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Pode-se transmitir saberes e conhecimentos?

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Academic year: 2021

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Pode-se transmitir saberes e conhecimentos?

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Can we transmit knowledge and expertise?

Bruno Maggi2

1 Texto apresentado, a convite, no colóquio «Transmettre», IV Encontro APST-APRIT, «Analyse Pluridisciplinaire des Situations de Travail» (Análise Pluridisciplinar

das Situações de Trabalho), «Association pour la Promotion des Recherches Interdisciplinaires sur le Travail» (Associação para a Promoção de Pesquisas Interdisciplinares sobre o Trabalho), Marselha, 24-26 junho 2004. Traduzido do original em francês «Peut-on transmettre savoirs et connaissances ?» por Maria do Carmo Barbosa de Oliveira Salgado, 2008.

2 Doutor em Economia da Universidade de Bolonha. Professor titular de Teoria da Organização da Faculdade de Economia da Universidade de Bolonha e da Faculdade de Direito da Universidade de Estudos de Milão. bruno.maggi@unibo.it.

O artigo discute a possibilidade da transmissão do conhecimento e de saberes, por meio de exemplos relacionados a estudantes e a profissionais. Discutem-se concepções de aprendizagem configuradas em diversas teorias, assumindo-se uma posição voltada ao “ajudar a aprender”.

Palavras-chave: Transmissão de conhecimentos; saber fazer; concepções de aprendizagem. Keywords: Trasmission of knowledge; know to do; lerarning conceptions.

“… neste mundo quase nada do que se diz é entendido como o dizemos...” Denis Diderot, Jacques le fataliste et son maître 1 INTRODUÇÃO

Frequentemente se diz que “ensinar é transmitir”: transmissão de saberes e de conhe-cimentos. Neste trabalho, vamos questionar esse enunciado.

Em primeiro lugar, partindo da etimologia dos dois termos, ensinar e transmitir, vamos nos in-terrogar sobre os problemas relativos à comunica-ção em situacomunica-ção de ensino, particularmente os que dizem respeito às modalidades da escuta e da com-preensão e aos conteúdos dessa comunicação. Com a ajuda de dois exemplos de atividades de educa-ção e de formaeduca-ção, discutiremos, especialmente, sobre o que se transmite e sobre o que não se pode transmitir: conhecimentos, saberes, capacidades [...] Isso nos conduzirá a sustentar a tese de que ensi-nar não é transmitir. Insistiremos na aprendizagem, na ajuda à aprendizagem e no aspecto regulador da ação de aprendizagem. Apresentaremos, assim, nosso ponto de vista, que destaca a elaboração, a criação e o desenvolvimento contínuo dos conhe-cimentos e das capacidades do sujeito que apren-de. Finalmente, tentaremos compreender de onde

vem a ideia do ensino entendido como transmissão e as implicações maiores decorrentes, de um lado, dessa ideia, e, de outro lado, do ponto de vista que focaliza a aprendizagem.

Essa reflexão sobre a comunicação no ensi-no inscreve-se em ensi-nossa teoria do agir social. Tra-ta-se de conceber as atividades humanas em ter-mos de processos de ações e de decisões, proces-sos esses que se produzem e se desenvolvem con-tinuamente no tempo, que estão sempre abertos, sempre mutáveis, sempre se relacionando com outros processos. Nessa perspectiva a aprendiza-gem é vista como um processo de ação, não sepa-rável dos processos de ação que dizem respeito a outras atividades humanas, especialmente o traba-lho, que exigem aprendizagem e ensino, deles se alimentando. Todo processo de ação e toda rela-ção entre processos têm um aspecto regulador, ou mesmo organizacional, que é fundamental para sua produção, para seu desenvolvimento e também para sua compreensão. Denominamos nosso ponto de vista de teoria do agir organizacional (MAGGI, 2003).

2 ENSINAR E TRANSMITIR

Será verdade que “ensinar é transmitir“, e es-pecialmente transmitir saberes e conhecimentos?

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Vejamos, inicialmente, os termos envolvidos na ques-tão, com a ajuda do Dicionário Histórico da Língua francesa3(REY, s/d, 1992).

Por um lado “ensinar”, vindo do latim popu-lar insignare, derivado do verbo clássico insignire, significava inicialmente “fazer conhecer por um sig-no”, “sinalizar”. Depois, esse sentido tendeu para “informar”, enquanto ensinar adquiriu o sentido de “instruir” e, em seguida, de “ensinar a alguém” e de “levar alguém a aprender”, o que é comumente entendido como “transmitir conhecimentos a um aluno.”

De outro lado, “transmitir” (do latim trans + mittere) tem o sentido dominante de “fazer chegar alguma coisa a alguém”, inicialmente se referindo a ceder um direito, um bem material e, em seguida, de maneira geral, significando “fazer chegar um ele-mento físico de um lugar a outro”. Assim, referindo-se aos sinais elétricos e depois ao conjunto das tele-comunicações e informática, a transmissão adquire uma importância particular. Transmitir então não é mais apenas enviar (mittere), mas fazer passar para o lado de lá, remeter, fazer chegar. Para que haja uma transmissão, é necessário não somente o envio, mas também a recepção, ao menos em termos de possi-bilidade.

Se ensinar é transmitir, devemos então en-tender que se trataria de enviar mensagens certifi-cando-se, no melhor dos casos, de sua boa recep-ção? A nós parece necessário nos interrogarmos so-bre a comunicação no ensino, soso-bre suas modali-dades, seus conteúdos, sobre os problemas que ela apresenta. Vamos colocar aqui algumas questões que nos parecem fundamentais e que tentaremos discu-tir em seguida.

Parece necessário nos interrogarmos, antes de tudo, sobre a escuta. A primeiríssima questão é: existe escuta? A transmissão existe, mesmo se a men-sagem não chega sempre ao seu destino. Se alguém não capta um sinal de televisão ou não recebe uma mensagem eletrônica que outros recebem, diz-se, mesmo assim, que a transmissão ocorreu. Da mes-ma formes-ma, pode-se ter umes-ma linda conferência na sala de aula, com aplausos ao final, um alto nível de satisfação revelado no questionário da chamada “ava-liação” da aula, mas não se sabe quem escutou e quem não escutou. O “professor” sem dúvida trans-mitiu, mas ele não sabe se e a quem ele ensinou alguma coisa.

A questão da escuta diz respeito, além do mais, às suas modalidades: qual escuta? Quando a mensagem foi recebida, não se sabe como o foi.

