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A descriminalização do aborto

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ANGÉLICA DICK

A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO

Três Passos (RS) 2016

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ANGÉLICA DICK

A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO

Monografia final do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Monografia. UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientadora: MSc. Márcia Cristiana de Oliveira

Três Passos (RS) 2016

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Dedico este trabalho a todos que de uma forma ou outra me auxiliaram e ampararam-me durante estes anos da minha caminhada acadêmica.

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AGRADECIMENTOS

À minha família, que sempre esteve presente e me incentivou a nunca desistir dos meus sonhos.

Ao meu companheiro Fernando, pelo amor, carinho, apoio e compreensão.

À minha orientadora Márcia Cristina de Oliveira pela sua dedicação e disponibilidade, me guiando pelos caminhos do conhecimento.

A todos que colaboraram de uma maneira ou outra durante a trajetória de construção deste trabalho, meu muito obrigada!

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RESUMO

O presente trabalho de pesquisa monográfica faz uma análise histórica acerca da criminalização do aborto no Brasil até a atual legislação penal, discutindo as inúmeras consequências advindas da criminalização, principalmente na saúde pública. Nessa perspectiva, eleva a criminalização do aborto à violação de direitos humanos fundamentais, bem como, violação aos direitos constitucionalizados, principalmente o direito à autonomia, à vida, à saúde, liberdade sexual e o direito da autodeterminação e, por fim, analisa as principais barreiras para o alcance do direito ao aborto no Brasil. Os argumentos analisados servem como parâmetro para tentar demonstrar os entraves que precisam ser superados a fim de que o debate acerca da descriminalização do aborto no Brasil possa avançar, destacando-se o conservadorismo moral ligado às questões religiosas e históricas.

Palavras-Chave: Legislação Penal. Aborto. Descriminalização. Direitos Humanos. Autonomia feminina.

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ABSTRACT

The present monographic research working is a historical analysis about the criminalization of abortion in Brazil, to the current criminal legislation, discussing the numerous consequences resulting from criminalization, especially in public health. In this perspective, bring abortion as a violation of human fundamental rights, as well as violation of constitutionalized rights, particularly the autonomy right and life, health, sexual freedom and the self-determination right and, finally, examines the main obstacles of the right to abortion in Brazil. The arguments analyzed serve as parameter to try to demonstrate the obstacles that must be overcome in order that the debate on the decriminalization of abortion in Brazil can advance, highlighting the moral conservatism linked to religious and historical questions.

Keywords: Criminal Law. Abortion. Decriminalization. Human rights. Female autonomy.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 8

1 ABORTO LEGAL E CRIMINOSO ... 10

1.1 Aspectos históricos do aborto no Brasil ... 11

1.2 Aborto e suas classificações ... 16

1.3 Aborto e saúde pública ... 20

2 O ABORTO SOB A PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS ... 24

2.1 A tutela jurídica da vida através da criminalização do aborto ... 26

2.2 O direito à vida pelo princípio da dignidade da pessoa humana ... 29

2.3 O direito da autodeterminação – direitos sexuais e reprodutivos da mulher ... 33

2.4 A influência da sociedade e religião como cápsula de contenção da descriminalização ... 38

CONCLUSÃO ... 42

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho apresenta um estudo acerca de um dos assuntos que converge às mais importantes necessidades de debate e abordagens na sociedade, que consiste na prática do aborto no Brasil.

No transcorrer desta pesquisa, será analisando o processo histórico desde a colonização até a atual legislação penal, que ainda tipifica o aborto voluntário como crime. Serão abordados ainda aspectos que permeiam a necessidade de sua descriminalização como forma de garantia dos direitos humanos e fundamentais.

Este estudo faz-se necessário para que possamos evoluir na qualidade do debate e dos argumentos jurídicos na sociedade brasileira, no que tange a descriminalização do aborto voluntário e suas implicações em diversos âmbitos. Sendo assim, para a realização deste trabalho foram efetuadas pesquisas bibliográficas, que contemplaram a consulta em livros, artigos e distintas fontes, tanto por meio físico quanto eletrônico.

Inicialmente, no primeiro capítulo, foi realizada uma abordagem histórica da prática do aborto no Brasil, destacando a influência da Igreja Católica para sua criminalização. Em seguida, abordou-se a classificações do aborto na atual legislação penal, além do aborto como uma questão de saúde pública, destacando as principais consequências advindas da criminalização, destacando-se o agravante que culmina na morte de milhares de mulheres em todo o mundo.

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No segundo capítulo é analisada a questão da criminalização do aborto voluntário como violação aos direitos humanos e fundamentais, fazendo referência aos diversos movimentos feministas e suas conquistas ao longo da história.

Analisa-se também a tutela da vida através da criminalização do aborto e a necessidade do reconhecimento da competência da mulher para decidir sobre sua sexualidade e reprodução como forma de garantir os direitos à vida, à saúde e liberdade sexual às mulheres.

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1 ABORTO LEGAL E CRIMINOSO

De acordo com a legislação brasileira, o aborto não é considerado crime quando a gravidez coloca em risco a vida da mulher, quando a gravidez é resultante de estupro, ou nos casos de anencefalia, podendo inclusive ser realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), quando necessário. Fora esses casos citados, o aborto é tipificado como crime no ordenamento Brasileiro.

A prática do aborto esteve presente em todos os períodos históricos, inclusive antes mesmo da colonização. Inicialmente foi criminalizado pela Igreja Católica, por questões morais, passando apenas a ter relevância para o mundo do direito a partir da edição do Código Criminal de 1830. Atualmente o Código Penal vigente datado de 1940 ainda criminaliza o aborto.

No entanto, mesmo diante desta condição criminal, a prática do aborto criminoso ainda leva muitas mulheres à busca de medicamentos proibidos, profissionais incapacitados e estabelecimentos clandestinos, o que agrava a problemática acerca deste assunto no Brasil, enaltecendo assim a relevância do debate e pesquisa sobre esta temática.

A preocupação com o aborto criminoso foi evidenciada no Evento “Pequim +20”, promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU), onde a Secretaria de Política para Mulheres (SMP) afirmou que “ainda que a legalização do aborto seja uma reivindicação histórica do movimento feminista, o tema encontra forte oposição do crescente setor conservador e religioso da sociedade, de grande influência no Poder Legislativo” (O GLOBO, 2016).

A ilegitimidade do sistema penal frente à questão do aborto fica evidenciada pelos inúmeros casos de aborto registrados no mundo todo, sendo inclusive classificado como um grave problema de saúde pública. Nesse sentido, a ordem internacional já recomendou aos Estados que assumam o aborto ilegal como uma questão prioritária e que revisam suas legislações punitivas em relação ao aborto. Segundo Emmerick (2008, XIV):

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Os Comitês da ONU sobre Direitos Econômicos e Culturais (PIDESC) e sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em 2003, recomendaram ao Estado brasileiro a adoção de medidas que garantam o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Ambos enfatizaram ao Estado Brasileiro a necessidade de revisão da legislação punitiva com relação ao aborto, a fim de que o mesmo seja enfrentado como grave problema de saúde pública.

