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As “crias” eram meninas que vinham do interior [...] Lembro o primeiro dia quando alguma delas chegava. Era choro, choro sentido de dar dó. As “velhas” compreendiam e observavam. Já no segundo dia, o choro era menos intenso; no terceiro dia, começavam o tratamento. Primeiro, um purgante para vermes que invariavelmente tinham. Era respeitado o resguardo e em seguida, vinha o tratamento fortificante com ervas e se não me engano o vinho reconstituinte Silva Araújo e boa alimentação. Não sei o que passava na cabeça delas, na minha eu sei, havia muita pena. Eram meninas pouco mais velhas do que eu e iam servir, enquanto que eu só brincava.

(MARIA CECÍLIA, Uma casa chamada 14)

2.1 – “Circulação de crianças” e criação de crianças

A categoria nativa filho de criação aparece com frequência nas pesquisas sobre

“circulação de crianças”. Circulation des enfants (Lallemand, 1993) ou fosterage são

expressões que designam a mobilidade infantil entre unidades domésticas com a transferência

da responsabilidade parental. Trata-se de um tema estudado há bastante tempo no cenário

internacional, em diversos contextos.

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Dois pressupostos são apontados para a configuração

da prática: o caráter reversível da adoção e a preservação dos vínculos com a família de

origem. No Brasil, a “circulação de crianças” começou a ser observada na década de 1980

pela antropóloga Claudia Fonseca, cujo estudo foi desenvolvido em bairros populares e em

arquivos públicos de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Posteriormente, a antropóloga (“e

avó”, como faz questão de salientar) Maria Angélica Motta-Mauès (2004) chamou atenção

para a “circulação de crianças” também nas classes média e alta e para as configurações que a

prática assume na Amazônia (Motta-Mauès, 2006; 2007). No contexto rural, a mobilidade

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Margaret Mead ([1928] 1961, [1935] 2000), nas etnografias clássicas dos Arapsh e de Samoa, faz uma das primeiras descrições etnográficas de arranjos familiares e residenciais na criação e educação dos filhos. Ainda na Oceania (CARROLL, 1970; BRADY, 1976; CHARLES, 1997), na África Ocidental (GOODY,1982; LALLEMAND, 1980; DUPIRE, 1988; GOODY, 1969; ALBER, 2003), na Ásia (MASSARD, 1983 e 1988) e entre os esquimós (DUFOUR, 1984; GUEMPLE, 1979).

infantil é transversalmente observada há mais tempo.

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Recentemente, a antropóloga Emília

Pietrafesa de Godoi (2009) dedicou-se às várias faces da “circulação de crianças” entre os

camponeses do sertão do Piauí.

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O modo e a frequência com que a expressão filho de criação é utilizada pelos

nativos pesquisados são, contudo, variados. Fonseca observa que seus interlocutores

reconhecem a categoria, mas raramente a utilizam, pois, de acordo com a autora, a ênfase está

mais no vínculo, o menino que eu criei, do que no indivíduo autônomo. Em Motta-Mauès, a

categoria mais utilizada para a circulação que não envolve parentesco consanguíneo é cria de

família e nos contextos de socialização por onde as crianças das classes média e alta circulam,

a expressão é descabida. Tradicionalmente, como apontam os estudos de antropologia e

sociologia rural, filhos de criação são frequentes entre camponeses, de modo que é na

pesquisa de Godoi onde encontramos mais referências. O primeiro esforço de definição e

diferenciação de filho de criação de outras categorias próprias do universo rural, como

agregado, foi da socióloga Ana Maria Galano (2002).

A “circulação de crianças” também é intensamente observada nas zonas rural e

urbana dos dois municípios pesquisados na Zona da Mata de Minas Gerais. Contudo, a

criança que circula não se transforma em filho de criação, sua posição familiar de origem é

preservada: é minha sobrinha, está morando comigo; é filho da minha vizinha que está

passando por um problema difícil; é meu neto, cuido dele para minha filha trabalhar em

outra cidade etc. A categoria filho de criação é utilizada apenas para os casos oriundos da

prática de pegar para criar, cuja separação radical da família consanguínea

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e a imobilidade

do filho de criação, isto é, seu pertencimento apenas à família de criação, a aproximam mais

dos pressupostos da adoção formal do que da “circulação de crianças”.

