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"Vida de filho de criação" na Zona da Mata de Minas Gerais

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(1)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Priscila Gomes de Azevedo

Vida de filho de criação na Zona da Mata de Minas Gerais

Campinas

2017

(2)

Priscila Gomes de Azevedo

Vida de filho de criação na Zona da Mata de Minas Gerais

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e

Ciências Humanas da Universidade Estadual

de Campinas como parte dos requisitos

exigidos para obtenção do título de Doutora

em Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Suely Kofes

Este exemplar corresponde à versão final da tese

defendida pela aluna Priscila Gomes de Azevedo

e orientada pela Profa. Dra. Maria Suely Kofes.

Campinas

2017

(3)

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES, 11836-13-0

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Azevedo, Priscila Gomes de,

Az25v AzeVida de filho de criação na Zona da Mata de Minas Gerais / Priscila Gomes de Azevedo. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

AzeOrientador: Maria Suely Kofes.

AzeTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Aze1. Filhos de criação. 2. Família. 3. Narrativas. 4. Socialização. I. Kofes, Suely, 1949-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Filho de criação life in Zona da Mata, Southeast of Minas Gerais Palavras-chave em inglês:

Foster children Family Narratives Socialization

Área de concentração: Ciências Sociais Titulação: Doutora em Ciências Sociais Banca examinadora:

Maria Suely Kofes [Orientador]

Frédéric Raoul Nadine Marie Vandenberghe John Cunha Comerford

Daniela Tonelli Manica Carolina Cantarino Rodrigues

Data de defesa: 18-12-2017

Programa de Pós-Graduação: Ciências Sociais

(4)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora da Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 18 de dezembro de

2007, considerou a candidata Priscila Gomes de Azevedo aprovada.

Profa. Dra. Maria Suely Kofes

Prof. Dr. Frédéric Raoul Nadine Marie Vandenberghe

Prof. Dr. John Cunha Comerford

Prof. Dra. Daniela Tonelli Manica

Prof. Dra. Carolina Cantarino Rodrigues

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica da aluna.

(5)

(6)

AGRADECIMENTOS

Uma das “máximas” de François La Rochefoucauld diz que a confiança que

temos em nós mesmos reflete-se, em grande parte, na confiança que temos nos outros.

Comigo, a confiança tem sido menos refletiva do que reflexiva. Não foram poucas as vezes

durante a realização deste trabalho que minha autoconfiança adveio da confiança que tenho

naqueles que me acompanhavam e em mim confiavam. Digo isso em relação, sobretudo, aos

professores que considero referenciais: Frédéric Vandenbergue, Bernard Lahire e Suely

Kofes. A confiança da Unicamp no meu projeto; a confiança da Capes nas minhas capacidade

e honestidade nas várias vezes em que justifiquei meu descumprimento dos prazos; a

confiança dos filhos de criação na minha conduta ética e a confiança dos familiares e dos

amigos na legitimidade da minha causa também foram essenciais para minha autoconfiança.

Portanto, sou profundamente grata a todos, pessoas e instituições, pela confiança e pelos

diversos auxílios que possibilitaram esta tese:

À Capes, agradeço o auxílio financeiro para minha dedicação exclusiva à pesquisa

e para o enriquecedor estágio na École Normale Supérieure de Lyon.

À Unicamp, por acolher o projeto e me proporcionar a estrutura necessária para

desenvolvê-lo.

À École Normale Supérieure de Lyon, de modo especial ao Centre Max Weber,

pelas férteis oportunidades de aprendizado.

Aos protagonistas desta tese, Laura, Anita, Clara, Maria, Joana, Alessandro,

Sebastião e João Paulo, por terem me recebido e compartilhado de maneira tão generosa suas

histórias de vida.

À professora Suely Kofes, minha orientadora, por aceitar compartilhar meu

desafio, respeitando minhas escolhas e me apoiando sempre.

Ao professor Bernard Lahire, meu coorientador, cuja generosidade é proporcional

à erudição sociológica, por me orientar atenciosamente antes de qualquer formalidade, por me

receber em Lyon e possibilitar atividades e diálogos fundamentais, dedicando a mim parte do

seu precioso tempo.

Ao professor Frédéric Vandenberghe, atencioso “orientador informal”, meu

agradecimento vai além das leituras cuidadosas, das sugestões, das críticas, das indicações e

das oportunidades que me concedeu; agradeço a amizade e o incentivo que não me deixaram

desistir.

(7)

Ao professor Jessé Souza, meu orientador no mestrado, por ter me apontado o

caminho.

Ao professor Luís Augusto de Gusmão, pelos profícuos comentários na defesa da

dissertação de mestrado e pelas indicações de leitura que muito contribuíram para o

prolongamento da pesquisa.

Ao professor Valeriano Mendes, enquanto coordenador deste programa de

doutorado em Ciências Sociais, pela ética, bom senso e respaldo.

Ao professor Fernando Loureço, pelo estímulo inicial.

Ao professor Josué Silva, pela sociologia com humor, pelos comentários na

qualificação e pela atenção que sempre me concedeu.

Ao professor John Comerford, com quem compartilho o interesse pela Zona da

Mata mineira, pela leitura minuciosa deste texto e de algumas versões anteriores, pelos

interessantes comentários e sugestões.

Ao professor Benoît de L’Estoile, pela gentileza com que leu e comentou meu

projeto de pesquisa, pelas indicações de leitura e por me instigar um olhar mais antropológico.

À secretária e ex-secretários do programa de doutorado em Ciências Sociais,

Beatriz, Maria Rita e Reginaldo, pela prestimosidade e eficiência. De modo especial, sou

muito grata à Maria Rita e atribuo a ela minha permanência na Unicamp.

À secretária do Centre Max Weber, Férouze Guiton, pela hospitalidade que tornou

mais aprazível minha estadia em Lyon.

Aos coordenadores do GT “Sociologia e Antropologia da Moral” da ANPOCS,

professores Alexandre Werneck e Luís Roberto Cardoso de Oliveira, pelas oportunidades e

ricos comentários.

À professora de francês Yasmine Daas, pela refinada revisão da tradução de

partes deste texto para o II seminário “Les approches philosophiques et sociologiques de la

domination” na ENS-Lyon.

À professora de francês Walquíria Cardoso Vale, por me preparar e estimular ao

longo de alguns anos.

Ao amigo Joailton Menini, pelas generosas e cuidadosas traduções para o inglês

de resultados parciais desta pesquisa.

Ao amigo e colega Leandro Ribeiro da Silva, pelo incentivo ao doutoramento na

Unicamp.

(8)

Aos amigos: Marlene e Vinícius, Ana e Agostinho, Viviane e Paulo, Thiago, Seu

Sydney, Mazinha, Luciane e Paolo, Aline e Marcos Vinícius pelo ombro amigo sempre

disponível.

À amiga e funcionária Silvana, por seu profissionalismo e sua dedicação, sem os

quais eu não teria retomado minha vida acadêmica.

Às minhas tias, Janice e Neuza, pelo carinho e intermediação em campo,

fundamental para que a pesquisa acontecesse.

Às minhas amigas de infância, Roberta, Analídia e Jordane, por compartilharem o

olhar nativo, me esclarecendo dúvidas e se colocando à minha disposição. De modo especial à

Roberta e à sua mãe, Nina, pela indicação de João Paulo, intermediação e ajuda na obtenção

de materiais etnográficos.