Apesar de o Brasil ter pouco evoluído no debate da legalização do aborto, diversos países já possuem o aborto legal e irrestrito (em sua maioria localizados no hemisfério norte), onde foi possível verificar uma queda significativa do número de mortes maternas, como também a redução do número de aborto. Segundo Iaci Maria (2010):

Vários estudos comprovam que nos países em que o aborto foi legalizado, não apenas houve uma vertiginosa queda no número de mortes maternas, como a prática do aborto também sofreu uma redução. Isso se dá pois, na maioria das situações, a legalização do aborto vem acompanhada de políticas públicas de prevenção à gravidez indesejada, assistência social e educação sexual.

No entanto, o contraste entre os países onde o aborto foi legalizado e àqueles que ainda o criminalizam, é evidenciado no desempenho social no que tange a índices de corrupção, aumento de violência, desrespeito à liberdade individual, além do atraso quanto aos direitos sexuais e reprodutivos. Ou seja, a legalização da prática do aborto, independentemente da sua forma, é uma questão de saúde pública e de direitos humanos que deve ser muito bem debatida e analisada quanto à exequibilidade, implicações e aceitação da população.

1.1 Aspectos históricos do aborto no Brasil

A questão do aborto está presente nos debates ao longo da história, por se tratar de uma questão polêmica e bastante complexa que envolve diversos campos, tais como: a medicina, a ética, a moral, a religião, o direito, os costumes e a filosofia.

No Brasil tem-se o registro da prática do aborto desde a colonização, porém nesta época, a mesma não estava disciplinada juridicamente e não era de relevância

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para o mundo do direito. Têm-se registros que a prática do aborto era recorrente entre às mulheres indígenas. Segundo Del Priore (apud EMMERICK, 2008, p. 56), “a prática do aborto já constava das linhas das primeiras cartas jesuíticas, sendo de uso recorrente entre mulheres indígenas”. Segundo a mesma autora, tudo leva a crer que a prática do aborto já fazia parte da vida das mulheres tanto no Brasil quanto em Portugal.

No período de colonização, para que os portugueses pudessem manter a terra descoberta como colônia e torná-la lucrativa, teriam que primeiramente povoá-la e o papel da mulher era somente o de reproduzir para garantir o aumento da população. Neste período segundo Del Priore (apud MENDES, 2008), existia uma política de ocupação no qual se proibiam as relações mestiças ou relações que o Estado e a Igreja Católica não pudessem controlar. Inicialmente constatou-se uma extrema hierarquização entre os sexos, com controle sobre o corpo e sexualidade da mulher. Segundo Emmerick (2008, p. 54):

A condição feminina no Brasil Colônia esta associada aos interesses religiosos, políticos, econômicos e sociais da época, ou seja, estritamente ligada ao projeto da colonização do império colonial português. O Estado português tinha como preocupação central o vazio demográfico do Brasil Colônia, ao passo que a preocupação central da Igreja Católica era com a questão moral no insipiente Estado colonial, construindo uma associação da mulher à imagem da “santa - mãe”.

Devido à necessidade de colonização e com a grande influência da Igreja Católica se criou o modelo de mulher perfeita, aceitável e louvável, ou seja, aquela que mantinha e construía a prole dentro de casamento, fora disso à mulher era diabolizada, considerado um mal a sociedade. Segundo Del Priore (apud EMMERICK, 2008, p. 55):

Assim sendo, a domesticação da mulher passara inevitavelmente pela maternidade dentro do casamento normatizado. Fora dele, era tida como um ser disposto a provar todas as irregularidades decorrentes de fluxos internos e não organizados para a procriação.

Foi por um longo período que a prática do aborto não era prevista como crime, sendo deixado a critério da mulher a decisão acerca de manter ou não a gestação. Segundo leciona Prado (2004, p. 100):

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A prática do aborto, durante longo lapso temporal, não era prevista delito. Predominava, inicialmente a total indiferença do Direito em face do aborto, considerando o feto como parte integrante do organismo materno e, de conseguinte, deixando a critério da mulher a decisão acerca da conveniência ou não de dar prosseguimento à gravidez. A administração de substâncias abortivas, porém, era vedada, em razão de perigo provocado – ou da lesão efetivamente produzida – para a saúde da mulher.

Contudo o aborto era criminalizado/repudiado pela Igreja Católica, e sua preocupação central não estava na proteção da vida do feto, mas a questão moral do casamento tinha-se a idéia central de que, o aborto era praticado por mulheres que haviam tido relacionamentos fora do casamento. Segundo Emmerick (2008, p. 55):

[...] a prática do aborto era motivo de grandes inquietações por parte da Igreja Católica e do Estado, sendo considerada uma arma de controle da procriação usada pelos casais ilegítimos. Assim, tudo leva a crer que a condenação e a proteção da igreja contra o aborto não eram em virtude de tal prática ser considerada crime contra a vida, mas em conseqüência de derivar de relacionamentos fora do matrimônio, quando o sexo não era usado para sua finalidade última (procriação), o que ia de encontro ao projeto tridentino da época. Tal fato configurava um flagrante controle do corpo e da sexualidade da mulher, pois o que estava em jogo não era a proteção da vida do feto desde a concepção, mas questão de cunho demográfico, moral e religioso.

Nota-se que no discurso da Igreja Católica a mulher que abortava era aquela que mantinha relacionamentos ilegítimos, considerado o adultério e eram tidas como pecadoras, sofrendo penas morais e religiosas que eram impostas pela Igreja. Segundo leciona Nunes (apud TESSARO, 2006, p. 44):

A preocupação central – da Igreja como do Estado – era a constituição do casamento monogâmico como regra para toda a sociedade. No Império, estabeleceram-se leis que desencorajavam o concubinato. O primeiro Concílio do Ocidente, realizado no século IV, antes mesmo da oficialização do cristianismo por Constantino – o Concílio de Elvira – estabeleceu penas religiosas severíssimas para as transgressões à fidelidade conjugal. As penas impostas pelo estado e pela Igreja eram mais duras para os casos de adultério do que para os de homicídio. Assim, pode-se dizer que, diante das leis religiosas, como das leis romanas, a afirmação do casamento monogâmico como única união legítima era mais importante como fundamento social do que a proteção da vida.

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Embora houvesse uma forte repressão ao aborto, as mulheres ainda o realizavam diante das péssimas condições em que viviam no período colonial, devido à pobreza e ao abandono, além da tentativa de esconder a ilegitimidade dos filhos (MENDES, 2008).

Mesmo sendo condenado por parte da Igreja e do Estado, o aborto não foi tipificado como crime no ordenamento brasileiro até 1830. A primeira referência do aborto na legislação se deu com a promulgação do Código Criminal de 1830, inserido no capítulo referente aos Crimes contra a Segurança da Pessoa e da Vida, mais especificamente nos artigos 199 e 200:

Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada.

Penas - de prisão com trabalho por um a cinco annos.

Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada. Penas - dobradas.

Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique.

Penas - de prisão com trabalho por dous a seis annos.

Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes.

Penas - dobradas (BRASIL, 1830).

Ao analisarmos a redação dos artigos acima, verificamos que no Código Criminal do Império de 1830 não se criminalizava o aborto praticado pela própria gestante, punia-se somente o realizado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante, ou seja, o que se punia era o aborto consentido e o sofrido, mas não o aborto provocado, restando claro que o bem jurídico tutelado era a mulher e não a vida do feto. Nas palavras de Capez (apud VIANA, 2012, p. 26):

No Brasil, o código do Império de 1830 nada previa sobre o crime de aborto, praticado pela própria gestante, mas apenas criminalizava a conduta de terceiros que realizassem o ato, com ou sem o consentimento dela já o, código de 1890, passou a prever o crime de aborto praticado pela gestante e somente com o Código Penal de 1940, que tipificou o crime de aborto provocado, sofrido, e o consentido.

