• Nenhum resultado encontrado

A Festa de Nossa Senhora do Rosário: a Festa da Santa, do Padre e dos Tapuios

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A Festa de Nossa Senhora do Rosário: a Festa da Santa, do Padre e dos Tapuios"

Copied!
21
0
0

Texto

(1)

MARLENE CASTRO OSSAMI DE MOURA

Resumo: este trabalho tem como objetivo analisar a festa de Nossa Senhora

do Rosário realizada na década de 1930 pela comunidade indígena Tapuia, que habita a área indígena Carretão, situada nos municípios de Rubiataba e Nova América - GO. A festa de Nossa Senhora do Rosário, que foi incorporada ao universo religioso desse povo, os singularizava perante a sociedade regional por serem eles os patroci-nadores e organizadores do evento. Em uma região que carecia de missionários, esta festa era um grande evento religioso e social que reunia centenas de fiéis advindos de diversas partes da região. Signo de poder, a festa interrompeu-se quando um fazendeiro da região demoliu arbitrariamente a capela da santa, transferindo-a para a sede de sua fazenda. Para salvar a imagem da santa – alijando, assim, o fazendeiro desse símbolo poderoso – os Tapuios resgataram-na, le-vando-a para uma igreja na cidade de Goiás Velho.

Palavras-chave: Festa de Nossa Senhora do Rosário, Aldeamento Carretão,

Tapuios, reciprocidade, cosmogonia

A FEST A FESTA FEST

A FESTA FESTA DE NOSSA SENHORAA DE NOSSA SENHORAA DE NOSSA SENHORAA DE NOSSA SENHORAA DE NOSSA SENHORA DO R

DO RDO R

DO RDO ROSÁRIO:OSÁRIO:OSÁRIO:OSÁRIO:OSÁRIO: A FESTA FESTA FESTA FESTA DA FESTA DA DA DA DA SANTA SANTA SANTA SANTA,A SANTA,A,A,A, DO P

DO PDO P

DO PDO PADRE E DOS ADRE E DOS ADRE E DOS ADRE E DOS ADRE E DOS TTTTTAPUIOSAPUIOSAPUIOSAPUIOSAPUIOS

E

QUEM SÃO OS TAPUIOS

ste artigo tem como objetivo analisar o comportamento religioso da comunidade indígena Tapuia mediante o resgate da festa de Nossa Senhora do Rosário, realizada por esta comunidade entre 1930 e iní-cio de 1940.

(2)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 294294294294294

Os Tapuios são descendentes de quatro grupos indígenas – Xavante, Xerente, Kayapó e Karajá –, além de negros fugidos das fazendas dos senhores – que foram transplantados para o Aldeamento Carretão, construído pela coroa portuguesa na então província de Goiás, em 1788, e desativado no final do século XIX.

Produto de uma política de aldeamento, os Tapuios foram invisibilizados no cenário colonial e nacional, em conseqüência de uma estratégia histórica e política imposta por um processo de dominação e expro-priação. A invisibilidade dos Tapuios faz parte de um processo naci-onal de negação de identidades indígenas específicas, que teve lugar, de forma contundente, na segunda metade do século XIX. A origem dessa invisibilidade encontra-se, na verdade, na própria política indigenista colonial de “civilização” dos povos indígenas, com vista à descaracterização ou homogeneização étnica traçada pela evangelização, integração e assimilação.

Após dois séculos de miscigenação que resultaram na dispersão do grupo entre a população regional, os Tapuios adquiriram visibilidade pelo nascimento de um novo grupo orgânico de indivíduos. O ressurgi-mento da comunidade no cenário brasileiro na década de 1980 ocor-reu por meio de um processo de emergência étnica que, no Brasil, vem acontecendo desde 1940. Nesse processo, os Tapuios reinter-pretaram o aldeamento Carretão como a origem mitológica da co-munidade, resgatando laços de ancestralidade com seus primeiros habitantes e redefinindo seu espaço territorial.

Ao reivindicar sua visibilidade na esfera nacional, os Tapuios foram reinventando suas tradições e forjando uma nova identidade1 que lhes permitiu estrategicamente ‘negociar’ com a sociedade nacional, sem negar, porém, suas identidades específicas – Xavante e Kayapó – , assumidas no interior do grupo. Os Tapuios, apesar de conservar o sentimento de um vínculo histórico com os primeiros habitantes in-dígenas do Carretão - Xavante, Kayapó, Xerente e Karajá/Javaé – atri-buem sua filiação a duas mulheres descendentes dos Xavante e dos Kayapó, respectivamente, ficando as outras identidades ausentes na sua filiação.

