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“Deus autem et natura nihil frustra faciunt”. Notas sobre a Teleologia nos Comentários de Tomás de Aquino a Aristóteles

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Academic year: 2021

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“Deus autem et natura nihil frustra faciunt”.

Notas sobre a Teleologia nos Comentários de Tomás de

Aqui-no a Aristóteles

*

ALFREDO C. STORCK Departamento de Filosofia

Universidade Federal do Rio Grande do Sul/CNPq PORTO ALEGRE, RS

alfredostorck@yahoo.com.br

Resumo: O presente artigo busca analisar os motivos que teriam conduzido Tomás de Aquino a

atri-buir ao deus aristotélico não apenas a causalidade final, mas também a eficiente. Duas ordens de razões serão apresentadas. A primeira reside nas dificuldades conceituais que o intérprete medieval teria detecta-do no conjunto detecta-do corpus aristotélico. A segunda consiste na evolução histórica de comentários à obra detecta-do Estagirita.

Palavras-chave: Aristóteles. Tomás de Aquino. Causalidade final. Causalidade eficiente. Teleologia

natural.

Uma interpretação bastante conhecida e difundida acerca de Tomás de Aquino consiste em dizer que ele teria cristianizado Aristóteles. A tese é verdadei-ra e mesmo óbvia. Todavia, talvez mesmo por sua obviedade, tenha conduzido a alguns exageros. Um deles encontra-se na caracterização da divindade. Para mui-tos intérpretes, o deus aristotélico, contrariamente ao Deus cristão, operaria ape-nas como causa final e não se preocuparia com o mundo. Essa discrepância, tri-vial segundo os intérpretes, teria sido elidida por Tomás quando esse, ao comen-tar um texto clássico da Metafísica, Livro XII, escreve:

* Este artigo é uma versão modificada da comunicação apresentada no colóquio “Ne-cessidade, contingência e teologia” organizado por Fátima Évora, Lucas Angioni e Yara Frateschi. Agradeço aos organizadores pelo convite para participar do evento e para pu-blicação da comunicação. Agradeço ainda a Lia Levy por sua leitura e sugestões.

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Deve ser observado que o objetivo do Filósofo é mostrar que Deus não pensa em nada a não ser nele mesmo, na medida em que isso que é pensado é a perfeição desse que pensa e de sua atividade de pensar. É também evidente que nada mais poderia ser pensado por Deus de modo tal que seria a perfeição de seu intelecto. Todavia, não se segue daí que as coisas diferentes de Deus sejam ignoradas por Ele, pois, ao pensar a si mesmo, Ele pensa todas as coisas.1

O final da passagem (“ao pensar a si mesmo, Ele pensa todas as coisas”) seria um acréscimo injustificado. Transfiguraria a idéia de um deus que tem si mesmo por único objeto de pensamento e que é causa final do movimento, na de um Deus criador que concebe o mundo e lhe confere existência por causalidade eficiente. Para muitos, essa mudança de significado somente seria justificada pela tentativa explícita de cristianizar a filosofia grega. Realizado esse gesto, as portas estariam abertas para o restante da filosofia. Sem surpresa, encontraremos o pen-sador latino a introduzir no seio da Ética a Nicômaco a figura do Deus cristão. Assim, ao comentar uma das frases de abertura da obra ética, segundo a qual “o bem é o que todos desejam”2, Tomás teria interpretado a expressão “todos”

segundo um viés manifestamente cristão ao dizer:

1 Tomás de Aquino, In Duodecim Libros Metaphysicorum Aristotelis Expositio, editio iam a M. R. Cathala, O.P., exarata retractatur cura et studio P. Fr. Raymundi M. Spiazzi. Turin, 1950, lib. 12, l. 11, 15: “Considerandum est autem quod philosophus intendit ostendere, quod Deus non intelligit aliud, sed seipsum, inquantum intellectum est perfectio intelligentis, et eius, quod est intelligere. Manifestum est autem quod nihil aliud sic potest intelligi a Deo, quod sit perfectio intellectus eius. Nec tamen sequitur quod omnia alia a se sint ei ignota; nam intelligendo se, intelligit omnia alia.” Doravante, In Met. Sobre a interpretação de Tomás, veja-se Follon, J. “Finalisme chez Aristote et Thomas”. In: J. Follon and J. McEvoy (eds.). Finalité et intentionalité: doctrine thomiste et perspectives modernes. Actes du Colloque de Louvain-la-Neuve et Louvain 21-23 mai 1990. Paris: Vrin, 1992, p. 11-39.

2 A tradução latina de 1094a2-3 é: “Ideo bene enuniaverunt bonum quod omnia appe-tunt”. Cf. Tomás de Aquino, Sententia Libri Ethicorum, cura et studio fratrum praedicato-rum, Roma, 2 vol., 1969, p. 3. Doravante, SLE. Citaremos os textos de Aristóteles prefe-rentemente na tradução latina utilizada por Tomás.

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Por todos deve-se entender não apenas as coisas que, conhecendo, buscam o bem, mas também aquelas que carecem de conhecimento. Essas tendem para o bem por um desejo natural e não por conhecerem o bem, mas porque são movidas por algo que possui conhecimento, ou seja, pela direção do intelecto divino do mesmo mo-do que uma flecha se dirige para o alvo guiada pelo arqueiro.3

Não é difícil aceitar que o bem seja almejado e mesmo buscado por seres dotados de razão, isto é, pelos seres capazes de reconhecê-lo como bem. Nesse caso, a força atrativa do bem seria suficiente para justificar sua dignidade de causa final. Todavia, como dizer que a mesma força explique a tendência em direção ao bem no caso dos seres desprovidos de razão e incapazes de reconhecer nele o fim a ser buscado? Segundo Tomás, como a orientação para o fim não pode ser de-corrência do acaso, a única possibilidade de explicação residiria no modo como o mundo foi criado por Deus. Mas o doutor cristão pretende unificar os dois tipos de busca do fim e fazer repousar tanto a busca racional quanto a orientação não racional para o fim em um mesmo princípio. A existência de um fim último para as ações humanas seria mera decorrência da teleologia natural e teria, portanto, seu fundamento na providência divina. Ora, a introdução de um mundo finalisti-camente ordenado por um Deus criador parece, aos olhos de muitos, prejudicar o comentário já desde as suas primeiras linhas.

Nosso objetivo nesse artigo não é o de opor-nos àqueles que insistem em elementos tipicamente cristãos na maneira de Tomás ler Aristóteles. Buscamos apenas salientar a existência de textos do Estagirita em apoio à interpretação to-másica, fato às vezes negligenciado. Com isso, queremos chamar a atenção para uma tese de história da filosofia. Ao investigarmos o modo como Tomás de Aquino, ou qualquer outro pensador medieval, comenta Aristóteles, devemos con-siderar que o método interpretativo empregado apoiava-se em dois eixos centrais: de um lado, no conhecimento parcial acerca do corpus aristotélico; de outro, nos

3 SLE, p. 5: “Quod autem dicit: ‘Quod ominia appetunt’, non est intelligendum solum de habentibus cognitionem, quae apprehendunt bonum, sed etiam de rebus carentibus cognitione, quae naturali appetitu tendunt in bonum, non quasi cognoscant bonum, sed quia ab aliquo cognoscente moventur ad bonum, scilicet ex ordinatione divini intellectus, ad modum quo sagitta tendit ad signum ex diretione sagittandis.”

