em círculos por horas a cavalo; pulando sobre o pescoço do diretor, num ato de puro heroísmo, o espectador salva a bela amazona. Se não fossem os impeditivos reais, era essa sua vontade, a de interromper aquele show infernal.

Não sendo assim, entra uma bela moça vestida de amarelo como o grande espetáculo e, junto a ela, um belo alazão, também branco com uma capa dourada cobrindo-lhe o lombo. Mais uma vez, o diretor a observa com um olhar angustiante, num tom de preparo para o malabarismo que a garota irá apresentar

sobre o cavalo. Estava entusiasmado com a presença da mesma33.

Há uma tensão percebida no olhar dos criados de libré, do dono, da orquestra, dos espectadores e dos palafreneiros que seguram os arcos que dará seguimento ao salto. A amazona parece ser a única menos comovida naquela cena. Seu rosto revela um ar de tranquilidade, joga a cabeça para o lado, na ponta dos pés, com os braços estendidos, sorri em direção ao jovem espectador.

31 Fragmento da escrileitura radiofônica Frederico no HPS. 32 Fragmento da escrileitura radiofônica Dorothy.

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Este, por fim, apoia a testa na madeira que separa o público da arena, com a

mão no rosto, afunda-se em um choro imediato34. Que mundo estranho!35

À vista do espetáculo circense, a docente enxerga-se naquele ser. Ela também faz parte do público daquela plateia. Não chora como o espectador apaixonado, mas aquela cena a faz olhar para o seu fazer docente. Um estilo amazona docente, que cavalga na ponta dos pés dobrando a cabeça para as dificuldades que se apresentam e cumprindo suas tarefas diárias, sendo que assim é a nossa vida como educadores. Temos que descobrir

novos caminhos36.

E foi naquele dia que viu Josefina, a cantora. Um gabinete de cortinas desceu do teto até o palco. Luzes acenderam-se, com foco na cortina carmesim. No instante em que a cortina subiu, o som do canto lhe adentrou os ouvidos. Sim, era ela como somente ela poderia cantar. O canto mais original de todos os cantos, Josefina (KAFKA, 2016), estava ali, bem na sua frente.

Josefina é exigente, deseja sempre além do que lhe é dado a ver (NOVAES, 1988). Diante destas construções de escrileituras, há um exercício pela busca do limite que separa as instâncias do ver e do falar para além de apresentar o visível como aquilo que só pode ser visto e um enunciável como o

que só pode ser falado.Olhando para o seu corpo, percebe fissuras

em si37.

O olhar, carregado de incontingências, tem como fundamento as incertezas de que algo pode ou não acontecer. É da ordem do acontecimento e menos daquilo que é planejado, programado; um particular que flana nos limites de si. Convoca a pensar sobre aquilo que é permitido de se ver e o que se atualiza nos corpos que aprendem, docentes e discentes, no convívio em sala de aula. É mensagem, o lugar por onde o ser sai de sua solidão e se abre ao outro.

Trata-se de um primeiro passo para a construção da comunidade humana. É onde há a participação e o encontro do humano com o humano. Mas

lidar com a dificuldade de voltar para trás para considerar o que era, o que fez,

34 Transcriação realizada a partir do conto Na galeria de Kafka (2011) e do quadro Le cirque de

George Seurat (1890-1891).

35 Fragmento da escrileitura radiofônica Observador do cosmos. 36 Fragmento da escrileitura radiofônica O circo.

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é tarefa nada fácil (FERRAROTTI, 2014). Saber a diferença entre ver e olhar nos põe em variação, pois o ver conota certa passividade ao vidente (CHAUÍ, 1988). Variação não no sentido de romper um sistema mas de modificar gradualmente sua frequência, na medida em que vão coexistindo e continuando diferentes do próprio sistema (DELEUZE; GUATTARI, 1995b).