Atualmente, eles são estimados em torno de 200 pessoas e habitam a Terra Indígena Carretão, também conhecida regionalmente como ‘fazenda dos Tapuios’2, situada entre a Serra Dourada (ou do Tombador) e o rio Carretão), nos municípios de Rubiataba e Nova América, no

(3)

es-, Goiâniaes-, v. 6es-, n. 2es-, p. 293-313es-, jul./dez. 2008 295 295 295 295 295

tado de Goiás. A área indígena é composta de duas glebas não contí-nuas, quais sejam: a Gleba 1, subdividindo-se em Gleba 1-A, locali-zada no município de Nova América, e Gleba 1-B, localilocali-zada no município de Rubiataba, totalizando 1.666 hectares; e a Gleba 2, localizada também no município de Nova América, com uma área de 77 hectares. As duas glebas perfazem um total de 1.743 hectares. Fora da área indígena, há notícias de aproximadamente duzentos Tapuios morando em cidades e fazendas.

O IMPACTO DO CONTATO: CRISTIANIZAR E CIVILIZAR Segundo Radcliffe-Brown (1973, p. 191) a história das religiões é, em

gran-de parte, uma história gran-de erro e gran-de ilusão. O que ocorreu em 1492 revela as contradições entre diferentes formas de perceber o mundo. Europeus chegaram ao continente americano e encontraram uma população de mais de 90 milhões de habitantes, o que representava várias nações, cada qual com seu território, sua língua, suas religiões e seus costumes. Em nome da civilização e da evangelização, os po-vos indígenas foram desdenhados e ridicularizados naquilo que ti-nham de mais profundo, a sua cultura. Seus ritos foram considerados práticas selvagens; seus mitos tornaram-se ‘lendas’, fábulas e ‘estóri-as’; sua língua era gíria; seus chefes e pajés/xamãs, etiquetados como idólatras, hereges e feiticeiros, foram perseguidos, destituídos e mor-tos; suas religiões foram consideradas bruxaria e prática demoníaca e, sob esse pretexto, desdenhadas, exorcizadas, proibidas. Os que so-breviveram aos massacres foram entregues às missões, para serem in-troduzidos no cristianismo.

A Companhia de Jesus, presente desde a chegada dos primeiros colonizado-res, em 1500, foi a primeira ordem a assumir este papel. Segundo a antropóloga Ribeiro (1983, p. 45), o principal esforço dos jesuítas foi o de levar os índios a abandonarem os hábitos considerados selva-gens, sobretudo os ritos ‘profanos’, a antropofagia, a nudez e a poli-gamia. Foi-lhes imposta uma moral cristã, com a interdição da poligamia. Os índios foram obrigados a vestirem-se e proibidos de habitarem casas coletivas. Seus adornos e suas pinturas corporais fo-ram eliminados, sendo forçados também a se adaptar às novas relações de trabalho. Todos esses elementos foram impostos progressivamente em oposição à cultura autóctone. Sob o pretexto da propagação da fé

(4)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 296296296296296

cristã, legitimaram-se a violência, a escravidão e o extermínio de vá-rias nações indígenas, sobretudo, aquelas em regime de aldeamentos. Os grupos indígenas habitantes do aldeamento Carretão não ficaram isen-tos das imposições culturais e religiosas praticadas pelos administra-dores que seguiam os objetivos definidos pela política indigenista colonial aos aldeamentos alicerçados no binômio civilizar e cristianizar. Nesse sentido, Herbert Baldus (apud RAVAGNANI 1987, p. 25) afirma que a função dos aldeamentos era de “cristianizar [...] o mais rápido e radicalmente possível a cultura indígena através das institui-ções européias”.

O vazio cultural e religioso provocado pelo choque entre os modos de vida da sociedade ocidental e os das sociedades indígenas teve, ao longo da história do Brasil, exemplos dramáticos. Para ficar no presente, no último quarto do século XX, tomou-se conhecimento do caso da sociedade Guarani-Kayowá, do Mato Grosso do Sul, cuja juventude passa por uma onda assustadora de suicídios. Segundo a Funai, ape-nas no período compreendido entre 1988 e 1995 registrou-se uma centena de suicídios entre esse povo indígena de Dourados, sendo a maior parte de adolescentes na faixa de 12 a 19 anos. Tais suicídios são atribuídos à falta de perspectiva de vida melhor para este povo que vive em uma reserva com uma dimensão territorial muito peque-na para a manutenção física e cultural do grupo, além de estar muito próxima da cidade de Dourados e cercada por fazendas. Sem terra suficiente para suas próprias plantações, os Guarani-Kayowá buscam trabalho nas fazendas da região, como diaristas, além de enfrentarem o forte desemprego entre eles, assim como o alcoolismo.