2.1.1 - A naturalização da desigualdade dos filhos de criação

O que me chamou atenção nos estudos sobre “circulação de crianças” nos

diferentes contextos brasileiros, foi a recorrência daquilo que me instigou a pesquisar filhos de

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Moacir Palmeira (1973), Afrânio Garcia (1983), Margarida Maria Moura (1988), Beatriz Herédia (1988) entre outros.

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Certamente existem outros trabalhos, estes são os que conheço e utilizei como referência.

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Apesar da manutenção do sobrenome dos pais consanguíneos e do “papel referencial” que desempenham ao longo de toda a vida do filho de criação, através da genética, como veremos adiante.

criação na Zona da Mata de Minas Gerais, qual seja, a naturalização de sua desigualdade

reiterando formas iníquas de tratamento. Apesar de abundantes referências, o foco dos estudos

aqui abordados é a relação entre famílias, isto é, a rede de “ajuda”, “solidariedade” e

“reciprocidade” que se constitui através da transferência de crianças.

Desigualdade é um elemento de fosterage geralmente aceito. Exceto em situações que envolvem avós, raro é o caso de um filho de criação ser tratado em igualdade de condições com um filho “legítimo” da família. Quando a criança já é “meio grandinha” (sete ou oito anos), ao chegar na família de criação, sua posição subalterna é um ponto pacífico. Nos casos que eu observei, estas crianças não eram matriculadas nas escolas da vizinhança com a mesma presteza que as crianças “legítimas” da família; elas não ganhavam roupas e presentes nas mesmas proporções; e esperava-se que fizessem uma desproporcional quantidade de trabalhos domésticos. Apesar de serem tratadas assim, estas crianças não demonstravam grande ressentimento e deixavam claro que estavam naquelas residências

voluntariamente. (Fonseca, 1995: 33, grifo meu)

[Em nota: (Fosterage) palavra usada em inglês para designar a transferência temporal e parcial de direitos e deveres paternos entre um adulto e outro. A noção faz contraste com a adoção legal que implica a transferência total e permanente desses direitos.]

As palavras de Fonseca descrevem o que encontrei na Zona da Mata de Minas

Gerais, inclusive a atribuição aos filhos de criação de uma “servidão voluntária” (LA

BOÉTIE [1548] 2002). Contudo, ao contrário da perspectiva adotada nos estudos sobre a

“circulação de crianças”, isto é, a relação entre famílias doadoras e receptoras de crianças, me

proponho a investigar tal “servidão voluntária” a partir das narrativas dos próprios filhos de

criação com base em uma sociologia das socializações.

A pesquisa documental realizada por Fonseca nos arquivos públicos de Porto

Alegre sobre disputas judiciais pela guarda de menores entre 1900 e 1926 nos fornece, além

de uma importante historicização da socialização concebida como “adequada” aos filhos de

criação, a essencialização de uma desigualdade a priori que justificaria a desigualdade de

tratamento.

Como definir, no entanto, uma “educação adequada”? A menor Irene “esteve num collégio durante cerca de trêz annos não conseguindo a ler porque é muito rude (...), depois ela aprendeu bordado com a viúva Camboim”. A mãe desta menina, insatisfeita, pretendia tirar sua filha da família adotiva onde, segundo ela, “fazia os trabalhos mais rudes da casa”. O juiz não concordou, estimando sua educação “adequada ao desenvolvimento intelectual da menor”. Outra mãe se queixou que seu marido tirara seu filho

de 12 anos do colégio e do lar da madrinha para deixá-lo em uma “pensão de baixa espécie” onde trabalhava como carregador de viandas e servente de cozinha, sendo preparado “por essa escola de vadiagem e de vício para um “futuro horrível”. O juiz, ouvindo do pai que “mora na Doca na companhia de um bulicheiro de nome Zeca e que o menor cuidava da venda durante o dia”, resolveu que o pai estava oferecendo uma educação mais do que adequada às necessidades do menor. Nos dois casos, o juiz estava reconhecendo tacitamente uma forma alternativa de educação – uma educação adquirida pela convivência no dia-a-dia com adultos – na qual as crianças forneciam uma boa parte da mão-de-obra doméstica. Essa mão-de- obra podia ser gratuita, como no caso de crianças ainda com seus pais, ou de certos “criados”. Mas, a partir de uns 8 anos, esse trabalho podia ser negociado mediante algum pagamento. [...] (Op. cit.: 54, 55)

De modo semelhante, entre meus interlocutores, eu sei fazer de tudo! (menos

ler e escrever) é destacado como herança da criação recebida. Paralelo ao abandono escolar

por falta de jeito, o trabalho precoce é, individual e socialmente, apreciado como a pedagogia

que os transformou em pessoas de bem.

