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O feminino como transgressão em Sul, de Veronica Stigger

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Centro de Comunicação e Expressão

Departamento de Língua e Literatura Vernáculas

Marina Dias Silva

O FEMININO COMO TRANSGRESSÃO EM SUL, DE VERONICA

STIGGER

Florianópolis 2017

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Marina Dias Silva

O FEMININO COMO TRANSGRESSÃO EM SUL, DE VERONICA STIGGER

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para a obtenção do Grau de Bacharelado em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas.

Orientadora: Profª. Drª. Susana Célia Leandro Scramim.

Florianópolis 2017

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AGRADECIMENTOS

À profª. drª Susana Célia Leandro Scramim, orientadora desta monografia, que, com sua receptividade e entusiasmo, abriu uma porta para que eu me dedicasse a esta linha de pesquisa e descobrisse o universo de Veronica Stigger, ademais, pelas indicações de leituras, orientações teóricas e críticas sempre pertinentes. À profª.drª Rosana Cássia Kamita, que me concedeu uma bolsa de pesquisa ao longo do curso e compartilhou comigo, além do seu projeto de pesquisa, os seus aprendizados e experiências enquanto pesquisadora, me incentivando sempre a seguir o meu caminho. Aos professores que fizeram parte da minha trajetória na graduação, todos contribuíram para a minha formação acadêmica, profissional e pessoal. À Bianca, colega de curso e maior companheira nesta jornada, com quem compartilho sonhos, angústias e risadas. A todos os meus amigos que me acompanharam durante a fase de escrita neste ano turbulento de 2017. Em especial à Patrícia, Letícia, Camila e Izabele pelo carinho de sempre. Agradeço aos meus pais, meus exemplos de vida, por sempre apoiarem e compreenderem os meus passos. Em especial à minha mãe, que me incentivou à leitura desde pequena, e que, mesmo longe, torce sempre por mim. À minha irmã, pelo companheirismo, inspiração e pelo lembrete (sempre necessário) de que há mundos a serem explorados.

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Se a vida primária manifesta-se como uma volta incessante à cena de origem, esta volta não é nenhum retorno a um tempo passado, a uma “pré-história” situada, de fato, antes da história. A vida primária – presença sempre inquietante – é manifestação deste começo sem fim, desta “pré-história” inacabável, no agora. Vida primária é o que bagunça a estrutura do tempo e a estrutura da história, o que altera a cronologia, transformando-a em bio-grafia; e pensemos, aqui, este termo em sentido radical, para além dos mitos do eu e da individualidade: escrita-vida de um mundo vivo. A vida primária configura-se, antes de tudo, como um desejo permanente de mais vida. “O universo”, bem diz Clarice, “jamais começou”.

(Veronica Stigger, em curadoria da mostra O útero do mundo, 2016)

Navarro,

A animalidade dos signos me inquieta. Versos a galope descem alamedas a pisotear-me a alma ou batem asas entre pombos pardos da noite. Enchem o banheiro, perturbam os inquilinos, escapam pelas frestas em forma de lombrigas. Ó melancólica impertinência das metáforas! Tenho pena de mim mesmo, pena torpe de animais aflitos. [...]

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RESUMO

No século XX, algumas correntes vanguardistas e radicais passaram a associar o feminino às linguagens e expressões artísticas que se manifestam livremente, ao dissimularem diante do próprio objeto e se animalizarem como um corpo que perde a sua “articulação” – o feminino nas artes, desse modo, passou a provocar a libertação das formas instituídas. Em 2016, inspirada nos conceitos das escrituras de Clarice Lispector, Veronica Stigger estreia a exposição O útero do mundo no MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo –, que reúne uma série de artistas contemporâneos que exploram o corpo “indomável”, corpo, este, que se liberta das anatomias e das ordens biológicas e sociais. No mesmo ano, Stigger publica o livro

Sul (2016), no Brasil, e oferece à literatura contemporânea uma linguagem que encena entre a

verdade/mentira, realidade/ficção, normalidade/anormalidade e, também, puro/impuro através da temática do corpo feminino. Em vista disso, pretende-se identificar por meio da análise de seu livro os mecanismos que a escritora evoca para desmembrar o corpo do texto literário, ao mesmo tempo em que encena e questiona a própria linguagem. É diante das reflexões acerca da sexualidade como transgressão, levantadas por pensadores como Foucault e Artaud, e utilizando estudos literários sobre o feminino na linguagem, bem como a crítica feminista para dar suporte à reflexão do tema, que esta monografia pensará no modo que a escritora transgride na contemporaneidade a partir dos desmembramentos e libertação dos corpos em sua escritura.

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ABSTRACT

In the 20th century, some avant-garde and radical currents began to associate the feminine with languages and artistic expressions that freely manifest themselves by dissembling before the object itself and becoming animalized as a body that loses its "articulation" – the feminine in the arts, in this way, began to provoke the liberation of the instituted forms. In 2016, inspired by the concepts of the writings of Clarice Lispector, Veronica Stigger debuts the exhibition O útero do mundo at MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo – which brings together a series of contemporary artists who explore the "unmanageable" body, which is freed from the anatomy and biological and social orders. In the same year, Stigger publishes the book Sul (2016), in Brazil, and offers to contemporary literature a language that stages between truth / lie, reality / fiction, normality / abnormality and also pure / impure of the female body. In view of this, it is intended to identify through the analysis of her book the mechanisms that the writer evokes to dismember the body of the literary text, while staging and questioning the language itself. It is before the reflections about sexuality as a transgression, raised by thinkers such as Foucault and Artaud, and using literary studies on the feminine in language, as well as feminist criticism to support the reflection of the theme, that this monograph will think in the way the writer transgresses in contemporaneity from the dismemberments and liberation of the bodies in their writing.

Keywords: Veronica Stigger; feminine; contemporary literature; transgression.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 10

2 CORPO EXPOSTO: O FEMININO COMO PORTA DE ENTRADA PARA O MUNDO ... 13

3 A VERDADE SOBRE O CORAÇÃO DE SUL ... 22

4 O FEMININO COMO TRANSGRESSÃO NA LINGUAGEM ... 42

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 52

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1 INTRODUÇÃO

Na exposição O útero do mundo, realizada no MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo, Veronica Stigger afirma que “Deixar o grito emergir é deixar-se levar por esses instintos, é sair ‘dos regulamentos’, mostrar o lado animal guardado ‘em segredo inviolável’” (STIGGER, 2016, p.12), ao se referir à condição do feminino que a crítica e curadora considera intrínseco à linguagem e às artes. O feminino, nessa perspectiva, encontra o seu espaço de liberdade na medida em que rompe com as fronteiras que demarcam os modelos culturais, artísticos e literários. É a partir dessa reflexão que esta monografia analisa o livro

Sul (2016), de autoria também de Veronica Stigger, e se propõe a pensar nas seguintes

questões: Quais são os mecanismos que a escritora escolhe para evocar o feminino na linguagem? Quais são as suas verdades? Qual é o seu espaço de liberdade, isto é, de que forma a escritura de Stigger é transgressiva?

Com o desejo de investigar aquilo que é urgente para se pensar em nossos dias e com a ânsia de conhecer mais as escrituras que traçam o contemporâneo, que eu procurei a orientadora desta pesquisa, a Profª. Drª. Susana Scramim, e contei sobre as minhas inquietações sobre o feminino e a minha trajetória de pesquisa vinculada à crítica feminista. Daí que os nossos interesses se cruzaram: Susana pesquisava, justamente, sobre a encenação em poesia contemporânea e sua relação com o feminino e eu, curiosa, quis me aventurar nessa linha de pesquisa para entender de que modo o feminino evoca uma linguagem encenada. Foi através de uma conversa com a Susana que ela me sugeriu a leitura de Sul (2016), que eu comprei no mesmo dia e devorei as páginas em apenas uma tarde. Empolgada com a linguagem provocativa e impactante de Stigger, concordei com a proposta de pensar em Sul refletindo, em geral, o modo que essa escritura que encena o próprio corpo-texto se condiciona à transgressão.