Por um lado, o destinatário da mensagem pode não tê-la compreendido, por exemplo, por falta de conhecimentos apropriados. Por outro lado, o destinatário pode ter compreendido, mas pode recusar a mensagem. Ou então ele pode compre-ender e desviar a mensagem para uma direção, ou um emprego, diferente dos que havia sido previs-to. Ou, ainda, ele pode ter compreendido, mas por um outro ponto de vista diferente daquele decorrente da mensagem: na verdade, ele acredi-ta ter compreendido, mas de, fato ele, não com-preendeu nada.

Partamos agora da hipótese de que o desti-natário da mensagem escutou bem e compreendeu bem. Pode-se afirmar, em decorrência disso, que ele tenha também aprendido? Assegurar-se de uma boa escuta não é suficiente. É preciso também se questionar sobre as relações entre o que é transmi-tido, ou o que se pensa estar transmitindo, e o que deveria ser recebido. Dizendo de outra maneira: por que a escuta? A questão recai então sobre as necessidades de aprendizagem do destinatário da transmissão. Este tem necessidade de aprender para agir e, na maior parte dos casos, essa necessidade compreende ações futuras, as quais ele ainda não conhece. Esse sujeito não está, portanto, em con-dições de responder à pergunta e não é pertinente que ela lhe seja feita. Mas mesmo o professor, em geral, não possui conhecimento direto das ativida-des nas quais o ativida-destinatário dos ensinamentos será envolvido. Certamente, pode-se pensar em um trei-namento compreendendo atividades físicas, de es-porte, por exemplo, em que aquele que ensina co-nhece bem a atividade em questão. Mas quando se trata de uma formação que compreenda, por exem-plo, atividades de trabalho, isso se torna muito menos verdadeiro e é frequentemente impossível, quando é o caso de uma formação que deve tornar o destinatário apto a fazer face a uma nova ativida-de. Esse problema é ainda mais importante no caso de ensino em escolas ou universidades: por exem-plo, que conhecimento podem ter sobre as futuras atividades de trabalho dos diplomados os estudan-tes e ao mesmo tempo os professores de uma facul-dade de Economia?

Evidentemente, o que se decide transmitir e se tenta transmitir é baseado em hipóteses, em confrontações, em avaliações do que ocorreu e, no entanto, contempla uma aprendizagem que deve servir de adequação para o futuro. Da mesma maneira, são hipóteses sobre a escuta e a compre-ensão que estão nas bases do ensino entendido como transmissão. Levantamos dúvidas quanto ao

3 O dicionário histórico da língua francesa Robert Historique é muito útil para se refletir sobre a origem das palavras em todas as línguas latinas. Na frase seguinte, “ensinar” traduz o francês enseigner e “informar” traduz o francês renseigner. A palavra apprendre tem, na língua francesa, tanto o sentido de “ensinar” como o de “aprender”. Apprendre à quelqu’un significa “ensinar a alguém”, “levar alguém a aprender”. Neste trabalho, o autor contrapõe os termos “ensino” (enseignement em francês) e “levar alguém a aprender” (apprendre à quelqu’un). Assim, a tradução de apprendre à quelqu’un será, toda vez, “levar alguém a aprender” (N. do T.).

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fato de que esse ensino seja também “levar alguém a aprender”.

Devemos, finalmente, acrescentar: ensinar a alguém “alguma coisa”. Será que a “coisa” que se pode aprender é a “coisa transmitida”? A questão maior recai sobre os conteúdos da comunicação: escuta de quê? Devemos nos questionar sobre o que se pode e o que não se pode transmitir. Será que podemos transmitir informações, capacidades, práticas, noções abstratas, saberes, conhecimentos, competências, valores [...]? Esta última questão abrange as ciências da educação e da formação, mas também as ciências cognitivas e, de maneira mais g e r a l , a s c i ê n c i a s h u m a n a s e s o c i a i s , a epistemologia, a filosofia.

2.1 Dois exemplos

A fim de ajudar a discussão, para tentar dar al-guma resposta às questões que formulamos, vamos propor dois casos ilustrativos. No primeiro, relativo a um curso universitário, o “local de educação” é muito distante do “local de trabalho” futuro dos alu-nos. No segundo caso, concernente a uma formação em análise do trabalho para fins de prevenção, exis-te, ao contrário, coincidência entre “local de forma-ção” e “local de trabalho”.

Na linha de Economia e Gestão de Empresas da Faculdade de Economia da Universidade de Bo-lonha, tratava-se de criar um curso de pós-gradua-ção (master, após o primeiro nível de três anos) voltado para Organização. Intitulamos esse curso Mudança Organizacional e decidimos colocar em discussão em sala de aulas uma série de mudanças organizacionais de empresas, em busca de dois ob-jetivos:

a) aproximar os estudantes dos casos reais do mundo das empresas, que constituirá sua entrada natural na profissão;

b) ensinar os estudantes a utilizar diferentes teorias para interpretar as escolhas organizacionais, com vistas às suas futuras profissões dentro das empresas.

Os casos utilizados nos cursos tratam de transformações organizacionais de diversos gêne-ros, por exemplo, as evoluções da usina automo-bilística na Fiat ou a aliança entre a empresa itali-ana de hipermercados La Rinascente e o grupo francês de hipermercados Auchan. Esses casos fo-ram apresentados pelos próprios protagonistas a um grupo de colegas seus, dirigentes de outras empresas, e submetidos à discussão e à interpre-tação por esse conjunto de pares. Em seguida, os

resultados, incluindo casos e debates, foram transformados em artigos, escritos por pesquisa-dores e publicados em produções que dirigimos (MAGGI, s/d, 1998 [trad. fr. 2001]; 2001; MAGGI; MASINO, s/d, 2004), o que permite, entre outras coisas, que sejam utilizados nos cursos. Isso acon-tece no nosso Programa de pesquisa sobre a mu-dança organizacional “O Ateliê da Organização” (www.taoprograms.org).

A pedagogia que adotamos se diferencia, en-tretanto, da utilização tradicional dos casos. Em nosso curso, cada caso é objeto de duas sessões consecutivas. Na primeira sessão, os estudantes expõem e discutem o caso que eles leram, ten-tando se apropriar dos diferentes aspectos da mu-dança organizacional implicada, sem fazer refe-rência aos saberes teóricos. Na segunda sessão, os estudantes são convocados para as interpreta-ções possíveis, pela confrontação de duas ou mais teorias – entre as citadas no artigo – e pela con-frontação das diferentes explicações que elas pro-põem.