Josefina, diante dos alunos, tem o olho dócil. Desatenta ao mundo, desliza sobre as superfícies para fazer-se espelho. Seu olhar transfere-se para uma plataforma mais voraz, perscruta com maior intensidade e atenção, causando efeitos em seu estado corporal, fica tensa e alerta. O olhar dela é de um impulso mais inquiridor, tem malícia, não descansa com serenidade sobre a superfície projetada da sala.

Estando à espreita como um animal (DELEUZE; PARNET, 1997), produz um escavamento em seu pensamento, formando novas extensões descontínuas

(CARDOSO, 1988) do plano visível e dizível. Eu não estou vendo uma

colcha, não é o que eu estou enxergando38. Mas, mesmo assim,

insistia tramando suas matérias. Catava de lá, juntava daqui. Aquilo que, talvez, poucos enxergariam, ela via potência para fazer crescer ali um novo conhecimento.

Josefina olhou para o lado e avistou outra professora que costurava e cantava. A conduta passiva da vidente percorre o olho desatento da outra sob a manifestação artística, deixando-se impregnar por aquela produção vital. Este ver tornou-se mais do que um espelho na busca pelo reflexo do óbvio de uma realidade exposta pelas circunstâncias.

O olhar empreende conceber o limite abissal desse humano (DERRIDA, 2011) que agora se mantém num estado animal. Esse limite passa a

corresponder a um lugar onde há a inexistência de uma vida, “um

trespassamento de fronteiras, que leva o homem para além da subjetividade humana, abrindo-o para formas híbridas de existência” (MACIEL, 2016, p. 73).

Nestas profundezas, concentra-se aquilo que de mais a-humano existe em nós.

Uma “zona negra”, diriam os estudiosos marítimos sobre esse limite abissal situado nas regiões fundas dos oceanos. Essa profundidade leva ao limite, como

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o ato de mirar o olho de um animal, por exemplo, de modo a adentrar a passagem da fronteira na qual nos nomeamos seres humanos.

Uma animalidade a habitava em devir (DELEUZE; GUATTARI, 2012a), como algo que não transforma seu corpo físico em outra formatação, mas produz um estado de sensação que permite combinações. Josefina enquanto indivíduo (e apesar de isso parecer paradoxal) compõe-se em um corpo que não para de dividir-se, trocando de natureza incessantemente, na medida em que entra em relação.

O devir-animal em Josefina manifesta um estado de sensação que invoca saídas do território enquanto zona de conforto, levando a uma potencialidade de desterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 2014). Não se trata de baixar a escala evolutiva de Josefina (humana e mulher) ao animal mas, sim, de realçar o modo como as multiplicidades se compõem, dentre elas, a do próprio humano.

Esta animalidade, provocada em devir, vai além da busca por semelhanças. Ela se forma num pacto, como lobos em uma alcateia, onde há o

preferido que serve de alternativa, pois é ele que “tumultua os projetos

significantes, tanto quanto os sentimentos subjetivos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 12) de uma orientação animal.

Tumultuar os projetos significantes passou a ser o seu mantra. Chega o retorno das aulas, Josefina desfaz suas vestes. Retorce o pelo do bigode. A grade curricular com a disposição dos conteúdos a serem “passados” de cada disciplina se tornou um deleite. Com qual deles misturar primeiro? Dígrafos com a composição, estados físicos, purificação, ciclo e poluição da água; Limites do município com as pinturas rupestres; Kafka com a história dos números; poesia de Manuel de Barros musicalizada.

Quanto aos sentimentos, percebe uma multidão em volta, todos a

fitavam silenciosos39

.

