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O que nos dizem os vídeos da Rede Coque Vive?

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Academic year: 2021

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Centro de Artes e Comunicação

Programa de pós-graduação em Comunicação Mestrado em Comunicação

O QUE NOS DIZEM OS VÍDEOS DA REDE COQUE VIVE?

Vinícius Andrade de Oliveira

Recife 2013

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O QUE NOS DIZEM OS VÍDEOS DA REDE COQUE VIVE?

Dissertação apresentada por Vinícius Andrade de Oliveira à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco como exigência para obtenção do grau de mestre em comunicação.

Orientadora: Cristina Teixeira Vieira de Melo

Recife 2013

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Catalogação na fonte Andréa Marinho, CRB4-1667

O48q Oliveira, Vinícius Andrade de

O que nos dizem os vídeos da Rede Coque Vive? / Vinícius Andrade de Oliveira. – Recife: O Autor, 2013.

82p.: il.: fig.; 30 cm.

Orientador: Cristina Teixeira Vieira de Melo.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, CAC.Comunicação, 2013.

Inclui Referências.

1. Comunicação. 2. Gravações de Vídeo. 3. Representação Cinematográfica. 4. Voz. I. Melo, Cristina Teixeira Vieira de (Orientador). II. Titulo.

302.2 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2013-76)

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Autor do Trabalho: Vinícius Andrade de Oliveira

Título: O que nos dizem os vídeos da Rede Coque Vive?

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação da Professora Dra. Cristina Teixeira Vieira de Melo

Banca Examinadora:

________________________________ Cristina Teixeira Vieira de Melo _________________________________ Yvana Carla Fechine de Brito __________________________________ Alexandre Simão de Freitas

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câmeras, minha sincera admiração.

À Cris, pela contagiosa leveza, respeito, generosidade, apoio e tantas outras belezas que me fazem terminar essa pesquisa encantado com a nossa amizade. Por ser, para além de acadêmica, dançarina.

A João Neto, meu irmão, pela honra absoluta de compartilhar seu sangue, suas iluminações e suas loucuras.

A meus pais: nada seria possível sem vocês. Obrigado pelo cuidado e por abençoar minhas escolhas.

A Paula e Jeferson, casal querido cujo amor sempre me inspira.

A Tia Lala, Tio Joãozito, Pedro, Tia Nora, Angélica, Paulo e Nice por terem oferecido uma convivência livre e amorosa que me possibilitou iniciar uma nova vida em Recife. Aos meus avós, pela preciosa existência, a Tio Sandro, querido poeta de quem sou fã, e a toda minha família.

A todos do Coque Vive, cujo acolhimento e companheirismo fizeram com que a minha sensação de ser um estrangeiro fizesse cada vez menos sentido. Escrevemos juntos esse trabalho.

A todos do Neimfa e do MABI, em especial a Alexandre, Berg e Sandokan. A todos do CEBB, por estarmos juntos nas aspirações mais elevadas.

A todos os meus amigos do Imbuí: nesse trabalho, ecoa a voz feliz e perpétua de vocês. Peu, Thiago, Diego, Jonathan, Léo, Matheus e todos os outros, tamo junto! Também a Euro, Gregório, Felipe e Argôlo, bróders do peito. Vim da Bahia e algum dia eu volto pra lá!

À Poly, pelo amor, carinho e cumplicidade compartilhados. Ao Lama Samten, guia para toda a vida.

À Ligia Bittencourt, por tornar tão elevado o meu renascimento em terras pernambucanas.

A Roberto Jaffier, malandro querido, coração de ouro, herdeiro de Glauber, pela parceria absolutamente indispensável.

A Gabi e Caio, companheiros essenciais.

A João Albuquerque, amigo que tem ensinado com maestria como posso cuidar melhor de mim mesmo.

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Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. (...) É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Gilles Deleuze

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O presente trabalho apresenta uma investigação acerca da produção audiovisual da Rede Coque Vive, formada pelo Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA), o Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI) e estudantes da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Uma das frentes de ação dessa rede, formada em 2006 com o intuito de problematizar os discursos midiáticos que davam conta de um Coque puramente violento, é a produção de vídeos que versam sobre a vida no bairro, o estigma sofrido por ele, os processos de transformação de seu espaço, entre outros temas. Nossa trajetória de pesquisa analisa como essas questões são abordadas nos vídeos realizados colaborativamente entre esses atores sociais, identificando, em primeiro lugar, as vozes presentes no interior dos filmes para, posteriormente, evidenciar como essas vozes dialogam com vozes culturais outras, sejam aquelas pertencentes aos gêneros audiovisuais, sejam aquelas veiculadas em jornais impressos, propagandas, ou materiais discursivos da própria Rede Coque Vive. O corpus é formado pelos vídeos “Desclassificados” (2008), “A linha, a maré e a terra” (2008), “Centenário do Sul”, (2009) e “.Zip” (2011) e, além do processo de investigação das vozes que compõem os vídeos, a pesquisa procura observar as principais recorrências e descontinuidades dessa produção no intuito de promover uma visão geral a respeito da maneira como o audiovisual tem sido usado pela Rede Coque Vive no debate e entendimento de questões políticas mais amplas.

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This research presents an investigation about the audiovisual production by the Group Coque Vive, composed by the ‘Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis’ (NEIMFA), the Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis’ (MABI) e students from the ‘Universidade Federal de Pernambuco’ (UFPE). One of the actions of this Group — created in 2006 and having as its main goal to raise questions towards the media discourse that couldn’t but emulate a purely violent image of the Coque — is the production of videos dealing about the life in the neighborhood, their stigma as a violent location, the process of transformation of its space, among other things. Our research analyzes how these questions are addressed on the videos collaboratively produced by these social actors, identifying, in the first place, the voices within the videos, to, subsequently, bring to light how these voices are related with other cultural ones: those ones belonging inside the film genres, the ones conveyed in newspapers, advertisement, or the discourse within the material produced by the Group Coque Vive. The corpus is composed by the vídeos “Desclassificados” (2008), “A linha, a maré e a terra” (2008), “Centenário do Sul”, (2009) e “.Zip” (2011), and, in addition to the process of investigation of the voices generated by the videos, this research seeks to find out the most important recurrences and discontinuities of this production, in order to foment a general vision about the way that the audiovisual is being used by the Group Coque Vive inside the debate and the understating of broader political issues.

KEYWORDS: Group Coque Vive, video, Coque neighborhood, audiovisual, voice, representation.

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Figura 1 Cena do filme “Uma visão de fora”... 30

Figura 2 Ridivaldo Procópio, membro do MABI, em cena de “Desclassificados”... 32

Figura 3 Moradora do Coque em cena de “Desclassificados”... 36

Figura 4 Aurino Lima no filme “Desclassificados”... 40

Figura 5 Gutemberg Lima no filme “A Linha, a maré e a terra”...45

Figura 6 Letreiro do filme “A linha, a maré e a terra”... 46

Figura 7 Dona Paulina, no filme “A linha, a maré e a terra”... 49

Figura 8 Da esquerda para a direita, Seu Xavier, Dona Paulina e Rafael Felipe... 50

Figura 9 Trecho de “Centenário do Sul” - encontro de mulheres na Biblioteca Popular do Coque... 56

Figura 10 Vânia no filme “Centenário do Sul”... 58

Figura 11 Maria José, em close-up, no filme “Centenário do Sul”... 61

Figura 12 Filha de Vânia aponta fotografia da mãe no filme “Centenário do Sul”... 62

Figura 13 Prazeres encontra Matias no filme “Centenário do Sul”... 63

Figura 14 Abertura do filme “.Zip”... 68

Figura 15 Trecho do filme “.Zip” em que criança chega no Coque... 69

Figura 16 Cena final do filme “.Zip”... 71

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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS... 10

2. FUNDAMENTAÇÃO E METODOLOGIA... 19

3. “DESCLASSIFICADOS”... 29

4. “A LINHA, A MARÉ E A TERRA”... 43

5. “CENTENÁRIO DO SUL”... 55

6. “.ZIP”... 66

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS... 76

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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Rede Coque Vive define-se pela articulação entre três atores sociais cujo espaço de atuação é o Coque, bairro pobre localizado na região central da cidade do Recife. Esses atores são o Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA), instituição que coordena atividades de formação humana, o Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI), coletivo de jovens moradores do Coque ligado, principalmente, à música e à produção de fanzines, e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na forma de um projeto de extensão que reúne estudantes e professores dos departamentos de comunicação, ciências sociais e educação.