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problemas que pautavam a ordem do dia. Os medievais não ignoravam possuir apenas um conhecimento limitado de Aristóteles fornecido pelo número reduzi-do de obras que dispunham. A esse conhecimento, acrescentavam-se algumas poucas informações complementares transmitidas por autores antigos. Tinham ainda consciência de que a acuidade de seu conhecimento variava segundo as sucessivas levas de traduções as quais revelavam novos textos ao mesmo tempo que determinavam o vocabulário a ser empregado4. Já os problemas que lhes

ocupavam tinham origem no próprio mundo latino ou diziam respeito ao modo como os pensadores gregos, romanos, árabes e judeus compreenderam e transmi-tiram o pensamento aristotélico. Considerados esses dois aspectos do método, vemos que o aristotelismo praticado na Idade Média não pode ser avaliado por uma pretensa fidelidade interpretativa (critério mais adequado para julgarmos os comentários de nossos contemporâneos) nem ser visto como um mero esforço para curvar o texto face às exigências impostas pelos dogmas cristãos. Em muitos casos, o uso que era feito dos textos tinha por função desenvolver teses cuja ori-gem pode legitimamente ser atribuída a Aristóteles, mas cujos resultados distam bastante dos ensinamentos do Estagirita. Assim, quando se tratava de resolver certas tensões e incompatibilidades encontradas no corpus aristotélico, os medie-vais procuravam transformar afirmações antagônicas em teses simultaneamente consistentes e fecundas. Uma boa ilustração disso é precisamente a concepção tomásica de teleologia5. Tomás encontra no corpus passagens para apoiar tanto a

tese de um deus tomado unicamente como causa final, quanto passagens em

4 Sobre a influência da variação de vocabulário na interpretação de Aristóteles, consulte-se: Bertelloni, F. “Les schèmes de la philosophia pratica antérieurs à 1265: leur vocabulaire concernant la Politique et leur rôle dans la réception de la Politique d’Aristote”. In: J. Hamesse, et C. Steel, C. L’élaboration du vocabulaire philosophique du Moyen Âge. Turnhout: Brepols, 2000, p. 171-202.

5 Outro exemplo do tipo de abordagem que propomos é dado por Irwin que, ao tratar da teoria tomásica da lei natural, afirma: “Aquinas’s doctrine is a reasonable development of Aristotle rather than an un-Aristotelian innovation.” Irwin, T.H. “Aquinas, Natural Law, and Aristotelian Eudaimonism”. In: Kraut, R (ed.). The Blackwell Guide to Aristotle’s

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favor causalidade eficiente divina. Acrescente-se ainda a existência de testemu-nhos de autores antigos sustentando ser o vínculo entre causalidade eficiente e teleologia parte integrante do sistema aristotélico. Nosso objetivo, no que segue, limita-se a lembrar os textos relativos à teleologia e a indicar como Tomás de Aquino os explora para concluir que a organização finalística dos seres naturais, em especial da ação humana, é dificilmente compreensível independentemente de um deus que opere como causa eficiente. Todavia, isso não implica que, ao en-contrar no deus aristotélico a causa eficiente do universo, Tomás tenha atribuído a Aristóteles a afirmação de que Deus é também criador do mundo.

1. Teleologia natural e ação humana

Nos Comentários a Ética a Nicômaco, poucas linhas após à passagem supra-citada, Tomás retoma a metáfora do arqueiro para comentar o argumento de Aristóteles em favor da existência de um fim último para o agir humano e da importância de termos dele um certo conhecimento. O texto de Aristóteles afir-ma que:

Um conhecimento dele [do fim último] será de grande valia para a vida humana, pois, tal como arqueiros que olham para o alvo, poderemos melhor atingir nosso objetivo.6

Segundo o Doutor Angélico, são duas as observações que devem ser feitas acerca dessa passagem. Deve-se explicar: por que um conhecimento do fim últi-mo é necessário e o que precisamente deve ser conhecido acerca desse fim. Quanto ao primeiro ponto, Tomás parafraseia o texto aristotélico afirmando ser necessário para o homem conhecer a existência de um fim supremo das ações humanas, pois isso é de grande valia em todas as fases da vida humana. Após, aduz as razões para a segunda tese que devem ser encontradas, em última instân-cia, na Física. Tomás escreve:

6 SLE, p. 7, 1094a22-23: “Igitur ad vitam cognitio eius magnum habet incrementum. Et quemadmodum sagittores signum habentes, magis utique adipiscemur quod oportet.”

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Essa conclusão é manifesta pela seguinte razão: nada que é dirigido para outro pode ser convenientemente alcançado pelo homem a não ser que se conheça aquilo para o qual foi dirigido. Isso fica óbvio pelo exemplo do arqueiro que atira corretamente direcionando a flecha para o alvo em direção do qual atira. Assim, a vida completa do homem deve ser ordenada para o fim supremo e último da humana. É necessá-rio, portanto, haver um conhecimento desse fim último supremo da vida humana. A explicação disso é que a razão (ratio) dessas coisas que são para o fim devem ser encontradas no fim ele mesmo, como ficou provado no segundo livro da Física.7

De fato, no segundo livro da Física, especialmente nos capítulos 8 e 9, Aristóteles procura demonstrar que os eventos causais devem ser explicados apelando-se à noção de finalidade8. Ao remeter o leitor da Ética a Nicômaco à Física,

Tomás tem claramente o intuito de salientar a dependência das teses éticas para com a teoria geral da física. Ou seja, não se deve esquecer que o ser humano é um ente natural que possui propriedades definidoras de sua natureza e que especifi-cam o seu comportamento. Logo, se, após constarmos que o ser humano vive em comunidades políticas e organiza sua vida almejando a obtenção de determi-

7 SLE, p. 8: “Quod quidem apparet tali ratione: nihil quod in alterum dirigutur potest homo recte assequi nisi cognoscat illud ad quod dirigendum est, et hoc apparet per exemplum sagittatoris qui recte emittit sagittam attendens ad signum ad quod eam dirigit; sed tota humana vita oportet quod ordinetur in ultimum et optimum finem humanae vitae; ergo ad rectitudinem humanae vitae necesse est habere cognitionem de ultimo et optimo fine humanae vitae. Et huius ratio est quia semper ratio eorum quae sunt ad finem sumenda est ab ipso fine, ut in II Physicorum probatur.”

8 Foge a nossos interesses tomar posição no debate acerca das diferentes maneiras de entender a teleologia aristotélica. Sobre isso, consulte-se: Nussbaum, M. “Aristotle on teleological explanation”. In: Aristotle’s De Motu Animalium. Princeton, 1978; Balme, D, “Teleology and necessity”. In: A. Gotthelf and J. Lennox (eds.). Philosophical issues in

Aris-totle’s Biology, Cambridge, 1987; Cooper, J. “Aristotle on natural theology”. In: M. Schofield

and M.C. Nussbaum (eds.). Language and logos, studies in ancient Greek philosophy presented to G.

E. L. Owen. Cambridge: Cambridge University Press, 1982, p. 197-222; Bradie, M. and

Miller, F.D. “Teology and Natural necessity in Aristotle”. In: P. Lloyd (ed.). Gerson,

Aris-totle critical assessments, vol. II Physics, Cosmology and Biology. London: Routledge, 1999,

p. 75-89. Para uma apresentação das diversas correntes interpretativas existentes, veja-se: Pavlopoulos, M. “Aristotle’s natural teleology and metaphysics of life”. Oxford Studies in

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nados fins, quisermos fornecer uma explicação desses fatos, deveremos levar em conta que o ser humano é um ente natural. Não somente a biologia, mas também a ética e a política admitem que o ser humano é um animal racional. O biólogo apoiar-se-á sobre esse fato para explicar por que o corpo humano necessariamen-te necessariamen-tem tal configuração. O cientista que trata da conduta humana adotará o mes-mo ponto de partida para explicar a necessidade da associação política.