No primeiro capítulo desta monografia, “Corpo exposto: o feminino como porta de entrada para o mundo”, reflito sobre as inquietações e concepções acerca do feminino nas linguagens artísticas e literárias. Mais precisamente, no modo que o corpo e a linguagem são pensados através da “animalidade”, assim como a necessidade de retornar a uma “vida primária” – tal como Stigger identifica no pensamento de Clarice Lispector em O útero do

mundo – para romper com os limites instaurados no mundo e, só assim, se manifestar

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recorro às ideias de Gubar (2002) sobre o feminino nas artes, bem como a relação com a criação artística e a subversão das tradições históricas e culturais de uma sociedade. Para pensar na linguagem “histérica” busco as inquietações de Ana Cristina Cesar (1999) e a crítica de Didi-Huberman (2015).

É no segundo capítulo, intitulado “A verdade sobre o coração de Sul”, que analiso as partes que compõem o livro, sobretudo, a forma que a realidade/ficção e verdade/mentira são encenadas na escritura de Stigger. Em específico, sobre o conto “2035” penso na brincadeira entre história/ficção e passado/futuro, diante da distopia que Stigger cria ao fazer referência a um fato histórico, no caso a Guerra dos Farrapos, para criar uma “realidade” no futuro. As barreiras entre vida/morte, normalidade/anormalidade e puro/impuro, também são pensadas de acordo com as noções de Kristeva (1980) e Bataille (1993) para refletir sobre a abjeção do corpo feminino que o rito sacrifical presente na narrativa evoca.

Na peça teatral, “Mancha”, apoio-me nas reflexões teatrais de Bentley (1981) e Artaud (2006) para pensar no jogo entre o cômico/trágico, normalidade/anormalidade, assim como verdade/mentira construídas no diálogo entre Carol 1 e Carol 2, diante de uma mancha de sangue no tapete da sala da personagem. Relembro o que Alexandre Nodari se refere à linguagem de Stigger, na orelha da capa do livro, sobre uma experiência de infantilização da língua: “a que crianças fazem ao entrarem em contato com a linguagem que antes não conheciam (in-fans), a tentativa de articulá-la e articular o mundo com ela.” (NODARI, 2016).

Em “O coração dos homens”, poema que se constrói as memórias infantis da primeira vez que a personagem-narradora menstrua, penso no jogo entre articulação/desarticulação da linguagem, puro/impuro, verdade/mentira, realidade/ficção. Para dar suporte à encenação da linguagem do poema, faço uma conexão com a linguagem inquietante e fingida de Ana C. (1999; 2013). Por fim, sobre o poema lacrado, “A verdade sobre o coração dos homens”, dialogo com a noção de performance que Marra (2016) explora acerca do processo de criação literária e a linguagem de Veronica Stigger. Em vista disso, concluo que a performance em

Sul se dá na medida em que a escritora descontextualiza os discursos e “verdades” do mundo,

provocando o leitor a entrar na brincadeira entre realidade/ficção e verdade/mentira em sua escritura.

No último capítulo, “O feminino como transgressão na linguagem”, reflito como a sexualidade é construída através de discursos que estabelecem o que é normal/anormal, assim

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como a linguagem literária é entendida através das barreiras entre a realidade/ficção e verdade/mentira. Escolho os seguintes teóricos para dar base à discussão: Artaud (2006), de acordo com a sua noção de “animalização” do feminino e da necessidade da linguagem “tocar na vida” como forma de libertação das formas instituídas; Foucault (2004; 2009; 2014), através dos “jogos da verdade” e o conceito do “cuidado de si”; e Preciado (2017), que entende o corpo como um objeto de resistência.

Penso que Veronica Stigger, em Sul, evoca uma linguagem provocativa que questiona os parâmetros que as esferas da literatura, sociedades e artes determinam como “verdades absolutas”. Tal como a controvérsia da histeria – “doença feminina” construída em um espaço predominantemente masculino –, os paradigmas de uma sociedade podem e devem ser contestados diante do que se considera normal/anormal. A leitura de Stigger, que para mim antes era novidade, continua de forma incessante a me encher o peito como a correria de nossos dias, suscitando o desejo de se pensar com urgência, de questionar padrões e quebrar barreiras. Assim, entendo que pensar o feminino na linguagem requer se confrontar com o próprio objeto. Como uma literatura que pensa em si mesmo, fazendo do corpo-texto uma ontologia. Sem cair, de novo, em uma forma, mas perceber que há algo de verdadeiramente livre e de transgressivo nessa linguagem que se animaliza.

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2 CORPO EXPOSTO: O FEMININO COMO PORTA DE ENTRADA PARA O MUNDO

A proposta de pensar no feminino como algo intrínseco da linguagem condicionada à transgressão nesta monografia me fez lembrar do artigo de Gubar (2002), intitulado A

“página em branco” e questões acerca da criatividade feminina, em que a autora usa o conto

de Isak Dinesen, “A página em branco”, para falar da criatividade feminina e da sexualidade como um fator influente nos textos literários, o que segundo a autora: “Quando as metáforas da criatividade literária são filtradas por uma lente sexual, a sexualidade feminina é frequentemente identificada com a textualidade.” (GUBAR, 2002, p. 99), em contraponto à forma como a mulher escritora sempre foi tratada como um ser incapaz de criar – inferiorizada justamente por seus textos serem associados ao seu próprio corpo –, à mulher, no entanto, sempre coube o papel de objeto nas artes, mas nunca o papel de criadora.

A história de “A página em branco” se passa em um convento carmelita em Portugal, onde as freiras fabricavam preciosos linhos, que tinham a função de serem usados como lençóis nas casas reais para estamparem a perda da virgindade das princesas. Os lençóis manchados de sangue – indicando um sinal de pureza da princesa à sociedade –, voltavam ao convento para serem emoldurados e expostos em uma galeria dentro do convento. Até que um dia dentro da galeria as “freiras velhas e jovens” viram um lençol completamente em branco – como uma página em branco – e a dúvida acerca do vazio da página ganhou destaque entre todos os outros quadros emoldurados e ensanguentados. O conto de Dinesen, para esta monografia, contribui com algumas reflexões: ele mostra o quanto o sangue é um elemento pertencente à história feminina, mesmo de modo paradoxal: por ser tratado no sentido de pureza – a perda da virgindade e a “violação” do masculino – e de obsceno – no caso do sangue menstrual e, até mesmo, o sangue do parto. Outro ponto que o conto de Dinesen evoca e Gubar aborda em seu artigo é a subversão provocada pela “página em branco” e o retorno da obra à criação produzida pelas mulheres. A página em branco contraria toda a ordem esperada pelas morais da sociedade e da galeria carmelita. É visto que a página em branco emoldurada, o vazio contido no lençol, era tão somente o trabalho fruto da criatividade feminina, Gubar ressalta: “Mas a velha também lisonjeia o lençol branco por este ser o ‘material’ a partir do qual a ‘arte’ é produzida. A criatividade da mulher, por outras palavras, é anterior à literacia: a irmandade produz os lençóis brancos necessários para a escrita” (GUBAR, 2002, p.119). A

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página em branco é, nas palavras de Gubar, a “voz subversiva do silêncio” (GUBAR, 2002, p.120), é através do ato da comunidade feminina de coser o linho, ou seja, o ato de criar o material necessário para a criação artística, que as mulheres subvertem no convento carmelita. Assim como Gubar cita no artigo, segundo a teórica feminista Olive Schreiner, um pequeno livro é o resultado da criação das mulheres que batem as fibras de cânhamo para fabricação das folhas de papel. Dessa forma, a palavra literária não existiria sem as mãos criadoras das mulheres.

Se levarmos a sério a afirmação de Schreiner, nenhuma mulher é uma página em branco: cada mulher é autora da página e autora da autora da página. A arte de produzir o essencial – crianças, comida, tecido – é a criatividade suprema da mulher. Se é tomada como ausência no contexto da cultura patriarcal, é celebrada dentro da comunidade feminina pelas tradições matriarcais da narração oral de histórias. A mulher velha, velada, escura, iletrada que fica fora das portas da cidade no conto de Dinesen representa, assim, a sua avó e a avó da sua avó: “elas e eu transformamo-nos numa só”. Existindo antes dos livros feitos pelos homens, as suas histórias permitem-nos “ouvir a voz do silêncio” (GUBAR, 2002, p.120).