O conjunto de ações - cursos de formação, seminários, oficinas de fotografia, iniciativas em novas mídias, livros, entre outras - que a Rede tem realizado no bairro desde 2006, quando dos primeiros contatos entre os três atores mencionados, esteve caminhando constantemente ao lado de pesquisas no campo acadêmico que buscaram refletir sobre o sentido dessas ações, suas problemáticas, seus eventuais desdobramentos, suas possíveis melhoras. Nos últimos anos, a experiência da Rede Coque Vive funcionou ao mesmo tempo como um campo de experiências afetivas e vínculos sociais e como propulsora de reflexões sobre o seu próprio trabalho, sobre o Coque e a cidade.

Talvez possamos classificar os trabalhos acadêmicos que surgiram no âmbito dessa rede em duas grandes categorias: aqueles que tematizaram diretamente a comunidade do Coque e aqueles que tematizaram especificamente a Rede Coque Vive. Uma diferença sutil, mas muito importante para os nossos objetivos. Consideramos que a pesquisa que aqui se inicia pode ser enquadrada na segunda categoria, por interessar-se pela forma como essa Rede faz a mediação entre o nosso olhar e a vida no bairro. A que se propõe, então, o presente trabalho? Qual é esse elemento mediador que constitui o objeto de nossas análises?

Muito do que foi produzido no âmbito da Rede Coque Vive durante os últimos anos teve como motivo, ainda que apenas em seu ponto de partida, a necessidade de discutir a imagem social do Coque. A questão da visibilidade, porém, não é recente e aponta para o próprio processo de formação histórica do local. Francisco Ludermir nos mostra, em seu trabalho de conclusão de curso que se tornou livro sob o expressivo título “Dos Alagados à Especulação Imobiliária – Fragmentos da Luta pela Terra na Comunidade do Coque”, que assim como aconteceu com outras regiões de mangue que se avizinhavam do Rio Capibaribe

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e que, por isso, eram consideradas menos propícias à construção de habitações dignas, a região do Coque foi sendo uma alternativa de habitação para aqueles que não podiam ocupar locais salubres e bem estruturados, pessoas pobres que vinham, por exemplo, das regiões da seca ou do plantio da cana.

Explica ele:

Com o crescimento populacional da cidade, novos habitantes pobres, migrantes de outras regiões de Pernambuco, se viram, cada vez mais, impossibilitados de ocupar terrenos salubres e infraestruturados no Recife. Como último recurso, recorreram à invasão de terrenos. As invasões e habitações populares ocuparam os mangues e alagados e subiram os morros que circundam o Recife. A relação pobre-alagados foi sendo historicamente construída. Com o passar do tempo, esses moradores passavam a consolidar o solo artesanalmente. Pegavam a lama e botavam em caixas de verdura para secar. Parafraseando o documento da URB, as áreas como o Coque e Brasília Teimosa foram tomadas das águas pelo aterro paciente e corajoso dos seus moradores. (FERREIRA, 2012, p. 34-35)

Entretanto, quando as terras consideradas habitáveis começaram a diminuir e o solo aonde a população pobre ia construindo aqui e ali seus mocambos passou a ser mais firme, os olhares das classes com mais propriedades se voltaram para essas regiões que outrora eram tidas como sem valor. A questão da terra nas áreas de mangue passou a ser, portanto, razão de severas lutas. À ação do governo e dos foreiros1 – isso por volta do final do século XIX e início do século XX – os moradores dessas regiões responderam também com organização, dando início a uma história de resistência que, para o geógrafo Jan Bitoun, citado em “Dos Alagados à especulação imobiliária”, inaugura os embates contemporâneos em torno da questão territorial. “Em contrapartida à força crescente de expulsão, a luta desses mocambeiros, moradores dos Alagados, aos poucos foi se transformando em uma luta política consistente, nas décadas de 1970 e 1980” (Ibid, p. 42).

No período da ditadura militar, pôde-se observar uma intensificação da repressão por parte do governo, mas que resultou simultaneamente numa maior organização dos movimentos da sociedade civil em torno das lutas pela posse da terra e reivindicações para melhorias nas condições sociais dos bairros. Seguindo ainda os preciosos fragmentos organizados por Francisco Ludermir (2012), nos deparamos com uma campanha difamatória orquestrada pelo governo através da imprensa que tinha o bairro como alvo. O objetivo era enfraquecer politicamente aqueles que movimentavam as lutas políticas para que o Estado

1 Pessoas que compravam grandes terras da Marinha sem adquirir a plena propriedade delas e sublocavam essas terras visando o lucro (Ibid, p. 34)

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utilizasse a área segundo os seus próprios interesses. Uma primeira investida se deu depois da cheia de 1971, uma segunda com a construção da linha de metrô – que acabou deslocando muitos moradores - e uma terceira com a tentativa de construir um Shopping Center no bairro, já em 1985, ano marcado também pela chamada reabertura democrática do país.

Outros capítulos mais recentes mereceriam compor esse mosaico de lutas construído por Francisco Ludermir (2012) e acompanhado brevemente por nós com propósito introdutório, mas acreditamos que já foi relatado o suficiente para que percebamos que a Rede Coque Vive não surge de uma casualidade histórica. Aliás, os últimos parágrafos dos “fragmentos da luta pela terra na comunidade do Coque”, fragmentos que acabam sendo também sobre outras lutas políticas travadas na região e na cidade, dão conta justamente do surgimento da Rede Coque Vive, situando-a numa linha de continuidade com esses outros movimentos e lutas. Ao que gostaríamos de acrescentar algumas considerações a respeito do(s) lugar(es) que o audiovisual vem ocupando nesse panorama.

Um dos episódios do ano de 1985 narrados em “Dos Alagados à Especulação Imobiliária” é o vídeo produzido pela TV Viva a propósito da construção de um Shopping Center na região do Coque, projeto que mencionamos anteriormente. Nele, moradores são entrevistados sobre as possíveis vantagens ou desvantagens da chegada do empreendimento no local; em seguida, já em frente à Câmara de Vereadores, a reportagem da TV Viva entrevista dois políticos, vereadores àquela época, Pedro Eurico e Braz Batista, cada um defendendo um ponto de vista diferente acerca da construção do shopping. A existência desse vídeo não é uma raridade, como nos explica Cláudio Bezerra:

Na década de 80, o vídeo foi um suporte de comunicação amplamente utilizado pelos movimentos sociais brasileiros. Nas ruas, nas praças, nos sindicatos e associações de moradores, ele estava presente, no telão ou no aparelho de TV, mostrando a realidade dos setores excluídos e discriminados da população, ainda pouco divulgada nos mass media, em especial, a televisão. (2001, p. 7)

Bezerra nos mostra, em seu estudo sobre a linguagem dos vídeos populares em Pernambuco na década de 1980, as diversas maneiras que o audiovisual dialogou de maneira aberta com as questões políticas em debate na sociedade de cada tempo, desde o cinema soviético ao cinema novo brasileiro, passando pelo cinema veritè2 e outras cinematografias. O autor contextualiza

2 Estilo do documentário criado por Jean Rouch e Edgar Morin que se baseia na interação entre cineasta e personagem

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a análise de seu corpus – um programa da TV Viva/Centro Cultural Luiz Freire e o outro do Centro de Organização Comunitária de Chão de Estrelas – destacando que o aspecto propriamente tecnológico, como a invenção de equipamentos que gravavam som e imagem sincronicamente nos anos 50/60, e a posterior consolidação do vídeo, esteve a “serviço” do uso político do audiovisual, tendo os diversos movimentos se apropriado dessas ferramentas para propor, de diferentes maneiras, discussões sobre as suas visões políticas de mundo.

