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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O balanço proposto para as considerações finais da nossa pesquisa pode ser resumido na seguinte questão: quais as principais recorrências e descontinuidades que caracterizam a produção audiovisual da Rede Coque Vivem? Este espaço é destinado a pontuar algumas das “marcas” e “rupturas” dentro da trajetória de vídeos que acompanhamos até aqui, observando que os filmes carregam sentidos não apenas isoladamente, mas também enquanto conjunto, enquanto integrantes de uma trajetória de produção maior.

Podemos dizer inicialmente que, se “Desclassificados” (2008) é um filme de embate, no qual a polêmica que embaralha a categoria do “ser” com a do “possuir” não permite vislumbrar algo mais do que a luta de classes no horizonte social, “.Zip” (2011) o último vídeo analisado, se apresenta como um universo quase onírico, deixando escapar conscientemente, aqui e ali, a imagem de um Coque distópico. Os anos que separam esses dois vídeos parecem revelar o modo como temas-chave para uma rede que busca forjar novas formas de sociabilidade, questões como o preconceito de classe, o estigma e a da moradia, ganham contornos diferentes ao longo dos anos de atividade.

A proposição do projeto carioca “Reperiferia”, Bentes (2010, p.53) nos diz que “não há inclusão sem inclusão subjetiva”, tal afirmação encontra eco no trabalho da Rede Coque Vive e o que podemos chamar de indeterminações dessa filmografia ultrapassam a mera afirmação das identidades positivas. O recado dado pelos filmes nos parece claro: não estamos falando de um Coque menos “problemático”, mas de um Coque, no mínimo, menos “engessado”, um lugar que apareça em sua complexidade, livre do mecanismo discursivo que conjuga pobreza e crime para marginalizá-lo, livre também do discurso que enxerga apenas as suas potencialidades e que igualmente mascara sua realidade.

A perspectiva geral - o próprio universo visual e sonoro sobre o qual um filme constrói suas bases - de cada vídeo parece apresentar a “descontinuidade” mais emblemática dessa produção. Em “Desclassificados”, a perspectiva do filme, simbólica e literal, é somente aquela proporcionada pelas entrevistas, surgida do debate que elas próprias propõem, um universo mais intelectual e racional. A ênfase no verbal explicita essas condições. Em “A linha, a maré e a terra” começamos a adentrar o terreno da memória, pelo depoimento de seus entrevistados, mas isso é feito apenas parcialmente – os letreiros são responsáveis por “segurar” a narrativa ainda dentro de uma perspectiva informativa, objetiva. Em “Centenário

do Sul”, o investimento na memória se dá de maneira integral: a entrevista, ainda que inerentemente dotada de um viés objetivo, é mobilizada para viabilizar o acesso à memória das personagens de modo desimpedido. Já “.Zip” radicaliza esse arco que traduz um investimento na subjetividade: nos personagens, no seu espaço, nos seus detalhes, nada parece literal, nada parece indicial, nada parece querer significar somente aquilo que dá a ver. Este último vídeo dar-se a ver ocultando e oculta dando a ver.

Esse movimento em direção ao subjetivo se mostra bastante significativo do próprio entendimento do papel social, digamos assim, da Rede Coque Vive. A transição de uma linguagem mais informativa e objetiva, que, para afirmar o que quer que fosse, precisava negar o estigma, a imagem de um Coque miserável, a sentença que recai simbolicamente sobre o bairro, para uma linguagem que afirma a singularidade dos sujeitos (Centenário) a ponto dessa subjetividade construir o próprio universo social (Zip), ele todo, parece-nos dizer que esse afastamento em relação ao objetivo/racional era necessário, que ele configura uma espécie de etapa de maturação coletiva na direção de uma postura política mais ampla e inventiva.

O tempo histórico constitui uma “ruptura” de filme pra filme que também não podemos deixar passar despercebida. Enquanto “Desclassificados” finca os dois pés no presente, numa discussão que, apesar de se referir a todo um passado histórico, se concentra na forma contemporânea do embate, “A linha, a maré e a terra” olha para trás. Esse olhar se acentua em “Centenário do Sul”, e, diferentemente do que poderíamos imaginar, “.Zip” olha para o presente abrindo um portal para o passado e postulando, ainda que de um modo que poderíamos chamar de pessimista – afinal de contas, é como um “canteiro de obras” prestes a dar lugar a um novo Coque que aparece ali – acerca do futuro.