Gubar ainda reflete sobre o quanto as escritoras e as mulheres artistas usam os seus corpos como experimentação, algo que retoma aos antepassados quando à mulher cabia apenas o doméstico e a sua arte limitava-se ao seu corpo, ao seu íntimo.

As “páginas manchadas” são, portanto, resíduos bibliográficos de existências silenciosas, resultados e resposta à vida em vez de uma tentativa de produzir um objecto estético independente. De facto, fosse a comunidade feminina menos sensível ao significado destas marcas, tais lençóis manchados quase nunca seriam considerados arte. Dinesen sugere que o uso que a mulher faz do seu próprio corpo na criação de arte resulta em formas de expressão desvalorizadas ou totalmente invisíveis aos olhos formados pelos padrões estéticos tradicionais. Também parece sugerir que, dentro da vida doméstica atribuída à princesa real desde o seu nascimento, o corpo é o único meio acessível à sua auto-expressão (GUBAR, 2002, p. 104).

Ao longo do artigo, a crítica faz referência a diferentes escritoras que experimentaram o próprio corpo em suas criações, seja tratando a criação artística como uma “ferida dolorosa” ou usando o sangue como um elemento intrínseco da sua arte. Se olharmos para a literatura brasileira é difícil não lembrarmos da poeta Ana Cristina Cesar, mais conhecida como Ana C., que flertou com o feminino durante toda a sua trajetória enquanto escritora e crítica literária. Com as suas inquietações sobre a literatura de autoria feminina, Ana C. já trazia para a sua poesia em forma de diário um jogo entre a realidade e a ficção, fazendo o leitor cair que nem “patinho”1 nos seus escritos até hoje. Ao recusar uma poética autobiográfica e intimista

1 Em uma entrevista no curso “Literatura de Mulheres no Brasil”, Ana C. fala do phatos na literatura que,

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despertada pela proposta da escrita em diário, Ana Cristina Cesar já afirmava que a poesia é uma construção, um jogo entre a realidade e a ficção. Nas palavras da poeta o que consta no poema é um “fingimento”:

Aqui não é um diário mesmo, de verdade, não é meu diário. Aqui é fingido, inventado, certo? Não são realmente fatos da minha vida. É uma construção. […] A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se coloca na literatura. É como se eu estivesse brincando, jogando com essa tensão, com essa barreira (CESAR, 1999, p. 259).

Com um tom sarcástico, Ana C. seduzia o leitor curioso com os fatos autobiográficos. Ao recusar um estigma de uma escrita de autoria feminina – “pra baixo”, ligada às questões pessoais – pode-se dizer que a poeta trouxe à tona para a poesia brasileira no século XX, uma escrita “histérica”, que tem a “arte da encenação” como forma de explorar o feminino na linguagem. Segundo Didi-Huberman (2015), um corpo histérico tornou-se a verdadeira arte da encenação, em vista disso, afirma: “Mimese, sintoma histérico por excelência. A histeria considerada como ‘toda uma arte’, a arte e a maneira do teatralismo, como ainda se diz na psiquiatria, e que nenhuma teatralidade teria forças para igualar o cabotinismo.” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 227).

Com a proposta de pensar na estética da fotografia, Didi-Huberman apresenta em seu livro A invenção da histeria: Charcot e a Iconografia fotográfica da Salpêtrière uma arqueologia da “doença” que marcou o século XIX, a histeria – que vem da palavra hústera – era considerada uma forte neurose provocada pelo útero que afetava, especialmente, as mulheres. O filósofo explora em seu estudo a forma como a feminilidade passou a ser associada ao irracional, à loucura, uma vez que o útero era entendido como um “animal” que se desloca pelo corpo.

A palavra “histeria” apareceu pela primeira vez no trigésimo quinto aforismo de Hipócrates, que diz: “Na mulher atacada de histeria, ou que atravessa um parto trabalhoso, o acesso de espirros que sobrevém é favorável.” Isto significa que espirrar recoloca o útero em sua posição, em seu lugar certo; o que significa que o útero é dotado de deslocamento. O que significa que essa espécie de “membro” da mulher é um animal (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 103).

diante do texto, cai que nem um “patinho” na intimidade: “Não, não é entrelinha isso. Acho que isso é puxar o

significante, é diferente. A entrelinha quer dizer: tem aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra, e o autor está insinuando uma terceira. Não tem insinuação nenhuma, não. Fala em pato, você puxa as associações que você quiser com aquilo. Eu posso lembrar de várias, mas não vou chegar nunca na verdade do meu texto. Não vou dizer nunca para você que, para mim, o símbolo pato significa… Dá pra você puxar. Então, acho que devo puxar. Eu puxo. Agora nessa conversa, nesse pacto aqui nosso, eu puxei que a gente pode cair que nem um patinho na armadilha da intimidade, achar que estou revelando minha intimidade ou escondendo minha intimidade e não é isso, sabe? Podemos puxar outros. Ler é meio que puxar fios, e não decifrar. Mas é legal isso, do pato. Uma constelação.” (CESAR, 1999, p. 263-264).

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Didi-Huberman desvenda o modo como o feminino era tratado como algo misterioso, fora do normal, e que mesmo numa área medicinal, o feminino trazia algo de puramente estético e inspirador para a arte. Ao considerar que Charcot, o “pai da histeria”, era apaixonado por dramaturgia e muito do que ele incitava aos corpos das histéricas estava ligado à arte da encenação, o filósofo afirma que o corpo feminino, no entanto, era um objeto de experimentação, capaz de manifestar gestos passionais e inspiradores.

Quanto a Charcot, ele estava em busca de uma unidade dramática, não de uma cisão. Mais do que interpretar, criava uma cenografia, de acordo com a unidade de lugar e tempo de uma representação muito “clássica”. Precisava de tudo na mesma cena, uma espécie de recinto de visibilidade, para seu olhar unificado. [...] É que Charcot exigia assistir a tudo. Refutava de antemão a ideia de “outra cena” (isto é, de uma cena absolutamente inatingível pelo olhar). (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 193).

Não é à toa que anos mais tarde os surrealistas consideraram a Iconographie

photographique de la Salpêtrière – obra de fotografias das mulheres histéricas, organizada

por Charcot em 1878 – “um meio supremo de expressão” (1928 apud STIGGER, 2016, p. 8) e, a partir disso, resultou que Didi-Huberman fizesse o estudo da “invenção da histeria”, onde o filósofo afirma logo no início do seu livro:

[...] a histeria, em todos os momentos de sua história, foi uma dor forçada a ser inventada, como espetáculo e como imagem; chegou até a inventar a si mesma (sua imposição era sua essência), quando fraquejou o talento dos fabricantes patenteados da Histeria. Uma invenção: um evento dos significantes (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 21).

A partir daí certas correntes revolucionárias e vanguardistas do século XX passaram a associar o feminino às expressões artísticas como a possibilidade de manifestar o insano, o absurdo, o transgressivo. O feminino, desse modo, provocou que os artistas desejassem experimentar novas condições à arte, tal sentimento é o que Artaud escreve “Quero experimentar um feminino terrível.” (ARTAUD, 2006, p.167), fazendo jus ao que explora no teatro – uma poética profunda e passional capaz de se elevar às estéticas até então esperadas.

Além de trazer para a literatura brasileira a impossibilidade de uma intimidade no texto literário, Ana C. em seus registros questionou acerca das definições do feminino na poesia. Diante do estigma de uma literatura escrita por mulher ligada ao “etéreo” e ao “pueril”, uma poesia delicada ligada às imagens como “Perfume, pérola, flor, madrugada, mar, estrela, orvalho, pólen, coração” (CESAR, 1999, p. 224), mas que ao mesmo tempo instaura-se mediante uma contradição, que o senso comum do poético configura por ser considerado “inatingível, inefável, profundo” (CESAR, 1999, p. 224), a poeta traz à tona a

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percepção de uma literatura de autoria feminina mais “bruta”, “visceral” e, também, ligada à realidade das mulheres: “não haveria por trás dessa concepção fluídica de poesia um sintomático calar de temas de mulher, ou de uma possível poesia moderna de mulher, violenta, briguenta, cafona, onipotente, sei lá?” (CESAR, 1999, p. 225). E, ainda, sobre uma possível incomunicabilidade desse feminino, Ana C. questiona: “Poder-se-ia dizer que o apegamento ao real seja uma das características do homem em oposição à mulher? (CESAR, 1999, p. 224). A poeta responde mais tarde em uma entrevista:

[...] Talvez o feminino seja alguma coisa de mais violento que isso. Talvez o feminino seja mais sangue, mais ligado à terra. [...] Quer dizer, a mulher tem até uma vantagem pra falar nisso, mas o homem também fala desse lado assim mais escuro, mais violento, mais passional (CESAR, 1999, p. 269).