Sente-se como matéria larvária, um suporte de troca

(SAUVAGNARGUES, 2006) que precisa de tempo para olhar. “Eu esperava,

esperava, estava demorando e eu tinha pressa. Então me inclinei sobre ela e comecei a aquecê-la com meu hálito. Impacientemente eu a aquecia e o milagre começou a se desenrolar diante de mim, com um ritmo veloz e antinatural. A casca abriu-se completamente e a borboleta surgiu. Jamais esquecerei o meu

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horror: suas asas ficaram frisadas, não se desdobraram [...]. Ela necessitava de um paciente amadurecimento e desdobramento ao sol, mas agora já era tarde [...]” (KAZANTZÁKIS, 2011, p. 155). Como as borboletas, seu olhar necessita de um lento amadurecimento.

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A nossa cantora chama-se Josefina. Quem não a ouviu não sabe o que é o poder da canção [...] Josefina é a única exceção; ela adora música e sabe também como a transmitir; [...] Será aliás sequer um canto? (Kafka, Josefina, a cantora ou O povo dos ratos, p. 279-280)

Uma sonoridade preenche seus ouvidos na medida em que escuta as criações radiofônicas. Um trabalho de pensamento que diz sobre o som, a musiquinha (DELEUZE; GUATTARI, 2014) comumente aparecida em algumas delas. A intrusão do som é vista e ouvida. “Será aliás um canto” o que Josefina emitia? (KAFKA, 2016, p. 280). Viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno

aprendiz(♪)40.

O som torna-se uma forma de expressão que, como linha de fuga, aciona uma saída, mesmo que mínima, de um modo opressor evidente em determinada situação. “Não falavam, não cantavam, permaneciam genericamente em silêncio quase com uma certa obstinação, mas faziam brotar música como que por encantamento. Era tudo música” (KAFKA, 2016, p. 146), o que aqueles sete cães faziam.

Sob o som musical, a cabeça de Josefina reergue-se de um desejo que bloqueia uma territorialidade (DELEUZE, GUATTARI, 2014). Uma linha de fuga

é traçada diante do ruído exalado, ela aponta a janela (som de

saxofone). Olha, ouçam a música! Vamos pra lá, vamos dançar!

Vamos procurar outra forma pra gente (som de saxofone)(♪)41.

Esse desejo, que é reerguido, desafia-se e abre-se a novas conexões com o mundo, um bloco animal se apodera, uma desterritorialização absoluta (DELEUZE; GUATTARI, 2014).

40 Fragmento da escrileitura radiofônica Costucantarolando. 41 Fragmento da escrileitura radiofônica Frederico no HPS.

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Josefina ouve, na cena da aula, uma intrusão sonora do cotidiano. Não se trata de uma música composta a priori para estabelecer comunicabilidade entre a professora e seus alunos. Mas há algo ali que desafia a comunicação,

(muuuuu)

42, uma composição animal vocalizada por ela.

Aquele som anômalo produz nela uma potência de desterritorialização (SAUVAGNARGUES, 2006), uma saída daquele lugar comum ao qual se submetia, onde sentia sua força de agir diminuída (SPINOZA, 2007). Não se tratava apenas de manter uma forma de existência dada a sua professoralidade,

mas de um processo que a fez encontrar brechas de respiro.Ela dizia algo

nebuloso, mas que remetia a um estado novo naqueles corpos

que dançavam (som ao fundo)(♪)43.

A sonoridade exalada não trata de um grito que escapa à significação, o piar de Josefina que, como mistério que ninguém sabe explicar, encanta um povo de camundongos (KAFKA, 2016). Haverá até alguém que se expresse musicalmente melhor do que ela, mas seu pio possui força de variação, desviando-se de uma corrente de explicação racional.

Uma musiquinha é cantada e tomada por “um devir-animal indecomponível, bloco sonoro que se opõe à lembrança visual” (KAFKA, 2012,

p. 12). Ó pedaço de mim, ó metade amputada de mim, lava o meu

olhar, porque a saudade é o pior tormento, é pior que o

esquecimento (lalalá lala iaaa) (assobios)(♪)44. A lembrança

bloqueia o desejo, assentando-se sobre estratos e cortando conexões possíveis de serem feitas. O som, enquanto matéria não formada de expressão, serve para ela ao exprimir conteúdos que se revelam cada vez menos formalizados

(DELEUZE; GUATTARI, 2014), e que, como o macaco em “Relatório a uma

Academia” (KAFKA, 2016d), pede por uma saída, a menos significante possível, para que possa escapar, mesmo que sem sair do lugar. Ela deseja uma saída

para aquilo que a atormenta. Canta,felicidade agora, agora e amanhã

(♪)45.