Por óbvio, não está querendo o autor afirmar que todo comportamento humano voluntário possa ser explicado exclusivamente pelos mesmos princípios que se aplicam à causalidade dos seres não racionais. Quer apenas evitar o extre-mo oposto, a saber: explicar o agir humano coextre-mo se ele em nada dependesse da sua condição de ente natural. Sua tese é, portanto, a seguinte: assim como os animais, as plantas e mesmo os planetas possuem, enquanto seres naturais, uma certa finalidade pela qual explicamos suas propriedades, assim também os seres humanos, enquanto entes dotados de uma certa natureza ou essência, possuem fins que lhes são naturais. Viver em sociedades políticas faz parte da natureza de um ser que orienta sua vida para a busca da felicidade. Buscar a felicidade é algo inscrito na condição natural humana. Todavia, dado esse fim natural, o modo de buscá-lo é particular ao ser humano, já que, contrariamente aos demais entes naturais, o ser humano é um agente racional9.

Em suma, ao enviar o leitor da Ética a Nicômaco para o segundo livro da Física, Tomás procura dar relevância à tese segundo a qual os padrões de conduta apresentados na Ética e mesmo em outras obras morais são dotados de força normativa. A explicação de sua normatividade é tributária da explicação teleológi-ca da natureza. Em outras palavras, da mesma forma que será questão de justifi-car o justifi-caráter necessário e regular dos eventos naturais apelando-se para uma compreensão teleológica da noção de necessidade, de maneira semelhante será também questão de explicar o caráter impositivo de padrões de conduta fazendo-se referência ao ordenamento teológico.

9 A distinção é reconhecida pelos intérpretes contemporâneos de Aristóteles: Natali, C. “Actions et mouvements chez Aristote”. Philosophie, 73 (2002), p. 12-35 e Morel, P-.M. “Action humaine et action naturelle chez Aristote”. Philosophie, 73 (2002), p. 36-57.

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Para compreender o caráter normativo dos preceitos do direito natural, a força deôntica das regras de conduta em determinado ofício ou ainda a obrigato-riedade do respeito a certos padrões éticos, para compreender, em uma palavra, a força vinculante de certas normas, é necessário compreender seu fundamento teleológico. Tudo isso é apresentado com clareza na Suma de Teologia, I-II, q. 94.

Já que o bem tem a natureza de fim e o mal a natureza de seu contrário, então to-das as coisas para as quais o homem possui um inclinação natural são apreendito-das pela razão como sendo boas e conseqüentemente como objetos de busca. Seus contrários, como sendo coisas más que devem ser evitadas. Portanto, a ordem dos preceitos da lei natural está de acordo com a ordem das inclinações naturais. Pois no homem há, primeiro, uma inclinação natural para o bem de acordo com a natu-reza que ele possui em comum com todas as substâncias, na medida em que toda substância procura a preservação de seu próprio ser, e isso de acordo com a nature-za. Por força dessa inclinação, pertence à lei natural tudo o que é meio para preser-vação da vida humana e para a prevenção de seus perigos. Em segundo lugar, há no homem uma inclinação para coisas que pertencem a ele de uma maneira mais espe-cífica, de acordo com a natureza que ele compartilha com os outros animais. Por força dessa inclinação, pertencem à lei natural “aquelas coisas que a natureza ensi-nou aos animais” como o sexo, a educação da prole, etc. Em terceiro lugar, há no homem uma inclinação para o bem de acordo com a sua razão e isso lhe é próprio. Assim, o homem possui inclinação natural para conhecer a verdade acerca de Deus e para viver em sociedade. Nesse sentido, tudo o que pertence a essa inclinação per-tence à lei natural, por exemplo: fugir da ignorância, evitar ofender aqueles com que se vive, etc.10

10 Summa Theologiae, I-II, q. 94, a. 2: “Quia vero bonum habet rationem finis, malum autem rationem contrarii, inde est quod omnia illa ad quae homo habet naturalem inclinationem, ratio naturaliter apprehendit ut bona, et per consequens ut opere prosequenda, et contraria eorum ut mala et vitanda. Secundum igitur ordinem inclinationum naturalium, est ordo praeceptorum legis naturae. Inest enim primo inclinatio homini ad bonum secundum naturam in qua communicat cum omnibus substantiis, prout scilicet quaelibet substantia appetit conservationem sui esse secundum suam naturam. Et secundum hanc inclinationem, pertinent ad legem naturalem ea per quae vita hominis conservatur, et contrarium impeditur. Secundo inest homini inclinatio ad aliqua magis specialia, secundum naturam in qua communicat cum ceteris animalibus. Et secundum hoc, dicuntur ea esse de lege naturali quae natura omnia animalia docuit, ut est coniunctio maris et feminae, et educatio liberorum, et similia. Tertio modo inest homini inclinatio ad bonum secundum naturam rationis, quae est sibi propria, sicut homo habet naturalem inclinationem ad hoc quod veritatem cognoscat de Deo, et ad hoc quod

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Da leitura dessa passagem, fica claro o intento do autor de encontrar um fundamento único e comum para explicar o comportamento dos seres inanima-dos, animados e racionais e que aparece no texto pela introdução da noção de inclinação natural. Claro, Tomás não confunde finalidade e intencionalidade11.

Mesmo assim, ele pode afirmar que todos os seres possuem inclinações naturais que os conduzem para o bem. Mas o que são inclinações naturais e de que modo esse conceito encontra-se respaldado na obra aristotélica? Para responder a essa questão, é preciso, primeiramente, enfatizar o aspecto absolutamente central des-sa noção. Dela depende a explicação propriamente física do comportamento dos corpos bem como a justificação da normatividade de padrões humanos de com-portamento. Sendo assim, os próximos três passos de nossa argumentação serão os seguintes: a) salientar que Tomás utiliza a noção de inclinatio naturalis para dar conta do comportamento de todos os seres naturais, inclusive do ser humano, mostrando que a inclinatio naturalis não passa de um cômodo expediente para falar da teleologia em geral12; b) explicitar o vínculo entre teleologia natural e

causali-dade divina mostrando que, aos olhos de Tomás, a teleologia natural somente tem sentido se Deus entendido como causa eficiente do mundo; c) apresentar os textos que teriam levado Tomás a sustentar que o deus aristotélico opera como causa eficiente do mundo.

in societate vivat. Et secundum hoc, ad legem naturalem pertinent ea quae ad huiusmodi inclinationem spectant, utpote quod homo ignorantiam vitet, quod alios non offendat cum quibus debet conversari, et cetera huiusmodi quae ad hoc spectant.” Doravante, STh.

11 Dados os nossos objetivos, não temos espaço para abordar essa distinção central para Tomás. Sobre o ponto, consulte-se: Steel, C. “Natural Ends and Moral Ends Ac-cording to St. Thomas”. In: J. Follon and J. McEvoy (eds.), Op. Cit., p. 113-126.

12 Cf. Hamesse, J. et Portalupi, E. “Approche lexicographique de l’intentionalité et de la finalité dans l’œuvre de Thomas d’Aquin” . In: J. Follon and J. McEvoy (eds.), Op. Cit., p. 65-91.