Fonseca nos traz a informação de que a discussão nos dossiês girava em torno de

quem tinha direito a dirigir a educação e usufruir dos serviços da criança, não de quem tinha

direito moral à identidade de “mãe”. Com base nos relatos, a autora chega a importantes

conclusões:

1) que a criança pequena era considerada um peso na economia da família que a criava, exigindo algum tipo de recompensa, 2) que, a partir de 7 ou 8 anos, a criança prestava serviços economicamente significativos e 3) que a “adoção” de uma criança não implicava, necessariamente, colocá-la em pé de igualdade com outras crianças da família. (Op. cit.: 63)

O embate entre pais consanguíneos e adotivos pela guarda da criança,

analisado por Fonseca como infração de uma relação de dádiva, aponta para uma relação de

dádiva paralela, baseada no “dever” de contraprestação da criança “adotada”. Esta segunda

relação de dádiva constitui outro ponto comum com o que observei na Zona da Mata de

Minas Gerais, diretamente relacionada à desigualdade de tratamento dos filhos de criação.

[...] Os genitores apoiavam a visão da criança como dádiva: o pai pardo que, “com a morte da filha do casal A., consentiu que sua filha (de cinco anos) ficasse em companhia do referido casal” [...] No entanto, será que o valor imanente da presença da criança era retribuição suficiente para compensar o trabalho e os gastos envolvidos na sua criação? Diante do juiz, os pais adotivos enfrentavam um dilema. Não queriam derrubar sua imagem de bons

cristãos, mas pelo tamanho da indignação que demonstravam em face da tentativa do genitor de retomar seus filhos, tem-se a impressão de que, atrás do ato caridoso, havia também um investimento calculado. Contavam com um retorno quando a criança fosse maior: sua ajuda nos trabalhos domésticos, uma contribuição em espécie para a economia familiar, o sustento dos pais adotivos na sua velhice... [...] Quem conseguiu criar alguém desde a primeira infância até os 12 ou 15 anos não aceitava de bom grado perdê-lo sem alguma compensação. (Op. cit.: 65, grifos da autora)

Sob o adágio “o sangue puxa”, Fonseca analisa que, cedo ou tarde, as mães

consanguíneas reaverão seus filhos, pois, nessa ideologia do sangue, “mãe é uma só”. Tendo

como certo este retorno dos filhos, a autora coloca a pertinente questão, objetivando, mais

uma vez, a dívida dos filhos de criação:

Indaga-se então por que certas mulheres – as mais velhas e um pouco mais abastadas – infalivelmente adotam crianças. Por que minhas informantes buscam tanto uma criança, ao ponto de se dirigirem à pesquisadora: “Tu não sabes de nenhum nenê por aí, para eu criar?” Certamente as pessoas esperam que os filhos adotivos lhes dêem a mesma satisfação que seus próprios rebentos pela vida afora – talvez até mais, pois se acredita que crianças

adotadas “devem mais” a essas pessoas que cuidam delas por caridade e

não por obrigação. Não há dúvida de que esperam que essas crianças lhes sirvam de amparo na velhice [...]. (Op. cit.: 41, grifos meus)

Caridade e não obrigação são categorias centrais da prática de pegar para criar

que observei, reafirmadas cotidianamente pela família de criação ao longo de toda a vida do

filho de criação, paradoxalmente, como cobrança da dívida de retribuição. Ninguém tinha

obrigação de ficar com ela, explicou-me uma mãe de criação. A expressão utilizada pelos

filhos de criação para falar desta dívida mostra que se o acolhimento é por caridade, a

retribuição é por obrigação: Eu devo muita obrigação a eles.

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Concomitante ao provérbio “mãe é uma só”, Fonseca destaca outro em operação:

“mãe é quem criou”. Mais uma vez, fica claro nesta disputa entre mães o interesse menos pela

guarda da criança do que pela “contraprestação” obrigatória à condição de filho, seja legítimo

ou adotivo. No meu contexto de análise, à obrigatoriedade social de contraprestação do filho

(Os pais cuidam dos filhos para depois os filhos cuidarem dos pais) é acrescida a

obrigatoriedade moral proveniente da adoção como caridade, aumentado a dívida do filho de

criação (os filhos de criação mais ainda, porque adotar uma criança é uma escolha.