Aos familiares de Jaboticabal, agradeço o carinho e a compreensão da nossa

ausência em momentos importantes. De modo especial à Maria Alice e à Gabriela.

À minha mãe, Tereza, e ao meu irmão, Renato, minha gratidão é intensa. Aprendi

com esta pesquisa a reconhecer a seriedade e o valor do cuidado. Agradeço imensamente

todas as vezes em que deixaram suas casas para cuidar da minha e dos meus estimados

animais, me permitindo prosseguir com a pesquisa; especialmente nos últimos meses, em que

cuidaram tão amorosamente também do meu filho para que eu pudesse acabar logo com isso.

Ao Daniel, meu companheiro, espero que a dedicatória possa expressar a

profundidade da minha gratidão. Há dezessete anos nossa história começava paralelo à minha

com as Ciências Sociais. Sempre dividiu com elas a minha presença, a minha atenção.

Sempre compreensivo, respeitoso, cuidadoso e grande incentivador.

Ao meu filho, David, pela força que me fez descobrir com o seu nascimento;

fundamental para dar à luz, para lidar com o medo da perda e, finalmente, para enfrentar o

dilema natureza/cultura e conseguir concluir esta tese.

(9)

E você acha que existe alguma diferença entre filho de criação e filho adotivo? A maneira de falar. Eu acho que é maneira de falar. É de região. É igual mandioca e aipim... é uma coisa só, né? Eu acho que é tudo uma coisa só, não muda nada não, criação com adotivo. E é sempre assim, ó: você tem uma filha adotiva. Aí, geralmente, um filho adotivo sempre é moreno. Repara pra você ver. Infelizmente, querendo ou não, é. Ou é moreno ou é negro. Isso é uma grande... injustiça que as pessoas criam. Aí, a pessoa vira para o outro e fala assim, já pergunta assim, você sente uma maldadezinha na pergunta: “essa aí é a sua filha?” A pessoa fala assim: “é, essa daqui é a menina que eu adotei”. Ela não vai te responder: “é, é minha filha.” Ponto e acabou o assunto. Nunca vai te responder. Nunca. Senta do lado, convive com uma pessoa... Você vai ver, se surgir essa pergunta, se a resposta não vai ser essa. Sempre vai ser. É sempre assim: “peguei pra criar”. Né? “Ela não é minha filha, é uma pessoa que eu peguei pra criar”. [silêncio] [...] E eles te moldaram para ser criado assim: a mesma coisa que um robozinho. Você criou um robozinho na função de ser faxineiro, ele vai viver naquilo ali. Infelizmente é assim. Querendo ou não, é assim. [silêncio] Vida de filho adotivo.

(10)

RESUMO

Este trabalho procura acessar e compreender as formas morais e costumeiras por

meio das quais os habitantes da Zona da Mata de Minas Gerais reconhecem os filhos de

criação e estabelecem o imaginário dos princípios e regras que lhes define o perfil da própria

identidade e a gramática dos relacionamentos. Filho de criação é a categoria nativa utilizada

para se referir a pessoas que foram dadas, ainda bebês ou durante a infância, pela família

consanguínea para outra família criar. O desempenho de algumas funções pelos filhos de

criação e a divisão sexual destas funções estruturam a prática de pegar para criar. A família

de criação apresenta a criança acolhida como se fosse da família, suprimindo qualquer

diferença com relação aos filhos consanguíneos. Contudo, apenas os filhos consanguíneos

têm direito ao estudo de modo sistemático, têm tempo livre para brincadeiras, passeiam,

viajam, namoram, trabalham fora de casa, se casam etc. A vida de filho de criação é dedicada

desde a mais tenra idade ao cuidado da casa e dos pais. A articulação de narrativas

biográficas com pesquisa etnográfica revelou o cuidado dos pais até a morte como uma

espécie de missão que o filho de criação deve cumprir em retribuição à “dádiva da vida” que

o acolhimento representa para, então, ser reconhecido socialmente e, no limite, merecer a

graça divina da salvação.

(11)

ABSTRACT

This study aims at access and understanding of the moral and customary ways by

means of which the inhabitants of Zona da Mata in the southeast of Minas Gerais recognise

filhos de criação (foster children) and establish the imaginary of principles and rules which

defines the profile of their own identity and the grammar of relationships. Filho de criação is

the native category used to refer to people who have been given, even babies or during

childhood, by the inbred family to another family to be raised. The performance of some roles

by the filhos de criação and the sexual division of these roles structure the practice of pegar

para criar (picking a child to raise). The família de criação (foster family) introduces the

welcomed child as being part of the family suppressing any differences between them and the

inbred children. However, only inbred children are entitled to systematic schooling, have free

time to play, walk, travel, date, work outside home, get married etc. The life of a filho de

criação is dedicated from a very early age to take care of the house and their parents. The

articulation of biographical narratives and ethnographic research revealed this parent care till

death as a sort of mission that filhos de criação must comply with in return to the "gift of life"

that this welcoming represents so as to be socially recognized and, at the limit, to deserve the

salvation by grace.

(12)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 14

PARTE I

Construção:

Sociogênese da categoria coletiva filho de criação

CAPÍTULO 1 – NOTAS DE UMA SOCIOLOGIA EM ESCALAS ... 21

CAPÍTULO 2 – CIRCULAÇÃO X CONFINAMENTO ... 30

2.1 – “Circulação de crianças” e criação de crianças ... 30

2.1.1 - A naturalização da desigualdade dos filhos de criação ... 31

2.1.2 – Filhos de criação em contextos rurais ... 36

2.2 – Filhos de criação e outras categorias do contexto rural ... 39

2.3 – O parentesco (ir)revogável dos filhos de criação ... 42

2.3.1 – Temporalidade vitalícia ... 47

2.3.2 – Temporalidade perpétua? ... 48

CAPÍTULO 3 – PAISAGENS ... 50

3.1 – A Zona da Mata de Minas Gerais ... 50

3.2 - Modos de sociabilidade e suas expressões ... 60

3.2.1 – “Rede de observação” ... 60

3.2.2 – Você é filho de quem? ... 62

3.2.3 – Religiosidade ... 65

3.2.4 – Celebrações religiosas e sociais ... 69

3.2.5 – A roça e a rua ... 73

3.2.6 – Ser filho ... 75

3.2.7 – Os pais cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais ... 77

3.2.8 – Filhos de criação cuidam dos pais até a morte ... 78

3.2.9 – Filhos de criação e filhos adotados ... 79

PARTE II

Desconstrução:

De perto, ninguém é igual.