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2. A inclinatio naturalis e seus modos

Na esteira de Aristóteles, Tomás de Aquino procura posicionar-se acerca do seguinte problema: como é possível o movimento em todas as suas varieda-des? Não se trata apenas de saber como é possível o movimento de translação, por exemplo, dos astros, mas antes de saber como é possível o movimento em geral e o que o especifica. Na Física, Aristóteles provou a existência de quatro causas, designadas tradicionalmente como causa material, formal, eficiente e final. Mostrou ainda ser a causa final a principal delas. Tomás aceita essa demonstração e a faz sua mediante a introdução de uma inclinação natural para o fim. Ou seja, na pena de Tomás, a inclinatio naturalis é a forma emblemática para lembrar que o Estagirita demonstrou ser a causa final a causa causarum, ou seja, a causa sem a qual as demais não operam. Voltaremos mais tarde a esse ponto. Por ora, basta-nos assinalar a afirmação de Aristóteles, na Física, segundo a qual, em muitos casos, três causas podem reduzir-se a uma. São elas: a causa formal, a motora e a final.

Ora, de um lado, o fim é numericamente idêntico à forma e dela não se distingue a não ser de um certo ponto de vista, já que todo o processo de vir a ser de um ente vivo tende para algo que não é outra coisa senão a forma desse ente. No exemplo clássico, a causa final do desenvolvimento do esperma humano é a aquisição de uma certa forma, do mesmo modo que a causa final do desenvolvi-mento de uma criança é um ser adulto completamente formado, ou seja, em ple-na posse de sua forma. Logo, pode-se dizer que a forma humaple-na é a causa do ser humano tanto do ponto de vista formal quanto final.

Por outro lado, pode-se igualmente afirmar ser a causa motora idêntica à forma. Não se trata aqui, é claro, do ponto de vista numérico, mas do específico, pois, como Aristóteles repete insistentemente, é o ser humano que gera o ser humano. Contudo, precisa ainda o Estagirita, a tese da identidade específica do motor e da coisa movida não vale senão para os motores que são eles próprios movidos, pois os demais movem por serem imóveis. A distinção é importante, pois os motores não movidos podem ser tanto o primeiro motor imóvel quanto a forma ou a essência de cada ser. A forma é, portanto, um tipo de motor que, não

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movendo por uma ação externa ou violenta como a do artesão, mas suscitando uma aspiração interna, move, de um modo natural, em direção a um fim.

Uma das dificuldades maiores com essa tese consiste em explicar exata-mente como pode a forma agir sobre o ente natural e ordená-lo a um fim. Con-tudo, antes de explicar por que isso é assim aos olhos da interpretação tomásica de Aristóteles, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que é precisamen-te essa precisamen-tendência natural da forma em direção ao fim que Tomás rotula ora de inclinatio naturalis, ora por uma expressão praticamente sinônima: appetitus naturalis. Escreve Tomás:

(...) o apetite natural é aquela inclinação para algo que cada coisa possui por sua própria natureza. Logo, é em virtude de seu apetite natural que cada potência deseja algo que lhe é próprio.13

O apetite natural nada mais é, portanto, do que a ordenação (ordinatio) de algo, de acordo com sua própria natureza para o fim que lhe é próprio. E quem diz “de acordo com sua própria natureza”, diz de acordo com a sua forma. Logo, como as formas são de diversos tipos, pois são diversas as naturezas, diversas serão também as inclinações. Por exemplo, o fogo, por sua forma, possui uma inclinação para subir e para gerar algo que lhe é semelhante, isto é, para aquecer. No caso dos seres vivos desprovidos das faculdades representacionais, por exem-plo, as plantas, a forma determina-as apenas em virtude de seu ser, ou seja, de sua natureza. Assim, a forma natural é acompanhada de uma inclinação natural desig-nada pela expressão “apetite natural”. Já nas coisas que possuem a capacidade cognitiva, essa inclinação está na vontade. O ato de vontade não é senão uma inclinação segundo a forma apreendida, da mesma maneira que o apetite natural é uma inclinação de acordo com a forma natural. Ora, a inclinação de uma coisa reside nela de acordo com o seu modo de existência. Assim, nas coisas naturais, ela está de um modo natural. Já a inclinação chamada apetite sensível está nas

13 STh I, q. 78, a. 1, ad 3: “Ad tertium dicendum quod appetitus naturalis est inclinatio cuiuslibet rei in aliquid, ex natura sua, unde naturali appetitu quaelibet potentia desiderat sibi conveniens.”

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coisas que possuem capacidades sensoriais de acordo com o modo próprio dessa capacidade. Por fim, a inclinação inteligível, que é ato de vontade, está presente nos seres inteligentes de um modo intelectual próprio a esse sujeito. Tomás con-clui que esse ato de vontade encontra-se na razão:

Respondo dizendo que algo pode ser dito mover em dois sentidos. De um lado, como fim, como quando se diz que o fim move a causa eficiente. Desse modo, o intelecto move a vontade, pois o bem inteligido é o objeto da vontade e move-a pra o fim. De outro lado, algo é dito mover como causa eficiente, como quando a-quele que altera move o que é alterado e aa-quele que impulsiona move o impulsio-nado. E desse modo a vontade move o intelecto e todas as faculdades da alma, co-mo o afirma Anselco-mo na obra De Similitudinibus. A razão disso está em que em to-das as séries ordenato-das de potências ativas, a potência que tende a um fim universal move as potências que tendem para fins particulares. Isso é patente tanto no domí-nio das coisas naturais quanto no da política. O céu, cuja ação tende à conservação universal da geração e da corrupção, move todos corpos inferiores que tendem para conservação da própria espécie ou do indivíduo. Também o rei, que procura o bem comum de todo o povo, move por suas ordens todos os governantes de cidades. Esses governam cada um sobre uma cidade particular. O objeto da vontade reside no bem e no fim comum. Toda potência é direcionada a um bem que lhe convém. No caso da visão, é a percepção da cor, no do intelecto, o conhecimento da verda-de. E assim a vontade, como causa eficiente, move todas as potências da alma em direção aos seus respectivos atos, exceção feita às potências da alma vegetativa que não estão submetidas ao nosso arbítrio.14

14 STh I, q. 82, a. 4: “Respondeo dicendum quod aliquid dicitur movere dupliciter. Uno modo, per modum finis; sicut dicitur quod finis movet efficientem. Et hoc modo intellectus movet voluntatem, quia bonum intellectum est obiectum voluntatis, et movet ipsam ut finis. Alio modo dicitur aliquid movere per modum agentis; sicut alterans movet alteratum, et impellens movet impulsum. Et hoc modo voluntas movet intellectum, et omnes animae vires; ut Anselmus dicit in libro de similitudinibus. Cuius ratio est, quia in omnibus potentiis activis ordinatis, illa potentia quae respicit finem universalem, movet potentias quae respiciunt fines particulares. Et hoc apparet tam in naturalibus quam in politicis. Caelum enim, quod agit ad universalem conservationem generabilium et corruptibilium, movet omnia inferiora corpora, quorum unumquodque agit ad conserva-tionem propriae speciei, vel etiam individui. Rex etiam, qui intendit bonum commune totius regni, movet per suum imperium singulos praepositos civitatum, qui singulis civitatibus curam regiminis impendunt. Obiectum autem voluntatis est bonum et finis in communi. Quaelibet autem potentia comparatur ad aliquod bonum proprium sibi conveniens; sicut visus ad perceptionem coloris, intellectus ad cognitionem veri. Et ideo

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Em suma, a tese tomásica acerca da inclinação natural, como a tendência dos seres para se dirigirem a um fim que possuem em virtude de sua natureza, tem visivelmente sua fonte na teoria aristotélica do papel preponderante da causa final15. Nosso próximo passo consistirá em apresentar brevemente o vínculo

entre a causa final de um processo natural e a exigência, segundo Tomás de A-quino, da intervenção da providência divina.