O autor mostra, assim como Robert Stam (2009) que tais processos podem ser igualmente vistos como integrantes de dinâmicas mais globais, ligadas a uma reconfiguração das políticas de identidade acerca de gênero, raça e sexualidade em todo mundo. No âmbito internacional, a cobrança sobre a histórica disseminação de uma forma de vida centrada no cidadão médio europeu foi um dos alvos das críticas, mas as lutas políticas se materializaram esteticamente de maneiras múltiplas3.

Retornando ao contexto brasileiro, Consuelo Lins e Claudia Mesquita (2008) enfatizam a transição dos 80 para o 90 como um momento em que o documentário, associado às lutas políticas dos movimentos da sociedade civil, manteve viva a cena política com outros olhares que não eram acolhidos por janelas hegemônicas de exibição como a televisão.

Diferentemente do cinema brasileiro de ficção (sobretudo em longa-metragem) a produção documental não ‘sucumbiu’ à crise que marcou a passagem dos anos 80 para os anos 90, com a extinção da Embrafilme, estatal produtora e distribuidora de cinema, pelo governo Collor de Mello. Na trilha iniciada nos anos 80, seguiu seu destino de gênero “menor”: realizado sobretudo em vídeo, manteve fortes ligações com os movimentos sociais que surgiram ou reconquistaram espaço com a redemocratização do país, restrito à pouca visibilidade fora dos circuito dos festivais, associações, sindicatos e TVs comunitárias – apartado, enfim, das principais janelas de exibição (LINS; MESQUITA, 2008, p. 11)

Alexandre Figuerôa também nos dá pistas importantes de como a prática audiovisual se manteve conectada a lutas políticas locais, dessa vez na passagem dos anos 90 para os 2000, período em que surge, como vimos, a Rede Coque Vive. Afirma o autor:

Em alguns estados estruturaram-se pólos de produção, tentativa de quebrar a hegemonia do Rio de Janeiro e São Paulo na captação dos recursos, e tanto governos estaduais quanto municipais criaram mecanismos de apoio à produção de filmes e vídeos por meio de

3 Ver capítulo “Como os documentários têm tratado as questões sociais e políticas?”, da “Introdução ao documentário” de Bill Nichols

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concursos de roteiros ou leis de renúncia fiscal. Agregadas à nova institucionalização dos mecanismos de apoio à produção audiovisual desenvolvidos pelo governo federal, emergiram as ideologias da responsabilidade social, da solidariedade, das políticas afirmativas, do voluntariado, da cidadania, enfim, da valorização do terceiro setor (FIGUERÔA, 2006, p. 8).

Não cessamos de ver surgir a referência ao uso do audiovisual como alternativa política à grande mídia, o que constitui também um movimento que está na própria base do nascimento da Rede Coque Vive. A discussão a respeito da imagem social do bairro é atravessada pelo entendimento da contribuição da grande mídia na construção do Coque como local a ser evitado, reduto de bandidos, morada da morte. As primeiras ações da Rede concentraram esforços no sentido de combater esse estigma que, como vimos, vem de muito tempo. A iniciativa que, se considera, inaugura a Rede é justamente o Jornal Coque, escrito de maneira colaborativa entre estudantes de jornalismo da UFPE e jovens moradores do Coque. Retomando Lins e Mesquita (2008) - numa análise do documentário “O prisioneiro da grade de ferro” (2004) que se revela útil à nossa contextualização:

O prisioneiro da grade de ferro pode ser visto também numa linha de continuidade em relação a projetos que surgiram na esteira do vídeo popular e da democratização das câmeras de vídeo no decorrer dos anos 80 e 90 no Brasil. O projeto de elaborar “de dentro” as identidades dos grupos sociais retratados, em oposição ao estigma, de dar-lhes visibilidade de uma perspectiva que se propõe ‘interna’, está presente em muitas iniciativas ligadas aos movimentos populares. A intensificação do uso dos meios audiovisuais provocou debates sobre identidade social e étnica de grupos minoritários, a ponto de os próprios ‘sujeitos da experiência’, o ‘outro’ das produções documentais, engendrarem processos de constituição de auto-representações, geralmente em parceria com associações e organizações não-governamentais. (LINS; MESQUITA, 2008, p. 40)

No caso específico da Rede Coque Vive, temos uma composição muito singular de atores sociais na constituição desse lugar diferenciado de produção. Essa composição que, na verdade, tem sido possível também em outros locais do país, sobretudo no contexto social recente dos bairros periféricos das metrópoles brasileiras, é investigada por Ivana Bentes (2010), que – com interesse na produção sensível engendrada nesses novos lugares – descreve articulações similares à Rede Coque Vive da seguinte maneira:

Em meio a crises diversas, esses territórios são percebidos como laboratórios de subjetivação, laboratórios de uma outra experiência de cidade que

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funciona paralelamente, em parceria ou mesmo contra o Estado, funcionando na tensão entre uma nova produção cultural, entre “economias substitutas” e o estado de exceção a que são submetidos (como as favelas e guetos globais). (Ibid., p. 51)

Bentes nomeia esses territórios mistos de “reservas de mundo” (2010, p. 51), onde uma nova produção do sensível torna-se propícia, onde novas formas de ocupar o mundo e experienciar o seu tempo são experimentadas. Sem nos apegarmos à definição utilizada pela autora, o que importa é observar que as relações que se constituem, por exemplo, a partir da TV Morrinho – foco de análise em seu ensaio - caracteriza um “fora de lugar” da produção da sociedade capitalista que permite aos sujeitos envolvidos uma nova forma de experienciar e pensar o ambiente da cidade. Bentes (2010) cita não só a TV Morrinho, mas o Nós do Morro, também do Rio de Janeiro, a TV Lata, da Bahia, o Filmagem Periférica, em São Paulo,etc:

O que essas propostas têm em comum? A horizontalidade das redes, a tendência a abolir a rigidez de hierarquias e burocracias. Essa cultura das favelas e periferias (música, teatro, dança, vídeo, moeda, educação) surge como um discurso político ‘fora de lugar’ (não vem da Universidade, não vem do Estado, não vem da mídia, não vem do partido político) e coloca em cena outros mediadores e produtores de cultura, todo um precariado emergente de rappers, funkeiros, b-boys, jovens atores, performers, favelados, desempregados, subempregados, produtores da chamada economia informal, artistas urbanos, grupos e discursos que vêm revitalizando os territórios de pobreza e reconfigurando a cena cultural urbana. (BENTES, 2010, p. 62)

Como podemos perceber, o caldo cultural que permeia o surgimento da Rede Coque Vive é de grande riqueza social e histórica. Não só fazem-se notar as lutas políticas locais diversas que ali foram travadas por seus moradores mas também a maneira como a prática audiovisual integrou esse panorama. Essa contextualização se fez obrigatória para a nossa pesquisa, já que o “elemento mediador” do qual falávamos, aquilo que constitui o objeto de nossa análise e que nos “separa” do Coque “real”, são exatamente os quatro vídeos realizados conjuntamente pelos integrantes da Rede Coque Vive.

O primeiro desses vídeos é “Desclassificados”4, (2008), realizado por integrantes do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis e pelos estudantes de comunicação da UFPE integrantes da Rede, vídeo que discute a problemática do preconceito de classe. O segundo é

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“A linha, a maré e a terra”5

(2008), realizado também numa colaboração entre MABI e estudantes, que trata das intervenções estatais e da consequente transformação do espaço do bairro. Já “Centenário do Sul”6 (2009) entrevista as moradoras da rua que dá título ao filme a respeito de suas memórias afetivas, tomando como ponto de partida fotografias pessoais. Por fim, a animação intitulada “.Zip”7 (2011), produzida em parceria com a ONG Oi Kabum, do Recife, cujo tema é a verticalização da cidade e os efeitos que ela provoca nos bairros periféricos. Os vídeos de fotografia8 ficam de fora do nosso corpus, em função de sua organização ter se dado sem intenção de impor uma narrativa e sentidos através da edição, como também ficam de fora as reportagens9, por se inserirem mais propriamente no campo da linguagem jornalística e possuírem como destinação outras vias de circulação.