Diante dessa perspectiva, a poeta afirma que a escrita por mulheres sempre foi associada a uma literatura que foge do normal, pelo simples fato de ser e vir de um mundo feminino, sendo vista como uma literatura transgressiva – distante do que a literatura tradicional sempre retratou. Ana C. ao afirmar que a literatura feminina se condiciona ao violento e ao sangue, aproxima a linguagem do feminino a uma linguagem “histérica”, ligada à anormalidade, ao passional e à teatralidade. Percebe-se que a linguagem de Ana C., essa incomunicabilidade da qual a poeta fala, aproxima-se da encenação e da sedução que Didi-Huberman destaca nos gestos realizados pelas histéricas da Salpêtrière. Em uma passagem onde ele analisa as fotografias feitas por Charcot, o filósofo reflete:

Em todo caso, essas jovens parecem mostrar que não são o que aparenta ser. As imagens tiradas delas já nos forçam a um ceticismo em relação às imagens, o que é um efeito dos seus quase rostos. Isso dá nome à aura, ao farfalhar de plumas e ao voo de sua actio in distans, e a tudo que delas nos atrai por essa razão. É desvio, dissimulação que vela, suspensão de qualquer oposição decidível entre a verdade e a inverdade da imagem, é o enigma velado de uma proximidade imediata (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 147).

Didi-Huberman usa o exemplo de Augustine para refletir sobre a dissimulação da histeria. Augustine, incitada por Charcot, emitia gestos e encenava as suas angústias e traumas, que seriam observados pelos médicos da Salpêtrière. Didi-Huberman escreve: “Todavia, Augustine reecenava sua violação, reecenava-a num só-depois. Mas o que quer dizer reecenar? E qual é a eficiência própria de um só-depois?” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 222) e conclui mais adiante: “Reecenar já é pontuar, é sublinhar, de certo modo, é exagerar, aumentar, forçar os espectadores da cena a ‘dar nome aos bois’ [...]” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 223). Não seria o feminino, então, a arte que evoca a possibilidade de abrir um leque de significações, de ser provocativa, de querer dizer o que era até então silenciado?

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Na curadoria da mostra O útero do mundo, exposta no MAM em 2016, Veronica Stigger seleciona conceitos usados pela escritora Clarice Lispector como bússola para pensar a histeria na arte contemporânea. Nada como utilizar o pensamento de Lispector, que – assim como Ana C. – contribuiu para a literatura brasileira com uma linguagem ímpar e lancinante, além de oferecer críticas e reflexões sobre a arte literária considerada transgressiva para a sua época. Ao estudar Clarice Lispector, Stigger percebeu nos próprios textos literários da escritora um pensamento sobre a linguagem, ou melhor, sobre as origens da linguagem, tal como a “vida primária” e o “útero do mundo’’. Em entrevista à revista Malba – do Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires –, Stigger afirma: “Veo a Clarice no solo como una escritora – una narradora creadora de ficciones – excepcional, sino también como una filósofa, una creadora de conceptos” (STIGGER, 2017), defende Stigger o que a meu ver Clarice explora em Água Viva onde escreve “o mais profundo pensamento é um coração batendo” (LISPECTOR, 1973, p. 53). A linguagem de Clarice aproxima-se da linguagem histérica, livre, provocativa e inovadora, o que suscitou Stigger a percorrer os conceitos usados pela escritora para construir a mostra do MAM e definir o que ela chama de uma “arte histérica”, aqui, no sentido positivo e criativo da palavra:

Em contraposição, portanto, a uma visão negativa da histeria, elabora-se, no âmbito artístico, uma visão positiva, a que não falta, porém, ironia – a ironia de quem sabe estar se confrontando, a cada palavra, a cada gesto, a cada imagem, com um discurso predominantemente antagônico sobre o mesmo objeto (STIGGER, 2016, p. 8).

A partir de Água Viva, A paixão segundo G.H. e A hora da estrela, Stigger selecionou três conceitos: grito ancestral, montagem humana e vida primária, que serviram como base para apresentar obras consagradas de artistas como Lívio Abramo, Claudia Andujar, Flávio de Carvalho, Otto Stupakoff, Laura Lima e Rodrigo Braga que usam o corpo como objeto de experimentação capaz de submeter-se ao desmembramento, à deformidade e à animalidade. Stigger afirma, em entrevista:

¿Y de qué modo esa irascibilidad y esa variabilidad se muestran? Principalmente, en la desestabilización del cuerpo. El cuerpo es el lugar supremo de expresión de un impulso desvariado. Bajo ese impulso, el cuerpo se secciona, se convulsiona, se desorganiza, se transforma, pierde contornos y definición. Nos encontramos, en síntesis, frente a un cuerpo indomable, un cuerpo que, como en la descripción de Freud del cuerpo histérico, no respeta a la anatomía. No respetar a la anatomía significa no respetar a la propia constitución biológica. Y un cuerpo que comienza a perder el respeto por la propia constitución biológica es un cuerpo libre. (STIGGER, 2017).

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E para o corpo ser livre, o primeiro impulso que ele tem para quebrar as barreiras é se libertando do silêncio. O que em literatura, remete a toda quebra de ruptura do que é considerado tradicional na linguagem. Não por acaso citei Gubar no início deste capítulo, que nos mostra o silêncio que a página em branco demonstra na galeria entre os outros quadros “padronizados”, o que soou gritante no sentido de ser uma manifestação artística transgressiva que vai falar do feminino, de forma livre, brutal e visceral.

Assim, o conceito de grito ancestral que a curadora apresenta em O útero do mundo se refere a uma “desarticulação da linguagem”, que a própria Clarice Lispector em seus textos “retomou com brilho o elogio do impulso histérico na forma de um pensamento simultâneo da forma artística e do corpo humano como lugares de êxtase, isto é, de saída de

si – e de saída, portanto, também das ideias convencionais tanto de arte quanto de

humanidade.” (STIGGER, 2016, p. 8-9). Dessa forma, a obra de Clarice aponta para uma “histeria na e da linguagem” (BRANDÃO, 2006, p.120), como afirma a crítica Ruth Silviano Brandão. O grito ancestral, como Stigger aponta, “é anterior à fala, ou talvez porque posterior à destruição da linguagem articulada” (STIGGER, 2016, p.11), assim, o grito torna-se primordial para a criação de toda nova linguagem ou expressão artística, como um impulso angustiante daquilo que se quer expressar, mas que não se consegue articular. Tal como um grito histérico, a arte que grita sempre foge da normalidade, seja ele “real ou encenado”.

Gritar é “revelar a carência”, deixar claro que não sabe como lidar com o bicho que se apresenta à sua frente e que, como vimos, a obriga a assumir “instintos abafados”. Deixar o grito emergir é deixar-se levar por esses instintos, é sair “dos regulamentos”, mostrar o lado animal guardado “em segredo inviolável”. [...] Gritar é, em certa medida, libertar-se, romper as frágeis barreiras que delimitam aquilo a que convencionamos chamar de “cultura” (que abrange, entre outros aspectos, uma série de regras de conduta) em oposição à “natureza”, isto é, em oposição ao que há de selvagem e indomável em nós. (STIGGER, 2016, p.12-13).

Didi-Huberman (2015) evidencia que “Um grito nunca é previsível nas encenações terapêuticas. E depois, além de ser imprevisível, o grito, repito, presentifica a própria aresta em que dor e prazer se estreitam de forma absoluta” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 369). No entanto, por não ser previsível, o corpo se revela “indomável” e ao se livrar do silêncio que o transtorna, o corpo precisa então se desorganizar para, só assim, se organizar em uma nova forma. Em montagem humana, Stigger salienta que a desarticulação do corpo não só possui efeitos na linguagem, mas também no próprio corpo, o corpo indomável, aqui, é um corpo livre, sem formas definidas. A manifestação histérica na linguagem provocaria efeitos físicos,

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ou seja, efeitos na própria forma. No entanto, o feminino dá forma ao “informe”, ao que não se classifica e não se encaixa em padrões.