A figura do auto-aborto apenas passou a ter status de crime a partir do século XIX, quando o Brasil passou a categoria de República tendo sido promulgado o

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Código Penal da República de 1890. Neste novo Código Penal o aborto foi tipificado como crime no Capítulo IV, Título X, em seus artigos 300 a 302:

Art. 300. Provocar abôrto, haja ou não a expulsão do fructo da concepção:

No primeiro caso: pena de prisão cellular por dous a seis annos. No segundo caso: pena de prisão cellular por seis mezes a um anno. § 1º Si em consequencia do abôrto, ou dos meios empregados para provocal-o, seguir-se a morte da mulher:

Pena - de prisão cellular de seis a vinte e quatro annos.

§ 2º Si o abôrto for provocado por medico, ou parteira legalmente habilitada para o exercicio da medicina:

Pena - a mesma precedentemente estabelecida, e a de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação.

Art. 301. Provocar abôrto com annuencia e accordo da gestante: Pena - de prissão cellular por um a cinco annos.

Paragrapho unico. Em igual pena incorrerá a gestante que conseguir abortar voluntariamente, empregado para esse fim os meios; e com reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria.

Art. 302. Si o medico, ou parteira, praticando o abôrto legal, ou abôrto necessario, para salvar a gestante de morte inevitavel, occasionar-lhe a morte por impericia ou negligencia:

Pena - de prisão cellular por dous mezes a dous annos, e privação do exercicio da profisão por igual tempo ao da condemnação (BRASIL, 1890).

Segundo Soares (apud EMMERICK, 2008, p. 60), “a parte referente ao aborto é uma das mais controvertidas do Código Penal da República, podendo ser considerada uma das mais delicadas e controvertidas entre médicos e juristas da época”. Segundo Emmerick (2008, p.60), “de acordo com a interpretação dada aos dispositivos, a interrupção voluntária da gravidez podia ser considerada um delito social, um atentado contra a ordem nas famílias, um crime contra a pessoa, etc.”

O Código Penal de 1980 passou a prever a figura do aborto provocado pela própria gestante e atualmente, vige em nosso ordenamento jurídico o Código Penal datado de 1940, que tipifica o delito de aborto no Título I (Dos Crimes contra a Pessoa), especificamente no capítulo I, que trata dos crimes contra a vida. Segundo Cesar Roberto Bitencourt (2011, p. 158):

O código Penal de 1940, por sua vez, tipifica três figuras de aborto: aborto provocado (art.124), aborto sofrido (art.126), e aborto consentido (art. 126). Na primeira hipótese, a própria mulher assume a responsabilidade pelo abortamento; na segunda, repudia a

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interrupção do ciclo natural da gravidez, ou seja, o aborto ocorre sem o seu consentimento; e, finalmente, na terceira, embora a gestante não o provoque, consente que terceiro realize o aborto.

Contudo, o Código Penal vigente contempla cinco modalidades de abortamento, quais sejam: auto-aborto (art.124, primeira parte, CP), consentido (art. 124, segunda parte), não consentido (art. 125, CP), necessário ou terapêutico (art. 128, I, CP) e sentimental (art. 128, II, do CP), que serão tratados a seguir.

1.2 Aborto e suas classificações

Segundo o atual Código Penal Brasileiro o aborto é tipificado como crime, sendo caracterizado pela morte do feto. Segundo o criminalista Fabbrini (apud COSTA, 2011, p. 12):

Aborto é a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses) ou feto (após três meses), não implicando necessariamente a expulsão. O produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes da expulsão.

De acordo com Tessaro (2006, p.47), “Para configuração do delito de aborto, não se faz necessária a distinção entre óvulo fecundado, embrião ou feto. Para o legislador penal, suficiente é a interrupção da gestação, independentemente do estágio em que se encontre”.

O atual Código Penal contempla cinco modalidades de abortamento, quais sejam: auto-aborto (art.124, primeira parte, CP), consentido (art. 124, segunda parte), não consentido (art. 125, CP), necessário ou terapêutico (art. 128, I, CP) e sentimental (art. 128, II, do CP). 1

1 Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de um a três anos.

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos.

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Porém, nem todo o aborto é considerado criminoso, existe o aborto natural, acidental, criminal e o legal. Segundo leciona Gonçalves (2011, p.152):

Nem sempre o aborto é criminoso. Se for decorrente de causas

naturais, como má formação do feto, rejeição do organismo da

gestante, patologia etc., o fato será atípico. Também não haverá crime de aborto se tiver ele sido acidental — queda, colisão de veículos, atropelamento etc. Em verdade, para a existência de crime

de aborto, é necessário que a interrupção da gravidez tenha sido provocada — pela própria gestante ou por terceiro — e que não se

mostre presente quaisquer das hipóteses que excluem a ilicitude do fato (aborto legal).

As formas previstas de aborto criminoso na legislação brasileira são aquelas em que o aborto é provocado com a finalidade de interromper a gravidez e eliminar o produto da concepção, são elas: o auto-aborto, o consentimento para o aborto, o aborto praticado com o consentimento da gestante e o aborto praticado sem o consentimento da gestante. Hélio Gomes (apud BITENCOURT, 2007, p.129) define o aborto criminoso nos seguintes termos: “É a interrupção ilícita da prenhez, com a morte do produto, haja ou não expulsão, qualquer que seja seu estado evolutivo, desde a concepção até momentos antes do parto”.

Para configurar o auto-aborto (art.124, primeira parte, CP) é necessário que a própria gestante pratique o ato sem qualquer ajuda de terceiro. Constitui modalidade de crime próprio, da qual somente a gestante poderá ser autora. Já quando o ato é praticado por um terceiro com o consentimento da gestante (art. 124, segunda parte) estamos diante do aborto consentido, neste caso a gestante e o terceiro são co-autores.

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário

I - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

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O aborto provocado sem o consentimento da gestante, também chamado como aborto sofrido (art. 125, CP), é a forma mais gravosa do delito de aborto. A ausência de consentimento da gestante poderá ser deduzida, ou até presumida, quando a ação vier a ser praticada sem que a vítima tenha dela conhecimento.

O código penal prevê expressamente duas hipóteses em que o aborto não é considerado crime, estas hipóteses estão contempladas nos incisos do art. 128, do Código Penal, o aborto necessário/terapêutico e o aborto sentimental/humanitário, sendo estas duas causas de exclusão de antijuridicidade tipificadas no nosso ordenamento.

O aborto necessário também conhecido como terapêutico justifica-se quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e pode ser praticado mesmo contra a vontade da gestante. Segundo leciona Bitencourt (2011, p. 168):

O aborto necessário exige dois requisitos, simultâneos: a) perigo da vida da gestante; b) inexistência de outro meio para salvá-la. O requisito básico e fundamental é o iminente perigo a vida da gestante, sendo insuficiente o perigo a saúde, ainda que muito grave. O aborto, ademais, deve ser o único meio capaz de salvar a vida da gestante, caso contrário o médico responderá pelo crime [...]