Essa drástica realidade dos Guarani-Kayowá contrasta com o seu discurso sócio-religioso de que para alcançar a “terra-sem-males”3 - a terra boa e perfeita para se viver - é necessário viver conforme o sistema Guarani: caçar, plantar e celebrar. Para Meliá (1988, p. 336) a efetivação desse ideal só seria possível com a garantia do seu território (tekohá), e que, sem este, não há possibilidade de se desenvolver nenhuma cul-tura (tekó). O tekohá, diz o autor, é o lugar e o meio em que se dão as condições de possibilidade do modo de ser Guarani.

O confinamento dos Guarani-Kayowá em pequenos lotes de terra, insufi-cientes à sua sobrevivência física e cultural, pode estar na origem dos suicídios desse povo, somado entre outros motivos, o da influência das religiões cristãs. Como sabe, a religião é o eixo fundamental na

(5)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 297 297 297 297 297

vida dos povos indígenas e, de modo especial, do povo Guarani. Se o eixo é destruído, corta-se o oxigênio gerador da vida Guarani. Se-gundo Durkheim (1977, p. 6), geralmente quando um povo perde a “fé religiosa”, logo ele chega à decadência.

No caso dos Tapuios, não podemos estudar seu universo religioso dissociado de uma doutrinação aplicada no aldeamento Carretão sobre seus as-cendentes. Os Tapuios têm uma experiência de longa data com a religião católica, não expressando, aparentemente, manifestações re-ligiosas advindas da cultura tradicional de seus antepassados. Sua prática religiosa se expressa atualmente por meio de ritos e símbolos cris-tãos. A seguir, passaremos a analisar esses elementos numa tentativa de resgatar, num passado próximo – década de 1930 –, o comporta-mento religioso da comunidade valendo-nos da festa de Nossa Se-nhora do Rosário.

A PRÁTICA RELIGIOSA DOS TAPUIOS

A prática religiosa dos Tapuios não é diferente daquela praticada pela popu-lação rural brasileira e, mais geralmente, da popupopu-lação rural católica do interior do estado de Goiás. Relativamente distanciados dos gran-des centros urbanos, os Tapuios, como outros camponeses, não se beneficiam de uma presença permanente dos ministros do culto, com missas regulares4. Essa ausência não impede os Tapuios de manifesta-rem no cotidiano uma religiosidade popular semelhante à do campo-nês brasileiro, que se apresenta nas expressões faladas, e freqüentemente utilizadas, ‘Se Deus quiser’, ‘Graças a Deus’, ‘Deus te abençoe’5. Para muitos dos Tapuios com os quais mantivemos contatos, sobretudo, as pessoas idosas, Deus é o mestre todo-poderoso da vida e da morte. Em suas santas mãos, repousa o destino de todos os homens. Por causa disso, tudo que ocorre advém da vontade divina. O mundo é uma obra de Deus e, se há desigualdades sociais, é Deus que as quer. A pobreza é fruto da vontade de Deus. O destino dos pobres é de sofrer nesta vida, mas Deus os recompensará, dando-lhes o céu após a morte.

Esta fé, que um olhar apressado julgaria passiva e fatalista, pode ter contri-buído para o espólio dos Tapuios pelos invasores de sua terra. Por este motivo quando, no auge dos conflitos agrários da década de 1980, a diocese de Rubiataba apoiou a luta dos Tapuios na recuperação de

(6)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 298298298298298

suas terras, a mesma se viu compelida a atuar no campo ideológico, no sentido de dissipar o suposto imobilismo fatalista da comunidade. Na verdade, esse imobilismo pode ser considerado uma tática, no sentido

empregado por Certeau (2007, p. 101), como “a arte do fraco”, ou seja, do combate entre o forte e o fraco, e das “ações” que o fraco pode empreender. Para esse autor, a tática atua utilizando-se “das falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário”. Um dos elementos rastreáveis desta disposição tática estaria justamente na festa de Nossa Senhora do Rosário, reali-zada pelos Tapuios entre o final da década de1930 e início de 1940. Este ritual, que se constitui a partir da apropriação dos signos imagéticos do dominador do passado, será analisado como um elemento de afir-mação dos vínculos comunitários da comunidade Tapuia perante uma alteridade que lhe era opressora.

