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NARRATIVAS E GRAFIAS: a biografia indígena e a antropologia

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Academic year: 2021

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CAPOEIRA

Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354 Vol. 4 | Nº. 1 | Ano 2018

Mariana da Costa A. Petroni UNILAB

NARRATIVAS E GRAFIAS: A BIOGRAFIA

INDÍGENA E A ANTROPOLOGIA

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RESUMO

Este texto procura, a partir de uma breve análise e revisão de biografias e autobiografias indígenas, refletir sobre as contribuições e questões que estas produções, induzidas ou não por antropólogos, indigenistas e missionários, entre outros, trazem ao pensamento antropológico, ou seja, problematizar, a partir da narrativa indígena, o ato de biografar para a escrita etnográfica.

PALAVRAS-CHAVE: Biografias; Povos indígenas; Narrativas.

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ABSTRACT

This text seeks, from a brief analysis and review of indigenous biographies and autobiographies, to reflect on the contributions and issues that these productions, induced or not by anthropologists, indigenists and missionaries, among others, bring to anthropological thinking, that is, to problematize, from the indigenous narrative, the act of biographing for ethnographic writing.

KEYWORDS: Biographies; Indigenus pleople; Narratives.

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br

capoeira.revista@gmail.com

Editores

Marcos Carvalho Lopes

marcosclopes@unilab.edu.br

Pedro Acosta-Leyva

leyva@unilab.edu.br

Editores do Dossiê

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NARRATIVAS E GRAFIAS: a biografia indígena e a

antropologia

Mariana da Costa A. Petroni1

Introdução

Alguns autores já se debruçaram sobre o desafio de pensar o status das narrativas biográficas na antropologia. Muitos deles fizeram isso a partir das dicotomias indivíduo/sociedade, subjetivo/objetivo, entre outras. Este artigo recupera alguns desses debates, mas procura pensar sobre o lugar da biografia na antropologia através das narrativas produzidas por e sobre os povos indígenas.

Narrativas como estas são, como aponta o antropólogo Oscar Calavia (2007), um campo ainda pouco explorado tanto pela etnologia brasileira como pelos próprios indígenas, e possuem uma relevância a ser considerada. Assim, por meio da apresentação de algumas biografias e autobiografias, este texto tem o objetivo de refletir sobre as contribuições e questões que a produção de narrativas sobre indígenas e por indígenas trazem ao pensamento antropológico, ou seja, problematizar as implicações do ato de biografar para a escrita etnográfica.

Narrativas indígenas

Em 2015, o xamã yanomami Davi Kopenawa publicou um livro com o antropólogo Bruce Albert que oferece ao leitor, por meio de uma narrativa autobiográfica, seu saber cosmológico, o relato do avanço dos brancos pela floresta amazônica acompanhados de epidemias, destruição e violência e sua odisseia para denunciar a destruição de seu povo. Organizado de maneira cronológica, o livro apresenta ao longo de seus vinte e quatro capítulos as narrativas do xamã e seus desenhos.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, no prefácio do mesmo livro, afirma que o texto é “ostensivamente sobre a trajetória existencial de Davi Kopenawa” (2015, p.12); enquanto que Bruce Albert inicia o prólogo dizendo que “este livro, ao mesmo tempo relato de vida, autoetnografia e manifesto cosmopolítico, convida a uma viagem pela história e pelo

1 Professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Possui graduação em Ciências

Sociais pela Universidade de São Paulo (2003), mestrado em Antropologia Social pelo Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social - México (2008) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (2015), onde realizou pesquisa sobre biografias indígenas.

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Narrativas e grafias: a biografia indígena e a antropologia

pensamento de um xamã yanomami” (2015, p.43). Observa-se que ambos os autores concordam em dizer que a narrativa de Kopenawa relata sua vida, sentido que pode ser observado na própria montagem do texto, que segue cronologicamente a vida do xamã indígena.

Assim como o livro de Davi Kopenawa, circula entre antropólogos, indigenistas, lideranças indígenas, entre outros, o livro inédito do também líder Álvaro Tukano. Nesse livro que, em 2011, me foi cedido pelo próprio autor via digital, o líder indígena narra tudo o que é necessário saber sobre o movimento indígena nacional.