Já o aborto sentimental, também chamado de indicação ética ou humanitária é autorizado quando a gravidez é consequência do crime de estupro e a gestante consente na sua realização. Neste caso, não obstante inexistir perigo de vida à gestante, o abortamento está autorizado em razão de a gravidez resultar de estupro. Segundo Prado (2004, p. 116):

No aborto sentimental ou humanitário o mal causador é maior do que aquele que se pretende evitar. De conformidade com a teoria diferenciadora em matéria de estado de necessidade – que faz distinção entre os bens em confronto-, haverá a exclusão de culpabilidade da conduta pela inexigibilidade de conduta diversa. O fundamento da indicação ética reside no conflito de interesses que se origina entre a vida do feto e a liberdade da mãe, especialmente em cargas emotivas, morais e sociais que derivam da gravidez e da maternidade, de modo que não lhe é exigível outro comportamento.

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Ainda em 12 de abril de 2012, em consequência da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental no Supremo Tribunal Federal (ADPF nº 54), feito pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde do Brasil, pedindo que a Corte Constitucional conferisse ao Código Penal uma interpretação conforme a Constituição e declarasse que o aborto de fetos anencéfalos não é crime.

Depois de longos debates o Supremo Tribunal Federal, por 8 votos a 2, entendeu que não é crime interromper a gravidez de fetos anencéfalos. Assim, feito o diagnóstico de anencefalia do feto a gestante pode decidir em interromper a gravidez e não estará cometendo o crime de aborto, independentemente de autorização judicial. Segundo o relator da ADPF 54, ministro Marco Aurelio:

Obrigar a mulher a manter esse tipo de gestação significa colocá-la em uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”, deixando-a desprovida do mínimo essencial de autodeterminação, o que se assemelha à tortura, devendo caber à mulher, e não ao Estado, sopesar valores e sentimentos de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez. (Supremo Tribunal Federal, 2012)

A objetividade jurídica do tipo penal é a proteção do direito à vida do feto, ou seja, o bem jurídico tutelado é a vida humana intra-uterina, de modo que, tutela-se o direito ao nascimento com vida. A doutrina majoritária defende ser o aborto um delito que lesiona um bem jurídico individual, qual seja, a vida humana em formação, independentemente do seu estágio evolutivo.

Apesar de a legislação criminalizar a prática do aborto, ela ocorre em grande escala, colocando em risco a vida de milhares de mulheres, maioria adolescentes de classe baixa e de baixo grau de escolaridade, configurando como um problema de saúde pública e justiça social que envolve não só questões jurídicas, mas também éticas e morais que precisam ser debatidas e repensadas pela sociedade para que se possa alcançar o avanço necessário em nossa legislação

A descriminalização do aborto voluntário é uma possível forma de garantir direitos fundamentais das mulheres, necessária e urgente, pois as conseqüências

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negativas são alarmantes, principalmente no que tange a saúde das mesmas como será exposto a seguir.

1.3 Aborto e saúde pública

A saúde segundo disposto no artigo 196 da CF/882 é um direito de todos e um

dever do Estado que deve ser garantida mediante políticas sociais e econômicas, para que se possa atingir o bem-estar físico, psíquico e social de todas as pessoas.

O direito fundamental a saúde também esta garantido constitucionalmente através do artigo 6º da CF/883, e o mesmo é atingido de forma direta com a

criminalização do aborto voluntário. O problema é que mesmo sendo crime no Brasil, sua prática não é inibida. Estima-se que mais de um milhão de abortos são realizados por ano no país, milhares de mulheres colocam em risco sua vida e sua saúde para interromper uma gravidez indesejada.

A prática do aborto induzido e realizado de forma insegura é mundialmente reconhecida como um grave problema de saúde pública e de justiça social, configurando como a quarta causa de mortalidade materna no Brasil. Segundo Emmerick (2008, p. XVI):

O aborto figura como 4ª causa de morte materna no Brasil, sendo sua vítima preferencial a mulher de baixa renda. A legislação repressiva-punitiva tem impacto, sobretudo, na vida de mulheres de baixa renda que, destituídas de outros meios e recursos, ora são obrigadas a prosseguir na gravidez indesejada, ora sujeitam-se a prática de aborto em condições de absoluta insegurança. As mulheres que tem recursos financeiros são atendidas de modo seguro, com qualidade e sem risco para a sua saúde e vida, enquanto mulheres economicamente desfavorecidas continuam a submeter-se ao aborto clandestino e inseguro.

2 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais

e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

3 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o

lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

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Registra-se que a criminalização do aborto além de ser um problema de justiça social que envolve questões jurídicas, éticas, morais e religiosas, é principalmente um problema de saúde pública. Segundo Borges (2010):

No Brasil, estimativas realizadas em 2005 com base em internações hospitalares decorrentes de complicações provenientes de abortos registradas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) indicam que ocorrem cerca de 1,5 milhões de abortos a cada ano. É como se fosse eliminada totalmente a população de Porto Alegre, ou de Recife, ou de Campinas e Niterói juntas.

Sabe-se que mulheres de todas as classes sociais sejam elas, brancas, negras ou pardas, praticam o aborto, a diferença está na forma em que isso ocorre e no procedimento adotado. Segundo Varella (2016), “a mulher rica faz normalmente e nunca acontece nada. Já viu alguma ser presa por isso? Agora, a mulher pobre, a mulher da favela, essa engrossa estatísticas. Essa morre. Proibir o aborto é punir quem não tem dinheiro”. Nessa mesma crítica ao sistema penal corrobora Santiago (2008, p.35):

[...] nos países onde o aborto é ilegal, há serviços clandestinos, dirigidos por profissionais capacitados, que oferecem um procedimento seguro, desde que se possa pagar por ele. Nesse ponto, o que determina o acesso ao aborto seguro é também o poder econômico, o que torna o aborto inseguro uma manifestação da iniqüidade social.

O risco imposto pela ilegalidade do aborto é majoritariamente vivido pelas mulheres pobres e pelas que não têm acesso aos recursos médicos para o aborto seguro. Zaffaroni (apud EMMERICK, 2008, p. 36) salienta:

Até hoje o sistema penal não consegui resolver o conflito gerado pelo aborto, o aumento da repressão sobre os médicos que praticam não faz que aumentar o preço dos seus serviços, excluindo cada vez mais as mulheres das faixas economicamente mais carentes, que se vêem entregues a mãos despreparadas e desumanas, o quem tem feito aumentar o numero de mortes devido ao emprego de práticas primitivas, fazendo com que o aborto ocupe o primeiro lugar entre as causas de morte materna.

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Pode-se afirmar que a criminalização da prática do aborto voluntário nada mais faz do que perpetuar a desigualdade social numa flagrante violação ao princípio da igualdade e do Estado democrático de direito.