A premissa que guia a presente pesquisa poderia ser resumida a partir da seguinte questão: “como as questões relativas à representação do Coque e de seus moradores realizam um embate particular no campo das imagens cinematográficas?”. Ou: “como os casos particulares dos vídeos da Rede Coque Vive elaboram um modo próprio ao campo do cinema documental de lidar com a construção de imagens dos habitantes do Coque e de seu espaço?”. Interessa-nos investigar antes de tudo o que o Coque Vive diz imageticamente - o que nos dizem as imagens produzidas pela Rede em seus vídeos. A partir daí, colocar em diálogo o que o Coque Vive diz imageticamente e o modo como define o que faz, como se vê , assim como explorar as conexões possíveis entre essas vozes e outras matrizes discursivas culturais, como os discursos postos em circulação por jornais e televisões. Tal abordagem, que se pretende imanente, sinaliza, na verdade, para o interesse naquilo que já mencionamos: a questão da visibilidade (con)cedida à comunidade do Coque e a seus habitantes e do jogo de vozes por trás dessa visibilidade.

Estruturamos a nossa pesquisa de modo que pudéssemos observar e destacar as singularidades de que cada vídeo, por um lado, e promover uma interlocução entre essas singularidades e referências “externas” a eles, por outro. No primeiro capítulo, procuramos dialogar com os aportes teóricos surgidos no campo do cinema para discutir a imagem de grupos sociais historicamente estigmatizados, delineando as principais escolhas teóricas e

5 http://www.youtube.com/watch?v=JiewEr9og8o 6 http://www.youtube.com/watch?v=Zm1HvWe3_gY 7 http://www.youtube.com/watch?v=1HpAROgBW5o

8 “Revelando o Coque” http://www.youtube.com/watch?v=5kZfoq0jQfM&feature=related ; “O coque e a cidade http://www.youtube.com/watch?v=Mt5CEBfIrs0&feature=related

9 “Frei Aloísio” http://www.youtube.com/watch?v=6Q6y1kGP3aE&feature=related ; “Sandokan Xavier” http://www.youtube.com/watch?v=elXPBrmwihc&feature=related

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metodológicas que guiaram a pesquisa. No segundo capítulo, dedicado à “Desclassificados”, procuramos discernir de que modo operam os enunciados do vídeo e, tendo percebido o preconceito de classe como principal debate, trouxemos algumas discussões a esse respeito. Em “A linha, a maré e a terra”, “Centenário do Sul” e “.Zip”, terceiro, quarto e quinto capítulos, esse processo se repete, sendo as interlocuções feitas a partir dos vídeos envolvendo a temática da habitação, da memória e da subjetividade.

Esses vídeos têm, cada vez mais, ganhado os espaços dos circuitos alternativos de exibição – apesar da pouca habilidade do Coque Vive no desenvolvimento de estratégias consistentes para a circulação desse material. Todos esses vídeos estão disponíveis na internet; “.Zip” tem percorrido, através da da Oi Kabum, alguns festivais nacionais e locais, e marcou presença no Festival Pernambuco Nação Cultural, do Governo do Estado, em 2012; “Centenário do Sul” foi exibido e debatido no Encontro Nacional de Direito à Comunicação; “Desclassificados” fez parte da Mostra “Barreiras Invisíveis”, realizada pelo Cineclube Cinecoque – uma das ações da Rede Coque Vive – nas Escolas Joaquim Nabuco e na Escola Monsenhor Leonardo Barreto, ambas localizadas no Coque; “A linha a maré e a terra” e “.Zip” integraram a Mostra “O Coque e a cidade” levada à Escola Monsenhor Leonardo Barreto; além disso, todos os vídeos realizados pelo Coque Vive, inclusive os de fotografias e as reportagens, foram reunidos em dois volumes e fazem parte da coleção de DVDs Coque Vivo10. Esses DVDs foram dados como brindes em algumas exibições do Cinecoque nas escolas mencionadas para que fizessem parte do acervo audiovisual das instituições.

Esse panorama parece apontar para a necessidade que sentimos de uma investigação mais detida dos vídeos da Rede Coque Vive. Consideramos que a abordagem aqui proposta, atenta para o jogo de vozes nos vídeos, pode-nos revelar discursos que tanto podem estar aquém como além do que os materiais discursivos já estudados nos fazem imaginar sobre a Rede Coque Coque Vive e os debates que promove. Acreditamos que esse exercício de “olhar de novo” tem muito a nos dizer sobre temas como preconceito de classe, estigma, luta pela terra, memória individual e coletiva, mas também sobre subjetividade, afeto, vínculo, etc. Para além dos objetivos diretamente articulados à pesquisa e sabendo da dificuldade de exaurir, com apenas uma abordagem, as reflexões que esses vídeos têm o potencial de produzir, esperamos gerar um repertório amplo e preciso que nos ajude a entender melhor não só esses próprios vídeos como outros que devem ser lançados pela Rede Coque Vive, bem

10 Coletânea de DVDs organizada por Roberta Lira. O primeiro volume compila notícias de jornal sobre o Coque, o segundo trabalhos acadêmicos e o terceiro e o quarto volumes reúnem os vídeos feitos pela Rede.

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como a entender vídeos de outros “lugares não-profissionais”, outras redes urbanas, coletivos de comunicação, entre outros, que também trabalham com o audiovisual para a mudança social.

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2. FUNDAMENTAÇÃO E METODOLOGIA

Consideramos que o debate travado no campo da teoria do cinema a respeito da representação de grupos sociais historicamente marginalizados - debate que tematizou a maneira como os negros vêm sendo retratados no cinema hollywoodiano, o modo como os europeus mostram em seus filmes cidadãos do chamado ‘terceiro mundo’, a maneira como as mulheres e gays ganham visibilidade no cinema mundial, entre outras coisas (STAM, 2009) -, oferece contribuições importantes para a compreensão da imagem do Coque e de seus moradores nos vídeos da Rede Coque Vive.

Os estudiosos que agitaram tal debate enxergaram o cinema como arte que pode ‘traduzir’ correlações de poder social não meramente numa chave mais “realista” ou “dramática”, em que o comportamento dos personagens e o desenrolar da trama constituem o foco principal da análise, mas, sobretudo, naquilo que o cinema carrega de próprio: os posicionamentos de câmera, enquadramentos, iluminação, trilha sonora, etc. Esse procedimento analítico será usado para identificar os discursos presentes “no interior” dos filmes, o sentido que as diversas articulações entre som e imagem nos revelam, aquilo que nos é dito ou silenciado, mostrado ou ocultado, referenciado ou ignorado dentro de uma rede de significados.

A partir dessa inflexão sobre os vídeos em que delinearemos os seus enunciados, partiremos para explorar as associações possíveis entre eles e enunciados advindos de outros âmbitos culturais, seja no próprio campo do documentário ou no cinema, como a discussão acerca do procedimento da entrevista no documentário brasileiro contemporâneo, seja na história, como a questão da história oral e sua relação com a memória, seja nos jornais ou televisões, como as diversas matérias de jornais pernambucanos que dão conta de um Coque puramente violento, seja na história da arte ou filosofia, como a reflexão sobre a natureza da imagem ou a reflexividade, seja em outras literaturas, como os próprios materiais discursivos produzidos pela Rede Coque Vive.

Nesse sentido, a seguinte frase de Robert Stam (2009, p.305) parece lapidar:

Se, por um lado, o cinema é mimese e representação, por outro, é também enunciado, um ato de interlocução contextualizada entre produtores e receptores socialmente localizados. Não basta dizer que a arte é construída. Temos de perguntar: construída para quem e em conjunção com quais

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ideologias e discursos? Nesse sentido, a arte é uma representação não tanto em um sentido mimético quanto político, de delegação de voz.