Decorre dessa pedagogia que os textos – re-lativos aos casos e às referências teóricas – são es-tudados antes e não depois da aula. Decorre tam-bém que a avaliação da aprendizagem é progressi-va, de acordo com o desenvolvimento do curso, o que torna supérflua a tradicional prova ao final do mesmo. Acrescentemos, para informação, que esse curso é dirigido a uma turma de cerca de trinta estudantes.

O segundo exemplo diz respeito a uma for-mação em análise de trabalho com fins de preven-ção, de uma turma de operadores de hospitais e de serviços sanitários, que tem lugar no interior da Uni-dade de Serviços Sanitários da Província de Trento. Essa Unidade atende cerca de 500 000 habitantes através de treze setores territoriais, dos quais cinco integram um hospital. A Unidade instituiu uma for-mação geral visando à aprendizagem e à utilização do método de análise organizacional que propo-mos através do Programa de pesquisa “Organization and Well-being” (www.taoprograms.org), para aten-der as exigências das normas comunitárias e nacio-nais sobre a prevenção nos locais de trabalho.

Já evocamos esse exemplo em outro texto (MAGGI, 2003; parte III, cap. 2) para auxiliar na discussão das relações entre formação, análise do trabalho e intervenção para a mudança. Permitimo-nos retomar aqui a descrição do dispositivo ins-taurado. Trata-se de um dispositivo aparentemen-te simples, fundamentado na alaparentemen-ternância entre tra-balho em sala de aula e experiências de campo realizadas pelos participantes. Em um primeiro momento, os pesquisadores do Programa O&W ex-põem aos participantes:

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a) a concepção da formação subjacente ao dis-positivo;

b) o quadro normativo referente à prevenção nos locais de trabalho;

c) o método do Programa.

Em um segundo momento, seguem-se as se-guintes etapas:

a) os participantes discutem exemplos de análi-se e de mudança organizacional oriundas de experiências anteriores do Programa O&W; b) depois de formar grupos de trabalho, os

parti-cipantes tentam utilizar o método para ana-lisar seus próprios processos de trabalho e, a partir dos resultados dessa análise, para propor intervenções, tendo por objetivo evitar os riscos e melhorar globalmente o trabalho.

Dessa maneira, a formação se dá dentro de um “laboratório” constituído pelos mesmos proces-sos pelos quais se desenvolvem as atividades cotidi-anas das pessoas envolvidas. Depois, em um tercei-ro momento, logicamente distanciado no tempo, os participantes discutem e confrontam seus trabalhos de campo com a ajuda dos pesquisadores do Progra-ma O&W. Essa últiProgra-ma fase tem como resultado, de um lado, a verificação e o reforço da aprendizagem do método e, de outro lado, a implementação de ações de mudança dos processos de trabalho, segun-do os objetivos desejasegun-dos.

Nos parágrafos seguintes, a referência a esses dois exemplos nos permitirá, ao mesmo tempo, si-tuar as questões relativas à comunicação em ensino ao longo de atividades de educação e de formação, mostrar como os dois dispositivos tentam fazer face aos problemas emergentes dessas questões e explicitar alguns elementos da teoria subjacente ao nosso procedimento.

2.2 Existe escuta? Qual escuta? Por que a escuta?

A primeira pergunta que fizemos é muito sim-ples: ela diz respeito à verificação da escuta. E é também bastante simples instaurar dispositivos que, diferentemente de uma conferência e de uma for-mação tradicional, estejam preparados para assegu-rar tanto a recepção das mensagens quanto a sua ve-rificação. No que diz respeito aos nossos exemplos, as duas situações permitem uma avaliação constante da escuta: no caso do curso universitário, o estudo prévio e a discussão em classe; no caso da formação para a prevenção, o envolvimento na utilização do método de análise.

No entanto, a questão se articula e se torna mais complicada se levarmos em conta as modalida-des da escuta. Em primeiro lugar, a mensagem ouvi-da não é necessariamente compreendiouvi-da. O exem-plo mais imediato é o das dificuldades da lingua-gem: pensemos nos problemas de compreensão por parte dos estudantes Erasmus no curso universitá-rio. Mas pode-se também pensar em mensagens cuja compreensão pede um conhecimento prévio, por exemplo de ordem filosófica, que o estudante não teve ocasião de adquirir antes do seu acesso à uni-versidade. Em segundo lugar, a mensagem ouvida e compreendida não é necessariamente aceita. O es-tudante universitário ou o operador de serviços sa-nitários, com base nos seus conhecimentos e inte-resses, podem opor resistências, um a uma perspec-tiva teórica e o outro à utilização do método de aná-lise. Se a recusa for explicitada, a comunicação em ensino pode também se enriquecer, mas se o estu-dante ou o operador sanitário se calam, o ensino, entendido como transmissão, não tem como perce-ber a situação. Por último, a mensagem aceita e (apa-rentemente) compreendida pode, de maneira mais ou menos consciente, ser desviada ou recebida den-tro de uma perspectiva que não é adaptada, o que traz problemas relativos à compreensão em si mma. Acrescentemos algumas palavras para ilustrar es-sas duas últimas possibilidades.

Pensemos, por exemplo, na discussão das transformações da fábrica de automóveis durante o curso universitário. Trata-se, no caso, de numero-sas situações em que a empresa deve escolher en-tre externalização e terceirização para atividades di-versas relativas à fabricação do automóvel. Ora, o objetivo da discussão é apreender o aspecto organizacional dessas escolhas, mas o raciocínio do estudante pode pender para os aspectos econômi-cos, jurídieconômi-cos, etc., sob a influência do que ele ou-viu anteriormente em outros cursos. Pensemos tam-bém, em relação ao caso da formação para a pre-venção, em um desvio da utilização do método de análise do trabalho, do objetivo da prevenção para um objetivo, por exemplo, de avaliação dos savoir-faire dos indivíduos implicados na situação de tra-balho. Nos dois casos, houve a compreensão da mensagem e não houve uma recusa. O desvio não é uma recusa: o indivíduo envolvido aceita a mensa-gem, mas a utiliza numa direção que não é a previs-ta e desejada.

