A poesia de Patrizia Cavalli em tradução, por Cláudia Tavares Alves
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363CLÁUDIA TAVARES ALVESPATRIZIA CAVALLIPOESIA CONTEMPORÂNEAemsetembro 25, 2020Patrizia Cavalli (Todi, 1944) é um grande nome da poesia italiana contemporânea. Segundo o filósofo Giorgio Agamben, sua língua talvez seja a mais “fluída, contínua e cotidiana da poesia italiana do século XX”.[1] Seguindo a mesma linha, Alfonso Berardinelli, um dos primeiros críticos literários a
reconhecer a importância da poesia contemporânea italiana escrita por mulheres [2], exalta a pungência de Cavalli atribuindo à sua poesia uma voz e uma teatralidade capazes de criar, a partir de modulações da língua cotidiana, uma entonação poética singular[3].
Seu primeiro livro de poemas, Le mie poesie non cambieranno il mondo [As minhas poesias não
mudarão o mundo], foi publicado em 1974 e é dedicado à escritora Elsa Morante, amiga e grande incentivadora de sua carreira. Atualmente, este livro compõe a coletânea Poesie (1974-1992) [Poesias (1974-1992)], publicada pela Einaudi, em 1992, na qual estão reunidos ainda o volume Il cielo[O céu] (1981) e os escritos de L'io singolare proprio mio [Meu próprio eu singular] (1992). Nesses poemas, destaca-se a capacidade de sintetizar em poucos versos sentimentos e sensações que nós, leitoras e leitores, reconhecemos de imediato - mas, por pressa ou pela imersão total em nossas rotinas
desestimulantes, raramente paramos para nomeá-los. Por isso, junto de escolhas potentes que revelam um tipo de poesia feita para ser declamada em voz alta, Cavalli desloca as rimas tradicionais para o centro dos versos, evocando assim a poesia existente nas brechas dos acontecimentos rotineiros.
Isso não significa escolhas formais frouxas, porém a rigidez estética não pesa sobre as palavras - um gesto rigoroso que poderia desnaturalizar e descaracterizar as sentenças fluídas. Pelo contrário, o encantamento está na leveza e sobretudo no humor das estrofes que se encadeiam, recuperando a forma poética como um instrumento intrínseco à performance. A palavra escrita parece, portanto, ser concebida despretensiosamente, assim como são as palavras ditas em voz alta, mesmo quando memorizadas para serem declamadas. Aliás, nesse sentido, vale conferir a própria Cavalli recitando alguns de seus poemas[4], pois a experiência de ouvi-la atribui som, melodia, cores e nuances à voz que inicialmente apreenderíamos somente pela leitura silenciosa.
Aos seus últimos escritos poéticos, Pigre divinità e pigra sorte [Preguiçosas divindades e preguiçoso destino] (2006) e Datura (2013), soma-se a sua mais recente publicação, Con passi giaponesi [Com passos japoneses] (2019), um conjunto de breves narrativas que escapam a definições de gênero e se aprofundam em investigações literárias na busca por novas possibilidades da escrita performática. A autora, que para além da poesia já havia escrito também textos dramáticos, aventura-se finalmente pela prosa e o efeito alcançado é, mais uma vez, a força que emana de sua própria voz, que não deixa de ser poética mesmo quando é prosaica.
Sua obra, ainda inédita no Brasil, chegará em breve por aqui pela tradução – em que estou trabalhando atualmente – de Os meus poemas não mudarão o mundo, a ser publicada em 2021 pela Edições Jabuticaba. A seguir, apresento uma pequena seleção de poemas entre os diversos livros publicados por Cavalli, acompanhados de suas respectivas traduções.
E quem poderá dizer ainda
que não tenho coragem, que não ando entre os outros e que não me apaixono? Fiquei numa fila por quase
meia hora hoje no correio; percorri toda a fila passo a passo, farejei
odores atrozes de machos
de velhos e também de mulheres, senti mãos tocarem meu rabo me empurrarem o quadril. Reconheci
a náusea e a deixei lá
onde ela estava, o meu corpo se encheu de suor, contraí
uma pneumonia. Não se trata de amor por mim, mas de horror pelos outros onde eu me reconheço.
E chi potrà più dire
che non ho coraggio, che non vado fra gli altri e che non mi appassiono? Ho fatto una fila di quasi
mezz’ora oggi alla posta; ho percorso tutta la fila passetto per passetto, ho annusato gli odori atroci di maschi
mani toccarmi il culo spingermi il fianco. Ho riconosciuto la nausea e l’ho lasciata là dov’era, il mio corpo
si è riempito di sudore, ho sfiorato una polmonite. Non d’amor di me si tratta, ma orrore degli altri dove io mi riconosco.[5]
*
Não tenho sêmen para espalhar pelo mundo não posso inundar mictórios nem
colchões. O meu avaro sêmen de mulher é muito pouco para ofender. O que posso deixar pelas estradas pelas casas
pelos ventres infecundados? As palavras aquelas muitíssimas
mas já não se parecem mais comigo se esqueceram da fúria
e da maldição, se tornaram donzelas um pouco mal faladas talvez
mas sempre donzelas.