Assim como Davi Kopenewa, Álvaro Tukano escreve um manifesto cosmopolítico no qual narra sua própria versão da história indígena do país, e para tanto descreve sua experiência de apropriação do conhecimento não indígena como meio de afirmação de sua indianidade, ou de sua diferença e de luta por seus direitos, ou seja, sua maneira de experienciar o mundo do outro a partir de seu próprio mundo.

Ambas as obras, recentemente escritas e divulgadas, permitem pensar o contraste existente entre a abundância de autobiografias e biografias indígenas na tradição etnológica norte-americana, a importância de alguns desses relatos na antropologia latino-americana, e sua produção, estudo e divulgação no Brasil.

As biografias ou autobiografias de indígenas norte-americanos, extensamente produzidas, conhecidas e estudadas pela antropologia, se apresentam em diversos formatos: livros completos, breves relatos, cartas e respostas a questionários. Elas foram utilizadas algumas vezes como meio de articulação do discurso indígena contra as autoridades, como foi o caso da narrativa produzida pelo Apache Gerônimo (1986), que buscava convencer o governo norte-americano a anular o exílio que pairava sobre seu povo. Outras vezes, como destaca Calavia Sáez (2007), essas narrativas foram elaboradas a partir de um processo civilizador e utilizadas como recurso por missionários, indigenistas e educadores. Durante o final do século XIX e o início do século XX, devido a seu êxito comercial, muitas delas foram publicadas como uma produção eminentemente jornalística que se baseava na elaboração de uma breve síntese biográfica acompanhada de um retrato fotográfico de distintos líderes indígenas2.

Um exemplo que deve ser citado é a entrevista feita por Clyde Kluckhohn ao Navaho Mr. Moustache, A Navajo personal document with a brief paretian analysis (1945). Ao realizar a

2 Entre elas se destacam a coleção Famous American Indians, editada pela Dood, Mead & Cia, e nesse mesmo tom a

Portraits of North American Indians, produzida pelo Instituto Smithsonian, lançado em 1852. Junto a essa produção,

foi desenvolvida, nos Estados Unidos, uma produção bibliográfica de orientação mais etnográfica onde se produziram algumas autobiografias indígenas de destaque, tais como a de Black Hawk (1854) e a do Nez Perce Joseph (1881) (PUJADAS, 2000).

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entrevista, o autor tinha como objetivo contar, a partir das palavras de Mr. Moustache, como vivem os índios do Novo México e do Arizona para os não indígenas.

A análise feita pela antropóloga Suely Kofes (2015) do texto de Clyde Kluckhohn mostra que o autor da entrevista, ao pedir ao narrador indígenas que contasse sua vida desde o começo conforme o fluxo de suas lembranças, “inaugura um uso da história de vida na pesquisa antropológica como um jogo de alteridade bastante sutil: a vida teria um começo (conforme a concepção cultural do antropólogo), mas esse espaço variaria (conforme concepções culturais distintas)” (2015, p.25).

Mr. Moustache, como sinaliza Kluckhohn (1945), não inicia seu relato pelo seu nascimento e nunca menciona o pai, portanto, segundo o antropólogo, sua narrativa se caracteriza mais como uma homilia filosófica do que uma história de vida. O navaho conta o que lhe parece mais significativo de sua vida, transformando a narrativa em um documento cultural que revela o olhar navaho sobre o que considera importante.

Se a biografia traz, como demonstra o exemplo acima citado, os jogos de alteridade, ela também nos ajuda a pensar a própria antropologia (KOFES, 2015, p.30). Ainda no terreno da antropologia norte-americana, a história de Ishi, publicada por Theodora Kroeber na década de 1960, evoca a violência dos encontros, muitos deles perpetrados pelos próprios antropólogos.

Ishi, um indígena Yahi, apareceu em Oroville, uma cidade localizada ao norte do estado da Califórnia, em 1911, fugindo da fome que matou toda sua família. Após uns dias dentro da delegacia da cidade, ele foi levado para o Museu de Antropologia da Universidade da Califórnia, em São Francisco, onde viveu até morrer em 1916, vítima de doenças pulmonares. Durante este período, Ishi ensinou aos antropólogos e ao público do museu as artes da caça. No dia 25 de março, após sua morte, seu cérebro foi removido, pesado e examinado. Seu corpo foi cremado e suas cinzas foram colocadas em um jarro.