As ideias de Stam sobre a arte enquanto constructo partem, como aludimos, do entendimento de que é necessário, para refletir a respeito da imagem de determinado grupo social, fazer perguntas muito precisas a respeito da dessa imagem, indo além dos debates que se contentam em operar simploriamente na chave de imagens “positivas” ou imagens “negativas”. Vamos seguir um pouco do raciocínio desenvolvido pelo autor.

No início do capítulo “Multiculturalismo, raça e representação” do seu livro sobre as teorias do cinema, em que aborda a maneira como as questões raciais – e outras questões “irmãs”, como as de gênero - vem sendo debatidas nesse campo, Stam traça, primeiramente, um panorama das críticas ao chamado eurocentrismo. À atitude e discursos que atribuem ao Ocidente, aqui identificado como a Europa, um “sentido quase providencial de destino histórico”, que tomam esse Ocidente como principal vetor das transformações sociais do mundo, Stam nos apresenta o que ele chama de projeto “multiculturalista”. (STAM, 2009)

Como não se trata de criticar os europeus enquanto indivíduos, observando que esses discursos que percebem o mundo de “um único ponto de vista privilegiado” são “historicamente situados”, a crítica multiculturalista mira “a relação historicamente opressiva da Europa com seus “outros” externos e internos (judeus, irlandeses, ciganos, huguenotes, camponeses, mulheres)”. (STAM, 2009, p. 296). Dessa maneira, o multiculturalismo “luta pela descolonização da representação, não somente nos artefatos culturais, como nas relações de poder entre as comunidades” (Ibid., p. 297). Discorre o autor:

A palavra “multiculturalismo” não possui uma essência, simplesmente apontando para um debate. Embora conscientes de suas ambigüidades, talvez possamos mobilizá-la com vistas a uma crítica radical das relações de poder, um apelo por um intercomunitarismo substantivo e recíproco. Um multiculturalismo radical ou policêntrico exige uma profunda reestruturação e reconceitualização das relações de poder entre as comunidades culturais. Percebe as questões de multiculturalismo, colonialismo e raça não de maneira guetizada,mas sempre ‘em relação’. Comunidades, sociedades, nações e mesmo continentes inteiros não existem de forma autônoma, mas em uma rede densamente tramada de relacionalidade. Essa abordagem relacional e dialógica é, nesse sentido, profundamente anti-segregacionista. Ainda que a segregação possa ser temporariamente imposta, como um arranjo sociopolítico, jamais será absoluta, especialmente no âmbito da cultura. (Ibid, p. 297)

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eurocentrismo, o autor usa a noção de “Policentrismo”, que envolve as comunidades de fora e de dentro dos estados-nação. Stam sinaliza outros debates que se coalizam ao debate acerca do multiculturalismo: análises sobre a representação de minorias, críticas à mídia imperialista e orientalista, reflexão acerca do “terceiro mundo” e do “terceiro cinema”, trabalhos sobre o colonial, o pós-colonial e mídias “nativas”, cinemas “minoritários”, “diaspóricos” e de “exílio”, etc. (STAM, 2009, p. 299)

Por muito tempo, as teorias “oficiais” do cinema silenciaram a respeito dessas questões. Somente nas últimas décadas surgiram textos que problematizaram, por exemplo, a maneira como Hollywood retratou em seus filmes os afro-americanos, ou o modo pejorativamente caricatural com o qual os desenhos de Walt Disney representam lugares e pessoas de outras regiões do mundo. Embora essas análises tenham adquirido força dentro da teoria do cinema, campo que até então ignorava, entre outras tantas questões sociais, a racial, revelando “padrões de preconceito” ou a “funcionalidade social dos estereótipos”, basearam-se numa “estética da verossimilhança” – em que, basearam-segundo Steve Neale (apud STAM, 2009, p.303) “os estereótipos são julgados simultaneamente a um ‘real’ empírico (precisão) e um ‘ideal’ ideológico (imagem positiva) - o que fez com que suas limitações não demorassem a ser percebidas.

Essa percepção se deu, sobretudo, com a contribuição da psicanálise e do pós-estruturalismo. As análises dos estereótipos e distorções foram consideradas legítimas, porém, carregadas de uma série de armadilhas teóricas e metodológicas, entre elas: “o desejo por personagens redondas e tridimensionais no contexto de uma estética realista-dramática”, a desconsideração de “alternativas mais experimentais e antiilusionistas”, a eliminação da “heteroglossia social e moral características de qualquer grupo social”, o privilégio a uma moralidade individual, o risco do essencialismo, além do negligenciamento de “dimensões especificamente cinematográficas” (STAM, 2009, p. 302). Como apontamos, são sobre estas últimas que recaem o nosso interesse em vistas do primeiro procedimento metodológico de análise do corpus, aquele que busca identificar os discursos que os vídeos da Rede Coque Vive carregam.

Dessa forma, a seguinte frase de Stam, na sequência do texto que acompanhamos, parece se aproximar da perspectiva que sinalizamos acima. Diz ele:

Uma análise rigorosa tem de estar atenta às ‘mediações’: a estrutura narrativa, as convenções genéricas, o estilo cinematográfico. O discurso

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eurocêntrico no cinema pode ser transmitido não pelas personagens ou pela trama, mas pela iluminação, pelo enquadramento, pela mise-em-scène e pela música. O cinema traduz as correlações de poder social em registros de primeiro plano e fundo, de espaço on-screen e off-screen, de fala e silêncio. (Ibid, p. 304)

É justamente aí que o autor adverte para que façamos perguntas muito precisas a respeito da imagem de determinado grupo social para entender as relações dessa imagem como o seu contexto sócio-político e outros enunciados em circulação na sociedade: “quanto espaço os representantes de diferentes grupos sociais ocupam no plano? Eles são vistos em close-ups ou apenas em planos abertos? [...] São personagens ativas e com desejos ou apenas decorativos? [...] Como a linguagem corporal, a postura e a expressão facial comunicam hierarquias sociais, arrogância, servilidade, ressentimento ou orgulho?” são algumas dessas perguntas (STAM, 2009, p.304-305). Postula, então, o autor:

Uma alternativa metodológica à abordagem dos estereótipos e distorções miméticos é pensar menos em termos de imagens e mais em termos de vozes e discursos. (...) Em lugar da adequação mimética pontual à verdade sociológica ou histórica uma discussão mais matizada da questão racial no cinema deveria enfatizar o jogo das vozes, dos discursos e das perspectivas, incluindo aqueles operantes no interior da própria imagem. A tarefa do crítico consistiria em chamar atenção para as vozes culturais em jogo, não apenas as escutadas em um primeiro plano auditivo, mas também as encobertas pelo texto. Ou seja, não se trata de um plularismo, mas de um multivocalismo (STAM, 2009, p. 306)

Essa opção metodológica sinalizada por Stam nos lança diretamente para o aporte metodológico que escolhemos utilizar para entender as “mediações” presentes nos vídeos da Rede Coque Vive e, daí, entender como dialogam com outras vozes culturais. Esse aporte está exposto no trabalho de um teórico que se consolida justamente em meio aos debates mencionados acima. Operando especificamente dentro do campo do gênero documental, as ideias de Bill Nichols (2009) parecem oferecer ferramentas muito úteis às nossas análises.

Podemos dizer que o principal conceito com o qual autor trabalha seja o de “voz do documentário”. É com ele que Nichols “adentra” os vídeos que analisa, sem que, com isso, esqueça que eles estão inseridos numa “arena de debate e contestação social” mais ampla. É também com esse conceito, que mais se assemelha a um dispositivo teórico-metodológico, que iremos nos debruçar sobre o corpus escolhido. Nichols inicia sua explanação sobre as características da voz do documentário da seguinte forma:

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Se os documentários representam questões, aspectos, características e problemas encontrados no mundo histórico, pode-se dizer que falam desse mundo tanto por meio de sons como de imagens. Essa questão de discurso suscita a questão da voz. Todavia, documentários não são palestras, e questões de discurso e voz não são entendidas aqui literalmente. (Ibid., p. 72)

Podemos começar a delinear a questão da voz tomando exatamente essa primeira investida de Nichols a respeito do seu assunto. As questões de voz, como, aliás, já vimos em Stam, não são tomadas de maneira literal, e os filmes são localizados num contexto sócio-cultural mais amplo. O seu caráter de representação determina que estes apresentam “apenas” versões da realidade: perspectivas, argumentos, pontos de vistas, opiniões. Isso através de “todos os meios disponíveis”, ou seja, uma articulação fundamental entre imagem e som, plano a plano, compondo sentidos pontuais e também mais genéricos. (NICHOLS, 2009, p. 72).