CAPÍTULO 4 – LAURA ... 82

CAPÍTULO 5 - ANITA ... 103

CAPÍTULO 6 – CLARA ... 122

CAPÍTULO 7 – MARIA E JOANA ... 143

CAPÍTULO 8 – ALESSANDRO ... 167

(13)

CAPÍTULO 10 – JOÃO PAULO ... 203

ENTREATOS

CAPÍTULO 11 – ETNOGRAFIA DOS INDÍCIOS ... 221

11.1 – Adoção/criação como favor ... 221

11.2 – Desigualdade racial dos filhos de criação ... 224

11.3 – Desigualdade de gênero dos e entre filhos de criação ... 226

11.4 – Da naturalização à valorização do sofrimento ... 232

RETORNO AOS FILHOS DE CRIAÇÃO ... 237

Considerações preliminares ... 238

CAPÍTULO 12 – ANITA ... 241

CAPÍTULO 13 – CLARA ... 255

CAPÍTULO 14 – LAURA ... 271

CAPÍTULO 15 – Entrevista com os pais de Laura ... 295

CAPÍTULO 16 – ALESSANDRO – Conversa com a esposa Patrícia ... 310

CAPÍTULO 17 – ALESSANDRO ... 318

CAPÍTULO 18 – JOÃO PAULO - Conversa com Henrique ... 338

PARTE III

Reconstrução:

Vida de filho de criação

CAPÍTULO 19 – RECONHECIMENTO E SOFRIMENTO ... 342

19.1 – Dó: o reconhecimento social do sofrimento ... 342

19.2 – A dádiva da vida ... 348

19.3 – O sacrifício como dádiva ... 351

CONCLUSÃO: A servidão (in)voluntária dos filhos de criação ... 356

BIBLIOGRAFIA ... 359

ANEXO I - Dados do Sistema Nacional de Informação de Gênero - Uma análise dos

resultados do Censo Demográfico 2010 - Barão de São João Batista ... 365

ANEXO II – Dados do Sistema Nacional de Informação de Gênero - Uma análise dos

resultados do Censo Demográfico 2010 - Bagre Bonito ... 368

ANEXO III – Carminha Mendonça ... 371

(14)

INTRODUÇÃO

Era Françoise, imóvel e de pé no enquadramento da pequena porta do corredor, como uma estátua santa no seu nicho.

(Marcel Proust, No caminho de Swann)

Entre as lembranças da minha infância, nos idos de 1985, estão as estadias na casa

da minha avó materna, localizada em um município da Zona da Mata de Minas Gerais que,

ficticiamente, chamo de Bagre Bonito. Nessas ocasiões, o estranhamento fecundava minha

curiosidade; a paisagem rural, os costumes, as relações de proximidade, a religiosidade, a

temporalidade, o vocabulário, os sabores, os odores, a sonoridade orgânica dos bichos... tudo

muito diferente do que eu conhecia na capital de São Paulo, lugar onde nasci e até então vivia.

Ao mesmo tempo, eu também era alvo da curiosidade nativa; a neta de fora

1

da dona

Lourdinha. Entre tantos estranhamentos, um deles deu origem a este trabalho. Nas visitas a

parentes e amigos em que eu acompanhava minhas tias, era comum sermos recebidas por

uma pessoa solícita, geralmente mulher, negra, que nos acomodava e nos anunciava aos donos

da casa, preparava e nos servia um café, mas não se sentava à mesa conosco; voltava logo aos

seus afazeres ou se recolhia à soleira da porta, participando de longe da conversa. Para minha

surpresa, essa pessoa não era a empregada, era a filha de criação.

_ Mas, tia, isso lá em São Paulo é empregada!

_ Psiu! Não fala assim! Ela é como se fosse da família!

Aceitei sem entender, talvez pelo paralelo inevitável a uma mente infantil entre

como se fosse e faz de conta. Posteriormente, pela banalização da prática; quando me mudei

aos 9 anos de idade, com minha mãe e meu irmão, para um município limítrofe de Bagre

Bonito, que aqui chamarei de Barão de São João Batista,

2

e então revi inúmeras vezes um

filho de criação ser tratado como se fosse da família.

Este é um tipo de relação oriunda da prática de pegar para criar, muito comum

até o fim do século 20 nos contextos rurais brasileiros, mas ainda presente na organização

social de algumas regiões, preservada e reordenada pela “memória histórica e coletiva”

1

Adotei itálico para categorias nativas e aspas para conceitos.

2

A pesquisa foi realizada nestes dois municípios. Embora os nomes sejam fictícios, procurei reter alguns códigos significantes que os originais têm para os moradores. “Barão de São João Batista”, por exemplo, às vezes aparecerá no texto apenas como “São João”, preservando a abreviação costumeira nas comunicações cotidianas.

(15)

(HALBWACHS, 2006; POLLAK, 1989, 1992). No contexto da Zona da Mata de Minas

Gerais, filho de criação é a categoria utilizada para definir a filiação oriunda da prática de

pegar para criar. Como a própria expressão informa, a intenção é criar, de modo que é

preferível pegar para criar bebês ou crianças bem pequenas a crianças maiores. Embora seja

comum referir-se à prática como adoção e ao filho de criação como adotivo, não se trata de

adoção legal. A criança é dada pela família consanguínea para outra família criar. Vários são

os motivos que levam uma família a dar um ou mais filhos. O mais comum é a pobreza

econômica para o sustento de uma prole numerosa, embora outros sejam igualmente (ou,

analiticamente, mais) relevantes; como a doação de um filho em retribuição a um favor ou a

mãe consanguínea não gostar de filha mulher. Do outro lado, são também diversos os

motivos que levam famílias a pegar para criar, mas, entre eles, há algo em comum, seja em

famílias de criação que têm dinheiro, seja naquelas economicamente pobres: o desempenho

de funções preestabelecidas segundo o sexo e a expectativa de retribuição à criação. Para a

família de criação, não tem diferença entre filho de criação e filhos de sangue, mas apenas

estes estudam (ou têm o direito de estudar com sistematicidade), trabalham fora de casa, têm

direito à herança etc. Para os filhos de criação também não há diferenças; sou como se fosse

da família. A incompatibilidade deste “discurso público” (SCOTT, 1990) de pais e filhos de

criação com a observação das práticas constitui o ponto de partida desta pesquisa.

Até recentemente carreguei a aproximação entre como se fosse e faz de conta; não

por um prolongamento da primeira impressão, mas por um olhar sociológico demasiadamente

exógeno. Através do que percebia nas narrativas, coletiva e individuais, como contradição,

convencia-me de que como se fosse não é ser. Porém, os avanços e retornos que compõem

mais de uma década de pesquisa, me fizeram perceber que tais contradições estão mais para

“contraposições”

3

e que não há espaço para antagonismos tão ferrenhos.

4

A questão aqui, ao

contrário da que coloca a problemática existencial tecida por Shakespeare, não é “ser ou não

ser” porque não se trata de “ser” ou de “não ser” (Parmênides). Como se fosse tem a sua

própria autenticidade que está em “ser, não sendo” ou “não ser, sendo” um pouco, menos, um

pouco menos: menos semelhante e menos diferente, menos de fora quando se está dentro; isto

3

No sentido que lhe é conferido por João de Pina-Cabral (2000: 880), a contradição diz respeito primordialmente ao embate dinâmico de princípios que geram conflitos, e não à incoerência, no sentido de falta de harmonia ou de convergência de princípios. Assim, já estamos falando mais de “contraposições” do que de “contradições”.

4

Em uma etnografia conduzida na mesma região da Zona da Mata de Minas Gerais, John Comerford (2003) observou que a categoria nativa família tem uma amplitude maior do que se supõe comparativamente. As relações sindicais que o autor observou, por exemplo, são concebidas como relações “de família”, daí sua preferência em falar de “processos de familiarização” e “desfamiliarização”. Sugestão que acolho aqui.