Sua biografia foi escrita e publicada na década de 1960, pela esposa do antropólogo Alfred Kroeber, responsável pela estada de Ishi no Museu da Califórnia. O livro teve imensa popularidade e se transformou em peça de teatro, documentário etc. Mas foi em 1997, quando o Butte Country Native American Cultural Committee iniciou uma campanha pelo retorno dos restos de Ishi ao norte da Califórnia, que sua narrativa foi reinventada e estendida (KOFES, 2015).

Em 2000, seu cérebro foi devolvido pelo Instituto Smithsonian ao grupo que o reivindicava. A disputa sobre qual foi o papel da antropologia e, especialmente, de Alfred Kroeber sobre a vida Ishi e a utilização de seus restos, geraram novas narrativas sobre a vida do

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Narrativas e grafias: a biografia indígena e a antropologia

indígena, entre elas um livro escrito pelos filhos do antropólogo3, que, por meio da caracterização da relação de Ishi com Kroeber, buscavam defender seu pai.

A história de Ishi, para além de popularizar a história de vida de um nativo norte-americano, demonstra a maneira como se desenvolvem as conexões de diversas e distintas relações, ao mesmo tempo em diferentes desdobramentos narrativos, “revelando que conjuntos normativos são interpretados e acionados de diferentes maneiras, tendo em vista a experiência de pessoas-indivíduos” (KOFES, 2015, p.33)4.

Assim como na antropologia norte-americana, no contexto hispano-americano também podemos encontrar um grande número de narrativas biográficas. No México, por exemplo, as histórias de vida foram utilizadas pelos antropólogos como método etnográfico, principalmente no estudo das mudanças ocorridas na vida dos camponeses pobres e, entre eles, os indígenas. Um exemplo é o livro Juan Pérez Jolote: biografia de um tzotzil. Publicado em 1952 pelo antropólogo e indigenista Ricardo Pozas, a obra apresenta a narrativa em primeira pessoa de um indígena do estado de Chiapas, em que ele conta sua vida antes, durante e depois da Revolução Mexicana, assim como seu processo migratório e sua volta à cidade natal. Ainda que Ricardo Pozas se apresente como autor do livro, o texto é construído a partir das respostas de Pérez Jolote às entrevistas feitas com ele por Pozas.

Destaca-se ainda a (auto)biografia da líder Quiche Rigoberta Menchú (1983), escrita em parceria com a antropóloga Elizabeth Burgos-Debray. Nesta obra, de forma distinta das relações episódicas de Juan Pérez Jolote com a Revolução Mexicana de 1910, a revolução guatemalteca é efetivamente apresentada como um modelo de libertação.

Em sua narrativa, Rigoberta Menchú denuncia as violações aos direitos humanos de camponeses e indígenas na Guatemala como resultado dos trinta e seis anos de guerra civil que viveu o país. Porém, seu livro não ganhou destaque somente por seu caráter de denúncia, mas também pela discussão que suscitou a partir das conclusões formuladas pelo antropólogo norte-americano David Stoll (1999) ao desenvolver uma pesquisa junto às populações indígenas da Guatemala. O antropólogo afirma, a partir de seus estudos, que Rigoberta Menchú inventou e manipulou grande parte dos terríveis detalhes de sua história, utilizando-os como meio de criação de um discurso político que favorecesse os grupos guerrilheiros dos quais ela fazia parte. O debate pode ser amplo: Rigoberta Menchú narra os fatos de sua vida durante o conflito na Guatemala como se houvesse estado e presenciado todas as atrocidades que revela, mas,

3 KROEBER, K. & KROEBER, C. Ishi in three centuries. Nebraska: University of Nebraska Press. 2003.

4 Ainda no campo das biografias e de seus desdobramentos narrativos, mesmo distante do campo da antropologia

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sobretudo, se autorretrata como uma indígena camponesa analfabeta – como a maioria dos indígenas desse país – quando na verdade, foi educada em um internato religioso. Ela elabora, dessa maneira, um “eu narrativo que serve de metonímia de todo um povo” (CALAVIA SÁEZ, 2006, p.191), demonstrando que, para ela, estão associados outros valores ao texto que narra, a (auto)biografia que cria, focalizando outras histórias e não somente a sua.