Há algo de histérico, no sentido que temos dado ao termo, nesse processo de desarticulação do corpo, que, em certa literatura, se replica na desarticulação da linguagem. Em seu estudo sobre a representação na modernidade da figura do monstro (isto é, da figura humana deformada), Jean Clair observa que a histeria “cria um corpo inacreditável que parece pura manifestação da linguagem, pura manifestação da palavra, e que, portanto, produz efeitos físicos (STIGGER, 2016, p. 16).

Clarice aponta em Água Viva “Antes de me organizar tenho que me desorganizar internamente” (LISPECTOR, 1973, p. 80), é essa perda do eu, a perda do que é humano que a narradora escreve é que leva a escrita a sua forma mais livre, talvez não a uma nova forma, mas a uma não-forma da linguagem. Sobre a histeria, Stigger reflete:

O corpo convulsivo, indomável, é também, portanto, um corpo livre de qualquer pré-determinação biológica absoluta, um corpo que se destrói, se deforma, no sentido de que perde a sua forma original, e, ao se destruir e se deformar, se transforma, ou melhor, se fabrica novamente. (STIGGER, 2016, p. 17)

É em vida primária que o corpo da forma mais humana, ou seja, o corpo articulado, volta a sua forma primária. Em A paixão segundo G.H., a narradora escreve: “Eu ia me defrontar em mim com um grau de vida tão primeiro que estava próxima do inanimado” (LISPECTOR, 2009, p.22). Stigger pensa, a partir dessa cena, na desestabilização do corpo diante do que é “animal”: “ver-se diante da barata é ver-se diante do animal que a convoca a ser também ela animal, que, em outras palavras, a obriga a revelar “instintos abafados” (STIGGER, 2016, p.18), confirmando o que a própria narradora de A paixão segundo G.H. alerta sobre uma vida animal: “Não, não te assustes! Certamente o que me havia salvo até aquele momento da vida sentimentizada de que eu vivia, é que o inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gente”(LISPECTOR, 2009, p.68). Ao se deparar com a barata – animal considerado o mais primário da vida humana –, G.H. experimenta a passagem da sua existência cotidiana para o caminho do inumano.

Essa ida à vida primária se aproxima da “vida divina”, da qual Clarice Lispector evoca em A paixão segundo G.H. através do enfrentamento com a barata, ou melhor, de uma passagem de “animalização” do humano: “Segura a minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua” (LISPECTOR, 2009, p.59). Através desse pensamento, Stigger afirma:

A ida em direção à “vida primária”, que é, em certa medida, um itinerário em direção ao divino, se revela não como uma previsível ascensão, mas como uma

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descida, em certa medida, uma descida de volta à terra, o fundo comum de humanos e animais, elemento de vida e morte. No entanto, não há nada de escuro e opressor nesse “inferno” rumo ao qual ela se encaminha: conforme já assinalamos, o quarto da empregada, ao contrário do que G. H. esperava, era iluminado (STIGGER, 2016, p.19).

Como a página em branco de Gubar, a vida primária se manifesta de forma divina como um retorno à cena de origem, desestabilizando o cotidiano e a percepção que temos do mundo “civilizado”. Não por acaso, a troca do pênis pelo útero, “como modelo de criatividade” (GUBAR, 2002, p.123), como bem assinala Gubar, abre a possibilidade de novos (re)nascimentos. Nada como um espaço vazio – como uma folha em branco ou um útero – para poder criar novos mundos, novas realidades e deixar o corpo, enfim, manifestar-se livremente. Tal como Stigger assinala:

Se, como Clarice Lispector afirma em Água viva, “o útero do mundo” se apresenta como uma “ancestral caverna” de onde se pode voltar a nascer, podemos ver a vagina como a figura por excelência dessa possibilidade de renascimento, com tudo que ela tem de ambivalente e perturbadora. Porta de entrada para o útero do mundo – mas também porta de saída para o mundo. Figura tão difícil de encarar – quase uma Medusa em miniatura – precisamente porque nos põe diante do abismo das aberturas do corpo, do corpo como coisa que se abre. (STIGGER, 2016, p.21).

Na vida primária, entretanto, nada se perde, como afirma Stigger não é um retorno ao passado, mas um retorno ao início de tudo, ao início da vida, é o momento que nos deparamos com um mundo que ainda está por vir. E nada mais libertador que, após anos de linguagem “articulada”, animalizar a linguagem, a arte, de tal forma que rebele os tempos em que vivemos. Afinal, como escreve Stigger: “A vagina – vida primária que desmonta desde dentro a montagem humana, obrigando-a a remontar-se – também grita: grita, hoje e sempre, o mais ancestral dos gritos, que é também o grito do que ainda não veio de todo, mas virá” (STIGGER, 2016, p.21).

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3 A VERDADE SOBRE O CORAÇÃO DE SUL

Em 2016, Veronica Stigger publica o seu livro Sul no Brasil – primeiramente lançado na Argentina em 2013 –, a edição brasileira lançada pela Editora 34 apresenta o livro com uma capa vermelha, contrastando com a cor branca, e uma foto da escritora quando criança estampando a capa. O livro dividido em três partes – um conto, uma peça teatral e um poema, além de um poema velado na edição brasileira – explora, de modo geral, o sangue como consequência da violência, o sangue menstrual, a fase púbere e outras questões do feminino. Apesar de, num primeiro momento, a figura infantil da capa e a personagem do conto nos transportar à infância, a proposta de Stigger não foi escrever sobre a infância propriamente dita, mas sobre as diversas formas de violências em uma sociedade, como a própria afirma em entrevista para o Jornal da Biblioteca Pública do Paraná: “Em síntese, acho que Sul pode ser lido mais como um livro sobre a violência da sociedade e, por extensão, do estado (ou vice-versa...) do que como um livro sobre a violência do fim da infância” (STIGGER, [2017?]). Essa violência do estado, como veremos, se refere principalmente ao corpo feminino. Em Sul, o feminino também se dá à encenação na linguagem que Stigger explora nas escrituras que compõem o livro: como corpos desmembrados onde discursos e textos se contorcem diante das suas verdades. Para dar início ao livro, Stigger escreve um pequeno conto, como se fosse uma epígrafe, fazendo referência à região Sul:

“Agora vocês vão ver”, dizia ele aos irmãos e aos primos, que gargalhavam como aves de mau agouro, enquanto espalhava pelas paredes do quarto o sangue que saía aos borbotões de seu portentoso nariz, “vou lá contar tudo para o pai e ele vai dar uma surra bem dada em vocês, seus guris de merda.” Ninguém – nem mesmo o pai que entraria no quarto minutos depois – percebeu que a mancha de sangue na parede branca assumira o contorno do mapa do Sul. (STIGGER, 2016, p.11).

O sul, região onde a escritora nasceu, se faz presente nas narrativas, principalmente no conto que abre o livro – intitulado “2035”. Stigger, em entrevista, diz ter produzido o conto a partir de uma proposta de escrita para uma coletânea de textos sobre guerra, o que coube à escritora criar um texto literário inspirado na Guerra dos Farrapos: daí surgiu um conto com o cenário de um futuro distópico, fazendo alusão aos duzentos anos da farroupilha. “2035”, inicia com oficiais da cidade batendo na porta de uma família humilde para resgatar uma menina, chamada Constância, na véspera de seu aniversário de dez anos de idade. Os oficiais traziam “dois facões, um pé de cabra e um civil” (STIGGER, 2016, p.13), o civil puxava um riquixá e tinha as roupas velhas e desgastadas.

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Um dos oficiais bateu, então, com o pé de cabra na porta do apartamento, o único do andar. O barulho súbito e inesperado acordou a menina. Ainda entre sonhos, Constância pensou que talvez fosse a fada dos presentes. Seus pais haviam lhe contado que, quando eram crianças, recebiam, nas datas de seus aniversários, o que chamavam de presentes. Na imaginação de Constância, até que fazia sentido a fada aparecer para ela justo naquele dia em que completava dez anos. Dez anos era uma idade cheia, ela já era quase uma adolescente, quase uma adulta na verdade, os sapatos de sua mãe já lhe serviam bem, ela nem precisava mais colocar tantos trapos nas pontas dos sapatos, ela merecia um presente, podia até ser um presente pequeno. (STIGGER, 2016, p. 14-15).