Nesse processo de resistência, os Tapuios buscaram dar sentido às suas no-vas práticas religiosas assimiladas da religião cristã, sobretudo aque-las da Igreja Católica. Desse modo, analisaremos o fenômeno religioso colocando em valor as ações praticadas pelos Tapuios, uma vez que essas são expressões simbólicas de sentimentos, determinando o con-junto de crenças da comunidade. Isso não quer dizer que exista uma dicotomia entre práticas (ritos) e crenças. Como afirma Radcliffe-Brown (1973), os ritos e as crenças evoluem juntos como parte de um todo coerente. Nessa evolução, é a atividade ou a necessidade de ação que controla ou determina a crença mais que tudo.

Para melhor expressar o sentimento religioso dos Tapuios, tentaremos reconstituir, mediante os depoimentos deles e de outros habitantes não-tapuios da região, um evento religioso realizado pela comunida-de até o início da década comunida-de 1940. Tal evento se comunida-destaca por dois motivos. Por um lado, no período de sua vigência, ele foi responsável pela coesão social da comunidade na medida em que atualizava, em um rito rotineiro e cíclico, elementos do imaginário comunitário. Por outro lado, o evento em questão chama a atenção por ter perma-necido cimentado na memória dos Tapuios, sendo sempre expressa-do quanexpressa-do os interpelávamos, em nossa pesquisa de campo (1987-1996), sobre a temática religiosa. É este evento da religião católica, reinterpretado para seu próprio universo simbólico, que os Tapuios retiveram na memória e selecionaram para expressar seu sentimento religioso, a festa de Nossa Senhora do Rosário6.

(7)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 299 299 299 299 299

OS TAPUIOS E A FESTA DA SANTA

Quando interrogamos os Tapuios sobre sua religião tradicional, todos fo-ram unânimes em afirmar que não se recordavam de nenhum costu-me religioso de seus ancestrais indígenas. Eles lembravam-se socostu-mente – e com certa nostalgia – das grandes festas religiosas da Igreja Cató-lica, no tempo de seus pais e avós, celebradas a cada ano pela comu-nidade indígena e, posteriormente, pelos padres que andavam pela região nas desobrigas. Estas grandes festas que ficaram na memória dos Tapuios e que se misturam com o calendário litúrgico católico são as de Santo Antônio (13 de junho), Nossa Senhora do Rosário (12 de outubro)7 e dos Santos Reis (6 de janeiro). Segundo os Tapuios, cada ano uma família ficava responsável pela organização de uma das festas. A festa de Nossa Senhora do Rosário era de responsabilidade do chefe Tapuio Simão Borges e era a mais importante delas, por congregar uma grande multidão.

Com base nos dados de nossa pesquisa de campo efetuada junto à comuni-dade Tapuia e também junto à população não-indígena, local e regi-onal, que mantém relação com os Tapuios, dividimos, para efeito de análise, a festa de Nossa Senhora do Rosário em dois períodos: no primeiro período, a festa era realizada sem a presença do padre, con-tando somente com a coordenação e o patronato dos próprios Tapuios e o apoio de algumas famílias não-indígenas moradores da região; no segundo período, quando a festa passou a contar com a presença do padre, que celebrava os casamentos e batizados, mas sempre sob a coordenação dos Tapuios.

Em uma região que carecia da presença de padres, esta festa de Nossa Se-nhora do Rosário organizada pelos Tapuios era um grande evento religioso e social, que reunia centenas de fiéis advindos de diversas partes da região, trazendo grande prestígio aos anfitriões. A tapuia Mariinha afirma que a festa começou com a chegada da imagem da santa vinda de Porto Nacional (uma cidade ao norte de Goiás, hoje estado do Tocantins), levada pelo inspetor Mandacaru, do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI)8, apesar de a maioria dos Tapuios não saber remeter uma origem para a festa.