A saúde da mulher que busca pelo procedimento do aborto esta sempre em perigo/risco, em virtude da maioria dos casos ocorrerem na clandestinidade e em condições insalubres. O direito penal neste caso, não evita a morte de embriões e fetos, pelo contrário, causa inúmeros outros danos jogando milhares de mulheres na clandestinidade. Segundo Karam (apud EMMERICK, 2008, p. 37):

A enganosa publicidade do proibicionismo aqui se desnua. Os proibicionista se apresentam como defensores da vida e, mais do que isso, pretendem-se os únicos defensores da vida. Em suas campanhas, tentam estigmatizar os antiproibicionistas, como se estes não tivessem compromisso com a vida. Mas constatada morte de mulheres causadas pelas condições precárias em que são realizados os proibidos abortos, que, repita-se, não são nem nunca foram impedidos pela proibição, não parecem lhe incomodar (...). À argumentação dos proibicionistas, pretende extrair um sentido criminalizador deste reconhecimento, é tão somente mais um produto de seu enganoso discurso, é tão somente um produto daquela falsa crença de que o controle social se limitaria à intervenção do sistema penal.

São vários os motivos que levam uma mulher a decidir interromper uma gravidez, dentre eles estacam-se as questões socioeconômicas: pobreza, falta de suporte, interrupção dos estudos, perda do emprego, falta de planejamento familiar, entre inúmeros outros.

As consequências, físicas e psíquicas vivida pelas mulheres pós abortamento são inúmeras, podemos destacar: a queda na auto-estima pessoal pela destruição do próprio filho, depressão, culpabilidade ou frustração de seu instinto materno, desordens nervosas, insônia, neuroses diversas, entre outras.

O impacto dos abortos ilegais é enorme, e pode ser estimado por meio dos casos em que as gestantes têm complicações, estas que não conseguem solucionar sozinhas ou nas clínicas clandestinas e acabam por ter que recorrer aos serviços de saúde. Por esse fato é que se tem o conhecimento de que a prática está se tornando cada vez mais comum entre as mulheres, se assim não fosse seria muito difícil ter o

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conhecimento do número de mulheres que se submetem ao aborto pelo fato de ele ser considerado crime.

Percebe-se que a questão do aborto no Brasil vai muito além do campo Penal conforme exposto por Domingos (2008, p. 69):

O número de abortamento voluntário clandestino e ilegal no Brasil supera, de forma irrefutável, o número de casos que chegam até o Judiciário para o devido processo de julgamento, demonstrando certo descompasso entre a lei posta pelo Código Penal vigente e a possível conformação da prática ilícita de aborto em caso concreto a ser apreciado na esfera judicial.

A análise rigorosa acerca desse suposto descompasso pode vir a se revelar como um precioso instrumento para a compreensão da gênese de um novo entendimento sobre o aborto no Brasil que, articulada a elementos substanciais oferecidas pela moderna Hermenêutica Constitucional, pode ser capaz de operar significativas transformações no ordenamento jurídico pátrio, oferecendo, assim, respostas mais consistentes a um problemas de transcende ao campo do Direito Penal e afeta milhares de cidadãos brasileiros, especialmente, mulheres.

Visando minorar as consequências decorrentes da prática do aborto clandestino e inseguro, faz-se necessária e urgente adequação da lei penal face à situação social apresentada, uma vez que o sistema penal é ilegítimo e tem se mostrado ineficaz para a solução do problema.

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2 O ABORTO SOB A PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais do homem expressos na atual Constituição abrangem os direitos individuais, políticos e sociais que resultam de um movimento de constitucionalização que começou nos primórdios do século XVIII, encontrando-se incorporados ao patrimônio comum da humanidade e reconhecidos internacionalmente a partir da Declaração da Organização das Nações Unidas de 1948.

Os direitos e garantias fundamentais estão dispostos no Título II da Constituição brasileira de 1988, sendo dividido em cinco capítulos: I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, II - Dos Direitos Sociais; III - Da Nacionalidade, IV - Dos Direitos Políticos, e V — Dos Partidos Políticos.

Consideram-se direitos fundamentais aqueles que são indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma existência digna, livre e igualitária, tais como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, inseridos no artigo 5º caput da Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, torna-se possível afirmar que o Direito, em um Estado Democrático de Direito, não cumpre mais com uma função de mera ordenação (como na fase liberal), ou apenas de promoção (como na fase do Estado de Bem-estar Social), sendo “mais do que um plus normativo em relação às fases anteriores, constituindo-se em um elemento qualificativo para a sua própria legitimidade, uma vez que impulsiona o processo de transformação da realidade” (STRECK, 2008, p. 279).

Analisando-se a Constituição Brasileira, infere-se que o Estado Democrático de Direito implica a realização de uma política de atuação que tenha como fundamentos a liberdade e a dignidade da pessoa humana4 não podendo

4 Para Caetano (2003, p.132), os fundamentos do Estado Democrático de Direito devem ser

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desconsiderá-los a ponto de converter as pessoas em meros instrumentos ou sujeitos de tutela. Assim, convém ressaltar que a pessoa deve ser reconhecida como ente autônomo e sujeito de direitos e garantias.

Tanto os direitos humanos como os direitos fundamentais protegem e promovem a dignidade da pessoa humana, controlando a atuação excessiva ou omissiva do Estado. Nesse contexto, Sarlet (2009, p. 39) defende que a despeito da discussão doutrinária que procura diferenciar os direitos humanos dos direitos fundamentais, não se pode esquecer a “íntima relação entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, uma vez que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de 1948, quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as sucederam”.

Para Canotilho (2003, p. 393), as expressões “direito do homem” e “direitos fundamentais”, são distintas, no sentido de que os direitos do homem são os direitos de todas as pessoas, um direito natural, resguardado em todos os tempos. Já os direitos fundamentais são esses direitos de todas as pessoas restringidos em um espaço de tempo. Ou seja, os direitos fundamentais seriam os direitos naturais positivados.

Neste sentido, se analisarmos historicamente a luta pela proteção dos direitos humanos no âmbito internacional, pode-se compreendê-la a partir de dois processos distintos de afirmação histórica. O primeiro processo refere-se à luta pela proteção do homem genérico – do homem enquanto homem –, em que o documento legal mais importante é a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, (BEDIN, 2011, p. 35). O segundo processo diz respeito à luta pela proteção do homem específico, tomado na sua diversidade de status social, o que não permite idêntico tratamento e igual proteção a todos (BOBBIO, 1992, p. 35).

um especial significado dentro da ordem constitucional, sendo a dignidade da pessoa humana considerada o valor supremo do nosso ordenamento jurídico. A soberania pode ser definida como um poder político supremo e independente. Supremo, por não estar limitado por nenhum outro na ordem interna; independente, por não ter de acatar, na ordem internacional, regras que não sejam voluntariamente aceitas e por estar em igualdade com os poderes supremos dos outros povos.

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Quanto ao debate sobre a descriminalização do aborto voluntário, faz-se necessário a análise dos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente a luz do princípio da dignidade da pessoa humana, visando construir uma solução jurídica em torno do tema, o que será feita nos tópicos a seguir.

2.1 A tutela jurídica da vida através da criminalização do aborto

Inicialmente, importante lembrarmos que tutelar é proteger. A tutela é instrumento de proteção àqueles que necessitam. No ordenamento jurídico brasileiro a vida por sua vez merece proteção, como bem jurídico elevado à categoria de direito fundamental.

Para Zaffaroni e Pierangeli (2004, p. 439), “bem jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, protegido pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificação penal de condutas que o afetam”.

A principal controvérsia que se apresenta quando a questão é a interrupção voluntária da gravidez é o direito à vida que está garantido constitucionalmente no artigo 5º, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. (grifo nosso)

A inviolabilidade do direito à vida também está assegurada em acordos internacionais de direitos humanos em que o Brasil ratificou a exemplo do Pacto de São José da Costa Rica que dispõe em seu artigo 4°, item 1 que “ toda pessoa tem direito que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela Lei e, em geral, desde a concepção”.