O pai de Constância sem entender nada pergunta aos oficiais por qual motivo levariam a sua filha e eles afirmam que Constância seria levada por ordens do governo, e que se tratava simplesmente “das grandes comemorações” (STIGGER, 2016, p. 15). A personagem, então, é levada pelos oficiais e, a partir daí, a narrativa descreve todo o caminho de Constância à suposta festa como um cenário cinzento, devastado e desértico que remete a um período de pós-guerra. Apenas sacos coloridos davam cor à cidade:

As ruas estavam silenciosas e praticamente desertas. Eles cruzaram apenas por um grupo de três pessoas, talvez uma família como a de Constância, que procuravam alguma coisa em meio a uma série de sacos cheios e fechados que coloriam a calçada em frente a um prédio largo, parecido com um caixote, que ocupava quase todo o quarteirão. (STIGGER, 2016, p. 19).

A menina é persuadida pelos oficiais a açoitar o civil até chegar ao local onde seria a festa: “Chegando à rua, o civil colocou a menina no riquixá e se preparou para puxá-la. Um dos oficiais deu a ela um chicote e disse-lhe que era para usar no civil. Ela olhou para o oficial, olhou para o chicote e franziu a testa” (STIGGER, 2016, p. 18-19). A narrativa prossegue até a cena principal, onde a personagem chega ao local das “comemorações” que, diferente da cidade desolada, era um parque onde “Tudo ali brilhava” (STIGGER, 2016, p.22) e “[...] meia dúzia de prédios construídos especialmente para as comemorações chamavam atenção pela monumentalidade, pela beleza e pela transparência” (STIGGER, 2016, p. 23). Constância é encaminhada a um processo ritual, no qual duas “mulheres jovens, morenas, com cabelos presos em grossas tranças e vestidas com aventais brancos” (STIGGER, 2016, p.23), preparam Constância para a cerimônia. O preparo se dá em uma sala toda branca, onde Constância toma banho quente em uma banheira dourada, as duas mulheres cortam os seus cabelos loiros, trocam a sua camisola por uma túnica branca e calçam a menina com sapatos “de seu exato número, com figuras de homens e cavalos bordados sobre o cetim branco” (STIGGER, 2016, p. 25), além de “uma coroa de flores sobre o cabelo cor de ouro” (STIGGER, 2016, p. 25). A personagem, finalmente pronta, é levada para o centro do parque,

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onde fogos de artifício coloriram o céu e crianças de dez anos – também vestidas de túnicas brancas – dançavam em volta da menina, que é depositada em uma grande almofada azul, onde quatro oficiais, cada um em cima de um cavalo, esperavam-na para ser amarrada por uma das pernas ou um dos braços na sela de cada cavalo. A cerimônia sacrificial, dessa forma, acontece: “Cada um correu para um lado, levando consigo um dos membros de Constância e deixando o rastro vermelho sobre a grama verde.” (STIGGER, 2016, p. 27).

Percebe-se que, através de um fato histórico – a Guerra dos Farrapos –, Stigger cria uma realidade que beira ao escatológico, na medida em que descontextualiza símbolos e verdades/realidades da região Sul para uma “realidade” distópica: um cenário futuro de pós-guerra e uma cena violenta de um rito sacrificial. Há uma encenação na linguagem que oscila entre a verdade e mentira, história e ficção. O mapa do Sul – imagem que dá contorno à mancha de sangue na parede branca no conto-epígrafe –, por exemplo, aparece novamente em “2035”, através das cores que os fogos de artifício iluminam o céu da celebração ritual. As cores verde, vermelho e amarelo, como símbolo da bandeira do Rio Grande do Sul, em um sinal de patriotismo, colorem o céu da cidade cinza, assim como o povo em miséria e o caráter violento da história – onde figuras de homens que estão em uma posição de poder acima da figura feminina – se relacionam com uma verdade da região Sul, como podemos ver na passagem a seguir:

Na porta daquele edifício envidraçado, as quatro mulheres e Constância reencontraram os oficiais, que as esperavam com uma espécie de andor, carregado pelo civil, que agora vestia um poncho branco, e por mais três rapazes parecidos com ele. Um dos oficiais ergueu Constância nos braços e a colocou na cadeira reservada a ela. Quando os civis levantaram o andor, fogos de artifício coloriam o céu de verde, vermelho e amarelo. Aqueles homens e mulheres, que antes dormiam nos bancos, chegaram mais perto para ver os fogos. Outros, que transportavam seus riquixás pelas ruas transversais, pararam por alguns instantes para se informar sobre o que acontecia. Uma ou outra pessoa que passava, célere, por ali, diminuiu um pouco o passo, curiosa. Os civis desfilaram ao longo do parque com Constância sentada no andor: eles foram até o outro extremo e voltaram. Dez grupos de dez crianças cada – todas de dez anos e também vestidas com túnicas brancas – dançavam em volta do andor de Constância. A menina olhava para tudo e para todos, sorrindo. (STIGGER, 2016, p. 26).

A cena de violência torna-se bem mais violenta na medida em que o povo também participa como espectador, dessa forma, a naturalização da cena entra em contraponto ao estranhamento que o conto evoca em nossa atualidade. Essa naturalidade encenada das personagens dá relevância à cena de celebração ritual que exerce o papel de canalizar as violências do estado para o corpo feminino – um corpo que, em “2035”, se desloca entre vida/morte, como fica evidente logo quando o oficial afirma: “[...] que a festa começaria logo

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mais, às dez e meia da manhã, no horário exato em que Constância havia nascido.” (STIGGER, 2016, p. 16-17).

É importante salientar que, em Sul, o corpo feminino entra no jogo da verdade que Stigger explora em seus textos. A escritora faz o leitor adentrar no seu universo de palavras, percorrendo o sangue que habita o corpo, oscilando entre o puro e impuro que o rodeia, e nos aproximando cada vez mais desse universo estranho. Segundo Ruth Benedict (2013), as sociedades desde as mais primitivas consideram a puberdade como uma fase marcante na vida das mulheres, sendo associada a uma fonte de bênção ou de maldição, a primeira menstruação da mulher é marcada por um acontecimento digno de comemorações, cerimônias ou de condenação. Sendo assim, os rituais femininos, de diferentes sociedades, tratam a menstruação como um evento de grande importância, Benedict ressalta a menstruação como um exemplo em seu livro para falar da diversidade de culturas:

É fácil transformar as cerimônias de puberdade das moças baseadas em ideias ligadas à menstruação naquilo que, do ponto de vista da pessoa envolvida, é comportamento exatamente oposto. Há sempre duas perspectivas possíveis no que tange ao sagrado: pode ser uma fonte de risco ou uma fonte de bênção. (BENEDICT, 2013, p. 31).

É possível notar que o ritual em “2035” aproxima-se de um rito de sacrifício e o objeto a ser sacrificado – “destruído” seria, aqui, o caso – é a Constância, uma menina em fase púbere. Bataille (1993) afirma que a destruição do sacrifício não tem a ver com o aniquilamento do ser, mas, sobretudo, a destruição da coisa, assim afirma: “O que o sacrifício quer destruir na vítima é a coisa — somente a coisa. O sacrifício destrói os laços de subordinação reais de um objeto, arranca a vítima ao mundo da utilidade e a entrega ao do capricho ininteligível.” (BATAILLE, 1993). A coisa, da qual Bataille se refere, que está suscetível à destruição é, portanto, tudo aquilo que se situa entre os limites do corpo, que está entre o dentro e o fora, e que não se separa da nossa subjetividade. Kristeva, em Poderes do

Horror, entende a abjeção como tudo aquilo que é íntimo do sujeito, mas que ao mesmo

tempo se afasta do corpo e, por isso, causa horror e estranhamento, na medida em que o sujeito rejeita, mas não o separa. Nas palavras de Kristeva, a abjeção “[...] ao demarcar, ela não separa radicalmente o sujeito daquilo que o ameaça – pelo contrário, ela o reconhece em perigo perpétuo” (KRISTEVA, 1980, p.9). O abjeto, para Kristeva, também perturba uma ordem, em suas palavras: “Não é, pois, a ausência de limpeza [propreté] ou de saúde que torna abjeto, mas aquilo que perturba uma identidade, um sistema, uma ordem. Aquilo que

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não respeita os limites, os lugares, as regras. O intermediário, o ambíguo, o misto” (KRISTEVA, 1980, p. 4).