3. Teleologia natural e providência divina

No processo teleológico de geração de uma substância, as partes são de-terminadas em função do fim. Ou seja, para que um certo fim seja alcançado (v.g., uma substância capaz de falar) é necessário dotá-la de certas partes (v. g., dentes). Há, portanto, uma primazia do fim sobre os meios. Aristóteles exempli-fica esse ponto em sua resposta a Anaxágoras, pensador que caracterizava o ser humano o mais inteligente dos animais pelo fato de possuir mãos. Na verdade, diz Aristóteles, trata-se do inverso: é porque o ser humano é o mais inteligente que ele possui mãos. Em 687a15, no tratado As Partes do Animais, Aristóteles escreve:

Se a natureza realiza entre os possíveis isso que é o melhor, então não é porque ele possui mãos que o homem é o mais inteligente dos seres, mas é porque ele é o mais inteligente que ele possui mãos.16

A posse de uma propriedade é o resultado de um processo orientado para a constituição da substância que melhor poderá realizar uma certa forma ou

voluntas per modum agentis movet omnes animae potentias ad suos actus, praeter vires naturales vegetativae partis, quae nostro arbitrio non subduntur.”

15 Para uma melhor apresentação desse ponto, consulte-se: McEvoy, J. “ ‘Finis est causa causarum’: le primat de la cause finale chez S. Thomas”. In: J. Follon and J. McEvoy (eds.), Op. Cit., p. 93-111.

16 O texto latino foi editado em: Aristóteles, De Animalibus, Michael Scot’s arabic-latin translation, part two, books XI-XIB: parts of animals, edited by A.M.I. van Oppenraaij. Leiden: Brill, 1998, p. 189: “Et natura non facit nisi melius ex rebus possibilibuis. Homo ergo non est intelligens quia habet manus, sed quia est intelligens habet manus.”

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reza. O fim do processo é, portanto, o melhor que pode ser produzido. Se essa produção exige que substância seja dotada de certas propriedades, então a nature-za agirá de modo a dotá-la de tais propriedades. Em outra obra, ao responder a Demócrito, Aristóteles explicita novamente o vínculo entre necessidade, finali-dade e o melhor:

Demócrito, todavia, ao neligenciar a causa final reduz à necessidade todas as opera-ções da natureza. Ora, elas são necessárias, é verdade, mas elas o são por uma causa final e em vista disso que é o melhor em cada caso.17

Ao apelar para a finalidade, Aristóteles está a dizer, e isso não apenas de modo metafórico, que a parte da substância é escolhida por ser a melhor para o fim, ou seja, ela é desejada ou buscada pelo processo como melhor meio para produção de um certo tipo de substância. Nesse nível da explicação teleológica, a introdução da divindade ainda não se fez sentir. Ao considerar o processo natural de geração de um ser humano no qual a forma (o esperma do pai) configura a matéria (o sangue da mãe), Aristóteles constata que o desenvolvimento do feto é um tipo de movimento cujo motor é a forma e cujo fim é a geração de um ser racional18. Nesse momento, tudo o que Aristóteles precisa é da identidade entre a

causa eficiente e a final, pois o processo iniciado pela atuação da forma sobre a matéria encontraria término no momento em que a nova substância possuísse a forma humana plenamente desenvolvida19. Mas Aristóteles não se limita a falar

de finalidade natural apenas no sentido de término do processo que conduz à geração de uma substância e de suas partes constituintes, pois, para ele, o fim não

17 Aristoteles Latinus, De Generatione animalium translatio Guillelmi de Moerkeka, edidit H. J. Drossaart Lulofs, Paris, Desclée de Brouwer, 1966, p. 178-179, 789b2-4: “Democritus autem quod cuius gratia dimittens dicere, omnia reducit in necessitatem quibus utitur natura, existentibus quidem talibus, non solum sed gratia alicuius existentibus, et gratia eius quod circa unumquodque melius.”

18 Cf. Da Geração dos Animais 729a34-b32 e 730a29-b33 e História dos Animais, 581a9-588a11.

19 Sobre o momento em que a forma humana encontrar-se-ia plenamente desenvolvi-da e suas conseqüências para a videsenvolvi-da em sociedesenvolvi-dade, veja-se Política, 1334b30 e ss.

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se esgota na substância individual gerada20. Isso fica claro em uma passagem do De Anima na qual o Estagirita afirma que aquilo que é buscado no processo de reprodução das plantas é, em última instância, a participação na natureza divina. As plantas e os animais reproduzem-se em virtude de sua tendência para o fim último que é eterno. Todavia, como o corruptível não pode ser eterno, buscam tornar-se semelhantes a ele não individualmente, mas por meio da continuidade de suas espécies. Eis o texto que traduzimos a partir de sua versão latina:

Um animal gera um animal e uma planta, uma planta para participarem do eterno e do divino na medida do possível. Com efeito, todos desejam isso e em função disso age todo ser que age naturalmente. O fim que pode ser dito de uma dupla maneira: o objetivo visado e o sujeito no interesse do qual algo é feito. Assim, dada a impos-sibilidade de participarem do eterno e do divino na eternidade, pois nada na ordem do corruptível pode conservar sua identidade e unidade numérica, assim cada qual participa na medida de sua possibilidade, obtendo sucesso em graus diferentes. E o que permanece não é ele próprio, mas algo que se lhe assemelha, não do ponto de vista numérico, mas quanto à forma21.

O comentário de Averróis que acompanhava essa passagem explica a frase de Aristóteles dizendo que a diligência divina, não podendo fazer com que as coisas permanecem enquanto indivíduos, apiedou-se e concedeu-as a capacidade de permanecerem enquanto espécies, pois a posse dessa capacidade é, sem dúvi-da, algo melhor para elas do que a sua ausência. O desejo de participar do eterno

20 Para a distinção entre os dois tipos de fim, consulte-se: Metafísica 1072b2 e Física 194a25, com os respectivos comentários de Tomás: In Met. XII, L. 7 e In Phys. L. II, l. 4. Veja-se ainda: Da Geração dos Animais, 742a22.

21 Aristóteles, De Anima, 415b1 e ss: “Animal igitur facit animal et planta plantam, ita quod habeat communicationem cum sempiterno divino secundum suum posse. Omnia autem desiderant hoc, et propter hoc agit omne quod agit naturaliter. Et propter quid dicitur duobus modis, quorum unus est id quo est, et alius cuius est. Quia igitur impossibi-le fuit ut haberet communicationem cum sempiterno divino in eternitate, quia impossibiimpossibi-le est ut aliquod corruptibile permaneat idem in numero, ideo habet communicationem quidlibet cum eo secundum suum posse; et hoc magis, et hoc minus. Et sic permanet non illum idem, sed suum simile, neque unum in numero, sed unum in forma.” Tradução latina medieval em: Averrois Cordubensis commentarium magnum in Aristotelis de Anima libros, recensvit F. Stuart Crawford. Cambridge, 1953, p. 181 e 183.

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é visto pelo Comentador como algo inato às coisas e cuja origem é a sollicitudo divina. Em contraste com a leitura de Averróis, a interpretação de Tomás confere menor importância à atividade divina. Ele prefere salientar a organização hierár-quica da natureza na qual os seres inferiores desejam assemelhar-se aos superio-res, pois, sendo o eterno e imortal superior ao corruptível, segue-se o movimento interno da alma vegetal para reprodução. Tomás enfatiza ainda os tipos de neces-sidade envolvidos nesse processo. Por um lado, há a necesneces-sidade absoluta, ligada à matéria, pois todos os seres sublunares são necessariamente corruptíveis em virtude do tipo de matéria que possuem. Por outro, há a necessidade da reprodu-ção, ligada à finalidade e que se realiza segundo graus diversos e de acordo com a possibilidade de cada objeto. Para as substâncias corruptíveis, a única possibilida-de é a continuidapossibilida-de segundo a espécie.