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Uma das questões fulcrais na discussão do aborto diz respeito ao momento que se inicia a vida humana, a partir de que momento essa passa a ser protegida pelo direito. Segundo Tessaro (2006, p. 14-15):

Até o momento, não existe consenso na ciência, filosofia ou religião, sobre qual o momento em que se inicia a vida. Destacam-se algumas posições majoritárias, tais como a fecundação, nidação ou o início da atividade cerebral, entretanto, todas elas são passíveis de questionamentos, traduzindo-se, não raras vezes, num debate apaixonado baseado mais num ato de fé do que na razão.

Basicamente existem três principais teorias sobre o inicio da vida humana: perspectiva concepcional, perspectiva biológica evolutiva e perspectiva relacional.

Segundo a Perspectiva Concepcional a vida humana é um processo instantâneo, defendendo que a vida começa a partir da fecundação, ou seja, no momento em que o óvulo é fertilizado pelo espermatozóide, dando origem ao zigoto, que seria uma realidade genética autônoma. Nesta linha de pensamento o zigoto está vivo e possui patrimônio genético próprio da espécie humana.

Para esta teoria, tem-se o embrião como nascituro, a partir da data de fecundação, sendo assim, lhe são garantidos todos os direitos. Essa é a tese que possui mais adeptos e defendida pela Igreja Católica e algumas Igrejas Protestante sendo uma forte barreira para descriminalização do aborto voluntário.

A segunda teoria consiste na perspectiva biológica evolutiva, e defende que a vida inicia com o aparecimento de sinais morfológicos do embrião ou a partir de um momento determinado do processo de gestação, ou seja, quando o óvulo fecundado se fixa à parede do útero, já preparado para alimentá-lo. É a partir desse momento que o embrião passa a ter reais chances de se desenvolver. Essa etapa ocorre por volta da segunda semana após a fecundação.

Já pela perceptiva racional a definição de vida humana não reside nem no zigoto e muito menos pode ser reconhecida na escolha isolada de determinada etapa do desenvolvimento embrionário, mas somente quando ocorre o

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estabelecimento do vínculo relacional entre mãe e filho. Segundo Kottow (apud TESSARO, 2008, p. 45-46):

A aceitação da mulher como mãe pressupõe 02 condições: a consciência da mulher de estar grávida e posteriormente, a aceitação dessa condição. Assumir a maternidade deve ser um ato decisivo, deve representar a gestação amorosa de uma nova pessoa. Ele assevera que o conceito relacional do inicio da vida humana não dista muito do adotado em alguns países que despenalizaram a interrupção voluntária da gravidez. Como condição para a realização desse procedimento, faz-se necessário uma prévia assessoria de esclarecimento e convencimento para que, então, a mulher decida, informalmente, se assume a gravidez ou insiste na decisão de abortar.

A resposta à pergunta de quando se inicia a vida é de fundamental importância para o posicionamento do Direito perante as questões polêmicas que giram em torno da legalização do aborto voluntário no Brasil. Todavia essa questão permanece em aberto segundo Domingues (2008, p.83), “[...] o Direito não avalia o início da vida, apenas reconhecendo no embrião a potencialidade para tornar-se humano e, portanto, tutelando os direitos do nascituro, mesmo que reconheça o início da personalidade civil após o nascimento com vida [...].”

Ocorre, porém que no ordenamento jurídico a vida humana intra-uterina é protegida com intensidade substancialmente menor do que a vida de alguém já nascido. Segundo Tessaro (2006, p. 33):

No ordenamento jurídico brasileiro, a vida humana intra-uterina é protegida com intensidade substancialmente menor do que a vida de alguém já nascido. Não é necessário tecer grandes argumentos para comprovar o ora referido, para tanto, basta observar os artigos 121 (matar alguém – pena de 6 a 20 anos de reclusão) e 124 (praticar aborto – pena de 1 a 3 anos de detenção), ambos do Código Penal, para concluir que o tratamento é diverso para os delitos cometidos em face do homem já nascido e àqueles contra o nascituro. Deste modo, não há como colocarmos no mesmo patamar os direitos da mãe e do embrião/feto.

Importante destacar que do ponto de vista constitucional, a Constituição Federal garante a todos o direito à vida, porém, não faz qualquer menção expressa à proteção da vida humana desde a concepção.

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De outra parte, a redação do art. 4, inciso 1, do Pacto de San José da Costa Rica, não atribuiu um caráter absoluto ao direito à vida tomando-se a concepção como “inflexível ponto de partida da pessoa humana”. Observe-se que, a expressão em geral não foi incluída desavisadamente no seu texto, mas, “constitui, sem nenhuma margem de dúvida, uma válvula de escape através da qual se admite que, em situações determináveis, o direito à vida não pode, nem deve ser protegido desde a fecundação” (FRANCO apud TESSARO, 2006, p.38).

Quando se trabalha com a lógica de valor absoluto e sagrado da vida humana, torna-se delicado mensurar o valor relativo atribuído à vida do feto e da gestante. Quando estamos diante do aborto terapêutico, opta-se por salvar a gestante por tratar-se de uma vida já estabelecida, capaz de gerar outras vidas, enquanto o feto é apenas uma potencialidade de se tornar um ser humano. Já quando estamos diante do aborto sentimental, sacrifica-se uma vida em nome de um bem hierarquicamente inferior, ou seja, a moral.

Para Callegari e Wermuth (2010, p. 129), a valoração constitucional de um bem jurídico não implica em absoluto a necessidade de sua tutela penal. Nem mesmo nos casos onde a Constituição explicitamente encarrega ao legislador democrático à tutela penal do bem jurídico, uma vez que neste ponto também vige o princípio de intervenção mínima e o caráter subsidiário do Direito Penal. Pode-se, então, afirmar que a dignidade do bem jurídico tem um duplo requisito: formal – sua relevância constitucional – e material – sua interferência nas esferas de liberdade alheias.

A proteção da vida humana através da criminalização do aborto voluntário tem-se mostrado ineficaz, restado claro a ilegitimidade do sistema penal diante do assunto. Dessa forma, é necessário abordar a questão do aborto a luz dos direitos humanos fundamentais e dos direitos constitucionalizados.

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A criminalização do aborto voluntário coloca em colisão direitos fundamentais de idêntica valoração axiológica, segundo Tessaro (2006, p.90), “de um lado figura o direito à vida do feto, de outro, os direitos fundamentais da gestante, devendo o princípio da dignidade da pessoa humana ser o vetor de interpretação desse conflito”.

O princípio da dignidade da pessoa humana está consagrado no artigo 1º, inciso III5 da Constituição Federal sendo um dos fundamentos da República

Federativa do Brasil. De acordo com Artur Francisco Mori Rodrigues Motta (2013):

No art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 consta como um postulado central do ordenamento pátrio, um fundamento axiológico sobre o qual está construído o Estado Democrático de Direito: dignidade da pessoa humana, um dos princípios fundamentais da República. Este é parâmetro orientador de aplicação e interpretação (exegese). É um valor constitucional que irradia luzes sobre todo o ordenamento, em todos os âmbitos (civil, penal, administrativo, eleitoral, trabalhista e etc), orientando todas as atividades estatais, inclusive dos três poderes, executivo, legislativo e judiciário (eficácia vertical dos direitos fundamentais), bem como de todas as atividades privadas (eficácia horizontal dos direitos fundamentais), atuando como piso protetivo mínimo.