E nada mais abjeto na história das sociedades que o corpo feminino. Um corpo capaz de expandir-se para além do ser, um corpo que possibilita criar vida, tal como já pensou Kristeva que o corpo materno é o mais abjeto de todos: o tabu do leite materno como alimento, o jorro do sangue menstrual e do sangue do parto. O abjeto, segundo a teórica, está na ordem de tudo que é imoral, que causa desordem. O abjeto é aquilo que subverte na sociedade. É aquilo que há de mais íntimo do ser e, ao mesmo tempo, é tão próximo do lado “animal” do ser.

O abjeto nos confronta, por um lado, nesses estados frágeis em que o homem erra nos territórios do animal. Assim, por meio da abjeção, as sociedades primitivas delimitaram uma zona precisa de sua cultura a fim de separá-la do mundo ameaçador do animal ou da animalidade, imaginados como representantes da morte e do sexo. (KRISTEVA,1980, p.11).

No conto de Stigger, essa abjeção do corpo feminino pode ser lida pelo fato de a personagem se encontrar em fase de iniciação púbere. Não sabemos, entretanto, se o corpo de Constância – prestes a completar dez anos – já menstruou, o sangue que jorra no conto é consequência da violência compreendida no rito, de um sacrifício refletido e canalizado pelas violências de uma sociedade. A imagem de oficiais em cima dos cavalos, como símbolo, nos sapatos de Constância e, de fato, no processo ritual indicam o cenário de violência de uma cidade destroçada pela guerra realizada pelos homens. O corpo de Constância, dessa forma, serve como um meio de canalizar essa violência, de dar suporte às tensões que se instauram nas violências praticadas no mundo dos homens. Mauss (2005) escreve que os sacrifícios, em geral, se manifestam – seja em forma de purificações ou expiações – e se renovam conforme as morais e desejos da coletividade de certo período e sociedade. Para Mauss, o processo ritual é uma função social, pois, “o sacrifício se relaciona a coisas sociais” (MAUSS, 2005, p. 108). Assim, afirma:

A norma social é então mantida sem perigo para os indivíduos e sem prejuízo para o grupo. Assim a função social do sacrifício é cumprida, tanto para os indivíduos quanto para a coletividade. E como a sociedade é feita não apenas de homens, mas também de coisas e acontecimentos, percebe-se como o sacrifício pode acompanhar e reproduzir ao mesmo tempo o ritmo da vida humana e o da natureza, como pode tornar-se periódico em função dos fenômenos naturais, ocasional como as necessidades momentâneas dos homens, submetendo-se enfim a inúmeras funções. (MAUSS, 2005, p. 109).

É através dessas reflexões que Stigger brinca com os limites do literário e das verdades, na medida em que transporta um fato que aconteceu no passado para o tempo

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futuro. A história real é deslocada para uma ficção que, ao mesmo tempo, se aproxima tanto do real ao evocar o que há de mais excruciante em uma sociedade dominada pelos homens. É nessa brincadeira entre a verdade/mentira, rito/violência, puro/impuro, passado/futuro que Stigger escreve um conto pertinente em nossa sociedade atual. Esse desmembramento que a escritora dá à linguagem lembra o que Ludmer (2010) define sobre as escrituras “pós-autônomas”, como aquelas que se escrevem em nossa contemporaneidade e que, ao se fundirem entre a “realidadeficção”, dão fim ao “literário”, às classificações como a distinção literária entre realidade histórica e ficção. Ludmer afirma que: “Não se pode ler essas escrituras com ou nesses termos; são as duas coisas, oscilam entre as duas ou as desdiferenciam (LUDMER, 2010, p. 3)”. É o que Nodari, também já afirma sobre Sul na orelha do livro: “[...] fala e verdade, linguagem e mundo, texto e contexto encontram-se desmembrados (NODARI, 2016)”.

Se em “2035”, Stigger aborda a violência exercida pelo estado em uma cidade em ruínas, em “Mancha” a escritora aborda a violência, através de uma peça teatral, de forma banal na medida em que as duas personagens discutem sobre uma misteriosa mancha de sangue no tapete da sala. O diálogo próximo ao nonsense e o mistério não solucionado constitui “Mancha”, o segundo texto literário de Sul, onde a escritora experimenta uma peça um pouco diferente do conto e do poema apresentados em seu livro. Na peça, a escritora não apresenta nenhuma figura infantil, apenas o que se assemelha aos outros textos é a “violência” como tema desnorteador e, podemos dizer agora, desencadeador da trama.

“Mancha” inicia com a personagem Carol 1 se maquiando, até a sua amiga Carol 2 chegar em seu apartamento e tocar a campainha. O cenário completamente branco, assim como as roupas das personagens, – como descreve a peça: “Do outro lado da porta, está Carol 2. Ela é mais baixa que Carol 1 e usa um vestido branco semelhante ao da outra, também com botas brancas” (STIGGER, 2016, p.30) –, contrasta com as manchas de sangue espalhadas pela sala do apartamento, o que fará com que Carol 2 se espante com o que vê e começa a interrogar Carol 1 sobre o ocorrido: “Como o sangue pode estar fresco na maçaneta? O sangue não deveria estar coagulado? Ele não deveria estar seco, grudado na maçaneta?” (STIGGER, 2016, p. 31). Dessa forma, o tema central da peça, o “problema” da trama, gira em torno das manchas de sangue no apartamento de Carol 1, e o diálogo se encaminha a fim de Carol 2 desvendar o acontecido, mas percebe-se que o problema – as manchas de sangue – tornam-se, ao mesmo tempo, como algo banal pelas personagens, principalmente por Carol 1.

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Além das manchas de sangue, há em cena um barulho de um chuveiro ligado e um homem – que não descobrimos quem é – que, supostamente, é a vítima desse sangramento. Dessa forma, em “Mancha” temos um problema, que são as manchas de sangue e, ao mesmo tempo, temos a banalização do problema. Ao perceber que Carol 2 se assusta com as manchas, Carol 1 hesita e, logo depois, finge não se importar, “revira os olhos, suspira e volta a bater o pé no chão.” (STIGGER, 2016, p. 31).

Carol 1 continua se maquiando defronte ao espelho. Aplica pó de arroz em todo o rosto, numa quantidade um tanto exagerada. Carol 2 anda em direção ao centro do palco, mas, no segundo passo, sua bota afunda numa poça de sangue. Ela se abaixa e passa o dedo na poça. Seu dedo fica vermelho. Ela o esfrega na roupa para limpá-lo, manchando o vestido branco. Ainda agachada, olha em torno e percebe que há, no chão, outras poças como aquela, formando uma trilha de sangue que leva da entrada até o sofá. Então, de gatinhas, vai de poça em poça, sempre verificando o frescor do sangue com o dedo e limpando-o em seguida no vestido branco, que, em pouco tempo, fica todo pontilhado de manchas vermelhas. Enquanto isso, Carol 1 se maquia. Ouve-se vivamente o barulho da água do chuveiro caindo. Carol 2 segue, de gatinhas, em direção do tapete. A cada poça de sangue, para, mergulha os dedos e olha-os perplexa antes de limpá-los no vestido branco.

Carol 1

(Quebrando o silêncio) Queria saber usar sombra. [...]