A festa durava três dias, em uma sincronia entre o sagrado e o profa-no. No período em que não havia presença de padre, toda a organiza-ção da festa era de responsabilidade da comunidade Tapuia. A preparaorganiza-ção

(8)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 300300300300300

da festa era coordenada pelo chefe da comunidade, Simão Borges, com a ajuda de suas irmãs e de outros parentes, alguns meses antes da data marcada. As atividades começavam com a produção de farinha de mandioca, rapadura e a venda de galinhas e porcos em cidades como Crixás e Goiás. Com o dinheiro dessa venda, compravam-se outros produtos necessários para a realização da festa. Quando a fes-ta esfes-tava próxima, começava a preparação “do comer”. Segundo a tapuia Mariinha,

Bem antes da festa, ia fazer farinha... agora, ensacava essa farinha, arrumava dentro de uma bruaca, cangalhava a égua e ia lá pra Goiás Velho vender essa farinha e rapadura; oito dias de viagem, uma hora ia montado, outra hora a pé... E lá comprava o que falta pra festa. Aí, ia socar o milho, o arroz, tudo puxado na mão, e fazer mais rapadura. Aí, fazia aquele turfo de bolo de mandioca, de milho, de arroz. Meu pai engordava capado. A comida vinha tudo de casa. Papai trazia toucinho, carne, arroz, rapadura, fari-nha, o que gastava pra festa. Nós mesmo que dava a despesa pro povo, tudo o de comer... Menina, mais era povo, era povo dessa Canabrava, dessa Valdelândia, do outro lado da mata; agora jun-tava aquele povo naquela romaria... Tinha muita dança, tinha o arrasta-pé com viola e pandeiro, tinha o cururu, o pessoal ia can-tando e fazendo roda.

Uma outra tapuia, Benedita Borges, assim expressava, de modo saudosista, a festa organizada por seu pai, Simão Borges:

[...] era uma grande festa! O povo fazia romaria para chegar no Carretão. Lá, eles faziam um mundo de barracas debaixo das árvores, na beira dos córregos. As pessoas brincavam, dançavam, cantavam e nós le-vantava dois mastros, um para Nossa Senhora do Rosário e outro para Nossa Senhora da Conceição.

Um antigo morador da região e muito próximo dos Tapuios, falou-nos do tempo de sua participação nessa festa:

A festa dos Tapuios era uma festa de comedeira... era uma festa mui-to boa. Rezava o terço, dançava também. Os Tapuios davam de

(9)

co-, Goiâniaco-, v. 6co-, n. 2co-, p. 293-313co-, jul./dez. 2008 301 301 301 301 301

mer e beber ao povo... Eles eram os donos da festa. O meu irmão dava, cada ano, uma vaca pra festa... Havia muito fartura... Era três dias de festa... Nessa época, não havia padre... era nós mesmo quem rezava. Tinha as Tapuias rezadeiras... Rezava o terço e levava o andor em procissão. A luz [da procissão] era rolo de cera. Então, o Trocate [Torquarto] chegou aí no Carretão e derrubou a capela... aí petecou tudo, foi o fim... ele acabou com os índios.

Segundo os Tapuios, no começo a festa era realizada dentro da casa de duas irmãs de Simão, Catarina e Frutuosa, onde eram guardadas as ima-gens de Nossa Senhora do Rosário e de uma outra, Nossa Senhora da Conceição. Por ocasião da festa de Nossa Senhora do Rosário, em frente dessa casa era colocada uma mesa enfeitada com as imagens das duas santas. Motivados com a participação massiva dos fiéis, os Tapuios resolveram, com a ajuda de alguns moradores da região, cons-truir uma capela para as duas santas. Segundo o Tapuio Bento Vieira, foi Simão Borges, com a ajuda de seu irmão Benedito e do agricultor Joaquim Pedreiro, quem construiu a capela. A partir daí, a festa pas-sou a ser realizada na capela9.

A festa começava com o hasteamento da bandeira da santa homenageada e também com a bandeira de Nossa Senhora da Conceição e com a participação da “companhia de toque”, isto é, de tocadores de vio-la, sanfona e pandeiro. Durante a festa, mulheres Tapuias chama-das de “rezadeiras” entoavam as orações, isto é o terço, as ladainhas e os cantos. O povo, segundo Benedita Borges, rezava o pai nosso, a ave maria, salve Regina, estrela do céu e ladainhas. As imagens das duas santas eram levadas em procissão. A Tapuia Mariinha conta que as “velhas mulheres” embelezavam o mastro na ponta do qual se encontravam as bandeiras com as duas santas, iluminavam o al-tar com velas de cera de abelhas e com uma mecha de algodão, além de pequenas lâmpadas abastecidas com óleo de mamona que elas fabricavam.

Segundo Mariinha Borges, após a reza, começava o “arrasta-pé”. O povo dançava até o amanhecer. Muitos grupos se formavam para dançar o caruru, sarandi, catira. Ainda segundo esta Tapuia, essas danças e outras como as do “engenho” e “saia preta”, eram dançadas pelos Tapuios em outras ocasiões não especiais com o objetivo de fazer o povo “brincar”, ou seja, de reuni-lo de forma coletiva e solidária,

(10)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 302302302302302

como lazer. Algumas danças contavam apenas com a presença de homens, outras com a participação dos dois sexos.