(16)

é, coabitando a mesma casa. Ser um pouco e não-ser um pouco, ponto de vista que oscila

ocasionalmente. O “vir a ser” (Parmênides) como horizonte dos processos de “parentesco

performativo” (GOW, 1991; McCALLUM, 1989, 1990; VIEGAS, 2007), encontra na

ideologia do sangue que configura as relações de parentesco nos municípios observados, uma

razão tão intransponível quanto aceitável que não lhe permite jamais “ser”, ao contrário do

caminho pressuposto por Parmênides, o que impede, assim, a (re)configuração do

antagonismo ser-não ser. Como se fosse é, portanto, o apanágio de uma relação de

“familiarização” (COMERFORD, 2003).

A recordação desta experiência com a inquietação inicial aconteceu em 2006,

lendo Pierre Bourdieu. Na ocasião, então cursando o mestrado, compartilhei a lembrança com

meu orientador, professor Jessé Souza, e a partir daquela tarde começou minha dedicação à

vida de filho de criação. Não se tratou de uma ruptura com meu tema de pesquisa, pelo

contrário; os filhos de criação apareceram como a objetivação daquilo que eu investigava

teoricamente, a saber, a complementaridade das noções de “habitus precário” (SOUZA, 2003)

e de “magicização do catolicismo” (SANTOS, 2005). Fui a campo no fim de 2006 munida de

uma abordagem hipotético-dedutiva e de um aparato metodológico fortemente inspirado nos

Retratos Sociológicos de Bernard Lahire (2004). Tudo pretensamente pensado e analisado,

bastando “apenas coletar os dados”, não fosse a desconstrução de tudo logo na primeira

entrevista biográfica – efeito, justamente, da “variação de escala de análise”, como pressupõe

a metodologia de Lahire, mas para o qual eu não estava preparada.

5

A primeira filha de criação que tive a oportunidade de entrevistar foi Laura, 22

anos.

6

Saí aturdida de nossa conversa. Laura possuía uma “capacidade crítica” (BOLTANSKI

e THÉVENOT, 1991) que lhe permitia transformar a experiência filho de criação, sua e dos

outros, em uma experiência reflexiva que não condizia com o que preconiza o conceito

unificador “habitus precário”. Sem saber bem o que fazer e com o tempo exíguo para a

conclusão do trabalho, resolvi preservar o cunho biográfico das entrevistas em profundidade

proposto pela metodologia dos “retratos”, perfazendo o maior número possível de contextos

de ação (família, rede de sociabilidade, religiosidade, lazer, escola, trabalho etc.), e me guiar,

5De fato, eu estava lidando com abordagens contrárias. De um lado, o conceito de “habitus precário” (SOUZA, 2003) fora pensado como uma variante, contextualizada, do conceito de “habitus de classe” de Bourdieu. De outro lado, Lahire, (auto)considerado “herdeiro heterodoxo de Bourdieu”, propõe, através da flexibilização do conceito de habitus em uma “pluralidade de disposições”, muitas vezes heterogêneas e contraditórias, que a realidade individual não pode ser deduzida diretamente das regularidades estabelecidas a partir de uma escala coletiva de análise.

6Para preservar o anonimato, todos os nomes citados, exceto os que se referem à minha própria família, foram cuidadosamente trocados, guardando referências contidas nos originais; como analogias, regionalismos e apelidos, por exemplo.

(17)

não pelas singularidades reveladas, mas pelas semelhanças; cuja recorrência me pareceu

importante “indício” (BERTAUX, 2010) da vida de filho de criação.

Em razão da distância contextual entre meu campo de pesquisa e aquele onde

Lahire desenvolveu a metodologia dos “retratos” e da diferença de objetivos dos trabalhos, ao

findar a primeira série de entrevistas, me vi diante de importantes questões que não seriam

respondidas apenas por mais entrevistas com as mesmas pessoas, mas etnograficamente.

Buscando empreender uma sociogênese das disposições e valores que observei com

recorrência, ainda sob inspiração de Lahire, variei a “escala de análise” e retornei à

etnografia, trabalhando na interseção de duas abordagens: diacronicamente, procedendo a um

estudo em profundidade da “memória histórica e coletiva” (HALBWACHS, 2006) através de

documentos, fotografias, livros de memórias e de um levantamento de categorias próximas ou

correlatas; e, sincronicamente, através da investigação dos modos de sociabilidade e dos

contextos destacados pelas narrativas, utilizando a observação participante, entrevistas

semidirigidas com conhecidos e moradores dos contextos rural e urbano dos dois municípios

e rodas de conversa. A análise etnográfica é fundamental para o que, posteriormente, Lahire

definiu como “biografia sociológica” (2010).

A recorrência de situações, disposições e condições, de fato, são imprescindíveis

para a compreensão do que é unificado como vida de filho de criação. Contudo, as variáveis

(geração, gênero, raça, classe, escolaridade, trajetória etc.) e as variações disposicionais inter

e intraindividuais reveladas pelas narrativas individuais apontavam para uma “pluralidade”

(Lahire) de vidas de filhos de criação. Adentrar as singularidades das trajetórias e

compreender as dinâmicas envolvidas no processo de unificação da experiência pela

categorização constituem o prolongamento da pesquisa. Assim, articulei as narrativas

biográficas colhidas e ordenadas com base no aparato teórico-metodológico de Lahire (2004,

2010) com a proposta de “etnografar uma experiência” desenvolvida por Suely Kofes (2001a:

13) para então sociobiografar uma experiência ao mesmo tempo individual e coletiva,

cotidiana e histórica, com configurações de outrora e implicações hodiernas: filho de criação.

***

A tese está estruturada em três partes e um entreatos que faz a ponte entre as duas

etapas da pesquisa de campo, realizadas entre dezembro de 2006 e fevereiro de 2007 e entre

julho e setembro de 2012. Como a compreensão do objeto de investigação foi possível através

da variação das escalas de análise, me pareceu importante objetivar este processo na

(18)

estruturação do texto. Deste modo, forma e conteúdo seguem o mesmo movimento dialético

que constituiu a pesquisa (empírica e analítica): construção, desconstrução e reconstrução.

Parte I – Construção: sociogênese da categoria coletiva filho de criação

No primeiro capítulo, aprofundo a articulação dos pressupostos

teórico-metodológicos que orientaram a pesquisa (LAHIRE, 2004, 2010; KOFES, 2001)

posicionando melhor minhas escolhas e abordagens. No segundo capítulo, proponho uma

análise teórico-comparativa a partir de estudos da experiência filhos de criação em contextos

diversos. Abordo pesquisas no âmbito da “circulação de crianças” (FONSECA, 1994;

MOTTA-MAUÈS, 2004, 2006, 2007; GODOI, 2009), filhos de criação em contextos rurais

(GALANO, 2002; GODOI, 2009) e indígenas (GOW, 1991; McCALLUM, 1989, 1990;

VIEGAS, 2007), além de categorias fronteiriças próprias do mundo rural (HERÉDIA, 1988;

MOURA, 1988; CARVALHO FRANCO, 1997; GALANO, 2002). Em seguida, no terceiro

capítulo, procuro contextualizar, inicialmente através de um panorama histórico-geográfico da

Zona da Mata de Minas Gerais (VALVERDE, 1958; IBGE, 2010) que culmina na paisagem

social dos dois municípios pesquisados e, posteriormente, através de uma análise etnográfica

das formas morais e costumeiras que reconhecem os filhos de criação e estabelecem o

imaginário dos princípios e regras de um código que lhes desenha o perfil da própria

identidade e a gramática dos relacionamentos.