Assim, pode-se afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos são princípios norteadores das ações do poder legislativo, executivo e judiciários, portanto, é dever do Estado, dentro do Estado Democrático de Direito, garantir o bem-estar social, a proteção da vida e todos os direitos fundamentais. Para Nucci (2011, p. 92), o princípio da dignidade da pessoa humana é um dos princípios regentes do ordenamento brasileiro.

É um principio regente, base e meta do Estado Democrático de Direito, regulador do mínimo existencial para a sobrevivência apropriada, a ser garantido a todo ser humano, bem como o

5 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e

Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania; II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.

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elemento propulsor da respeitabilidade e da autoestima do indivíduo nas relações sociais.

Quando se fala em democracia de um país, essa está ligada diretamente com a capacidade de preservar, garantir e promover os direitos humanos dos cidadãos. Segundo Sarlet (apud DOMINGUES, 2008, p.101), “a dignidade da pessoa humana, enquanto eixo central do ordenamento jurídico pátrio, possui estreita interface com os princípios da igualdade e liberdade, sendo a ofensa a esses princípios um ataque direto ao fundamento primário do Estado Democrático de Direito”.

A dignidade da pessoa humana é um direito irrenunciável e inalienável, trata-se de um atributo referente ao próprio trata-ser, isso significa que a dignidade não pode ser criada, concedida ou retirada, mas sim, deve ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida. Decorre do princípio da dignidade da pessoa humana o dever de tratamento igualitário/princípio, da igualdade e o respeito à diversidade. Segundo Alexandre de Morais (apud DOMINGUES, 2008, p. 92):

[...] o dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes constitui um dos elementos essenciais do conceito de dignidade da pessoa humana, sem o qual se põe em risco o edifício social, já que se configura pela exigência de o indivíduo reconhecer e respeitar a dignidade de seu igual da mesma forma que a Constituição impõe que a sua seja respeitada [...]

A criminalização do aborto voluntário está diretamente ligada à violação dos direitos humanos da mulher, em especial o direito à vida, à saúde, a não-discriminação de gênero, à liberdade e a autonomia, todos decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana.

O direito à vida com a criminalização do aborto voluntário é colocado em risco, uma vez que a ilegalidade tem por consequência a clandestinidade que acaba colocando em risco a vida de milhares de mulheres. Segundo Emmerick (2008, p. 93):

As mulheres têm seu direito à vida violado, uma vez que o aborto praticado de forma clandestina e insegura põe em risco a vida das mesmas. Por sua vez, a interrupção da gravidez, apesar das dificuldades de ser quantificado, é considerada como a responsável pela terceira causa de mortalidade materna no Brasil, e a cada ano

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centenas de mulheres morrem por complicações pós-aborto. Entre as mulheres que morrem por complicações pós-aborto, a grande parte é oriunda das camadas pobres da sociedade: mulheres jovens, pobres, negras, com baixa escolaridade e em sua maioria legalmente solteiras, o que demonstra que quem mais sofre com os efeitos da ilegalidade do aborto são as mulheres desprovidas do aceso aos serviços públicos tais como educação, saúde, assistência social, mostrando, além da desigualdade de gênero, uma desigualdade social no que se refere aos efeitos do aborto inseguro e clandestino.

No que diz respeito ao direito à saúde a violação é nítida pelas inúmeras complicações pós-aborto clandestino e inseguro. As complicações são agravadas pelo fato de as mulheres resistirem em procurar os serviços públicos de saúde com medo de ser punidas/denunciadas, reprovadas socialmente ou de terem sua intimidade e privacidade violadas, quando o ideal seria que essas mulheres fossem acolhidas e orientadas de acordo com o princípio da dignidade humana garantidos pela constituição.

Por fim, o direito a não discriminação de gênero, à liberdade e autonomia também são violados pela criminalização do aborto, sendo esses direitos tratados mais adiante.

O direito fundamental à vida e a dignidade da pessoa humana, possuem muitos aspectos em comum, porém são dois bens jurídicos distintos e que podem entrar em conflito como na questão do aborto. A dignidade da pessoa humana é diretamente atingida quando a mulher é obrigada a prosseguir com uma gravidez indesejada.

É nítido que a questão do aborto gera conflito de direitos fundamentais, que segundo Anelise Tessaro (2006, p.93) deve ser resolvido pelo princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativo, ou seja, a dignidade da pessoa humana, devendo ser o norte da interpretação e concretização dos direitos fundamentais, conferindo, assim, unidade à Constituição, na hipótese de conflito entre direitos fundamentais

Como forma de garantir a dignidade da pessoa humana, ampliar a cidadania feminina e fortalecer os valores democráticos é necessário assegurar à mulher o

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direito de decidir sobre a interrupção ou prosseguimento da gravidez. É necessário a superação de dogmas religiosos ou preconceituosos, que oprimem a liberdade feminina com o pretexto de proteção da vida

2.3 O direito da autodeterminação – direitos sexuais e reprodutivos da mulher

Historicamente, como abordado no primeiro capítulo, a mulher esteve

subordinada ao poder masculino, sua função dentro da família e sociedade era o da procriação, da manutenção do lar e da educação dos filhos, ou seja, tinha-se o modelo de família patriarcal, onde mulher e os filhos deviam submissão ao pai.

Insatisfeitas com o modelo de família até então adotado e em busca de reconhecimento por igualdade de direitos, surgiu no Brasil em meados do século XX os movimentos feministas, onde as mulheres passaram a lutar para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, sem preconceitos e discriminação de gêneros.

Foi através dos movimentos feministas que às mulheres começaram a conquistar diversos direitos e passaram a ser reconhecidas perante a sociedade como sujeitos titulares de direitos. As primeiras reivindicações dos movimentos foram o direito ao voto, ao trabalho, a remuneração, divórcio e mais tarde as garantias de proteção em caso de violência doméstica.

Muitos direitos foram conquistados ao longo do tempo, porém a busca pela igualdade de gênero, pela liberdade sexual e pelos direitos reprodutivos, como na questão do aborto, ainda são direitos a serem alcançados. O primeiro movimento feminista que tinha por objetivo a descriminação do aborto, a proteção à violência doméstica, o controle da sexualidade feminina, entre outros direitos sobre as mulheres e o fim de alguns padrões impostos é chamado de “marcha das vadias”, movimento esse ainda atuante em busca de reconhecimentos dos direitos às mulheres.

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Um grande avanço para a liberdade sexual e pelo reconhecimento dos direitos reprodutivos das mulheres se deu com o surgimento do anticoncepcional oral nos anos 50, o que provocou uma revolução na vida sexual feminina. Segundo o ginecologista e sexólogo Amaury Mendes Júnior (apud GUERREIRO, 2016), “a pílula foi um divisor de águas em termos de liberdade sexual. Antes, qualquer relação entre homem e mulher poderia resultar em gravidez ou, pelo menos, em uma preocupação muito grande. Com a pílula, o sexo passou a ser visto como recreativo, e a gravidez virou uma opção”.