As duas situações descritas acima, ou seja, a escolha pela natureza de uma parte que melhor configure a substância para que ela seja apta realizar sua nature-za e a reprodução como busca de um fim que lhe transcende, atestam indubita-velmente o caráter teleológico da natureza segundo Aristóteles. Para Tomás, as perguntas que se impõem são, então, as seguintes: como pode a forma ordenar um processo e escolher a melhor constituição da substância? Como pode a planta desejar o fim que lhe é extrínseco? Que sentido há em falar-se de escolha e desejo para seres desprovidos de racionalidade?

A pergunta de Tomás possui implicações manifestas. Se os processos cau-sais são finalisticamente orientados e se essa ordenação não é fruto do acaso, mas de uma busca do melhor, então o conhecimento do fim deve ser suposto. Todavia, como os seres naturais não possuem conhecimento, essa lacuna deve ser suprida por um ser racional. Em outras palavras, a teleologia somente faz sentido mediante a idéia de um ser ordenador do universo. Aos olhos de Tomás, as perguntas acima não visam a introduzir sorrateiramente no corpus aristotélico uma idéia que lhe era estranha. Trata-se antes de continuar o argumento respondendo a perguntas que outros pensadores, no caso Averróis22 e Maimônides23, já tinham endereçado a

22 Averróis, Aristotelis de Physico audito libri octo cum Averrois Cordubensis variis in eodem

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Aristóteles. Essa atitude de Tomás fica explícita nas Questões Disputadas sobre a Ver-dade, onde ele prova existência da providência divina apoiando-se explicitamente nos argumentos avançados por Aristóteles no segundo livro da Física. Tomás co-meça por lembrar os argumentos dos filósofos contra a tese segundo a qual a explicação dos eventos naturais pode ser feita exclusivamente na base da causa material ou desta em conjunção com a eficiente. Seu segundo passo é a refutação da tese de Empédocles contra a causalidade final. O argumento apresentado é um resumo da Física: se a harmonia e adaptação dos seres não fosse finalisticamente causada, seria mero resultado do acaso. Ora, como o acaso é raro e a harmonia ocorre sempre ou no mais das vezes. Logo, não pode ser resultado do acaso, mas de um fim buscado. Vem então a seqüência do argumento:

Quem é carente de inteligência ou de conhecimento não pode tender diretamente para um fim a não ser que esse lhe tenha sido preestabelecido por alguém dotado de conhecimento e que o dirija. Ora, como as coisas naturais carecem de conhecimento, deve haver uma inteligência previamente existente que as ordene em direção ao fim, tal como um arqueiro fornece um certo movimento para a flecha dirigindo-a para um fim determinado. E do mesmo modo como o percutir da flecha não pode ser dito obra ape-nas dela, mas também de quem a lançou, assim também os filósofos chamam toda obra da natureza de obra da inteligência. Logo, o mundo é governado pela providência daquele intelecto que conferiu ordem à natureza.24

23 Maimônides, Le Guide des Perplexes. Trad. S. Munk. Paris: Verdier, 1979, parte II, ca-pítulo 19. De fato, o pensador judeu atribui explicitamente a Aristóteles a causalidade eficiente. Nega, no entanto, que o deus aristotélico seja criador, pois esse produziria o mundo segundo o modelo da emanação. Como ocorre em outros lugares, é provável que Maimônides esteja imputando a Aristóteles teses retiradas de Avicena.

24 Tomás de Aquino, Quaestiones Disputatae de Veritate, cura et studio fratrum praedica-torum. Roma, 1970, p. 144: “Sed id quod intellectu caret vel cognitione, non potest direc-te in finem direc-tendere nisi per aliquam cognitionem ei praestituatur finis et dirigatur in ip-sum: unde oportet, cum res naturales cognitionem careant, quod praexistat aliquis intellec-tus qui res naturales in finem ordinet ad modum quo sagittur dat sagittae certum motum et tendeat ad determinatum finem; unde sicut repercussio quae fit per sagittam non tan-tum dicitur opus sagittae sed proicientes, ita etiam omne opus naturae diciut a philosophis opus intelligentiae. Et sic oportet quod per providentiam illius intellectus qui ordinem praedictum natiurae indidit, mundus gubernetur.” Argumento semelhante pode ser en-contrado no comentário de Tomás à Física, cf. In Phys. II, l. 12.

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Encontramos aqui o mesmo exemplo do Comentário à Ética a Nicômaco. Se a flecha busca o alvo, isso se deve à intenção do arqueiro. Se a natureza busca um fim, isso se deve a intenção de quem a ordenou, pois não haveria sentido em falar-se de uma busca ordenada sem um ordenador. Dito isso, nossa pergunta inicial, pode agora ser melhor apresentada. Não apenas em seus comentários ao corpus aristotélico, mas igualmente em seus escritos teológicos, Tomás apresenta a providência divina como decorrência das idéias do pensador grego. Devemos agora investigar se Tomás dispunha de alguma base textual para justificar essa afirmação ou se se trata de uma tese que ele próprio introduziu para conferir coerência ao modelo aristotélico.

4. A teleologia tomásica e a noção aristotélica de Deus

Em uma obra bastante conhecida, David Ross afirma que “quando Aristó-teles examina a natureza de Deus, ele se dá conta de que, se lhe atribuir a faculda-de faculda-de se interessar praticamente ao mundo, retirará faculda-dele sua perfeição. Todavia, quando examina o mundo, Aristóteles possui a tendência de representar Deus de uma maneira que lhe aproxima bastante do mundo”25. Ross sustenta, portanto,

haver uma oscilação no pensamento aristotélico, mas que não chega a prejudicar a tese central. Se Aristóteles fosse diretamente indagado, escreve o intérprete moderno, sobre se considera o mundo como tendo sido criado por Deus, sua resposta seria certamente negativa. Ora, o próprio filósofo afirmou no De Caelo 301b31 ser impossível que o mundo seja criado, uma vez que a matéria é eterna e não engendrada.

Tomás de Aquino, assim como outros pensadores medievais, responderiam afirmativamente à mesma questão. Mas isso não significa que eles consideravam o deus aristotélico como o criador do universo. Ao comentar a passagem do De Caelo referida por Ross, o Doctor Communis concorda com aqueles que preten-dem encontrar aí uma defesa da eternidade do mundo. Concorda também que o argumento é, em certa medida, correto, pois a conclusão efetivamente decorre

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das premissas. Admite, portanto, não ser possível defender simultaneamente o começo do mundo e supor que todo corpo é gerado a partir do que é em potên-cia. Mas Tomás afasta-se de Aristóteles ao salientar que a tese criacionista não faz tal suposição, escapando, portanto, às críticas do pensador grego26.

Tomás pretende, assim, ter encontrado em Aristóteles apenas a causalida-de eficiente divina e não a tese criacionista. E ele não foi o único autor medieval a pensar desse modo. Com efeito, uma das primeiras críticas que o século XIII endereçou a Aristóteles foi o necessitarismo de seu modelo emanacionista. Um deus, causa eficiente do universo, que produz tudo o que pensa não é nem cria-dor nem livre. Tomás conhecia essa crítica, que se fundava, na verdade, muito mais na versão aviceniana da metafísica aristotélica do que em interpretações do próprio pensador grego. Sabia, portanto, que a causalidade eficiente não basta para tornar a primeira causa criadora do universo e não pretendia afirmar que Aristóteles era criacionista. Procurava antes encontrar unidade e coerência nos ensinamentos do filósofo, pois considerava que a teleologia natural não faz senti-do sem um deus ordenasenti-dor.