O texto de Rigoberta Menchú também demonstra que as autobiografias indígenas, além de estarem associadas a valores distintos daqueles produzidos por não indígenas, como já demonstrado, não são individuais, mas também não são propriamente coletivas. Elas são construídas, muitas vezes, a partir de uma correlação específica entre um discurso individualizado e um grupo que descarta um sujeito separado de suas relações.

No Brasil são poucos os textos biográficos produzidos sobre ou por indígenas. Entre os que ganharam destaque no debate antropológico está, por exemplo, o escrito por Herbert Baldus (1979) sobre o Bororo Tiago Marques Aipobureu, publicado em 1937 e analisado em 1946 pelo sociólogo Florestan Fernandes, no texto Tiago Marques Aipobureu: um bororo marginal, no qual revela a vida do indígena e evidencia seus “desajustes” culturais e sociais.

Nos últimos anos, porém, esse cenário vem se transformando e a análise e publicação de narrativas biográficas vêm ganhando destaque na literatura antropológica (OAKDALE & COURSE, 2014; PELLEGRINI, 2008; CALAVIA SÁEZ, 2007; OAKDALE, 2005; BASSO, 1995). Esses relatos, coletados de diferentes maneiras e em ocasiões distintas, demonstram a diversidade de conteúdo e estrutura das narrativas indígenas existentes. Evidencia-se, a partir do número de trabalhos registrados, a importância da oralidade para o conhecimento biográfico indígena.

Entre os trabalhos mais recentes, destaca-se o livro publicado por Robin Wright (2013) no qual os significados do conhecimento e do poder para o povo Baniwa são explorados a partir da biografia do pajé Mandu da Silva. A particularidade dessa obra está em que a ideia de registrar a biografia de Mandu foi de sua filha Ercilia da Silva, sendo a única narrativa gravada de um pajé, considerado um sábio pelos Baniwa.

Com o aumento das publicações e consequentemente do interesse pelas narrativas biográficas indígenas, novas abordagens antropológicas vêm assinalando a relação existente entre gêneros narrativos e narrativa da história e demonstram que as sociedades não diferem entre si apenas na forma ou na organização de suas instituições e costumes, mas também quanto aos processos interpretativos da experiência humana.

A coletânea organizada por Suzanne Oakdale e Magnus Course (2014) reúne a análise de diversas narrativas (auto)biográficas coletadas em diversas comunidades indígenas de países

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Narrativas e grafias: a biografia indígena e a antropologia

como Brasil, Chile, Equador e Peru. Através de suas análises os autores da coletânea trazem a discussão sobre a conexão existente entre as experiência de transformação sofridas pelas comunidades indígenas e suas narrativas, contribuindo dessa maneira para a reflexão sobre as mudanças levadas a cabo a partir das relações entre indígenas e não indígenas nesses países.

Os textos reunidos nesse livro sublinham a importância de se perceber a maneira pela qual as sociedades indígenas significam sua experiência através de seus relatos, e através de suas narrativas (auto)biográficas evidenciam suas relações com o passado, o presente e o futuro.

O texto, apresentado nesse livro por Hanne Veber (2014), assinala que as narrativas sobre o passado divergem segundo o gênero cultural e o contexto em que são expressadas: o mesmo fato histórico pode ter mais de uma versão devido à diferença de pontos de vista de seus narradores. Suas observações poderiam ser utilizadas para a interpretação da narrativa de Rigoberta Menchú, mas a autora utiliza autobiografias asháninka para demonstrar como podemos observar e pensar mudanças e continuidades em contextos de colonização, atentando para a maneira pela qual indígenas e não indígenas, que se encontram em intensa inteiração, se reconhecem como atores de tais processos.

As observações de Veber (2014) nos permitem regressar às duas narrativas citadas no início deste artigo, produzidas por Davi Kopenawa (2015), o xamã e líder Yanomami, e a do líder indígena Álvaro Tukano (2011). Ambos os textos narram, cada um à sua maneira, a experiência de seus autores no contexto de transformação das relações dos povos indígenas e a sociedade nacional e apresentam questões importantes para a compreensão da trajetória desses sujeitos, das relações e associações estabelecidas em diferentes contextos interétnicos e dos processos sociais e de alteridade que caracterizam o cenário da questão indígena no país.