Carol 1

Eu não disse que essa era grande? Quanto sangue, não? (Voltando-se para o espelho,

tentando consertar, com o pó de arroz, o borrão no olho que fizera com o delineador) A faxineira vai ter um ataque quando vir isso aí amanhã. (STIGGER,

2016, p.32- 34)

Percebe-se que o diálogo entre Carol 1 e Carol 2 transita entre a mancha de sangue e assuntos corriqueiros. A especulação do ocorrido é presente nas falas das duas, mas de certo modo vacila na medida em que o assunto é desviado e o acontecimento não é desvendado. Há, dessa forma, uma encenação nesse jogo entre suposições e verdades que as próprias personagens discutem em cena. Bentley (1981) afirma que a antipeça, em outras palavras, o teatro do absurdo seria aquele que os diálogos ganham foco ao invés do acontecimento em si. Foi o que Beckett explorou com Esperando Godot, a sua peça célebre ficou marcada pelos diálogos triviais, enquanto que o acontecimento – a chegada de Godot – não se realiza. Bentley afirma: “[...] Os dois homens [em Esperando Godot] falam para matar o tempo, falam por falar. É o oposto da azione parlata, que implica ‘um mínimo de palavras, porque algo mais importante está acontecendo’. Agora, parece haver um máximo de palavras porque nada, absolutamente, está acontecendo… exceto esperar.” (BENTLEY, 1981, p. 100). Esslin (1966), do mesmo modo, defende que o absurdo no teatro interessa mais as narrativas que

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“[...] refletem mais sonhos e pesadelos e o diálogo muitas vezes se resume em um balbuciar incoerente.” (ESSLIN, 1966). Assim, como podemos perceber em “Mancha”, a peça é tão somente a conversa entre as duas amigas, o mistério nunca é desvendado, muito pelo contrário, torna-se cada vez mais absurdo na medida em que as duas começam a especular acerca das manchas pelo apartamento. Como quando Carol 2 quebra o silêncio entre as duas e pergunta: “Por que a trilha de sangue vai do tapete à entrada do apartamento e não do tapete ao banheiro?” (STIGGER, 2016, p. 43). É a partir dessas especulações que “Mancha” levanta as perguntas: o que é verdade nesse mundo? Já não criamos ficções em nossas realidades? É nesse sentido que a escritura de Stigger se situa, em uma escritura que não se define, mas que brinca com esses atributos literários, de forma que o discurso gira em torno do vazio. Nesse estado de perda de sentido, de não direcionamento diante dos absurdos, que penso no que Ludmer (2010) define para situar-se nessas escrituras: “Nesse lugar não há realidade oposta à ficção, não há autor e tampouco há demasiado sentido.” (LUDMER, 2010, p. 4).

A violência apresentada em “Mancha”, por outro lado, abre reflexão para a forma como especulamos os acontecimentos trágicos em nosso cotidiano. É o que Bentley escreve sobre a violência no drama, “a violência interessa-nos porque somos violentos” (BENTLEY, 1981, p.22). Assim, Carol 1 e Carol 2 estão aí para nos mostrar que sobre o acontecimento em si, no fim, ninguém se importa, mas sim as narrativas que criamos, as nossas “ficções”. Percebe-se que a conversa entre Carol 1 e Carol 2 toma outros rumos, de tal forma que elas evitam falar do mistério, e começam a puxar assunto para outros casos de violência, como o caso de Zelda, uma travesti que matou o marido.

[...] Carol 1

(Virando-se para Carol 2 e quebrando o silêncio de repente) Sabe a Gilda?

Carol 2

Gilda? Que Gilda? Carol 1

A Gilda. A famosa. Carol 2

(Sorrindo) Não é Gilda. É Zelda. Você sempre erra o nome dela. Carol 1

É, isso mesmo. A Zelda. Sabe a Zelda? Carol 2

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Carol 1

Soube que ela matou o marido? (STIGGER, 2016, p.51)

É daí que o papo entre as personagens se desenrola com o fato de Zelda ser operada ou não, e o leitor se depara com uma frase um tanto irônica e inesperada. A sexualidade aparece no diálogo para nos lembrar que na pós-modernidade tudo pode e deve, inclusive, transcender limites através do corpo, da linguagem:

[...] Carol 2

(Subitamente animada) É. A Morgana não é. Eu até já vi o pau dela. Carol 1

(Rindo) Que frase, hein, Carol? Deve ser isso a pós-modernidade: “Eu até já vi o pau dela”. O pau dela…

As duas riem. Começam a rir timidamente, mas, aos poucos, o riso vai se tornando contagiante e as duas caem na gargalhada. (STIGGER, 2016, p. 56-57)

De forma súbita, a peça termina quando Carol 1 e Carol 2 caem na gargalhada, como se toda a tensão, todo o caos, que elas evitam ao longo da peça se transforma em comicidade. Agora, a encenação na linguagem também se escreve entre o cômico/trágico. Bentley (1981) lembra que a catarse aplicada à comédia funciona como uma espécie de “descarga emocional”:

Gilbert Murray sugeriu que a ideia de catarse é mais fácil de aplicar à comédia que à tragédia – mais fácil no sentido de que concordamos mais facilmente com a ideia. Já existe uma certa unanimidade de opinião em que uma parte de nossa violência psíquica – o que nossos avós chamavam um excesso de espíritos animais – pode ser descarregada através do riso. Concorda-se, em geral, que uma boa gargalhada é salutar e nos faz bem como uma espécie de “descarga” emocional. (BENTLEY, 1981, p. 205).

A atitude do riso, da gozação, de fato se torna absurda diante uma cena “trágica”, que é a cena de um crime ou, no caso de “Mancha”, a cena de um acidente, contudo, o leitor chega ao fim da peça e não descobre o mistério e acaba caindo na gargalhada junto com as personagens. O cômico/trágico se fundem na linguagem de Stigger de forma que o sentido do discurso e a linguagem se esvaziam – vazio que o leitor titubeia, como aponta Nodari (2016), na intenção de articulá-la, como uma experiência infantil ao descobrir o mundo: “Tudo isso remete a uma experiência infantil com a língua: a que crianças fazem ao entrarem em contato com a linguagem que antes não conheciam (in-fans), a tentativa de articulá-la e articular o mundo com ela” (NODARI, 2016). A peça de Stigger promove uma linguagem que

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transgride, de forma que o absurdo se faz presente, as linguagens teatrais e literárias dialogam e se esvaziam na medida em que perdem o seu sentido e articulação. É o que Artaud afirma: “O teatro, assim como a palavra, tem necessidade de ser deixado livre” (ARTAUD, 2006, p.139), os temas morais, o pensamento articulado como mecanismo de representar o pensamento de uma sociedade não interessa mais ao teatro, e sim a palavra livre e as narrativas desarticuladas. E não seria isso que Stigger tem provocado na literatura contemporânea? A liberdade das formas, as experimentações entre gêneros, as narrativas

nonsense? Essa liberdade da qual a escritora tem ao criar é o que veremos melhor com o

poema “O Coração dos homens”.

Em entrevista concedida ao Jornal da Biblioteca Pública do Paraná, Veronica Stigger comenta que costuma em seus textos literários experimentar formas, misturar os gêneros, seja a partir de uma frase que escutou na rua – como a escritora explora em Delírio de Damasco – ou como podemos ver no poema “O Coração dos homens” que, como fala a escritora, foge do aspecto lírico e se aproxima mais de um poema em prosa.

Gosto de trabalhar com as diferentes formas literárias, sempre borrando um pouco os limites entre elas. É comum que minhas narrativas tomem forma de poema, de legenda jornalística, de anúncio publicitário, de palestra, de roteiro cinematográfico, de peça de teatro... e até mesmo de conto propriamente dito. Vejo, contudo, todos os textos como narrativas. O que você diz aparentar ser prosa em “O coração dos homens” se trata provavelmente de seu caráter narrativo, porque a sua aparência, a forma que ele assume e se dá a ver, é de um poema em tercetos. Acabamos, ao longo das últimas décadas, confinando a experiência poética ao aspecto lírico — no entanto, todos os gêneros e registros podem se valer de versos. Um poema narrativo ou um poema dramático continuam sendo poemas (STIGGER, [2017?]).

Com a proposta de experimentar a literatura como uma brincadeira entre realidade/ficção e verdade/mentira, a escritora em “O coração dos homens” oferece ao leitor um poema-narrativo, escrito em tercetos, a partir das memórias de infância da personagem-narradora de quando ficou menstruada pela primeira vez. A cena inicial acontece em uma encenação de Branca de Neve e os sete anões, realizada a partir da sua aula de inglês, que a narradora participou enquanto criança.

Quando pequena, fui o espelho numa encenação de

[Branca de Neve e os sete anões.

A peça era toda falada em inglês.

E o público, crianças monoglotas da pré-escola.

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