E não só o que chamamos de tempo histórico muda de filme pra filme na produção da Rede Coque Vive, mas também, com ele, a própria visão de história. “Desclassificados” é um filme de aspiração totalizante, mira abordar o “estado de coisas” social, opera uma análise desses estados de coisas, e assim compartilha uma visão de história cujo papel é exatamente esse: olhar para os grandes processos, a cidade em seu conjunto, a dinâmica de classes, “o problema” do estigma, “o problema” da relação classe média/classe baixa. Os vídeos seguintes vão aparando as arestas e reduzindo esse escopo sem que isso signifique um empobrecimento da linguagem – ao contrário -, muito menos uma perda de alcance política. Parecem apostar nas pequenas históricas, num recorte micro, naquilo de mais singular que

pode evocar um geral sem que isso soe reducionista, ambicioso. Parecem saber que, falando de “coisas pequenas”, como uma fotografia antiga de família, estamos falando das “coisas grandes”. Como se soubessem muito bem operar um trânsito que leva da do afeto ao fato sociológico e, inversamente, do fato sociológico ao afeto.

A entrevista se constitui como uma estratégia narrativa igualmente reveladora. Em “Desclassificados”, vemos os personagens enquadrados num plano médio convencional, cerrados no espaço que lhes foi destinado – a forma como interagem com os outros e com o mundo não interessa, a interação não interessa. Como diria Jean-Claude Bernadet (2003), uma “abordagem menos óbvia” é secamente preterida. Em “A linha, a maré e a terra” essa mesma estratégia aparece na forma de uma conversa, instaurando uma inversão em relação ao filme anterior, já que, nela, o isolamento dos entrevistados é sacrificado em nome daquilo que só pode surgir de sua interação. Já em “Centenário do Sul”, a proposta é um mergulho no universo pessoal de cada personagem, em que fotografias familiares são o pretexto ideal para uma rememoração afetiva do passado. “.Zip” nasce de um edital para o qual a realização de uma animação era uma exigência, mas o interesse dos integrantes da Rede por esse formato que prescinde já da entrevista não nos diz muito?

A incorporação do acaso também é outro aspecto marcante nos vídeos da Rede Coque Vive. O encontro de Prazeres e Matias em “Centenário do Sul” era impossível para “Desclassificados”, podemos considerar. Era o território crespuscular – de inconsciência – sobre a qual o filme não podia avançar, como os letreiros de “A linha, a maré e a terra” e sua banda sonora, parcialmente, também não puderam. Esse encontro casual do terceiro vídeo que analisamos parece sinalizar uma abertura: não apenas aquilo que é previsto, de antemão discriminado, de algum modo “roteirizado”, está autorizado a integrar a composição dos vídeos. O acaso, o imprevisível, o “fora” do roteiro ganha, com o tempo, igual importância. Ou a indeterminação que proporcionou o reencontro de Prazeres e Matias não se aproxima da própria indeterminação que caracteriza o retorno ao passado que marca o movimento principal de “Centenário do Sul”, o movimento “incerto” da lembrança? Quem somos no momento definindo o que e como lembramos, as fronteiras sendo tateadas, isso tudo sendo responsavelmente assumido.

Esse último aspecto, aliás, podemos considerar na chave da reflexividade. A grande força de “A linha, a maré e a terra”, a despeito da predominância de uma voz formal, parece advir da conversa que se desenrola paralelamente à filmagem, dotando essa filmagem de um

viés radiofônico, já que é uma transmissão da Rádio Coque Livre que está em curso. E uma umas cenas mais marcantes de “Centenário do Sul” é o encontro casual de Prazeres e Matias. Esse dois momentos se aproximam naquilo que revelam as condições de realização dos vídeos, naquilo que incorporam do próprio processo de feitura deles. Os filmes dobram-se sobre si mesmos para destacar as suas circunstâncias de enunciação, seu lugar de fala, enfim, aquilo que precedeu seu acabamento.

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