Parte II – Desconstrução: de perto, ninguém é igual

Esta parte do trabalho é dedicada às narrativas biográficas. Os capítulos 4 a 10

constituem “retratos sociológicos” de oito filhos de criação, cujas narrativas foram colhidas

na primeira etapa da pesquisa. Um entreatos, capítulo 11, apresenta a etnografia dos

“indícios”

7

apontados pelas narrativas como elucidativos do processo de unificação da

experiência e de naturalização da desigualdade da categoria, buscando analisar a homologia

que se pretende de trajetórias singulares com base na ancestralidade de uma categoria comum.

Por fim, nos capítulos 12, 13, 14, 15 e 16, retorno, etnograficamente às narrativas biográficas

ou biograficamente à etnografia, compartilhando o senso comum com os filhos de criação que

consegui restabelecer contato e propondo uma análise conjunta através de uma reinserção

mais reflexiva de avaliação e atualização.

7

Inspirada por Daniel Bertaux (2010: 89), “não se trata de extrair de uma narrativa de vida todas as significações que ela contém, mas somente aquelas pertinentes ao objeto de pesquisa e que adquirem aí o status de indícios.” (grifos do autor)

(19)

Parte III – Reconstrução: vida de filho de criação

Nesta parte do trabalho, capítulo 17, analiso o horizonte normativo descortinado

pela articulação narrativas-etnografia

8

que justifica a reunificação da experiência social em

vida de filho de criação. Na primeira parte do capítulo, procuro explorar o reconhecimento

social do sofrimento chamando atenção para situações em que o desrespeito à “pessoa de

direito” (HONNETH, 2003) não configura “insulto moral” (CARDOSO DE OLIVEIRA,

2002) no sentido de falta de “reconhecimento” (TAYLOR, 1997; HONNETH, 2003). Na

segunda parte, abordo a prática de pegar para criar como “dádiva da vida” (MAUSS, 2003;

CAILLÉ, 1998, 2002) e, na terceira e última parte, sua retribuição como “sacrifício e dádiva”

(MAUSS & HUBERT, [1899] 2005; CAILLÉ, 1997) tentando objetivar a temporalidade e o

paralelismo relacional que engendra a experiência filho de criação.

8Tal articulação, como reitera Mariza Peirano, trata, na verdade, de uma coisa só: “(...) é necessário ultrapassar o senso comum ocidental que acredita que a linguagem é basicamente referencial, que ela apenas diz e descreve com base na relação entre uma palavra e uma coisa. Ao contrário, palavras, como sabemos, fazem coisas, trazem consequências, realizam tarefas, comunicam e produzem resultados. E palavras não são o único meio de comunicação: silêncios comunicam, outros sentidos como olfato, visão do espaço, tato... têm implicações que é necessário avaliar e analisar”. (PEIRANO, M. “Etnografia é método?” Aula inaugural no programa de pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal de Goiás, abril de 2014.) Apesar da aparente desarticulação que didaticamente opero, a pesquisa não se afasta deste espírito, como, espero, pode ser percebido não apenas na ênfase conferida à análise do silêncio, da observação do espaço, da interação etc., mas na complementaridade interdependente (sobretudo no que chamei de “etnografia dos indícios”) entre as histórias de vida/narrativas individuais e a narrativas coletivas/pesquisa social que estrutura o texto.

(20)

PARTE I

Construção:

(21)

CAPÍTULO 1 – NOTAS DE UMA SOCIOLOGIA EM ESCALAS

Às vezes procuro concentrar-me na história que gostaria de escrever e me dou conta de que aquilo que me interessa é uma outra coisa diferente, ou seja, não uma coisa determinada mas tudo o que fica excluído daquilo que deveria escrever: a relação entre esse argumento determinado e todas as suas variantes e alternativas possíveis, todos os acontecimentos que o tempo e o espaço possam conter. É uma obsessão devorante, destruidora, suficiente para me bloquear. Para combatê-la, procuro limitar o campo do que pretendo dizer, depois dividi-lo em campos ainda mais limitados, depois subdividir também estes, e assim por diante. Uma outra vertigem então se apodera de mim, a do detalhe do detalhe do detalhe, vejo-me tragado pelo infinitesimal, pelo infinitamente mínimo, como antes me dispersava no infinitamente vasto.

(Italo Calvino, “Exatidão”, em Seis propostas para o próximo milênio.)

A unificação de uma categoria coletiva pode ser desconstruída tão logo ajustamos

as lentes sobre os indivíduos. Bernard Lahire (1998, 2004, 2006, 2008, 2010, 2012 e 2013),

tem insistido na variação de escalas de análise para uma apreensão empiricamente mais

detalhada da realidade individual, ao invés de deduzi-la de regularidades típicas ou

probabilísticas estabelecidas por escalas coletivas de análise. O autor chama atenção para os

limites das abordagens macrossociológicas quando se passa do estudo de grandes categorias

coletivas, como classes sociais, para a análise do “social individualizado”, isto é, para análise

de como indivíduos específicos vivenciam múltiplas e, em parte, incoerentes, experiências

sociais. De perto, percebemos que as diferentes experiências socializadoras do indivíduo

podem singularizar sua apreensão de categorias coletivas.

A sociologia em escala individual proposta por Lahire inscreve-se em uma longa

tradição sociológica que, de Émile Durkheim a Norbert Elias passando por Maurice

Halbwachs, procura ligar cada vez com mais minúcia a economia psíquica aos quadros da

vida social. O que era comumente circunscrito ao “psicológico” se expande e passa a compor

o programa do que fora inicialmente chamado “sociologia psicológica” (LAHIRE, 1998) e

posteriormente melhor conceituado como “sociologia em escala individual” (LAHIRE,

2005)

1

. Estudar o indivíduo, para o autor, é estudar a realidade social na sua forma

1

Lahire tem feito o seguinte esclarecimento: “utilizei de forma imprudente a expressão ‘sociologia psicológica’ para qualificar a minha abordagem. Digo ‘imprudentemente’ porque desencadeei expectativas por parte dos psicólogos sociais, que me perguntavam nomeadamente qual era o uso que eu fazia dos seus trabalhos. Ao falar em ‘sociologia psicológica’, eu não fazia senão retomar uma expressão que havia sido utilizada por Durkheim,

(22)

incorporada, interiorizada, com a particularidade de atravessar instituições, grupos, campos de

forças e de lutas diferentes. Como é que a realidade exterior, mais ou menos heterogênea, se

faz corpo? Como é que as experiências se instalam de modo mais ou menos duradouro em

cada corpo e como é que elas intervêm nos diferentes momentos da vida social ou da

biografia de um indivíduo? Questiona-se Lahire.

De acordo com Lahire, o desencadeamento dos esquemas de ação incorporados

está longe de ser automático, exclusivamente “pré-reflexivo” e intuitivo, resultado de um

“senso prático” despertado pela analogia das disposições passadas e da lógica da situação

presente (tal como evoca o conceito bourdieusiano de habitus) que não leva em conta a

possibilidade de reflexividade e de racionalização (antes, durante e depois) da ação

(“objetivação da memória”, planejamento do futuro, programação, prevenção, “autodomínio”,

controle sobre si e sobre o tempo, reproblematizações de situações passadas etc.) produzidas

corriqueiramente pelos agentes por meio de “técnicas de objetivação” a partir das quais

estabelecem um distanciamento em relação a si e ao curso imediato da ação, de modo a

intencionalmente obter (ou pelo menos pretender um) maior controle sobre suas práticas.