Façamos referência ainda ao curso universi-tário. Quando se trata de confrontar diferentes in-terpretações possíveis de um caso de mudança organizacional, o estudante pode recorrer a uma teoria, estando, porém, enganado sobre a visão do mundo que ela pressupõe. Por exemplo, ele vai aco-lher o conceito de “sistema sociotécnico”, mas sem

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se dar conta da visão determinista e funcionalista que ele veicula. Do mesmo modo, durante a for-mação para a prevenção, pode acontecer que os in-divíduos em questão permaneçam inicialmente pre-sos a uma visão de predeterminação do sistema de trabalho e de prevenção secundária, enquanto o método que se esforçam por aplicar pressupõe ou-tra maneira de ver, segundo a qual o processo de trabalho é transformado pelos próprios indivídu-os, com o propósito de prevenção primária. Nesses casos, há efetivamente escuta e aceitação da mensa-gem e o destinatário crê ter compreendido; no en-tanto, o que ele compreendeu? A definição de um conceito ou os critérios de um método foram aco-lhidos, mas de um ponto de vista que não é o que permitiu construir tal conceito ou tal método, um ponto de vista que se revela contraditório ou mes-mo incompatível.

Por esses rápidos exemplos, parece-nos eviden-te que o ensino concebido como transmissão não permite encarar vários problemas que são inerentes à transmissão em si mesma e tampouco permite per-ceber esse fato. Poder-se-ia dizer que o bom profes-sor deve se preocupar com esses problemas a fim de assegurar uma boa transmissão, mas pode-se repli-car que para responder a essa preocupação é neces-sário sair da ideia de ensino como transmissão. Será que os dispositivos evocados evitam esses proble-mas? Certamente não, mas permitem reconhecê-los e, pelo menos em parte, resolvê-los. Por um lado, permitem verificar, durante seu desenvolvimento, se há ou se não há compreensão; por outro lado, no caso de desvio da mensagem ou erro de perspecti-va, de um lado o trabalho de discussão, de outro lado, o trabalho de análise podem corrigir o rumo. Quanto à rejeição da mensagem, ela não pode ser escondida e a sua simples emergência seria suficien-te para mostrar que o ensino não se realiza por uma transmissão.

Enfatizamos, em seguida, o fato de que uma mensagem bem-ouvida e bem-compreendida não é também, necessariamente, aprendida. A atividade de educação ou de formação pode limitar-se a transmitir ou deve preocupar-se com a aprendizagem? E como pode verificar a aprendizagem, sem confundi-la com memorização, como é geralmente o caso nos exames de escolas e de universidades? Pensamos que uma maneira, ao mesmo tempo simples e eficaz de verifi-car se a mensagem foi aprendida, é remeter-nos à sua aplicação. Pode-se dizer, por exemplo, que o estu-dante do curso universitário aprendeu uma teoria se ele demonstra que sabe utilizá-la para interpretar o caso de mudança organizacional que lhe é apresenta-do, e que o operador de serviços sanitários apren-deu o método de análise se ele consegue colocá-lo efetivamente em prática para analisar o seu processo de trabalho.

Isso nos leva a refletir sobre as relações en-tre o processo de ensino e os processos das ativi-dades próprias dos indivíduos destinatários do en-sino. Esses diferentes processos de ação podem ser mais ou menos aproximados ou distantes, no es-paço e no tempo. É importante refletir sobre esse ponto.

No caso da formação dirigida aos operado-res de serviços sanitários, o dispositivo é construído de forma a eliminar qualquer distância entre o pro-cesso de ação da formação e o propro-cesso de ação de trabalho dos operadores. A formação, a análise do trabalho e a intervenção para a mudança com fina-lidade de prevenção apenas são, na verdade, aspec-tos diferentes de um mesmo processo de ação que se desenvolve no seio do trabalho dos sujeitos en-volvidos. A esse respeito diríamos, de acordo com a lógica do ensino entendido como transmissão, que o “local de formação” e o “local de trabalho” coin-cidem. O dispositivo se baseia numa concepção da formação (MAGGI, 2003, parte III) que implica, por um lado, que ela responde às necessidades de aprendizagem e, por outro lado, que seus resulta-dos são avaliaresulta-dos em relação à satisfação dessas ne-cessidades. A necessidade de aprendizagem relati-va aos operadores sanitários incide sobre uma ca-pacidade de análise do trabalho e de intervenção, a fim de realizar uma prevenção primária; se o mais alto nível de prevenção for alcançado, se poderá dizer que a aprendizagem foi satisfatória e a forma-ção, eficaz.

O processo de educação universitária é, por outro lado, muito distante dos processos de traba-lho dos futuros diplomados. Em que empresa, gran-de ou pequena, irá trabalhar o estudante? Em que setor, em qual tarefa? Nem o estudante nem o pro-fessor conhecem os processos de trabalho que o es-tudante encontrará em seu primeiro emprego, à sa-ída da universidade. Nem um nem outro, provavel-mente, jamais viram os processos de uma empresa pelo lado de dentro: o que não é a mesma coisa que a perspectiva de um consultor, que pode, eventual-mente, ser o professor de uma Faculdade de Econo-mia ou de uma Escola de Comércio. Isso é suficien-te para compreender como o ensino universitário pode estar desconectado das necessidades de apren-dizagem dos alunos. O que fazer? O dispositivo do curso que utilizamos oferece, e somos conscientes disso, apenas soluções parciais e insuficientes. De um lado, para aproximar, de alguma maneira, o “local de ensino” e o “local de trabalho”, ele utiliza casos de mudanças organizacionais que não foram descri-tos de fora, mas, a partir do relato dos protagonis-tas, de suas interpretações e da confrontação com seus pares. De outro lado, o dispositivo leva o estu-dante a discutir esses casos através da utilização de

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vários saberes teóricos e, assim, como já dissemos, permite verificar ao menos o aprendizado desses saberes. Não sabemos se esse aprendizado poderá satisfazer as necessidades dos estudantes quando estiverem futuramente em suas ações de trabalho e a avaliação da eficácia do ensino se detém na aquisi-ção de uma capacidade de utilizaaquisi-ção das teorias para interpretar processos de empresas.

Refletindo sobre a escuta, que a ideia de en-sino entendido como transmissão supõe sem con-siderar seus problemas, a ênfase se deslocou sen-sivelmente, ao longo do percurso, para a aprendi-zagem: ensinar nos parece menos “transmitir” que “levar alguém a aprender”. Precisamos ainda dis-cutir sobre o que se pode e o que não se pode transmitir.

2.3 O que se transmite?

Havíamos partido do fato de que, segundo a idéia comum, ensinar é “transmitir conhecimentos a um aluno”. É conveniente, portanto, começar pelos conhecimentos o questionamento concernente aos conteúdos da comunicação em ensino.