Nichols nos explica que a voz do documentário é o modo singular como o ponto de vista do filme sobre o real se dá a conhecer. A ênfase recai aqui sobre a maneira com que essa perspectiva é transmitida; ela pode simplesmente nos informar, ou persuadir, ou defender determinada causa, entre outras posições, mas faz isso em vários níveis, ou seja, “quando representamos o mundo de um ponto de vista particular, fazemos isso com uma voz de tem características de outras vozes” (Ibid, p.76). Explica o autor:

A voz do documentário não está restrita ao que é dito pelas vozes ‘deuses’ invisíveis e ‘autoridades’ plenamente visíveis que representam o ponto de vista do cineasta – e que falam pelo filme – nem pelos atores sociais que representam os seus próprios pontos de vista – e que falam no filme. A voz do documentário fala por intermédio de todos os meios disponíveis para o criador. Esses meios podem ser resumidos como seleção e arranjo de sons e imagem, isto é, a elaboração de uma lógica organizadora para o filme. Isso acarreta, no mínimo, estas decisões: 1) quando cortar, ou montar, o que sobrepor como enquadrar ou compor um plano [...] 2) gravar som direto, no momento da filmagem, ou acrescentar posteriormente som adicional, como traduções em voz over, diálogos dublados, música, efeitos sonoros ou comentários; 3) aderir a uma cronologia rígida ou rearrumar os acontecimentos com o objetivo de sustentar uma opinião; 4) Usar fotografias ou imagens de arquivo, ou usar apenas as imagens filmadas pelo cineasta no local […] (Ibid, p.76)

Diversos exemplos da elaboração da voz em filmes documentários são citados pelo autor, demonstrando os diferentes modos e níveis em que as vozes são apresentadas num filme. No documentário Portrait of Jason (1967), uma das principais vozes presentes no interior da

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estrutura narrativa do filme é composta por toda movimentação corporal do personagem que dá título ao filme, incluindo a maneira como ele se comporta em relação à cineasta. Ou no caso dos documentários Speak Body (1980), Abortion Stories (1984): ambos tratam da questão do aborto, mas, no primeiro, isso é feito através da combinação entre vozes fora do campo e imagens de pedaços dos corpos das mulheres que participam do filme, já no segundo a experiência singular de mulheres latinas que fizeram aborto em algum momento de suas vidas é enfatizada através de entrevistas pessoais.

Em Na linha da morte (2004), Errol Morris dispensa o uso da chamada Voz de Deus, narração que tem como papel orientar a direção que o espectador deve seguir na interpretação das imagens, optando por compor um mosaico de entrevistas que, nem por isso, deixa de expressar a defesa e a postulação da inocência de um condenado à morte. A inclusão das imagens de uma série de TV norte-americana em que um ladrão faz justiça com as próprias mãos, agindo de maneira autônoma em relação à polícia, produz uma voz que não deixa dúvidas a respeito da posição do documentarista no que diz respeito ao mundo histórico compartilhado nas imagens.

Um exercício analítico que parece se aproximar da perspectiva aqui mencionada é a de Jean-Claude Bernadet no livro “Cineastas e imagens do povo” (2003). O interesse de Bernadet sobre a produção documental brasileira do chamado período moderno – anos 60 até meados dos anos 80 -, sobretudo aquela ligada aos integrantes do Cinema Novo brasileiro, resultava de uma necessidade de revisão das relações entre estética e política dos filmes desse período. O autor procurou demonstrar como, a despeito do desejo dos cineastas envolvidos com esse movimento, como Arnaldo Jabor e Leon Hirzsman, de adentrar o universo do popular através do tom de crítica social que esteve ausente do documentário brasileiro de até então, as imagens produzidas por eles representaram um povo destituído de consciência própria e dependente do intelectual de esquerda para fazer uma leitura de sua própria experiência.

Bernadet denominou a estrutura fílmica que traduzia esse desnivelamento fundamental na relação entre intelectual e povo de “Modelo sociológico”, em função do fato de seus métodos quase científicos de distanciamento do sujeito do discurso em relação ao objeto retratado se assemelharem aos procedimentos sociológicos, muito em voga na época. O autor resume da seguinte maneira o seu estudo:

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Sob a influência da evolução política posterior ao golpe de 1964, dos movimentos sociais que foram abafados ou conseguiram se expressar, do questionamento relativo ao papel dos intelectuais, das diversas revisões por que passaram as esquerdas, do aparecimento das “minorias” que colocaram a questão do outro, da evolução do cinema novo e da perda de sua hegemonia ideológica e estética, das preocupações quanto à linguagem cinematográfica, ao realismo e a metalinguagem, esse cinema documentário viveu uma crise intensa, profundamente criadora e vital. O “Modelo sociológico”, cujo apogeu situa-se por volta de 1964 e 1965 foi questionado e destronado, e várias tendências ideológicas e estéticas despontaram. […] Foi essa crise que tentei estudar aqui. (BERNADET, 2003, p. 12)

O que nos interessa particularmente nesse estudo é a maneira através da qual Bernadet “atravessou” o percurso exposto acima. E esse aspecto nos é revelado ainda na apresentação de seu livro. Ele afirma: “Numa espécie de corpo-a-corpo com essas obras, procurei entender, em cada um delas, quem era o dono do discurso” (Ibid, p. 13). Esse corpo-a-corpo que o autor trava com cada documentário escolhido na busca por evidenciar as vozes que estão, de fora e de dentro, repercutindo na imagem, se reflete mesmo num aspecto como o título dos capítulos: “o modelo sociológico ou a voz do dono”, para o texto que analisa o filme “Viramundo” (1965) de Geraldo Sarno; “a voz do documentarista”, para o texto que analisa os filmes “Lavrador” (1968), “Indústria” (1968) e “Congo” (1972); “a voz do outro”, para o texto que analisa “Tarumã” (1975) e “Jardim Nova Bahia” (1971). Uma característica fundamental é destacada da análise do filme e funciona como uma maneira substituta ou complementar de se referir a ele.

Consuelo Lins (2007) também nos dá mostras da operatividade dessa abordagem no seu livro sobre o documentarista Eduardo Coutinho. Afirma ela:

Decidi, logo de início, acompanhar a trajetória de Coutinho “filme a filme”. Esse caminho me pareceu o mais justo, porque manteria a singularidade de cada documentário, evitando reduzir um filme a outro. Também me permitira estabelecer relações pontuais entre eles. Assim seria possível identificar mais claramente os movimentos dessa obra, suas permanências, mudanças, suspensões, rupturas. Aproveitei portanto a cronologia dos documentários como fio condutor para analisar o procedimento de criação, os métodos de trabalho, as condições de realização, as posturas éticas e as opções estéticas expressivas (Ibid., p.15)

Retornando a Nichols (2009) devemos observar que o autor chama atenção para o fato de que, no caso especificamente do cinema documentário, a voz é “acompanhada” por um fator adicional, sinalizado por Consuelo Lins no trecho citado acima. Além do que podemos

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chamar de estilo do filme, aquilo que podemos identificar como sendo sua estética, há também um elemento ético importantíssimo, afinal de contas, no dizer de Jean-Louis Comolli os documentários são caracterizados pela realização “sob o risco do real” (2008, p.169).