Nesse sentido, Lahire refuta o uso das expressões “fórmula geradora” ou “princípio gerador e

unificador” das práticas e condutas que não os condiciona ao contexto de ação a que se

referem, generalizando-os simplesmente. Ao visualizar as várias possibilidades de

socialização, decorrentes dos variados contextos possíveis de ação, é possível a constituição

de novas disposições, novas concepções, novas práticas e novos comportamentos. Assim,

analisando a variação disposicional intra-individual em função dos contextos de ação,

podemos perceber o mesmo indivíduo ser egoísta em determinados contextos e altruísta em

outros; dominador em certos contextos e submisso em outros; consumir bens culturais

“legítimos” em algumas situações e “menos legítimos” em outras etc., independente de sua

classe, religião, raça, gênero ou posicionamento político. Em vez de buscar reduzir o conjunto

das práticas e comportamentos de um indivíduo a uma “fórmula geradora”, Lahire sugere

Mauss, ou Halbwachs. Estes autores falavam por vezes em ‘sócio-psicologia’. A minha intenção era dizer que o indivíduo (na época, excluído do campo legítimo da investigação sociológica) era integralmente um objeto sociológico e que um conceito como o habitus nos conduzia logicamente ao seu reconhecimento: o social existe no seu estado individualizado, incorporado, ‘dobrado’, assim como no seu estado coletivo, objetivado, ‘desdobrado’. É, pois, preferível falar em sociologia em escala individual, de sociologia de patrimónios individuais de disposições e de competências (do social no seu estado incorporado) e de sociologia das variações inter e intraindividuais dos comportamentos.” Entretien avec Bernard Lahire por Sofia Amândio. Versão em português disponível em:

(23)

tentar reconstruir – parcialmente, a partir de uma visão necessariamente sempre limitada – o

“patrimônio de disposições” dos entrevistados.

2

Nessa busca, Retratos Sociológicos: disposições e variações individuais ([2002]

2004) surge como um trabalho experimental, onde o autor desenvolve um dispositivo

metodológico que tenta dar conta da pluralidade de contextos nos quais os agentes estão

inseridos e os momentos de “ruptura biográfica” nas suas trajetórias (momentos de orientação

escolar; de escolha no fim dos estudos; de saída ou retorno à casa dos pais; de trabalho; de

desemprego; de escolha do cônjuge; de chegada dos filhos; de divórcio; de novo casamento

ou relação; de escolha ou abandono de determinada atividade cultural, lúdica, esportiva; de

mortes em um ambiente mais próximo etc.), de modo a captar as disposições e as variações

intra-individual dos comportamentos. Trata-se de uma série de seis longas entrevistas (três

horas, em média, de duração) realizadas com o mesmo interlocutor sobre suas práticas,

comportamentos, maneiras de ver, sentir e agir em diferentes domínios de prática (ou esferas

de atividade) ou em micro-contextos (no interior desses domínios de práticas) diferentes. O

mesmo pesquisador entrevista as seis vezes o pesquisado sobre temas relacionados a escola,

trabalho, família, sociabilidade, lazer, práticas culturais, corpo-saúde, alimentação, esporte,

estética etc. Nos deparamos, então, com um narrador complexo, em vez de uma unidade

2

Encontra-se em Lahire (2004: 27-30) o primeiro esforço de definir conceitualmente o que vem a ser “disposição”:

1°) Toda disposição tem uma gênese que podemos nos esforçar para situar ou para reconstruir. A sociologia disposicional está ligada a uma sociologia da socialização. Desse modo, ela pressupõe que o pesquisador dedique uma parte de seu trabalho ao estudo da constituição (e das condições sociais de produção) das disposições (incorporação);

2°) A noção de disposição supõe que seja possível observar a recorrência, a repetição, de comportamentos, atitudes e práticas. Ela proíbe deduzir uma disposição a partir do registro ou da observação de apenas um acontecimento;

3°) Como uma disposição é o produto incorporado de uma socialização (explícita ou implícita) passada, ela só se constitui através da duração, isto é, mediante a repetição sistemática e cotidiana de experiências relativamente semelhantes. Consequentemente, uma disposição pode ser reforçada por solicitação contínua ou pode enfraquecer por falta de treinamento;

4°) Embora a noção de disposição implique uma operação cognitiva que evidencia a coerência de comportamentos, opiniões, práticas diversas e muitas vezes dispersas, não se deve pensar que, obrigatoriamente, a disposição deva ser geral, transcontextual e ativa em todos os momentos da vida dos atores. Deve-se lutar contra os abusos de generalização dos supostos efeitos de uma disposição;

5°) Uma disposição não é uma resposta simples e mecânica a um estímulo, mas uma maneira de ver, sentir ou agir que se ajusta com flexibilidade às diferentes situações encontradas. Devido a essa flexibilidade, as disposições podem entrar em estado de “vigília” ou serem transformadas;

6°) Conceitualmente, é necessário distinguir “competências” ou “capacidades” de “disposições”, reservando este termo para as situações em que há tendência, inclinação, propensão e não um simples recurso que pode ser utilizado potencialmente;

7°) Como certas disposições se combinam entre si para dar conta dos comportamentos neste ou naquele contexto? Possuem existência relativamente diferente uma das outras e se combinam de forma diferente entre si conforme os contextos de ação? Como podem entrar em conflito e travar a ação ou decisão? Essas questões ainda devem ser resolvidas empiricamente, em vez de regulamentadas pela ordem meramente teórica e retórica.

(24)

coerente, portador de um “patrimônio de disposições” (em vez de habitus) heterogêneas e, em

alguns casos, opostas e contraditórias.

Em 2010, Lahire publica uma “biografia sociológica” de Franz Kafka,

personalizando o esforço teórico desenvolvido nos trabalhos anteriores através de pesquisas

anônimas. Neste trabalho, Lahire parte de um estudo preciso de la fabrication sociale de

Kafka desde as suas primeiras experiências familiares até as mais tardias em contextos

díspares através de múltiplas técnicas de pesquisa; histórica, documental, memorial e, claro,

literária e autobiográfica, como Carta ao Pai (1919), concebida por Lahire como “un exercice

de réflexivité”.

3

Para Lahire, apenas uma “biografia sociológica” possibilitaria traçar os

diferentes quadros de socialização do escritor e suas diferentes experiências vividas, pois

procede por etapas, variando a escala de observação, tal como o “movimento de câmera na

realização de um filme”: “Zoom après zoom, on en parvient à de très gros plans qui focalisent

l’attention sur des éléments ou des dimensions particuliers de la vie du createur, et

notamment sur ses textes litteraires”. (Lahire, 2010: 11)

Lahire se propôs ultrapassar o gênero biográfico que privilegia, enquanto gênero

discursivo, a coerência de um percurso, de uma vida ou de um procedimento, em detrimento

de todas as incertezas, incoerências ou mesmo contradições de que estão cheias as

personagens históricas reais.

4

Não se trata de ceder à ilusão positivista de poder apreender a

3

Vale notar que já em 1998, no seu L’ Homme pluriel: les ressorts de l’action, Lahire chama atenção para a escrita enquanto um processo de distanciamento do senso prático e apreensão mais objetivada das coisas, do mundo e de si. E de modo mais sistemático em 2008 nos textos “De la reflexivité dans la vie quotidienne: journal personnel, autobiographie et autres écritures de soi”. Sociologie et Sociétés, vol. 40, n. 2, p.165-179; e em “Linguistique, écriture et pédagogie: champs de pertinence et transferts illégaux”, La Raison escolaire. École et pratiques d’écriture, entre savoir et pouvoir, PUR, Paideia, Rennes, p.59-67.