Seria necessário, antes de tudo, definir o co-nhecimento: tarefa extremamente complicada (e, sem dúvida, por essa razão, tarefa deixada de lado por certas literaturas que se ocupam da matéria, as quais, no entanto, pretendem tratar do assunto, como as da “gestão do conhecimento” ou knowledge management). Para nos convencermos disso, pode-mos consultar um dicionário de filosofia. Ao longo do desenvolvimento da filosofia ocidental, o conhe-cimento foi visto sob ângulos muito diferentes. Os pontos de partida foram, no pensamento grego, de um lado, a interpretação do conhecimento como a identificação com um objeto ou sua reprodução e, de outro lado, como a apresentação mesma do obje-to. As duas interpretações foram declinadas por múl-tiplas vias, em que uma das questões essenciais foi a oposição entre a identificação da ideia com o objeto conhecido e a representação do objeto de acordo com as condições do conhecimento e do sujeito que co-nhece (ABBAGNANO, 1971).

Encontramo-nos diante de diferentes ma-neiras de tratar o conhecimento em si se nos re-ferimos às correntes das ciências cognitivas, como sugere T.M. Fabbri, em uma destacada obra sobre a aprendizagem organizacional (FABBRI, 2003, cap. 3). Segundo F. Varela, distinguiríamos: de

acordo com o “cognitivismo”, a interpretação do conhecimento como “representação mental” que se baseia em uma manipulação de símbolos; se-gundo a abordagem do “conexionismo”, a inter-pretação em termos de “emergência” de um esta-do global mais que de operação sobre símbolos particulares; e segundo a abordagem da “enação”, o questionamento da representação de um mun-do exterior, pela interpretação mun-do conhecimento como “o advento conjunto de um mundo e de u m e s p í r i t o ” n a a ç ã o ( V A R E L A ; T H O M S O N ; ROSCH, 1993, p. 32-35).

As interpretações do conhecimento envol-vem efetivamente diferentes concepções, reme-tendo a visões do mundo, isto é, a pontos de vis-ta inconciliáveis ou mesmo incomensuráveis. Es-sas curtas referências são suficientes para destacá-lo. E sem que seja necessário engajar-se numa dis-cussão sobre o conhecimento, elas são suficien-tes para excluir, em todo caso, que alguém o pu-desse “transmitir”.

A distinção feita por J.-M. Barbier entre “co-nhecimentos” e “saberes” pode então nos ajudar. Essa distinção, sendo proposta, além disso, com a preocupação de reconhecer um “léxico de inter-venção sobre a atividade humana”, nomeadamente no âmbito da educação e da formação, permite re-meter-nos às obras desse autor para as referências relativas à questão nesse domínio de estudo (BARBIER, 1998; BARBIER; GALATANU, 2004). “O uso combinado das noções de saberes e de conhecimen-tos em contexconhecimen-tos educativos organizados [...] de acordo com uma lógica de comunicação” - diz Barbier - deve permitir reconhecer aos saberes a propriedade de designar enunciados conserváveis, acumuláveis, susceptíveis de comunicação-transmis-são, apropriáveis por diferentes sujeitos e aos co-nhecimentos a de designar “estados”, resultados de experiências cognitivas, marcadamente de interiorização dos saberes, decorrentes da apren-dizagem. Os conhecimentos seriam, portanto “ativáveis”, “variáveis de um sujeito a outro”, ins-critos “em uma história dos sujeitos envolvidos”.

Por essas definições, e evocando novamente nossos exemplos, parece-nos sustentável que se pos-sa ter uma comunicação concernente a pos-saberes teó-ricos, pelo lado do curso universitário, e critérios de análise do trabalho, no que se refere à formação para a prevenção; que se possa também ter uma boa escuta e mesmo a compreensão do que é ouvido sem, no entanto, ter uma ativação de conhecimen-to por parte do sujeiconhecimen-to em estado de recepção. Para que haja conhecimento, de acordo com nosso ponto de vista, é necessário um agir intencionado do su-jeito, a “aprendizagem”. Voltaremos em breve a este ponto.

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Se não se transmitem conhecimentos, pode-se, contudo, transmitir os saberes, de acordo com o léxico da educação e da formação de que fala Barbier. Do mesmo modo, as capacidades seriam susceptíveis de serem transferidas, descon-textualizadas de uma prática e recondescon-textualizadas em outra prática. Parece-nos, no entanto, que po-demos levantar dúvidas, inclusive no que diz res-peito ao fato de que se possam transmitir saberes e capacidades.

No caso do curso universitário, a comunica-ção recai sobre saberes teóricos. Lembremo-nos de que os estudantes são levados a interpretar uma mudança organizacional utilizando diferentes pers-pectivas teóricas. Para fazê-lo, devem se apropriar de conceitos e hipóteses de duas ou mais teorias. Será que o professor “transmite” esses conceitos e essas hipóteses? Não se trataria, antes, de reconhe-cer que ele os apresenta, ilustra, que, enfim, ele se expressa a respeito deles? Por exemplo, o profes-sor diz que o conceito de “papel” tem determinado sentido, de acordo com o funcionalismo, e um sen-tido completamente diferente, de acordo com a fenomenologia social. Ele transmitiu, dessa manei-ra, os dois conceitos diferentes de papel ou sim-plesmente fez um discurso sobre os dois concei-tos? No caso da formação para a prevenção, os su-jeitos em questão devem se apropriar do método de análise do trabalho. Pode-se dizer que “saberes metodológicos” estão aqui em causa – pressupon-do, com certeza, saberes teóricos. Mas pode-se di-zer, a partir disso, que se “transmite” o método? Ou o conteúdo da comunicação não constitui apenas um conjunto de “palavras a respeito”, mais do que o método? De acordo com o léxico do qual fala Barbier, os saberes são “enunciados” e, consequentemente, parece, seriam passíveis de transmissão. No nosso ponto de vista, os conteú-dos da comunicação são apenas enunciaconteú-dos sobre os “enunciados-saberes”.

A escola de Palo Alto destacou que a comuni-cação não deve ser entendida de maneira simplista como uma transmissão de informações de um emis-sor a um receptor, mas como uma relação, uma troca (WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 1967). De acordo com D. Sperber, o que constitui o fundamento da comunicação é a “pertinência” (relevance) da infor-mação emitida, permitindo seu tratamento por parte do receptor (SPERBER; WILSON, 1986). Nós acrescen-tamos que a comunicação não é nem uma “troca de informações”, nem um “duplo tratamento de infor-mação”. A informação é elaborada pelo sujeito em questão - nos nossos casos pelo estudante ou o ope-rador de serviços sanitários. Segue-se daí, por exem-plo, que, para nós, o que se chama, com grande ênfa-se, e-learning não é uma “e-formação” (e-formation,

neologismo francês), mas nada mais que mensagens eletrônicas.