Nichols (2009) oferece dois exemplos de como esse elemento ético caminha de maneira inseparável das questões estéticas no documentário. O primeiro se trata do clássico do gênero documental Nanook of North (1922) de Robert Flaherty, em que, deliberadamente, o diretor permite que seu personagem principal, no manejo de um disco de vinil, pareça “atrapalhado”, incapaz de entender a utilidade do objeto que manipula. Mas talvez no caso do filme Watsonville on Strike (1985) o envolvimento do cineasta no seu tema seja ainda mais marcante. Nele, Jon Silver registra uma greve de trabalhadores de uma cidade da costa dos Estados Unidos. Optando por fazer isso num plano sem cortes, Silver tem o seu direito de filmar questionado pelo diretor do sindicato, que o ameaça. Numa postura que revela de maneira firme o seu posicionamento político, o documentarista faz uma panorâmica do saguão da fábrica e pergunta diretamente aos trabalhadores em greve se tem o direito ou não de registrar o momento. A respeito dessa nuance ética da voz do documentário, Nichols afirma:

A voz do documentário atesta o caráter de cineastas como Robert Flaherty e Jon Silver, como se saem diante da realidade social e também sua visão criativa. O estilo assume uma dimensão ética. A voz do documentário transmite qual é o ponto de vista social do cineasta e como se manifesta esse ponto de vista no ator de criar o filme. (2009, p.76)

Tendo observado, do ponto de vista metodológico e conceitual, como operaremos com o corpus de filmes selecionados para a nossa análise, faz-se necessário delinear também de que maneira se dará a associação dessas vozes, mais “internas” ao filme e que contam com um olhar atento à linguagem própria ao cinema, com vozes culturais outras – de documentários, ficções, matérias de telejornal, textos diversos, etc.

Para darmos conta desse segundo movimento metodológico de base da nossa pesquisa, escolhemos acompanhar novamente as considerações de Robert Stam (2009) em seu livro sobre as teorias do cinema. Dessa vez, o capítulo que trata da preocupação de alguns teóricos de discutir o cinema no diálogo com outras matrizes discursivas. Intitulando o capítulo de “Do texto ao intertexto”, o autor explica que “Em vez de se preocupar com filmes ou gêneros individuais, as teorias da intertextualidade passaram a considerar que todo e qualquer texto

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mantinha relação com outros textos e, portanto, com um intertexto” (STAM, 2009, p. 225) Stam nos mostra como o termo “intertextualidade” advém, na verdade, da noção mais antiga, formulada por Bakhtin, de “dialogismo”. Baseando-se na idéia de signo, a noção de dialogismo intertextual nos propõe que qualquer enunciado, seja ele verbal ou não-verbal, mantém relação com outros enunciados. Tomado numa chave que se distancia dos debates sobre influências ou fontes, e mesmo da idéia de gênero, “o intertexto da obra de arte inclui não apenas outras obras de arte de estatuto igual ou comparável, mas todas as ‘séries’ no interior da qual o texto se localiza” (2009., p. 226). Discorre Stam:

Em seu sentido mais amplo, o dialogismo intertextual se refere às possibilidades infinitas e abertas produzidas pelo conjunto de práticas discursivas de uma cultura, a matriz inteira de enunciados comunicativos no interior da qual se localiza o texto artístico, e que alcançam o texto não apenas por meio de influências identificáveis, mas também por um sutil processo de disseminação. (Ibid, p. 226)

O autor também nos oferece diversos exemplos de como podemos entender o funcionamento da noção de dialogismo intertextual no cinema. Nashville (1975), de Robert Altman, é composto com uma série de discursos e referências que incluem o documentário, a música gospel, o musical, o discurso político populista, os próprios filmes do autor, entre outros. Já

Cabo do Medo (1991), de Martin Scorsese, retoma a literatura do Apocalipse, indo até mesmo

ao texto bíblico que versa sobre o assunto; Funeral (1984), de Juzo Itami, filia-se, de certo modo, ao gênero do que Stam chama de “discurso funerário” (Ibid., p. 227).

Retomando Nichols (2009) devemos observar que o autor também adverte que a voz do documentário assume, eventualmente, a característica de outras vozes sócio-culturais, seja de maneira mais evidente ou de forma mais camuflada. De todo modo, não faltam exemplos de documentários que se aproximam de ensaios, ou de diários, ou de confissões, homenagens, reportagens, evocações, etc. Não devemos esquecer que o próprio Bakhtin identificou diferentes “níveis” de dialogismo. Segundo ele, os materiais textuais dialogam tanto com referências consideradas mais cultas, como as da literatura, como com referências mais imediatas, a exemplo das gírias que fazem parte da linguagem cotidiana.

Sem dúvida nenhuma, não se trata, para a nossa pesquisa, de explorar todas as possibilidades que os vídeos produzidos pela Rede Coque Vive oferecem em sua “tessitura”.

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Pretendemos, aqui, fazer associações pontuais, a partir daqueles aspectos que parecem ser os mais marcantes de cada filme. No caso de “Centenário do Sul”, como veremos, um aprofundamento na ideia de memória parece ser prioritário; já no caso de “.Zip”, os detalhes na construção de cada personagem e do espaço descrito no filme parecem merecer atenção semelhante; em “A linha, a maré e a terra” o fato do filme decorrer paralelamente a uma transmissão radiofônica não pode passar sem maiores reflexões; em “Desclassificados”, o seu sistema geral de expressão é que chama atenção. Feitas essas considerações, podemos avançar para a análise propriamente dita do nosso corpus.

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3. “DESCLASSIFICADOS”

O vídeo “Desclassificados” foi realizado em 2008 pela Rede Coque Vive a convite do Digi-Lab, da ABA11, como resposta para o vídeo "Uma visão de fora", produzido pelos alunos de uma das turmas da instituição. Enquanto nesse vídeo os alunos da ABA falam sobre como vêem os moradores da periferia, no vídeo produzido pelo Coque Vive, moradores da comunidade do Coque falam sobre o que pensam sobre a classe média (SILVA, 2011). As discussões sobre visibilidade social e preconceito de classe que mobilizavam os integrantes da Rede quando do seu surgimento12 somam-se ao fato de que a maioria da equipe de realização do vídeo fazia parte do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI) - para o qual a discussão acerca das “barreiras sociais” é central - para compor um cenário cujo traço principal é o desejo por um engajamento político.

Antes de iniciarmos a análise de “Desclassificados”, parece-nos importante descrever um pouco daquilo que encontramos no vídeo que o precede, “Uma visão de fora”. O título do curta13 sugere já um relativismo revelador: embora expresse a visão genuína dos que o realizaram, esses não mantêm ilusões a respeito de que essa visão represente um veredicto sobre a realidade social, como se o discurso ali exposto de saída demarcasse o seu próprio espaço, seu lugar de fala. É, de fato, esse movimento de relativização que encontramos no vídeo e umas das primeiras falas nele expressa, sublinhada pela decisão de edição de repetir o seu início - “minha opinião (...), “minha opinião”, “minha opinião (...), como um rap – não nos deixa dúvidas a esse respeito. Imagens da mídia ilustram essa repetição, como a indicar que não apenas a opinião de quem fala é “somente a sua opinião”, mas também sinalizando que ela se confunde com aquilo que é veiculado pelos meios massivos de comunicação sem que isso seja ignorado. A mensagem explícita: sei que não conheço a periferia, a não ser pela mídia, e sei que isso significa não conhecer efetivamente ou conhecer tendenciosamente.

O vídeo desses jovens de classe média alterna fotografias e letreiros, guiados quase sempre por uma narração off – ora o que parece ser um texto de uma aluna para uma questão

11 Instituição que oferece cursos de língua inglesa.

12 Podemos ter ideia dessas discussões tomando como exemplo o seguinte trecho do editorial do primeiro produto feito colaborativamente entre os atores da Rede, a primeira edição do Jornal “Coque”: “Para elaborar esse jornal, discutimos com seus moradores sobre a imagem do Coque dentro e fora do bairro. Apoiados nessas discussões e nas nossas apurações, propomo-nos a fazer uma apresentação geral do bairro a partir de grandes temas que revelam as suas múltiplas faces. Para entender melhor o Coque, é preciso buscar as causas e conseqüências perversas da violência, que tem implicações em toda a vida da comunidade”.