Quer sejam os pais ou os próprios filhos que escolham a família de criação,

a circulação de crianças se insere dentro de um sistema de troca no qual os adultos pesam cuidadosamente os “dons” e “contradons”. [...] A genitora

que aceita colocar seu filho pode achar que está agindo pelo bem tanto do filho quanto da mãe adotiva. Pode esperar, em troca, uma certa retribuição da mãe adotiva. Não considera necessariamente que tenha aberto mão de seu direito de ser amparada pelo filho uma vez que este tenha crescido. A mãe adotiva, pelo contrário, ao acentuar as tribulações provenientes da lida materna cotidiana, apresenta a criança como um “peso”, deixando subentendido ser ela a merecedora de eventuais recompensas futuras. A

longo termo, o que se espera da parte dos filhos adotivos é simples: que eles “não esqueçam” seus pais adotivos quando estes envelhecerem, e que lhes

dêem o mesmo apoio afetivo e material que filhos “legítimos” dariam.

Argumenta-se que a criança foi tratada exatamente como um filho “legítimo”

e, assim sendo, o retorno deve ser o mesmo. Mas este “tratamento igual”

está longe de ser evidente, e o objetivo a longo termo dos pais adotivos

acaba frequentemente sendo frustrado. (Op. cit.: 127, 128, grifos meus)

A pletora da desigualdade, embora naturalizada, algumas vezes encontra

resistências, como mostram os casos de “autocirculação” trazidos pela autora:

A partir de certa idade, muitos menores não se conformavam mais com o papel de objeto (passivo) de barganha; impunham-se de uma forma ou de outra como atores. A rebeldia juvenil podia ser dirigida contra os próprios pais da criança. Certos menores pediram para não voltar ao lar onde sofriam “maus-tratos”, tinham que “dormir no chão por não haver cama”, e “até fome passavam”. É manifesto que certos pais recorreram à Justiça para subjugar seus filhos maiores, mais do que para contrariar pais adotivos. [...] E sempre havia aqueles [crianças e adolescentes] que pretendiam exercer uma opção na escolha do lar substituto/empregador. Um menino de 11 anos procurou, por conta própria, o juiz, a quem declarou que tinha “sido entregue como empregado gratuito”, em lugar onde “faz todo o serviço e é muito maltratado, apanhando surras de palmatória e que até apresenta cicatriz de ferimento produzido por uma lata que foi-lhe atirada pela esposa do aludido capitão (seu tutor)”. (Op. cit.: 70,71)

Por que nos municípios pesquisados da Zona da Mata de Minas Gerais não obtive

referência a nenhum caso de autocirculação e a mera possibilidade soou absurda é uma

questão cuja explicação envolve vários domínios da vida social sobre os quais esta tese

pretendeu se debruçar: apego a valores tradicionais de dominação patriarcal/parental,

importância social do pertencimento familiar, socialização “adequada” ao filho de criação,

dívida pela dádiva da vida, valorização religiosa do sofrimento e reconhecimento social da

submissão/servidão. Por enquanto, cabe um exemplo comparativo: veremos na história de

vida de filho de criação de Alessandro, a cicatriz de um tratamento muito próximo ao deste

menino de 11 anos citado por Fonseca, mas sem o mesmo desfecho. Apesar de consciente dos

maus-tratos, Alessandro nunca cogitou deixar a casa dos pais de criação. Ao contrário da

criança que “circula” por diversas casas, ampliando a heterogeneidade do seu “patrimônio de

disposições” (Lahire) e a capacidade reflexiva, o “confinamento” (VIEGAS, 2007: 115) à

casa dos pais de criação e aos contextos sociais que respaldam a socialização “adequada”,

não apenas tendem à homogeneidade das disposições como a obscurecer possibilidades de

mudança.

2.1.2 – Filhos de criação em contextos rurais

Como pode-se perceber, a compreensão da experiência social filho de criação

(como de qualquer outra) articula-se a uma análise contextual. Além da variável rural/urbano,

condições históricas, culturais, sociais, econômicas e religiosas são fundamentais; assim como

idade, sexo, raça, escolaridade etc. o são em nível individual. Tantas variáveis conferem à

prática uma miríade de possibilidades, tornando indevida qualquer generalização; como a que

segue abaixo, associando determinadas características a um “costume rural”.