Além disso, nos dois dispositivos, do curso universitário e da formação para a prevenção, não há apenas o discurso relativo aos saberes, como se-ria o caso, por exemplo, de uma conferência. No curso sobre a mudança organizacional, o professor mostra como utilizar conceitos e hipóteses; na for-mação para a prevenção, os investigadores do Pro-grama O&W mostram como utilizar o método e como ele foi utilizado para análises precedentes. Enfim, de um lado os estudantes, de outro lado os operadores sanitários são conduzidos - individual e coletivamente - a engajar-se na interpretação ou na análise. Diz-se, a esse respeito, de “transmissão de capacidades”. A fim de ativar a apropriação dos conhecimentos, teóricos ou metodológicos, ou seja, do novo conhecimento necessário para levar a cabo o trabalho de interpretação ou de análise, ao lado do discurso sobre os saberes mostra-se como fazer. Mas mesmo sobre esse ponto, não há nenhuma transmissão: há discursos e demonstrações sobre como fazer, mas são os estudantes e os operadores sanitários que elaboram as suas capacidades. O mes-mo se dá em relação a um treino para uma ativida-de física, por exemplo, referente a um esporte: a comunicação recai, ao mesmo tempo, sobre noções abstratas e demonstrações. A capacidade que a performance esportiva demonstra é elaborada e desenvolvida pelo sujeito treinado.

Pode-se transmitir as competências? Mostra-mos, em outro lugar, a utilidade de distinguir os significados atribuídos à noção de competência: pelo conjunto de obras que tratam do assunto, pe-las diferentes línguas e de acordo com as visões do mundo que atravessam umas e outras (MAGGI, 2003, parte III, cap. 3). Assim, sustenta-se que se transmi-tem as competências se elas são concebidas como savoir-faire (por exemplo, nas obras que dizem res-peito a gestão), e não se pode falar de transmissão se as concebemos como “saber decidir” ou “saber julgar”. Compartilhamos a ideia de que a compe-tência deve ser entendida como uma combinação de elementos heterogêneos: conhecimento, expe-riência, valores, história pessoal, história do ofí-cio; e tudo aquilo no momento da ação individual, subjetiva e social (SCHWARTZ, 1999). Compartilha-mos também a definição de competência como qua-lidade atribuída a um sujeito, conferida em relação a uma ação específica, à qual é conectado um julga-mento de valor e uma avaliação positiva (BARBIER; GALATANU, 2004). Mas, pelas razões que tentamos levar em frente precedentemente, pensamos que, mesmo os que concebem a competência como savoir-faire, não podem sustentar a ideia de que se possa transmiti-la.

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Transmitem-se, finalmente, os valores? Já mos-tramos (MAGGI, 2003, parte III, cap. 1) que a ideia largamente difundida pela psico-sociologia da for-mação que implica considerar separadamente sabe-res, capacidades e valores não é sustentável. Pensar os valores separados do agir humano é apenas uma abstração. Não se pode conceber uma ação, uma ati-tude, desprovida de valor, e todo saber, assim como toda capacidade, pressupõe valores. A pergunta retorna à possibilidade de transmitir conhecimen-tos, saberes, capacidades.

Por fim, ensinar não é, de acordo com nosso entendimento, “transmissão de saberes e de conhe-cimentos”, como se diz frequentemente. Colocar a tônica sobre a transmissão seria remontar à primei-ra significação assinalada pela história da palavprimei-ra “ensinar”: como se viu, ensinar como equivalente de “informar”. Mas, por um lado, podemos duvidar de que se queira entender isso e, por outro lado, mesmo as “informações” – já o dissemos – não nos parecem susceptíveis de uma transmissão. Preferi-mos enfatizar o ensinar entendido como “levar al-guém a aprender”. O que nos leva então a tratar da aprendizagem.

3 ENSINAR E APRENDER

“Aprender”, do latim “apprehendere”, não fica distante de “apreender”. Significa, a partir do francês antigo, “apreender pelo espírito” e “adquirir conhe-cimentos para si” (sempre segundo o dicionário his-tórico). Dirige-se também a outrem: “levar alguém a aprender”.

A aprendizagem é, portanto, essa ação de apre-ensão pelo espírito, podendo se referir a «aprender» (alguma coisa) e a “aprender a” (a fazer alguma coi-sa), podendo ser ativada pelo próprio sujeito ou es-timulada por outra pessoa.

As obras sobre o fenômeno da aprendizagem, sobretudo do domínio do estudo psicológico, são muito numerosas. Vamos nos permitir reportar-nos à obra já citada de T.M. Fabbri e às suas ricas refe-rências bibliográficas, para evocar as abordagens es-senciais (FABBRI, 2003, cap. 2). A grande corrente comportamentalista propôs uma concepção da aprendizagem em termos de resposta a um ‘estímu-lo de associações”, desencadeada por experiênci-as. A abordagem cognitivista, em contrapartida, le-vou adiante a concepção de processos de aquisição e construção de conhecimento pelo sujeito, subli-nhando seu agir ativo e intencional. Pode-se

dis-tinguir, além disso, uma abordagem chamada de self-regulated learning, que coloca a tônica sobre a “metacognição”, ou seja, sobre a atividade cognitiva que tem por objeto o processo de cognição em si mesmo. Por último, uma última abordagem chama-da de situated and social learning concebe a apren-dizagem amarrada à prática, num contexto físico e coletivo, o único que pode reconhecer a aquisição de conhecimentos.

Mais uma vez, como se notou a propósito das interpretações do conhecimento, as concepções da aprendizagem revelam diferentes visões do mundo: ou a aprendizagem é vista como uma questão de com-portamentos de resposta ou é vista como processos cognitivos, mais ou menos refinados e de diferentes graus, ou é reconhecível a posteriori pelo “fazer” numa prática.

Recordemos de novo nossos exemplos. No dis-positivo do curso universitário, o aluno pode apren-der os saberes teóricos e pode também aprenapren-der a utilização desses saberes para interpretar a mudança organizacional. Esse procedimento, por um lado aju-da a aprendizagem dos saberes, e, por outro lado per-mite ao aluno avaliar sua própria aprendizagem. Da mesma maneira, na formação para a prevenção, os su-jeitos envolvidos podem aprender os saberes metodológicos e também a utilização do método, que ajuda a compreender e a aprender as categorias de análise, bem como a se aprofundar do método à teo-ria subentendida. Mesmo nesse caso, os próprios su-jeitos estão em condições de avaliar, ao longo do percurso, sua aprendizagem. Parece-nos importante sublinhar que os dois dispositivos permitem a avali-ação contínua da aprendizagem, além da escuta e da compreensão, com suas diferentes problemáticas, e que essa avaliação pode ser operada pelos sujeitos que aprendem.