42 Fragmento da escrileitura radiofônica A vaca. 43 Fragmento da escrileitura radiofônica Dorothy. 44 Fragmento da escrileitura radiofônica Dorivaldo. 45 Fragmento da escrileitura radiofônica O circo.

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Josefina não tem a intenção de procurar uma solução para que ela e seus colegas professores escapem de um aprisionamento ou de algo que os incomoda. Mas, na variação dos modos de ser, por meio da experimentação da arte, da filosofia e da ciência, possam reunir elementos para criar para si uma saída. Mesmo que seja uma retirada simples: cantar uma musiquinha, produzir uma matéria sonora a potencializar um problema, dando o que pensar acerca do que e quem diz sobre os profissionais da educação, seus bens e mal-estares, do que aumenta e diminui a potência de vida (SPINOZA, 2007).

Atenta aos modos de experimentação que se propôs, entra neste processo de experimentação de pensamento e escrileituras. Escuta um som

peculiar (tic tic tic tic)(♪)46. Sua ação pedagógica deu a ver uma

espécie de corredor, marcada de pausas e paradas, onde se constroem e montam peças, engrenagens e segmentos. O som dissipa-se nela, (eco)

(assobios)(♪)47 e sabe que quando não age como elemento de uma

formalização, desestrutura, desestabiliza uma organização ativa da expressão (DELEUZE; GUATTARI, 2014), a sua expressão. Assim, ele (o som) escoa, ecoa e transborda efeitos na linguagem. Prolifera um devir (animal), no seu gemido, grunhido, ferocidade fugaz de um estilo que se redesenha em sua escrileitura.

Ruge a professora: Piiiissssssss. Faz ao escutar murmúrios dos alunos no momento da avaliação final da disciplina de matemática. Balança a cabeça em sentido de desaprovação. Suspira e dá seu aviso: - Se eu pegar alguém

colando, retiro a prova e dou zero – referindo-se à nota da avaliação.

Piiiissssssss. Recua e sai da sala, os olhos vidrados contemplam um vazio. De súbito, acordou de um sinistro sonho em que devorava seus alunos que estavam perdidos em uma trilha arborizada.

Dia de excursão para uma aula de ciências, saída de campo. Levantou-se da cama, enxugou o rosto suado pela trama onírica. Saiu para mais um dia

de trabalho. O ônibus escolar encostou em frente à escola. Partiram em viagem.

Repentinamente, a professora sente suas unhas crescerem numa rapidez fora do comum. O burburinho, risadas e gritos das crianças acabavam de lhe acionar

uma dor de cabeça infernal. O suor insistia em escorrer pelo pescoço e busto.

46 Fragmento da escrileitura radiofônica O despertar de Maria. 47 Fragmento da escrileitura radiofônica Saída do cinema.

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57 Chegaram.

Cenas horripilantes proliferaram-se: Joãozinho esquecera-se da autorização dos pais em casa; Mariazinha tropeçou na escadaria do ônibus e, ao cair no chão, sujara-se numa poça de lama; A diretora cobrava listas de chamada e notas que deveriam ser entregues já desde a semana retrasada. Seu pescoço avermelhava-se, as unhas cresciam numa velocidade cada vez maior. Afiadas, pulou em cima da mulher que estava em sua frente: Piiiissssssss. Sentia urrar em forma de latido. Au... Au... Haja hoje para tanto ontem...