Apesar das grandes conquistas dos movimentos feministas do século XX, hoje ainda percebe-se a desigualdade de direitos entre homens e mulheres, principalmente no que se refere ao exercício da sexualidade e da reprodução. Segundo Emmerick (2008, p. 2):

Não obstantes as grandes conquistas do feminino no século XX, chegamos ao novo milênio com uma significativa e lamentável desigualdades de direitos entre homens e mulheres. Essa desigualdade torna-se ainda mais evidente e gritante quando o tema em questão refere-se ao exercício da sexualidade e reprodução. Grande parte do poder exercido sobre a mulher e as formas de controle social das mesmas ainda dá-se através do seu corpo, sua sexualidade e sua reprodução. Dito controle se manifesta através dos mais diferentes instrumentos de controle social no contexto das relações sociais, em que a criminalização do aborto exerce grande poder simbólico no controle social do feminino.

Punir a prática do aborto, não permitindo que a mulher faça a escolha em manter ou interromper a gestação caracteriza violação aos direitos constitucionalizados, principalmente o direito à autonomia, à vida, à saúde, liberdade sexual, o direito da mulher à autodeterminação sobre seu próprio corpo, uma afronta aos direitos humanos e fundamentais.

A criminalização do aborto voluntário acaba violando também os chamados direitos sexuais e reprodutivos da mulher, direitos esses garantidos através de documentos internacionais que foram reconhecidos pelo Estado Brasileiro. Segundo Emmerick (2008. XV):

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No plano jurídico, a criminalização do aborto viola os chamados direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, amparados pela Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo de 1994, bem como pelas Conferências de Copenhague de 1995 e de Pequim de 1995. A criminalização do aborto resulta, assim, como uma violação a direitos humanos internacionalmente protegidos, em particular nas esferas da sexualidade e reprodução.

Os direitos sexuais e reprodutivos estão protegidos por diversos documentos internacionais, entretanto a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada em Cairo no ano de 1994, e a IV Conferência Mundial da Mulher, realizada no ano de 1995 em Beijing na China, foi onde se estabeleceu que os direitos sexuais e reprodutivos são fundamentais para a concretização dos direitos humanos.

A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada em Cairo no ano de 1994, é um importante documento que representa o avanço na garantia dos direitos humanos das mulheres, foi um divisor de águas no que diz respeito á saúde de homens e mulheres, aos direitos sexuais e direitos reprodutivos, tendo como um dos princípios:

Princípio 4: O progresso na igualdade e equidade dos sexos, a emancipação da mulher, a eliminação de toda espécie de violência contra ela e a garantia de poder ela própria controlar sua fecundidade são pedras fundamentais de programas relacionados com população e desenvolvimento. Os direitos humanos da mulher e da menina são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena e igual participação da mulher na vida civil, cultural, econômica, política e social, nos âmbitos nacional, regional e internacional, e a erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo são objetivos prioritários da comunidade internacional. (CAIRO, 1994)

Outro avanço trazido pela Plataforma de Cairo foi o consenso internacional acerca da consagração do direito de mulheres e homens tomar decisões sobre reprodução, sendo dessa forma consagrado e efetivado o direito à autodeterminação, à privacidade, à intimidade, à liberdade e à autonomia, sem que haja a interferência do Estado (EMMERICK, 2008. p. 76-77).

O Brasil ao participar da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento – Plataforma de Cairo se comprometeu a criar políticas públicas de

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diminuição das taxas de mortalidade materna decorrente do aborto inseguro que foi reconhecido pela conferência como um problema de saúde reprodutiva.

Outro importante documento internacional de garantia aos direitos humanos das mulheres, mais especificadamente, os direitos reprodutivos e sexuais foi a IV Conferência Mundial da Mulher, realizada no ano de 1995 em Beijing na China, que acabou ratificado o conceito de saúde reprodutiva do Plano de Ação de Cairo:

96. Os direitos humanos das mulheres incluem os seus direitos a ter

controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e reprodutiva, e a decidir livremente a respeito dessas questões, livres de coerção, discriminação e violência. A igualdade entre mulheres e homens no tocante às

relações sexuais e à reprodução, inclusive o pleno respeito à integridade da pessoa humana, exige o respeito mútuo, o consentimento e a responsabilidade comum pelo comportamento sexual e suas conseqüências. (CAIRO, 1994, grifo nosso)

A partir das Conferências de Cairo e Beijing, a comunidade internacional passa a reconhecer o aborto inseguro como um grande problema de saúde pública e recomenda aos governos que considerem a possibilidade de reformar as leis que estabelecem medidas punitivas contra as mulheres que tenham sido submetidas a abortos ilegais, bem como garantam às mulheres, em todos os casos, o acesso a serviços de qualidade para tratar de complicações derivadas de abortos (PIMENTEL, PANDJIARJIAN e PIOVESAN, 2016).

Além das conferências o Brasil também ratificou os principais tratados internacionais de direitos humanos, ou seja: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção da Mulher, ONU, 1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, OEA, 1994).

Mesmo que na esfera nacional a Constituição Federal de 1988, não reservou nenhum capítulo próprio para os direitos sexuais e reprodutivos, estes encontram respaldos nos tratados e convenções em que o Brasil é parte.

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O sistema penal, quando proíbe às mulheres de optarem pelo abortamento é discriminatório e coercitivo. A restrição da liberdade feminina à sexualidade, e à reprodução, especialmente na impossibilidade da liberdade de interromper a gestação, evidencia o quanto lhe é tolhido direitos fundamentais.

A criminalização do aborto voluntário é uma afronta ao princípio da igualdade entre homens e mulheres e uma discriminação em razão de gênero, pois a criminalização isenta o homem de responsabilidades e nada mais é do que uma forma de controle da sexualidade da mulher, confirmando a presença de traços da família patriarcal, ainda hoje. Segundo Domingues (2008, p. 95):

Ao fim e a cabo, podemos chegar à conclusão de que criminalização sistemática do aborto é uma estratégia moral e legal de controle da sexualidade das mulheres, já que, inquestionavelmente, apenas elas podem engravidar nas relações sexuais. Ao se observar que em vários países, como no Brasil, o aborto é permitido no caso de estupro, conforma-se esse traço de controle. Na origem, tal exceção não tinha como objetivo precípuo proteger a integridade das mulheres, mas evitar o nascimento de uma criança cuja existência poderia ameaçar a “honra” e o patrimônio de seus pais, maridos e irmãos.

O reconhecimento da competência da mulher para decidir sobre sua sexualidade e reprodução tem fundamento nos direitos humanos constitucionalizados. Sobretudo do respeito aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Isto significa dizer que a mulher deve ter garantido a possibilidade de exercer a sexualidade livre da descriminação, coerção e violência. Bem como, ter assegurado o direito à concepção, à proteção da maternidade, à anticoncepção, e à interrupção de uma gravidez não desejada ou não planejada.

A descriminalização do aborto voluntário não significa abrir mão da proteção à vida e direitos do feto, mas devemos pensar que esses direitos não podem eliminar ou inviabilizar tantos outros direitos, principalmente os direitos humanos das mulheres. Dentro de um Estado Democrático de direito como é a caso do Brasil, limitar a liberdade das mulheres, o direito de autodeterminação, acaba violando todo e qualquer projeto de democracia. Segundo Buglione e Cavalcante (2008, p.106):

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