Dissemos que o sujeito em questão “pode” aprender. Isso, no final das contas, depende dele. O fato de a aprendizagem poder, às vezes, ser, em par-te, não consciente – como algumas abordagens insis-tem em sublinhar – não retira nada da intencionalidade da ação de aprender. De acordo com nosso ponto de vista, aprender é um agir. Ou melhor, é um agir social, como o define Max Weber, um agir que, de acordo com o sentido intencionado do sujeito que age, é ori-entado no seu curso em relação à atitude dos outros (WEBER, 1922), já que ele se refere ao estar do sujeito em seu mundo.

Para nós, a aprendizagem é um processo de ações e de decisões, sempre em relação com ou-tros processos de ações e de decisões. Os dois ca-sos de educação e de formação evocados mostram claramente isso. O processo de aprendizagem de cada estudante de universidade e de cada opera-dor de serviços sanitários se cria e se desenvolve

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em relação com os processos dos colegas, bem como com os processos de comunicação relativos aos saberes e às maneiras de utilizá-los; no caso da formação para a prevenção, é também evidente a relação com os processos de trabalho dos operado-res. Mas mesmo o processo de aprendizagem de um sujeito único está sempre em relação com outros processos de ações e de decisões, devido ao seu caráter de agir social. A criança pequena só apren-de se referindo aos seus próprios processos apren-de ação e aos processos de ação dos que a cercam, e Robinson Crusoé na ilha deserta só aprende orien-tando suas ações em relação à civilização que dei-xou e para a qual ele quer voltar.

Acrescentemos uma precisão. O fato de falar de agir e de agir social, o fato de sublinhar a ajuda à aprendizagem pela utilização dos saberes não nos conduz a compartilhar a concepção do conhecimen-to como “enação” e da aprendizagem como proce-dente de uma “comunidade de prática”. Nossa con-cepção da aprendizagem, entendida como processos de ação, não tem necessidade disso para integrar a ação e a cognição, o caráter social e situado da ação. Ela os integra afirmando a intencionalidade da ação e do espírito: o que procede de uma diferente epistemologia.

Ensinar então, para nós, não é transmitir – o que quer que se possa transmitir; seu valor é o de aprender – no sentido de ajudar a aprender, e tam-bém de aprender a aprender, como diz G. Bateson (1972), ou seja, ajudar a aprender sobre o processo de aprendizagem. Pode-se dizer que os saberes, as capacidades, as atitudes, mesmo as maneiras de ver, “passam”, de um sujeito a outros sujeitos, mas não porque lhes sejam transmitidos. O que parece uma passagem, atribuído a uma transmissão que não exis-te, é, na verdade, um compartilhamento devido a uma ação de aprendizagem. Uma aprendizagem que pode ser ajudada – lembrando, no entanto, que isso não é indispensável – pelas múltiplas formas do que cha-mam “ensino”.

Pode então ser útil retornar, de forma breve, aos diferentes problemas da comunicação que des-tacamos até agora, a fim de apreender um aspecto importante do ensino, ou melhor, da ajuda para aprender. Este aspecto é o da persuasão, ou seja, da “ação de convencer”, mostrando-se o que se sabe e fazendo-o valer. Como sustenta G. Mosconi, a di-mensão psico-retórica do discurso não deve ser res-trita ao discurso persuasivo entendido como o que visa a “fazer mudar de opinião”, mas ela se refere também ao discurso demonstrativo e explicativo, marcadamente no ensino (MOSCONI, 1987; 1989). Teríamos tendência a dizer que qualquer comunica-ção eficaz em ensino, seja ela procedente de discur-so ou de demonstrações, utiliza abundantemente a

persuasão. É pela persuasão que, no curso univer-sitário, assim como na formação para a prevenção, pode-se estimular a escuta, mudar a recusa da co-municação para aceitação, corrigir as utilizações des-viadas dos saberes e das capacidades e mesmo con-duzir ao abandono de uma maneira de ver para a adoção de outra.

A comunicação em ensino utiliza várias ma-neiras de persuasão, que vão do constrangimento e da sanção ao realce das vantagens para o sujeito que aprende, que pode ir até a ativação de novos desejos e novas orientações de ação. Como exem-plo de persuasão pela sanção pode-se pensar na nota negativa no caso do curso universitário; como exem-plo de realce de vantagens pode-se pensar no fato de mostrar ao operador sanitário que o método pro-posto permite-lhe atingir o nível de prevenção pri-mário que quer realizar; por último, como exem-plos de ativação de novos desejos e de novas ori-entações de ação, pode-se pensar no fato de fazer descobrir ao estudante a possibilidade de interpre-tar os casos de empresas de acordo com perspecti-vas que ele não tinha imaginado, ao operador sani-tário que ele participa em pessoa da melhoria dos seus próprios processos de trabalho ao mesmo tem-po em que os analisa, à criança pequena o diverti-mento e o prazer de andar de bicicleta ou de tocar um instrumento musical. As diferentes maneiras de persuasão baseiam-se em regras psico-retóricas da comunicação, como diz G. Mosconi, das quais a mais importante é a de partir daquilo que pensam os sujeitos aos quais nos dirigimos, dos seus motivos, do sentido da sua ação.

Essa ênfase nas regras da comunicação em en-sino leva-nos a sublinhar um último ponto. Consi-derando o ensino, assim como o processo de ação, orientado para a aprendizagem de outrem e a apren-dizagem como o processo de ação do sujeito que aprende, percebe-se que a relação entre esses pro-cessos é também o encontro de uma multiplicidade de regras, de diferente natureza e de diferentes fon-tes. Por um lado, o processo de ensino convoca as regras dos saberes e das capacidades, produzidas e definidas pelos processos disciplinares; por outro lado, o processo de aprendizagem convoca as re-gras dos processos de ação nos quais está compro-metido o sujeito que aprende processo de estudo para o estudante, processos de trabalho para o ope-rador sanitário. E esse encontro de diferentes re-gras não é sem consequência: a regulação do pro-cesso de aprendizagem se produz manipulando e ao mesmo tempo reelaborando as regras discipli-nares e as regras dos processos de ação que os no-vos conhecimentos procedentes da aprendizagem vão transformar, bem como produzindo novas gras. Percebe-se então a importância do aspecto

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re-gulador, ou mesmo organizacional, desse agir so-cial que é o aprender.