Au... Au... (suspiro)48. Todos pararam e, silenciosamente, atônitos,

olharam para a professora que, com suas garras, feria o peito daquela infeliz. Em outro sobressalto, pulou da cama. Mais um sonho, nos quinze minutos que pegara no sono após o relógio ter despertado. Só mais um... só mais um... cinco minutinhos de êxtase. Factum es factum, eternum zap. - Au... Au... - Agora tenho que dobrar as camisas do meu marido. Dobrei uma, dobrei duas, dobrei três. Agora tenho que dobrar as camisas do meu marido. - Factum es factum,

eternum zap. Au... Au...

Levantou-se, vestiu-se e retornou para mais um dia de trabalho no escritório onde passava dois turnos preenchendo formulários de avaliação de

desempenho.- Hmm... reclamações em Latim, quanto do seu tempo

dedicado a conhecer o que não sabes. Au... Au... - Não sei sobre o próximo instante. Sei que ela vai dobrar as camisas. Au... Au...

Ouviste isso agora? “Era uma voz animal [...] atraído pela música, ousara avançar um pouco para a frente” (KAFKA, 2016, p. 26).

(58)

58

Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes? (Nietzsche, A gaia ciência, p. 205)

A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde [...] (Deleuze, Crítica e clínica, p. 14)

Chove. Faz frio. Acorda. Coloca água para esquentar. Abre a lata do café. Não tem café. As dores, aquelas dores, a perseguiam durante muito tempo. Acreditava, por vezes, que apareciam justamente quando o café acabava. Mordia os lábios a dentadas fortes, na expectativa de que uma hora resolveria o

problema. Tinha 30 anos e, até esta altura, não tinha se preocupado com

doença49.

Suas mãos já não alcançavam a escrivaninha, pois o corpo diminuíra com o tempo. Tempo em que estudava e lecionava três períodos diários em quatro dias consecutivos. Odiava as aulas noturnas, faziam seus pés incharem. Com inflamações na consciência, jazia espirros de esperança de que um dia seus dias seriam tão melhores quanto os de agora. Adormeceu com os lábios sangrando.

No dia seguinte, um pouco menos apreensiva, sentada à janela, observava o voo das andorinhas. Era quase primavera. Sentiu o odor poeirento da cortina carmesim que precisava ser trocada. Avançou em pensamentos perguntantes: o que seria dela se fizesse outra coisa além desta? Será que

viveria tudo isso outra vez?50

No canto esquerdo do quarto, situava-se um pequeno móvel de aspecto envelhecido, com um pouco de bolor em função do inverno úmido que acometia aquela estação. Era de sua Avó. Tal móvel servia de encosto para o cotovelo daquele corpo envelhecido que costurava na máquina que estava sob outra mesa ao lado, as duas formavam um L.

49 Fragmento da escrileitura radiofônica Frederico. 50 Fragmento da escrileitura radiofônica Dorivaldo.

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Sempre pensava em desfazer-se dele. Mas sabia que, se saísse de seu quarto, perderia o cheiro que exalava ali, de uma avó-que-cose. Morreria como ela? Uma morte súbita que lhe fez parar o coração. Talvez nem ao menos tenha sentido o último suspiro. Um suspiro que é suspendido, uma morte sem dor, ou uma dor que não se manifestou.

Esforça-se por continuar a viver (SPINOZA, 2007). Sua voz rouca e o olhar feroz volta-se para o espelho. Enxerga-se ensandecida. Sentia vontade de escrever. Escrevia pequenos fragmentos de pensamentos descompassados que vinham a sua cabeça, como um dis-curso (BARTHES, 1981) que cursava palavras na mente. Apoiava a folha e o pulso que pulsava diante do cheiro exalado dali. Costurava letras nas linhas da folha, riscava traços naquelas que se perdiam do ponto. Palavras tecido, costura ideias num devir-costureira-Avó.