Non ho seme da spargere per il mondo non posso inondare i pisciatoi né i materassi. Il mio avaro seme di donna è troppo poco per offendere. Cosa posso lasciare nelle strade nelle case
nei ventri infecondati? Le parole quelle moltissime
ma già non mi assomigliano più hanno dimenticato la furia
e la maledizione, sono diventate signorine un po’ malfamate forse
ma sempre signorine.[6]
* Este tempo sabático
antes de uma partida, este tempo roubado do tempo, este tempo não meu nem dos outros, o tempo da bagagem e do atraso, este luxo suspenso, esta rica margem
quando audaz e irresponsável posso
aquilo que nem mesmo os anos me concedem,
onde se apressam os pensamentos mais negligenciados e são acolhidos, e entre um pijama
e uma camisa se instala majestoso mas flexível o possível, onde eu poderia até mesmo te telefonar e me declarar louca de amor, este único tempo verdadeiro involuntário que nos é dado
pela graça das partidas, este
que não é nada mais do que uma oração.
prima di una partenza, questo tempo rubato al tempo, questo tempo non mio né di altri, il tempo della valigia
e del ritardo, questo lusso sospeso, questo margine ricco,
quando audace e irresponsabile posso quello che neanche gli anni mi concedono, dove accorrono i pensieri più negletti e sono accolti, e tra un pigiama e una camicia s'insedia maestoso ma arrendevole il possibile, dove potrei persino telefonarti e dichiararmi
folle d'amore, questo unico tempo vero involontario che ci è dato
per grazia di partenze, questo non è nient'altro che preghiera.[7]
*
Quero o tétano de volta na manhã avançada e a picada da víbora à tarde na praça, a meningite ali pela meia noite e a poliomielite logo ao despertar.
Quero a minha saúde de volta, fantasiosa saúde
assaz potente e certa,
aquela que se agitava ao preencher o inefável silêncio dos terrores.
Rivoglio il tetano in tarda mattinata e il morso della vipera di pomeriggio in piazza, la meningite
verso mezzanotte e la poliomielite subito al risveglio. Rivoglio la mia salute, fantasiosa salute così potente e certa che si eccitava a riempire
il suo ineffabile silenzio di terrori.[8]
*
O coração nunca está seguro, por isso, mesmo que esteja em silêncio, não se gabe da vitória ou da indiferença.
Honre aquilo que você amou, ainda que te pareça não amar mais.
Você está ali tranquila? Se sente satisfeita? Poderia finalmente, depois de anos
de ingloriosa incerteza, de inquietudes e humilhações, inverter as partes, ser você
aquela que humilha e comanda? Não, não faça isso, é melhor fingir, finja o amor que sentia
de verdade, finja perfeitamente e vença a natureza. O amor cansado
é talvez o único perfeito.
Il cuore non è mai al sicuro e dunque, fosse pure in silenzio, non vantarti della vittoria o dell’indifferenza.
Rendi comunque onore a ciò che hai amato anche quando ti sembra di non amarlo più. Te ne stai lì tranquilla? Ti senti soddisfatta? Potresti finalmente dopo anni
d’ingloriosa incertezza, di smanie e umiliazioni, rovesciare le parti, essere tu
che umili e che comandi? No, non farlo, fingi piuttosto, fingi l’amore che sentivi vero, fingi perfettamente e vinci
la natura. L’amore stanco forse è l’unico perfetto.[9]
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Como citar: ALVES, Cláudia Tavares. "A poesia de Patrizia Cavalli em tradução". In Literatura Italiana Taduzida, v. 1, n. 9, set. 2020.
[1] “Una breve analisi della lingua di Patrizia Cavalli [...] risulta alla fine, non si sa come, nella lingua
forse più fluida, continua e quotidiana della poesia italiana del Novecento.” [Uma breve análise da língua de Patrizia Cavalli […] resulta no final, não se sabe como, na língua talvez mais fluida, contínua e cotidiana da poesia italiana do século XX]. AGAMBEN, Giorgio. “L’antielegia di Patrizia Cavalli”. In.
Categorie italiane: studi di poeta e di letteratura. Bari: Editori Laterza, 2010, p. 162.
[2] “Da più di un decennio sostengo con convinzione che il meglio della poesia italiana recente lo hanno
scritto e lo scrivono le donne.” [Há mais de uma década afirmo que o melhor da poesia italiana recente foi e é escrito pelas mulheres] BERARDINELLI, Alfonso. “Almeno in poesia la via del futuro era già stata tracciata anni fa in Italia”. In. Il Foglio Quotidiano, 08 de fevereiro de 2020.
[3] Cf. BERARDINELLI, Alfonso. “Il personaggio in poesia”. In. Una città, n. 263, fevereiro de 2020. [4] Por exemplo, na ocasião em que recebeu o prêmio Città di Recanati, em 2000. Disponível em:
<https://youtu.be/Sjn6krxvZIo>. Consultado em: 20/08/2020.
[5]Le mie poesie non cambieranno il mondo. Turim: Einaudi, 1974. [6]Le mie poesie non cambieranno il mondo. Turim: Einaudi, 1974. [7]Pigre divinità e pigra sorte. Turim: Einaudi, 2006.
[8]Datura. Turim: Einaudi, 2013. [9]Datura. Turim: Einaudi, 2013.