O livro de Álvaro Tukano5, já revisado com maior detalhe em trabalhos anteriores6, conta sobre a origem mítica do povo Tukano, sua experiência escolar, e a vida de seus pais e avós. Apresenta trechos comentados de relatos de viajantes à região do rio Negro, localizada no norte amazônico. Contudo, o autor percorre principalmente sua trajetória política desde sua inserção inicial no movimento indígena nacional, através da participação nas Assembleias de Chefes Indígenas organizadas pela Igreja Católica, em 1979; o momento em que foi nomeado vice-presidente da União das Nações Indígenas, em 1985; sua participação no conflito e negociação

5 Álvaro Tukano me entregou, durante a realização da minha pesquisa de doutorado, um arquivo digital no qual

consta um livro de sua autoria, sem título, e que possui mais de 400 páginas, onde o autor reúne, em nove capítulos, textos diversos escritos ao longo de sua vida. Apesar desse livro ser inédito, ele não é desconhecido, já que foi distribuído pelo próprio Álvaro Tukano, em diferentes versões, entre antropólogos, líderes indígenas, políticos e indigenistas.

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com o governo federal e as mineradoras na região do alto rio Negro e o Projeto Calha Norte, no início da década de 1990; e a fundação da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro.

Por meio de sua narrativa, Álvaro Tukano apresenta a possibilidade de pensar a história da emergência do movimento indígena nacional, não apenas a partir da reivindicação da presença e da agência indígena na arena política nacional, mas a partir de seu próprio ponto de vista. Por meio da etnografia de sua obra, ou seja, a análise do que é narrado, quais relações são reveladas pelo autor e como as associações estabelecidas com os demais atores ao longo do texto explicitam processos sociais e de alteridade que compõem o campo da questão indígena no país, procurei evidenciar que Álvaro Tukano, ao escrever a história do movimento indígena nacional, descreve sua experiência de apropriação dos códigos impostos – a escrita – como meio de afirmação de suas diferenças e de luta pelos direitos indígenas.

Neste sentido explorei a narrativa de Álvaro Tukano e aproximei minha leitura da leitura feita pelo antropólogo Geraldo Andrello (2010) da coleção de livros viabilizada pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, “Narradores Indígenas do Alto Rio Negro”, em que diversos autores indígenas publicaram, a partir da tradução de narrativas feitas por eles mesmos, versões de mitos e histórias locais.

Geraldo Andrello demonstra em seu texto que os livros narrados, traduzidos e escritos pelos indígenas do Rio Negro representam a combinação entre a riqueza indígena herdada dos antepassados com novas capacidades anexadas a partir de processos de colonização. O antropólogo chama a atenção para a busca indígena pela divulgação de sua cultura a partir das possibilidades criadas pelas publicações e, assim, estabelecer novas relações entre os grupos indígenas da região e, também, fora dela.

Segundo o mesmo autor, por meio da circulação desses livros sobre mitologia indígena, representam-se a materialização de falas cerimoniais, apresentando, assim, um novo equilíbrio, visto que possibilitam uma nova visibilidade ao que antes era alcançado somente por meio dos rituais. À medida que circulam, os livros passam a ter o mesmo potencial da narrativa mítica durante os rituais. Os livros podem, assim, ser caracterizados desde seu aspecto relacional, ou desde a agência que exercem no contexto das relações sociais.

Diante disso, Andrello afirma que esses livros expressam um projeto próprio de modernidade indígena, ou explicitam os processos de civilização e catequese pelos quais passaram ao longo dos anos, já que foi por meio deles que estabeleceram suas relações com os

6 PETRONI, Mariana C. A. Índios em Movimento. A Trajetória política de Álvaro Tukano. Tese (Doutorado em

Antropologia Social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas: UNICAMP. 2015.

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Narrativas e grafias: a biografia indígena e a antropologia

brancos, transformaram sua herança tradicional e, ao mesmo tempo, adotaram outros objetos como o papel, o livro e o dinheiro, tornando, através destes, “viável seu mundo vivido”.