Não é incomum no interior do Brasil que as famílias mais pobres estabeleçam uma relação clientelista com seus senhorios ou simplesmente com conhecidos mais prósperos mandando uma criança em idade escolar para trabalhar como babá ou empregada doméstica em troca de casa, comida e algum tipo de instrução. [...] Contudo, a prática de colocação de crianças que descobrimos na vila é muito diferente para ser interpretada como mera continuação do costume rural. Na situação rural, não há ambiguidades em torno do status da criança – ela é recebida temporariamente já na idade de ser útil nos afazeres domésticos, e muitas vezes passa a ser criada das outras crianças da casa. Embora a criança receba o título de “filho” ou “filha de criação”, ele ou ela se referem aos adultos da casa como “Dona Fulana” ou “Seu Fulano”. Já as crianças da vila são transferidas mais cedo (geralmente na primeira infância) em maior número, e são absorvidas em pé de

igualdade com os filhos que por ventura existam na família adotiva. [...]

Finalmente, a suposição de que pais dão seus filhos para “ricos” não parece caber aqui. [...] Parece então que, na vila, a maioria das “mães doadoras de filhos” não são motivadas pela esperança de estabelecer um vínculo utilitário patrão-cliente (Fonseca, op. cit.: 79-80, grifo meu)

Contradições internas à parte, cabe-me dizer que a prática da criação em

contextos rurais pode ser bastante diferente do contexto urbano tanto quanto

intracontextualmente. O modo como a categoria filho de criação é concebida no sertão do

Piauí, é bastante diferente da concepção nativa da zona rural da Zona da Mata de Minas

Gerais ou do cerrado do Alto Paranaíba ou da Mata Atlântica do Sul da Bahia ou do interior

do Pará. Godoi (2009: 292), por exemplo, registra que no sertão do Piauí, “fosterage,

corresponde, exatamente, aos chamados ‘filhos de criação’”. Diferente do que observei na

Zona da Mata de Minas Gerais, o termo criação é utilizado pelos sertanejos para tratar de

modalidades de “circulação de crianças” ou fosterage e para se contrapor à adoção legal.

Além disto, Godoi propõe uma interpretação alternativa às abordagens que reduzem as

“várias faces” da “circulação de crianças” encontradas no meio rural a “relações utilitário-

clientelistas”. Parece-lhe necessário “restituir essa prática ao universo da reciprocidade como

parte de uma ética segundo a qual ela é dada como generosa e obrigatória entre vizinhos,

parentes e compadres”. (GODOI, op. cit.: 289) Na etnografia que realizei nas zonas rurais dos

dois municípios em questão, a hipótese de uma “relação utilitário-clientelista” foi uma das

primeiras a ser refutada. Logo no início, registrei a recorrência, em igual medida e condições,

da prática de pegar para criar tanto em famílias consideradas pobres quanto em famílias

ricas. De acordo com meus interlocutores, existiam várias maneiras de pegar uma criança

para criar. Na maioria das vezes, a adoção era intermediada por terceiros, de modo que a

família de criação não chegava a conhecer a família consanguínea. A senhora quer uma

menina? Eu sei de alguém que dá. Os pais consanguíneos, quando escolhem, não escolhem

pais ricos para seus filhos, escolhem quem vai cuidar. A única relação de troca que registrei

não se explica como utilitária ou clientelista, tratou-se da transferência de filhos como mostras

de gratidão a um favor inicial, concebido como generosidade.

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Ainda em contraponto à Fonseca, no contexto mineiro, “ambiguidade” revelou-se

uma característica intrínseca tanto à categoria quanto à experiência filho de criação, tal como,

entretanto, decorre de sua própria explicação: “Embora a criança receba o título de ‘filho’ ou

‘filha de criação’, ele ou ela se referem aos adultos da casa como ‘Dona Fulana’ ou ‘Seu

Fulano’”. Como veremos, filho de criação é uma categoria ambígua e polissêmica definida

relacionalmente (a filha de criação que é considerada como uma mãe pelos irmãos que

ajudou a criar, entre outros exemplos). Observei que os filhos de criação que não se referiam

ao casal acolhedor como pais não tinham sido adotados na primeira infância, o que, ao

contrário do afirmado por Fonseca, não é usual e nem apreciado, haja vista a possibilidade de

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