Ainda que, como Ross sugere, a interpretação de Tomás extrapole os limi-tes do pensamento aristotélico, forçoso é admitir que ela encontra guarida na ambigüidade ou no caráter incerto dos textos disponíveis à época. Gostaríamos assim, para concluir, de chamar a atenção para dois tipos de textos. Em primeiro lugar, para os testemunhos de autores antigos que teriam encontrado (alguns em obras não disponíveis em tradução latina) argumentos em favor da causalidade eficiente divina. Em segundo lugar, para passagens da obra de Aristóteles nas quais esse tipo de causalidade é empregado para explicar o funcionamento do causal no interior da natureza.

26 Tomás de Aquino, In Libros Aristotelis De Caelo et Mundo Expositio. Roma: Leonina, 1836, L. III, l. 8, 4: “Nec etiam probatio Philosphi est contra sententiam fidei nostrae, qua ponimus totam universitatem corporum de novo incoepisse: quia non ponimus praeexis-tere locum, quod hic Philosophus supponit; neque ponimus generationem corporum ex eo quod est in potentia, sed per creationem”. Doravante, De Caelo et Mundo.

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A tendência a fazer do deus aristotélico não apenas causa final do uni-versal, mas ainda causa eficiente e mesmo seu criador, aparece já entre os comen-tadores gregos de Aristóteles. Simplício defende expressamente a causalidade eficiente divina através do resumo de vários argumentos retirados de seu profes-sor Amônio. Para Asclépio, o Estagirita ter-se-ia comprometido com a tese quando, na Metafísica 1075a11-15, ao traçar a analogia entre o universo e um exér-cito, afirma que, em ambos os casos, a organização dependeria das ordens do comandante. Sorabji, que agrupou e traduziu as passagens relevantes, sustenta estar em jogo, para esses pensadores, uma certa harmonização das filosofias de Platão e Aristóteles que teria influenciado os pensadores do século XIII27.

No que diz respeito a Tomás de Aquino, a origem de sua interpretação não viria apenas dos autores citados por Sorabji, mas também de outros pensado-res antigos que, como o próprio doutor comum relata, informariam ter Aristóte-les desenvolvido uma prova da existência divina baseada no ordenamento do mundo. Na Suma de Teologia, ao tratar da providência divina, Tomás lembra que a analogia entre a organização da natureza e de uma casa atesta, em ambos os ca-sos, a existência de alguém que tenha estabelecido a respectiva ordem. O argu-mento, segundo ele, seria de Aristóteles, como sustentaria Cícero no tratado Da Natureza dos Deuses28. Há dois aspectos curiosos nessa atribuição. De um lado, Cícero diz explicitamente tratar-se de um argumento de Cleantes e não de Aristó-teles, o que pareceria contar como um lapso de Tomás29. De outro, é verdade que Aristóteles desenvolve no De Philosophia, obra perdida e desconhecida do

27 Cf. Sorabji, R. Op. Cit., vol. 2, p. 162-174.

28 STh, I, q. 103, a. 1: “Unde ipse ordo certus rerum manifeste demonstrat gubernationem mundi, sicut si quis intraret domum bene ordinatam, ex ipsa domus ordinatione ordinatoris rationem perpenderet; ut, ab Aristotele dictum, Tullius introducit in libro de natura deorum.” Grifo nosso.

29 Cf. Cícero, Vom Wesen der Götter. Edição bilíngüe latim e alemão por O. Gigon e L. Straume-Zimmermann. Zurique: Artemis & Winkler, 1996, livro II, 15, p. 110 e 111. Cleantes, veja-se: Algra, K. “Stoic Theology”. In: Inwood, B. (ed.). The Cambridge

Compa-nion to the Stoics. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 153-178, especialmente

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pensador medieval, um argumento bastante semelhante ao relatado30 e que, aos

olhos de alguns intérpretes contemporâneos, seria a fonte de Cícero na passagem citada31. Mas como Tomás poderia ter feito a atribuição sem conhecer o De Philo-sophia?

No nosso entender, a atribuição do argumento a Aristóteles é perfeitamen-te explicável. Com efeito, o modo como, em outras passagens, Cícero refere-se às provas do Estagirita pode ter servido de indício. No primeiro livro do Da Nature-za dos Deuses, o orador romano critica o filósofo grego por ter esse “introduzido muita confusão” sobre a relação entre o mundo e a divindade, pois ora identifica-os, ora subordina o mundo a um outro ser responsável pelo movimento, ora ainda afirma que o fogo do céu é deus32. Já no segundo livro da mesma obra, o

tom é outro. Lá lemos três passagens nas quais Aristóteles é elogiado por ter defendido a existência dos deuses a partir do ordenamento do mundo33. Ora, ao

deparar-se com esse testemunho, Tomás certamente tomou consciência de que o

30 “O argumento que contemporaneamente é dito ser de Aristóteles é o seguinte: “Com efeito, se vermos uma casa cuidadosamente construída, com vestíbulos, pórticos, quartos para mulheres e para homens e com todas as demais dependências, teremos uma idéia do homem de arte que a construiu – pois não pensaremos que a casa foi feita sem arte e sem um fabricante. (...) Do mesmo modo, quem entrou neste mundo, como em uma casa ou uma grande cidade, que contemplou a rotação do céu contendo nele os planetas e os astros fixos movidos por um movimento invariável e idêntico e si, bem regrado e harmonioso, útil ao universo, com a terra ocupando o lugar intermediário, as camadas de água e de ar, os seres vivos mortais e imortais, a variedade de plantas e de frutos, essa pessoa sem dúvida concluirá que tudo isso não foi fabricado sem arte e que existiu e existe o fabricante desse universo.” A passagem, sem atribuição explícita a Aris-tóteles, encontra-se em Filon de Alexandria, Legum Allegoriae. Tradução francesa, introdu-ção e notas de C. Mondésert. Paris: Cerf, 1962, p. 227-229.

31 A sugestão, ainda que de modo implícito, é de Follon, no artigo já citado, p. 32-33. Em sentido diverso, veja-se capítulo VI do renomado livro de Jaeger, W. Aristote,

fonde-ments pour une histoire de son évolution. Traduction O. Sedeyn. l’Eclat: Cahors, 1997. Para esse

intérprete, Cícero estaria apenas reproduzindo uma coleção de provas já utilizada por Sextus Empiricus, cf. p. 142-143 e n. 40.

32 Cf. Cícero, Op. Cit., p. 32-33 33 Idem, p. 128, 130 e 168.

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problema da relação entre o mundo e a divindade no corpus aristotélico era mais complexo do que o sugeriam as obras a sua disposição e de que era possível atri-buir ao deus aristotélico a causalidade eficiente. Além disso, o vocabulário empre-gado por Cícero na prova em questão não deixa de ser revelador, pois é bastante próximo daquele utilizado por Aristóteles. A analogia entre a ordem de disposi-ção das peças de uma casa e das partes do universo reaparece, por exemplo, no início do tratado Partes dos Animais (640a15) e na Metafísica (1075a18-25). O exem-plo da casa é igualmente sugestivo. Ele é recorrente na obra do doutor comum, sendo por vezes aproximado de textos de Aristóteles. Podemos encontrá-lo des-de as primeiras linhas do Comentário à Ética a Nicômaco ondes-de a frase da Metafísica é explicitamente para estabelecer a distinção entre os domínios teórico e prático. Ou seja, não apenas a atribuição do argumento a Aristóteles parece compreensí-vel, como também merece destaque o fato de Tomás valer-se da autoridade de um autor antigo para indicar que, quando ele caracteriza o deus aristotélico como causa eficiente, sua interpretação está bem fundada em uma certa tradição.