4

No texto “L’homme pluriel ou la sociologie à l’échelle de l’individu”, Lahire cita exemplos do que considera “biografias unificadoras e parciais”: “Em uma obra que defende filosoficamente a ideia de um sistema de disposições coerente e homogêneo, Emmanuel Bourdieu (Savoir faire. Contribution à une théorie dispositionnelle de l'action, Paris, Seuil, 1998) utiliza o exemplo do célebre trabalho de Erwin Panofsky sobre Galileu (E. Panofsky, Galilée critique d'art, Paris, Gallimard, 1992), que põe em evidência o fato de que ‘os múltiplos investimentos intelectuais’ do grande físico ‘não se reduzem a uma justaposição de atividades separadas, formando, pelo contrário, um sistema de práticas homólogas’ (1998: 7). A fórmula geradora das práticas científicas do físico é assim designada por Panofsky: trata-se de ‘purismo crítico’. E. Bourdieu conclui, pois, que ‘através da ideia de purismo crítico, Panofsky apreende a propriedade fundamental em função da qual se organiza todo o comportamento do grande físico, conferindo-lhe a sua coerência e o seu ‘estilo’ próprio.’ (Idem: 8). No entanto, Panofsky não diz que o ‘estilo’ próprio de ‘Galileu’ se condensa nessa fórmula disposicional (‘purismo crítico’). Ele não fala de ‘todo o comportamento’ de Galileu, mas do comportamento erudito do Galileu-físico. A diferença é enorme. Poderia este ‘purismo crítico’ constituir a disposição social geral que daria conta dos comportamentos domésticos, amicais, amorosos, alimentares, indumentários...? Difícil imaginá-lo. Da mesma maneira, quando se evoca o habitus literário de um romancista como Flaubert (cf. P. Bourdieu, Les Règles de l'art. Genèse et structure du champ littéraire, Paris, Seuil, 1992), podemos nos questionar em que medida este último importa o mesmo ‘sistema de disposições’ para toda uma série de situações sociais extraliterárias. O conjunto de seus comportamentos sociais – qualquer que seja o domínio considerado – seria redutível a esse sistema? A observação dos comportamentos reais mostra que tal pressuposto está longe de ser evidente e de se confirmar”. LAHIRE, B. (2016). “O homem plural ou a sociologia em escala

(25)

totalidade de uma “personalidade” em todas as facetas da sua experiência, mas evitar o

apagamento ou a eliminação sistemática dos dados heterogêneos e contraditórios. Para Lahire,

cruzar os múltiplos dados de arquivo sobre o mesmo indivíduo, abordando-o a partir de

aspectos diferentes da sua atividade social, em vez de simplesmente lhe desenhar o retrato

coerente como artista, escritor, político, padre ou, acrescento, filho de criação, é uma maneira

de renovar o gênero biográfico na história tornando-o um lugar experimental (no sentido de

lugar de experiências, de tentativas) de reflexão metodológica.

Inspirada pelo conjunto da obra de Lahire, me deparei com duas frentes de

trabalho, inter-relacionadas, porém distintas: ao pesquisar a experiência social filho de criação

através de uma sociologia das socializações em escala individual eu poderia proceder à

reconstrução sociológica da pluralidade disposicional dos indivíduos desconstruindo mais

sistematicamente a unificação que se pretende categorialmente, o que me exigiria um

aprofundamento rigorosamente biográfico que configuraria mais um exercício metodológico

do que responderia às minhas questões. A percepção deste efeito nasceu de uma terceira

perspectiva de investigação que se abriu em campo (decorrente da variação de escala de

análise). No nível individual, o processo de desconstrução da unificação social da experiência

filho de criação através da revelação de trajetórias singulares foi sucedido por um processo de

reconstrução; não do indivíduo singular em sua pluralidade, mas da própria unificação da

experiência. A reconstrução sociológica das biografias que caberia a mim realizar com o

auxílio de ferramentas teórico-metodológicas não faria jus à reconstrução moral da

experiência social que se fazia diante de mim, pelos próprios indivíduos. O que fiz, então, foi

observá-la e tentar compreendê-la.

A justificação moral para a experiência social filho de criação que se destacava

nas narrativas revelava dinâmicas sutis de reconstrução e resistência. O que no início

identifiquei grosseiramente como contradições, posteriormente como “variações narrativas”

(em analogia às “variações disposicionais” em função das variações contextuais),

recentemente, na etapa final de análise da pesquisa, com o auxílio de James Scott (1990),

pude perceber que se tratava de “discursos públicos” e “discursos ocultos” (public transcript e

hidden transcript). Ainda que isto não estivesse claro para mim no momento da pesquisa de

campo, minha escolha pela compreensão da reconstrução endógena da experiência social, em

detrimento da reconstrução sociológica das biografias, se deu pelo potencial heurístico do

individual”. In: VANDENBERGHE, F. & VÉRAN, JF. (org) Além do habitus: teoria social pós-bourdieusiana. Rio de Janeiro: 7Letras.

(26)

horizonte normativo que permeava as narrativas culminando na unificação da vida de filho de

criação.

À questão inicial que motivou a investigação empírica, “o que transforma uma

relação objetiva de dominação e servidão em relação familiar”, foi acrescida uma questão

analítica: “por que trajetórias singulares são unificadas pela experiência social?” Buscando

respondê-las, retive a inspiração da “biografia sociológica”, no que tange à variação de escalas

e à multiplicidade de técnicas investigativas para a compreensão da vivência individual de

uma experiência social, mas abandonei o pressuposto de reconstrução do “patrimônio de

disposições” dos meus interlocutores. Me concentrei em uma sociogênese de disposições e

valores que permitissem compreender por que era tão importante para aqueles indivíduos

serem reconhecidos como filhos de criação. Assim, mais próxima de “retratos sociológicos”

de uma experiência ao mesmo tempo social e individual, cotidiana e histórica, articulei uma

sociologia das socializações a uma sociologia da moral da vida de filho de criação.

A lucidez no trato das ferramentas teórico-metodológicas de Lahire para atingir

meus objetivos de pesquisa veio da conciliação com a proposta teórico-metodológica

desenvolvida por Suely Kofes em Uma trajetória, em narrativas (2001). Assim como Lahire,

Kofes se mostra “convicta de que a experiência de um sujeito preciso não escapa das

concretudes socioculturais que tensamente o realizam enquanto pessoa”, propondo-se a fazer

“da intenção biográfica um exercício etnográfico” (Op. cit.: 13).