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feita em sala de aula, ora uma poesia rimada - numa estrutura narrativa bastante simples e de poucos recursos. Parece, inclusive, se organizar por blocos, blocos diferentes, como um mosaico (cada ‘bloco’ teria um ‘autor’’?). Um momento de encenação, porém, se diferencia do restante do vídeo e parece operar consigo uma visão importante para entendermos a voz ali construída. Nesse momento, um dos garotos participantes do vídeo reflete sobre sua visão das pessoas que moram na periferia. Povoada de perguntas, de auto-questionamentos, essa reflexão é marcada por uma câmera subjetiva que ‘traduz’ o caráter de visão parcial que o vídeo assumiu pra si. Nela, uma novidade é expressa através das seguintes perguntas: ‘desde que tenho dois anos, estou acostumado a ir pro colégio, será que pra eles é assim também? Sempre fui respeitado por todos ao redor, será que eles também? A mídia me diz que não. É verdade? Então, quem eles acham que eu sou? Eles acham que eu sou uma vítima? Será que eles tiram vantagem de mim? Eles pensam que nossa vida é mais fácil?’. Esse trecho no qual o vídeo questiona diretamente as classes baixas não é exatamente o fim de “Uma visão de fora”, mas é, sem dúvida, a deixa para “Desclassificados”.

Figura 1 Cena do filme “Uma visão de fora”

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classe média? A pergunta é feita no início do filme por um morador do Coque14 e figura implicitamente nas respostas dos moradores entrevistados na sequência. Nesse curta é a vez da classe média, historicamente detentora do direito de falar sobre as classes consideradas mais baixas, ser o objeto de análise. Contudo, e essa parece ser a voz mais preponderante, a 'classe baixa' responsável por essa análise – alguns moradores do Coque – usa o seu espaço de fala no vídeo de modo a se defender, sobrepondo naturalmente à resposta para a pergunta 'o que é a classe média?' uma resposta para o próprio modo através do qual é enxergada por essa classe. A reflexão feita pelo garoto em “Uma visão de fora” encontra aqui eco.

A fala do primeiro entrevistado15 a aparecer no vídeo depois da pergunta inicial - fala que revela aquilo que nos é apresentado como o parâmetro mais corrente para uma 'classificação social' das pessoas, a condição material e financeira - nos permite visualizar a tendência apontada. Afirma ele: “A classe média são aquelas pessoas que moram em prédios e que têm uma boa estabilidade financeira e, assim, eles passam a ter um certo preconceito contra as pessoas que moram na favela”. E não só o primeiro entrevistado; na sequência, pela voz de outros mais, a definição para o que é a classe média ganha espaço acobertada por um tom defensivo :

“É os pessoal que hoje em dia quer ser o dono da verdade, os pessoal que tem o poder aquisitivo lá em cima e os pessoal que sofre com isso é os pessoal pobre”; “[...] a classe média, por ter mais dinheiro, são uma classe mais favorecida, pelo governo e pelo país também, e a gente que somo da classe menos favorecida não temos tanto direito como eles”.

Os conteúdos que surgem nos depoimentos dos moradores do Coque fazem, efetivamente, as vezes de defesa frente a um repertório de difamação preexistente. Um deles afirma “A classe média vê as pessoas que moram na favela como se fossem […] bandidos ou alguma coisa assim”; o outro “Eu não gosto da classe rica, porque só vê a gente como marginal, só vê a gente como pessoas miseráveis, pessoas sem cultura, e não é por aí”; e uma mulher – a única a dar depoimento ao longo de todo o filme: “Não vê a gente como uma pessoa do nível deles, vê inferior a eles, aí acha a gente ruim. Mas não apenas isso: vai se construindo, logo nos primeiros momentos de “Desclassificados”, uma rede de significação que reúne e relaciona os sentidos presentes nas palavras “estabilidade”, “poder aquisitivo”, com, por exemplo, os sentidos presentes nas palavras “direito” e “verdade”. Esse jogo por trás

14 Ridvaldo Procópio, membro do MABI. 15 Gutemberg Lima, também membro do MABI.

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da linguagem como que denuncia um centro de “referenciação” para o qual os enunciados – as vozes – do vídeo convergem. Outras palavras irão se somar a essas, mas isso não importa tanto quando nós mesmos estamos autorizados a atualizar essa teia de significados: estabilidade, poder aquisitivo, direito, verdade, mais cidadania, liberdade, e opondo-se à instabilidade, mentira, etc. A voz que evoca e enuncia essas categorias se delineia em meio às vozes dos próprios entrevistados, abstraída de dentro do depoimento deles.

O morador do bairro que ao começo levanta a pergunta-provocação reaparece justamente no meio do vídeo, afirmando com eloquência o que já estava presente nas outras falas, de modo a costurá-las: “Pra classe média a favela já é bem definida. Pobre é assim, pobre é assado. Pobre é daquele jeito, pobre é daquele outro jeito. Pobre não tem isso, pobre não tem aquilo”. A pergunta “O que é a classe média?”, nessa altura, parece ter sido completamente substituída para algo como “quem somos nós para a classe média?”, ou “O que eles pensam de nós?”. Esse personagem de frases tão categóricas que dá o pontapé inicial do filme com uma pergunta não se furta de também respondê-la - responder a si próprio, podemos dizer -, e faz isso a partir da perspectiva contestatória que indicamos. Seu reaparecimento ao final do filme, encarando a câmera – os espectadores -, parece indicar que a provocação do começo, o tom de eloquência do meio e o olhar ao final querem, efetivamente, ser compartilhados enquanto ponto de vista do vídeo.

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Figura 2 Ridivaldo Procópio, membro do MABI, em cena de “Desclassificados”

Essa característica parece marcar, ao menos naquele momento, o modo de pensar e agir do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis. Na matéria de abertura da revista16 que carrega no título o nome do grupo, lançada em 2009, a colaboradora Sofia Costa Rêgoabre aspas para as palavras de Procópio – o personagem condutor de “Desclassificados” – identificando-as, na sequência do texto, como dotadas de “uma vontade de fazer com que o Coque seja conhecido pelo que realmente tem, e não pelo que as pessoas imaginam ou julgam do bairro” (REVISTA MABI, 2009). Mais à frente, junto ao depoimento de outros integrantes do MABI, somos apresentados à origem do nome do grupo, emblemática no que diz respeito à característica que se materializa em “Desclassificados”:

O nome do movimento, Arrebentando Barreiras Invisíveis, vem desse estigma. ‘Essas barreiras são muito abstratas. O preconceito é algo abstrato, não é palpável, mas é algo vivenciado, está ali no dia-a-dia e machuca bastante’, explica Rodrigo. De acordo com Irandir, a ideia de dar esse nome ao grupo surgiu após de uma aula a que Procópio assistiu e depois de um filme francês que Irandir viu, 13º Distrito: diante do aumento da criminalidade em alguns subúrbios de Paris, o governo autoriza a construção de um muro de isolamento ao redor dos bairros classificados como de alto risco. [...] ‘Procópio assistiu a uma aula de Alexandre [no Neimfa] que falava das barreiras invisíveis, e eu assisti 13º Distrito e achei interessante discutir. No final, os governantes concordam em tirar esse muro que, no filme, é concreto. É só derrubar tijolo por tijolo que acabou a barreira. Mas no nosso caso não, é uma barreira invisível, não são tijolos o que temos para arrebentar’, diz Irandir. (REVISTA MABI, 2009)

No final da matéria, Procópio chama a atenção para a despolitização dos habitantes do Coque, indicando como causa histórica disso os inúmeros condicionamentos sociais por eles enfrentados, e seu irmão, Ridivânio, mais conhecido como Fio, lembra da participação das crianças do Projeto Orquestra Cidadão Meninos do Coque17no programa televisivo da Rede Globo “Domingão do Faustão”, no qual as crianças “apareceram” de um modo que poderia ser classificado como cruel e exótico: a mensagem é a de que Projeto “salvou” as crianças do destino Coque, porque, se lá elas permanecessem, onde não há nada de bom, não haveria nenhuma esperança para o seu futuro.

Retornando especificamente a “Desclassificados”, não demoramos a perceber que a

16 Revista Mabi. Recife: Rede Coque Vive, 2009.

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