Queria estar em outra dor, não mais nessa51. Seu corpo frágil

era uma escapatória, facilitava a vida em algo, deixando-a, ao menos, escrever-ler, fazer seus movimentos de pensamento, escutar a vida. Utilizava-se da doença para recuperar um pouco da potência. Ela não precisava ser vista apenas como uma inimiga, pois aguçava naquele corpo frágil uma sensação de

vida mais do que de morte.Tinha dores pelo corpo todo52

.

Resolveu tirar

proveito daquilo tudo, fazendo coisas que não eram possíveis fazer na vida normal, um modo de liberdade. Não gostava de viajar, a doença, naquela altura, lhe foi útil (DELEUZE; PARNET, 1997).

Os afectos de Josefina foram dispostos no plano de forças, fatos e

processos, menos de prescrições. Sentia o vento lhe adentrar pelos

poros53

,

pois já não havia “formas (preexistentes), senão relações cinemáticas

entre elementos não formados” (SAUVAGNARGUES, 2006, p. 52, tradução nossa). Buscava entrar em contato com as relações possíveis, mudando o modo de olhar, dizer e fazer algo com a própria dor de existir. Proporcionou um espaço para entrar em relação com sua docência pela escrita-leitura. E, por esse ato de

escrileiturar, apresentava suas relações feitas no partilhar matérias. Parece

51 Fragmento da escrileitura radiofônica Leito de morte. 52 Fragmento da escrileitura radiofônica Timóteo. 53 Fragmento da escrileitura radiofônica Dorothy.

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leve agora essa ausência de rigor. Onde estarão as

fronteiras?54

De certo modo, a doença apareceu como um elemento recorrente. Apesar de apontar relação entre aquilo que escrevia, pensava que não escrevia com as próprias neuroses, porque não considerava passagens de vida. “A doença não é processo, mas parada do processo” (DELEUZE; PARNET, 1997, p. 14). Não podia nem queria parar. A escrita foi para ela uma maneira de cuidar de si (FOUCAULT, 2014) e do mundo.

Havia sido receitado um remédio pros olhos vermelhos de

tanto provocar sintomas55. Novamente, corroborava aquele mundo dos

sintomas na doença fundida em si. A literatura surtia efeitos, como uma espécie de empreendimento de saúde (DELEUZE; GUATTARI, 1997), aglomerando aquilo que se ouviu (som) e viu (olhar) nas andanças da escrita-leitura. Suas escrileituras foram produzidas em meio aos sintomas, desafiando seus mal-estares. Cavava valos por onde algum suco pudesse passar, ao invés de

quebrar-se, abre-se um broto56 num modo de ser e fazer que ali cindia.

Qualquer sintoma lhe causava uma espécie de animal-estar (DERRIDA, 2011), a vergonha de ter vergonha, de expor sua escrita nua para outro que a lê. Como se fosse possível vesti-la com algum uniforme apropriado para a ocasião. Ainda não havia apreendido com os animais, viver sem a compreensão e a consciência da própria nudez, do bem ou do mal. Josefina ainda busca a superação, ao criar novos sentidos, considerando que não estão dados (NIETZSCHE, 2012) para ir além do tédio que paralisa. Esforça-se por se tornar boa. Sua corporeidade animalesca sofre na busca pela ética em suas ações.

Pensava na tristeza que acometia os professores, sendo que a superação da doença está relacionada à capacidade de afirmar a vida e vivê-la novamente, cada segundo do que já se passou (NIETZSCHE, 2012). A doença e a dor não podem ser capazes de diminuir a potência do existir, mesmo sabendo que isto faz parte de nós. Não se trata apenas de evitar a tragédia, mas conhecer o lado corajoso que temos, criando sentido para aquilo que não está dado.

54 Fragmento da escrileitura radiofônica Saída do cinema. 55 Fragmento da escrileitura radiofônica Animal abandonado. 56 Fragmento da escrileitura radiofônica O despertar de Maria.

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