Envolta em uma trama narrativa, iniciada com um relato quase mítico sobre

Consuelo Caiado, Kofes procurou “compreender, mais que reconstruir” (Op. cit.: 19), não a

vida de uma mulher excepcional, mas uma trajetória sui generis. “Nem é biografia, nem

compartilho o pressuposto de trajetórias excepcionais, nem considero ‘mulher’ uma

identidade fixa.” (Op. cit.: 15) Não se trata também de “história de vida” uma vez que a

compreensão/reconstrução não se esgota nas narrativas; os fatos e os relatos sobre Consuelo

vão sendo desvelados e compreendidos por uma trama paralela de investigação etnográfica. A

inspiração para esta “abordagem biográfica”, segundo a autora, veio do ensaio de Hebert

Baldus, “O Professor Tiago Marques e o caçador Aipobureu”, e do texto de Darcy Ribeiro,

Uirá sai à procura de Deus, cujas abordagens focalizam a experiência de um sujeito sem a

pretensão de reconstruir sua vida. Kofes chama atenção para a sensibilidade destes autores no

encadeamento das informações, não sendo preciso ir além delas para que “o nexo entre a

experiência social e a trajetória singular” dos sujeitos em questão se torne compreensível. (Op.

cit.: 15)

(27)

Definindo trajetória como “o processo de configuração de uma experiência social

singular”, Uma trajetória, em narrativas sofistica a noção bourdieusiana de trajetória (série de

posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente – ou mesmo grupo – em um espaço

ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes) ao ultrapassar a rede estrutural

em que atravessa os sujeitos valendo-se das narrativas como elementos de integração e

reconstrução de espaços, temporalidades, pessoas e personagens.

Não se trata portanto de contar a vida de Consuelo, nem, evidentemente, etnografar a cidade de Goiás. Seguindo os rastros da primeira, e para isso incorporando a segunda, escrevo sobre o que pode ser construído, tecido através de indagações sobre uma pessoa. [...] Os que a recriaram como personagem, ao contar sobre ela, falam da pessoa Consuelo, mas também de si, de relações, de valores, de política e da história local. Não estarei, portanto, operando com oposições como indivíduo/sociedade; método biográfico/método etnográfico ou sociológico. O foco sobre uma singularidade, no caso uma trajetória, revelou várias relações, permitindo que a pesquisa guardasse na intenção biográfica um procedimento etnográfico: orientada pelas perguntas sobre Consuelo Caiado fui seguindo seus caminhos, e o que ouvi e encontrei foi sobre muitas coisas. (KOFES, Op. cit.: 22-23)

Por razões semelhantes, não me caberia uma etnografia de Bagre Bonito e de

Barão de São João Batista e nem a biografia de um ou mais filhos de criação. Minha

abordagem biográfico-etnográfica se limitou à investigação dos “indícios” (BERTAUX,

2010) apontados pelas narrativas individuais e coletiva que explicariam a vida de filho de

criação. Do mesmo modo, meu interesse pelas narrativas individuais restringia-se ao estudo

sociobiográfico de uma experiência social que, disposicionalmente, normativamente e

literalmente, configuram uma vida.

***

Na primeira fase da pesquisa, realizada nos meses de novembro e dezembro de

2006 e janeiro de 2007, me dediquei, inicialmente, a uma investigação etnográfica sobre filhos

de criação. Fiz entrevistas com moradores das regiões rurais e urbanas dos dois municípios

em questão,

5

entrevistas com conhecidos de filhos de criação, participei de rodas de conversa

e investiguei os modos de sociabilidade interligados ao processo de parentesco,

“familiarização” (COMERFORD, 2003) e filiação por criação. Assim, levantei alguns nomes

de filhos de criação e, dentre eles, escolhi oito para realizar a pesquisa. Meu critério de

5

Me guiei mais pela classificação nativa baseada nos modos de vida e de sociabilidade do que pelos critérios políticos e administrativos utilizados pelo IBGE de distinção entre rural e urbano.

(28)

escolha baseou-se nas singularidades das “histórias de vida” narradas pelos seus conhecidos e

na diversificação das variáveis idade, sexo e localidade de habitação (rural/urbano). Minha

ideia, tão logo definido os filhos de criação que entrevistaria, era trabalhar

concomitantemente as narrativas biográficas e a etnografia, contudo, logo após a primeira

entrevista biográfica, foi preciso segmentar as etapas de investigação. Algumas informações

da entrevista (como perguntas feitas) tornaram-se públicas e renderam conversas (importante

modo de sociabilidade que analisarei no capítulo “Modos de sociabilidades e suas

expressões”) especulativas sobre a vida particular da minha interlocutora e sobre meus

supostos interesses de pesquisa.

6

Para evitar esta interferência e resguardar as próximas

entrevistas, tentei condensá-las, reduzindo o máximo possível o intervalo de tempo entre elas.

Posteriormente, retomei a investigação etnográfica de modo mais contextual, sem mais

conversas prolongadas com os moradores sobre os filhos de criação. Mantive esta

segmentação na estruturação da tese não apenas para preservar o movimento, as variações de

escalas e as etapas da pesquisa empírica, mas para ressaltar o quão se interconectam

fundamentando-se biografia e etnografia.

As entrevistas biográficas, como mencionado, seguiram a orientação

metodológica dos “retratos sociológicos” tentando perfazer o maior número possível de

contextos de ação de modo a captar transferências ou variações, reproduções ou novas

constituições disposicionais. A inspiração de Lahire me ajudou a identificar fissuras,

heterogeneidades e descontinuidades, intra e interindividual, no “habitus de filho de criação”

que o senso comum dos municípios pesquisados evoca com grande sistematicidade e também

correlações sociais na constituição de disposições chaves para pensar, sentir e agir como filhos

de criação.

A segunda fase da pesquisa de campo, realizada entre julho e setembro de 2012,

foi orientada pelos avanços analíticos ocorridos neste intervalo. Novamente comecei com uma

análise macrossociológica através de uma “etnografia dos indícios” que identifiquei

reanalisando as narrativas biográficas e coletiva. Realizei mais algumas entrevistas com

6 Pensando a respeito, cheguei a uma hipótese sobre a publicização da entrevista. Como mencionado, a primeira entrevista biográfica que realizei foi com Laura. Assim que concluímos, seus pais me interrogaram, privadamente, com interesse em saber detalhes da nossa conversa. Me esquivei dizendo que a entrevista não entrara nas questões que lhes interessavam. Posteriormente, imagino que tenham feito o mesmo com Laura. Esta, para se preservar, pode ter dito que conversamos sobre educação e política, uma vez que, de fato, conversamos longamente sobre estes temas, haja vista meu interesse inicial em acessar o “patrimônio de disposições” dos filhos de criação. A elaboração desta hipótese veio do conteúdo das interceptações de alguns moradores no dia seguinte à entrevista:

Morador: Você está fazendo entrevista de filho de criação ou de política?

(29)

moradores, participei de novas rodas de conversa e me dediquei à investigação do contexto

religioso, cuja compreensão revelou-se central para a compreensão da vida de filho de

criação. Com relação às narrativas biográficas, pensei em uma retomada mais reflexiva e

compartilhada; pautei o roteiro de entrevista, preservando a orientação biográfica, pelas

narrativas que considerei mais objetivantes das entrevistas anteriores. Assim, compartilhei

com os filhos de criação, com os quais consegui restabelecer contato, tanto suas próprias

narrativas, quanto a narrativa coletiva e, anonimamente, as narrativas de outros filhos de

criação, deixando-os livres para se posicionarem, atualizarem e avaliarem o que fora dito,

prolongando, concordando ou discordando. Ciente que este novo formato poderia intensificar

as conversas, apesar do anonimato que mantive diligentemente durante toda a pesquisa,

organizei a realização das entrevistas novamente de modo condensado, mas, desta vez, no fim

da minha estadia.

Enfim, tentei estruturar a tese deixando o mais claro possível minhas abordagens,

a interconexão biografia-etnografia e a construção teórica articulada com a pesquisa empírica.

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