No projeto antes mencionado, Álvaro Tukano, a partir da adoção do papel e da escrita como meio de expressão, ou de seu próprio processo de transformação, constrói a narrativa por meio da qual conta suas diversas relações com os não indígenas. Essa especificidade dá à sua narrativa uma complexidade política original que se distancia da simplicidade e da inaptidão construída tanto pela retórica indigenista do Estado quanto pelos seus aliados. Seu texto revela que existe, entre os povos indígenas, uma variedade de abordagens sobre o contato que revelam “um processo político-cultural de adaptação criativo que gera as condições de possibilidades de um campo de negociação interétnica em que o discurso colonial possa ser contornado ou subvertido” (ALBERT, 2000, p.241).

Destaco, portanto, a intenção de Álvaro Tukano de preservar a história contada pelos mais velhos e estabelecer seu mapa de relações locais. Mas, para além desse aspecto, enfatizo que a escrita de sua trajetória política se apresenta como um recurso inovador, um recurso efetivo para inserir de maneira convincente, dentro da história contemporânea, os povos indígenas.

Sua narrativa, sua versão da história, oferece ao leitor uma contra-descrição de nossa cosmopolítica. Faz variar a verdade demonstrando a verdade da variação (VIVEIROS DE CASTRO, 2012). Seu livro mostra que não se trata mais de emancipar o nativo, mas, como afirma Viveiros de Castro, de emancipar a antropologia de sua própria história e pensar com os nativos.

Ao pensar a antropologia ocidental via a antropologia de Álvaro Tukano, nos deparamos com a concepção da história como um processo de “transformação”, ou um processo por meio do qual o autor adquire as capacidades dos não indígenas para tornar-se um porta-voz de seu povo e modificar a desigualdade que caracteriza a relação dos indígenas com os brancos. Sem ser um processo linear e evolutivo, a perspectiva de Álvaro Tukano coloca o desafio de se pensar a história como um processo de modificação, transformação que não tem o objetivo de transformar o indígena em branco.

Biografia e Antropologia

Outro trabalho que ganhou destaque na comunidade antropológica é o texto biográfico publicado pelo porta-voz e xamã Davi Kopenawa e pelo antropólogo Bruce Albert: A Queda do

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Kopenawa de tornar sua mensagem acessível ao público ocidental e, como o livro de Álvaro Tukano, também pode ser pensado como outra maneira de pensar a história.

O texto foi construído a partir das entrevistas realizadas em língua yanomami por Bruce Albert, que as traduziu para o francês em mais de mil páginas e posteriormente, acompanhado por Davi Kopenawa, editou, escolheu, recortou e formatou o texto. Essas conversas foram realizadas ao longo dos anos e em diversas ocasiões, e se encontram nas 440 páginas do livro.

Porém, a relação de coautoria existente entre Bruce Albert e Davi Kopenawa não se traduz apenas na formatação e edição das entrevistas. As notas explicativas, que se encontram ao final do livro, revelam a relação dos autores, assim como suas intenções. As notas, os anexos escritos por Bruce Albert sobre diferentes aspectos referentes aos Yanomami – a geografia da região, um glossário, fotografias – adicionam um entendimento mais profundo sobre a vida yanomami, mas não interrompem as palavras do líder indígena.

As palavras de Davi Kopenawa mostram que eles pensam, interpretam e teorizam sobre nós, ou ainda, como afirma Bruce Albert (2015), criam “uma espécie de contra-antropologia histórica do mundo branco”. Pensar suas implicações para a ciência antropológica sugere, como afirma a socióloga aymara Silvia Rivera Cusicanqui (2010), ler o conhecimento do outro por meio de deslocamentos permanentes, o que significa compreender seu projeto de modernidade, e com isso questionar e problematizar suas implicações para a escrita etnográfica ou, tema central desse artigo, o ato de biografar.

Nesse sentido, trata-se, como aponta Kofes (2015), de compreender a biografia como a expressão da experiência de seu narrador. Não a experiência entendida como o imediatamente vivido e observado, mas a narrativa como unidade estrutural onde se expressam relações, conexões, movimentos e reflexões do sujeito, dando forma e temporalidade à experiência.

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Narrativas e grafias: a biografia indígena e a antropologia

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