Mas além das evidências indiretas mencionadas acima, o próprio corpus aristotélico apresenta argumentos em favor da causalidade eficiente divina. Com efeito, no Da Geração e Corrupção, II 10, 336b25-35, Aristóteles afirma ser a eterni-dade do movimento de geração uma decisão divina visando a garantir uma maior proximidade da natureza com o ser eterno. Eis o texto:

Como dissemos, a geração e a corrupção são contínuas não devido às causas mate-rial e eficiente, mas devido à causa final. Como mostramos, a natureza sempre mo-ve em direção ao mais nobre na medida do possímo-vel e do ser de cada coisa. E isso é assim porque o ente é melhor do que o não-ente, o ente verdadeiro melhor do que o ente não verdadeiro e o verdadeiro segundo o indivíduo, do que o verdadeiro se-gundo a espécie. Como é impossível para algum dentre esses entes ser absoluta-mente nobre, pois distam em demasia da causa primeira, nobre por essência, Deus completou-lhes a deficiência da contingência fazendo com que a geração seja con-tínua e tornando assim possível a eternidade para essas coisas.34

34 A tradução latina da passagem encontra-se em: Aristotelis, De Caelo, De Generatione et

Corruptione, Metereologicum, De Plantis, cum Averrois Cordubensis variis in eosdem commentariis.

Veneza apud Juntas, 1562, f° 386F-G: “Et hoc quod diximus quod generatio et corruptio sunt continuae non tamen sequitur ex causa materiali et agente, sed etiam ex causa finali.

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A causa eficiente presente entre os seres naturais somente atua se a causa final, o melhor, também o estiver. Mas para que ocorra o vínculo entre esses dois tipos de causalidade, Deus precisou completar a deficiência que os seres possuem em virtude de sua contingência, ou seja, Deus precisou, em algum momento, ter atuado como causa eficiente sobre os seres. A proximidade dessa passagem com a do De Anima que citamos anteriormente é patente. Em ambos os casos, a con-tinuidade da geração é exigida pela dignidade do fim. Lá, no entanto, o processo causal era explicado por uma tendência das plantas de tornarem-se idênticas ao eterno. Aqui, pela ação causal divina em vista do melhor. Baseado nessa passagem, Alexandre teria atribuído a Aristóteles, segundo Simplício e Averróis, a crença na providência divina35. Tomás não comentou a segunda parte do Da Geração e Corrup-ção. Seu comentário não foi além do primeiro livro. Mas ele a conhecia perfeitamen-te bem, como revela o seu emprego na Suma Contra os Gentios, III, 62.

Um segundo argumento encontra-se no De Caelo, I, 4. Buscando provar que não pode haver movimento contrário ao circular, Aristóteles oferece como uma das razões que “Deus e a natureza não fazem nada em vão”36. Em seu

co-mentário, Tomás escreve:

Quia iam visum est nobis quod natura semper movet ad nobilibus secundum quod potest in unoquoque et secundum quod potest recipere unumquodque et quia ens est melius quam non ens et ens verum quam non verum, et verum secundum individuum quam secundum speciem. Quamvis impossibile est aliquod ens in istis rebus esse simpliciter nobile, propter remotionem a prima causa, habens essentiam et nobilitatem quare Deus complevit diminutionem in istis contingentem hoc modo, secundum quod generatio facta est continua, quare esse potest perpetuum in istis rebus.” A edição leonina fornece o texto da translatio vetus. Todavia, Tomás não seguia essa tradução e sim um outro que era mais próximo da translatio nova. Sobre isso, Aristóteles, De generatione et corruptione: translatio vetus. Ed. J. Judycka. Leiden: Brill, 1986, p. xii.

35 Ross (Op. Cit., p. 190) filia-se à interpretação de Simplício e Averróis, mas o ponto é discutível, pois Alexandre limita-se a afirmar, no seu comentário ao De Anima, que deus confere ser aos inteligíveis. Sobre isso e para a tradução inglesa das passagens relevantes, veja-se: Sorabji, R. The Philosophy of the Commentators 200-600 ad: a sourcebook. Londres: Duckworth, 2004, vol 1, p. 102-103 e vol. 2, p. 165.

36 Texto latino em: De Caelo et Mundo, 271a33: “Deus autem et natura nihil frustra faciunt”. Em sentido contrário, veja-se o comentário de D. Ross, (idem, p. 81).

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Segue-se, portanto, que, se houvesse dois movimentos circulares contrários, neces-sariamente haveria algo em vão na natureza, o que é impossível. Tudo o que existe na natureza ou vem de Deus, como o são as primeiras coisas naturais, ou da natu-reza, como de uma causa segunda (por exemplo, os efeitos inferiores). Mas Deus nada faz em vão, pois, como Ele é agente por pensamento, Ele age em função de um fim. De maneira semelhante, a natureza nada faz em vão, porque ela age movi-da por Deus enquanto primeiro movente, movi-da mesma maneira como uma flecha não se move em vão na medida em que é lançada pelo arqueiro em um alvo. Segue-se, portanto, que nada na natureza é em vão.37

Segundo Tomás, a expressão “a natureza não faz nada em vão” somente é compreensível se ela fizer referência ao vínculo que existe entre a causalidade eficiente que atua no nível dos seres naturais (por exemplo, a forma) e o fim que determina o processo. Assim, a natureza age buscando o melhor porque movida por Deus que lhe ordenou em direção a um certo fim. Dito isso, Tomás pode voltar-se contra certos comentadores, que encontravam na filosofia aristotélica apenas argumentos de um Deus como causa final, e escrever:

Deve-se observar que Aristóteles põe aqui Deus como produzindo os corpos celes-tes e não apenas enquanto uma causa que age para um fim, como sustentaram al-guns.38

De maneira explícita, Tomás atribui a Aristóteles a tese de Deus como causa eficiente dos corpos celestes, ou seja, não apenas como causa final, mas também como causa eficiente. Foi ele longe demais? Talvez. Em todo o caso, como procuramos mostrar nesse artigo, a interpretação do doutor comum en-contra apoio na ambigüidade dos textos disponíveis a época, sejam eles

37 De Caelo et Mundo I, VIII: “Sic ergo patet quod, si sint duo motus circulares contrarii, necesse est aliquid esse frustra in natura. Sed quod hoc sit impossibile, probat sic. Omne quod est in natura, vel est a Deo, sicut primae res naturales; vel est a natura sicut a secunda causa, puta inferiores effectus. Sed Deus nihil facit frustra, quia, cum sit agens per intellectum, agit propter finem. Similiter etiam natura nihil facit frustra, quia agit sicut mota a Deo velut a primo movente; sicut sagitta non movetur frustra, inquantum emittitur a sagittante ad aliquid certum. Relinquitur ergo quod nihil in natura sit frustra.”

38 Idem: “Est autem attendendum quod Aristoteles hic ponit Deum esse factorem caelestium corporum, et non solum causam per modum finis, ut quidam dixerunt.”

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tos do próprio corpus aristotélico ou testemunhos de autores antigos. Além disso, aos olhos do pensador medieval, uma interpretação teológica da natureza, que introduza Deus unicamente como causa final do movimento, terá dificuldade para explicar a busca do fim último por seres desprovidos de faculdades represen-tacionais.

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