Esse trabalho organizacional, de transforma-ção e produtransforma-ção de regras, sem o qual a aprendiza-gem seria inútil ou mesmo não existiria, pode ser mais ou menos ajudado pelo processo de ensino, mas é, antes de tudo, próprio do processo de apren-dizagem.

4 AS MANEIRAS DE VER O ENSINO E O QUE DELAS DECORRE

Colocando o enfoque sobre a aprendizagem, e sobre a aprendizagem como processo de ação, des-locamos – poder-se-ia dizer – a perspectiva dos sa-beres e das capacidades “de transmitir” às necessida-des de conhecimento, de um posicionamento quase passivo dos “destinatários” das atividades de educa-ção e de formaeduca-ção à elaboraeduca-ção e ao desenvolvimento constante, sempre variável e renovado, dos conhe-cimentos do sujeito que age pelos e para seus pro-cessos de ação.

Quais são os pressupostos e quais as implica-ções essenciais dessa diferença de pontos de vista?

É necessário, antes de tudo, encarar a ques-tão de compreender de onde vem a ideia da “trans-missão” (dos saberes, das capacidades [...]). Ela vem, por um lado, da visão do mundo objetivista: de acordo com essa visão, existe uma realidade objetiva, com saberes armazenados, com savoir-faire e valores compartilhados e os sujeitos são instruídos, educados, formados, de modo que possam adaptar-se o melhor possível a esse mun-do preexistente e predeterminamun-do em relação a eles. Vimos como certas interpretações da apren-dizagem, e mesmo do conhecimento, procedem dessa visão.

Mas a idéia de “transmissão”, por outro lado, é própria também da visão subjetivista – ou pretensamente “construtivista”: segundo essa visão, são os sujeitos que constroem a realidade, ela é uma construção social; entretanto ela se objetiva pelos percursos da institucionalização e, assim, torna-se coercitiva e normativa para os próprios sujeitos que participam de sua construção. Através dos sistemas de símbolos, os saberes, os savoir-faire e os valores se sedimentam na sociedade e se tornam passíveis de transmissão. A transmissão dos universos simbólicos permite especialmente os elos entre uma geração e outra, através das

socializa-ções (uma apresentação muito clara desse ponto de vista deve-se, por exemplo, a BERGER e LUCKMANN, 1966). Nós vimos que até mesmo essa visão produziu interpretações do conhecimento e da aprendizagem.

Nosso ponto de vista é diferente. O enfoque é colocado sobre o agir dotado de sentido dos su-jeitos sobre seus processos de ações e de decisões: processos permanentes, nunca terminados, esten-didos a diversos níveis, sempre entremeados a ou-tros processos. A realidade então se banaliza, não é nem determinada nem indeterminada, cada sujeito tem a sua realidade, sempre mutável. Sobretudo, ela não é nem reificada nem reificável. Os saberes, as capacidades, os valores são mais ou menos com-partilhados e se difundem através das relações en-tre processos de ação, não devido a uma transmis-são, mas por apropriação, por aprendizagem. Vi-mos que há também interpretações do conhecimen-to e da aprendizagem que estão em coerência com esse outro ponto de vista.

Passemos às implicações, pelo menos no que diz respeito a alguns pontos importantes que nos in-teressam aqui.

Uma primeira implicação refere-se à relação entre o sujeito e o seu mundo. As visões objetivista e subjetivista, reificando a realidade, separam o “sis-tema” e o “ator”. Fala-se então de “contextos”, de “lugares” de atividades diversas. Separam-se, dessa maneira, – e no extremo se reificam – os “lugares de educação” e os “lugares de trabalho”, que, de ma-neira mais geral, podem-se identificar como os “lu-gares” para onde o ensino “transmite” os saberes e as capacidades susceptíveis de serem úteis e utilizá-veis. De acordo com a visão fundada sobre os pro-cessos de ação, o sujeito que age não é separável dos processos que lhe são concernentes. O sujeito que aprende apropria-se dos saberes e das capacida-des na medida em que entra em relação com os pro-cessos disciplinares, apropria-se deles a partir das competências inerentes aos seus processos de ação e os utiliza transformando-os e integrando-os nes-ses processos de ação.

Uma segunda implicação, estritamente conectada à primeira, diz respeito aos aspectos do ensino que são negligenciados ou insuficientemen-te considerados pelas visões subjaceninsuficientemen-tes à ideia da “transmissão”. Vimos como essa ideia leva a aban-donar os problemas da escuta e da compreensão, bem como a subestimar os problemas da aprendiza-gem e da utilização do que se aprende. Ela leva também a enclausurar, de alguma maneira, o julga-mento sobre o que é necessário ensinar e também a avaliação dos resultados do ensino, na própria ati-vidade de ensino, ou melhor, a desligá-los dos pro-cessos de ação que ativam e utilizam a aprendiza-gem – por exemplo, os processos do futuro

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traba-lho dos estudantes e do trabatraba-lho atual dos opera-dores de serviços sanitários. De acordo com nosso ponto de vista, ao contrário, é a partir desses pro-cessos de ação, não separáveis dos sujeitos envol-vidos, produzidos e transformados continuamente por eles, que se pode avaliar, por um lado, as ne-cessidades de aprendizagem e, por outro, os resul-tados do ensino.

Uma última implicação recai sobre as manei-ras de ver as relações entre os saberes e as capacida-des, por um lado, e as competências dos sujeitos que aprendem, por outro, entre as regras relativas às disciplinas e as regras relativas às atividades dos sujeitos. De acordo com as visões que levam à ideia de “transmissão”, essas relações trazem problemas devido às separações que essas visões pressupõem. O problema consiste especialmente em encontrar so-luções para correlacionar aquilo que é visto separa-do. De acordo com nosso ponto de vista, esses pro-blemas não subsistem: a epistemologia que permite raciocinar em termos de processos de ação implica que não se pode separar, mas apenas distinguir os processos que estão em relação recíproca, ligados, misturados: processos de ação de trabalho, de ensi-no, de aprendizagem.

5 ABSTRACT

This article discuss the possibility of knowledge and expertise transmition, throughout examples related to students and professional. Its discussed learning conceptions configured in several theories, assuming a position aiming the “helping to learn”

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