Para o encerramento da festa do povo, que não contava com a presença do padre, a “companhia de toque” mais uma vez era convocada para tocar, respaldada pela cantoria dos fiéis, enquanto as bandeiras das santas eram baixadas do mastro. “Aí o povo esparramava, pegava o caminho de volta pras casas.”

“AÍ O PADRE CHEGOU PRA DIZER A MISSA”

Segundo o Tapuio Bento Vieira, os primeiros missionários católicos que chegaram para celebrar a festa de Nossa Senhora do Rosário no Carretão foram os padres Eliezer e Antonio Maria10, que vieram de São José do Tocantins (hoje Niquelândia), a 250 km do Carretão, a pedido do fazendeiro Torquato de Barros. Segundo esse Tapuio, “o padre Eliezer era muito bom, mas o padre Antonio, esse era muito bruto”. Foi com este último, segundo os Tapuios, que Torquato de Barros combinou a transferência da festa para sua fazenda situada na antiga sede do aldeamento Carretão.

Mesmo com a presença dos padres, o que deve ter ocorrido no final dos anos 1930 e início dos anos 1940, a organização da festa ficava por conta dos Tapuios. Segundo a Tapuia Mariinha,

[...] era papai (Simão), minhas tias (Catarina e Frutuosa)... e nós [Tapuios] quem cuidava dos romeiros, só que agora eles traziam a sua comida, eles cozinhavam lá mesmo debaixo das árvores. Agora o Torquato (fazendeiro) cuidava dos padres... eles ficavam na casa dele. Quando era cedo, eles vinham dizer missa.

Para o encerramento da festa, o padre celebrava uma missa junto à capela em que estavam as imagens de Nossa Senhora do Rosário e de Nossa Se-nhora da Conceição. Nesta ocasião, eram realizados os casamentos e batizados. Mas o povo, segundo o Tapuio Bento Vieira, “continuava a rezar do seu jeito: com procissão, terço, ladainha, mesmo quando o padre não estava. Tinha a missa do padre e a reza do povo, das rezadeiras”. Este aparato ritual construído ao redor da imagem de Nossa Senhora do Rosário desapareceu quando o fazendeiro Torquato de Barros demo-liu arbitrariamente a capela dos Tapuios, transferindo-a para suas terras

(11)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 303 303 303 303 303

(sede do antigo aldeamento Carretão). Ele se amparou da organiza-ção da festa, visto que esta fornecia prestígio à comunidade devido as raras ocasiões que existiam na região para receber padres e fazer batizados, casamentos e inscrição em registros.

Podemos analisar esta conduta do fazendeiro como uma típica demonstra-ção de força: aquele que é o dono da festa e que tem o poder sobre a santa detém também o poder sobre os fiéis. Vale dizer ainda, embora não se possa, para o escopo deste artigo, aprofundar-se nesta ques-tão, que tal processo tem uma precessão na dimensão territorial, uma vez que as terras de Torquarto de Barros correspondiam aos limites territoriais do antigo aldeamento Carretão, tradicional habitat dos Tapuios. Se a expulsão dos Tapuios desta área foi um processo pro-gressivo que antecede a chegada de Torquato de Barros, o fenômeno se consolidou com ele, quando as últimas famílias indígenas que ain-da habitavam a área foram repeliain-das para as glebas atuais. A expro-priação da territorialidade ancestral, neste caso, não foi suficiente para ameaçar a organicidade sócio-religiosa tapuia e a sua autono-mia, e, não por acaso, o mesmo ator que finalizou o processo de expulsão dos Tapuios foi responsável pelo assalto à imagem da santa. De acordo com Mariinha Borges,

[...] depois que o Torquato entrou pro Carretão, que ele tomou isso aí [terra], foi que ele [se] uniu com os padres de São José do Tocantins pra derrubar a igreja e passar lá pro Carretão [terras do fazendeiro]. Antes do Torquato, não tinha padre não, era só festa dos Tapuios, dos índios com o pessoal. Mas, depois que derrubou a capela, ainda continuou a festa lá no Retiro. Ele retirou a capela, mas a casa ficou e a festa continuou a mesma coisa dentro da casa de minhas tias e o pessoal vinha, mas cada um trazia seu de comer. Daí foi enfraquecen-do aqui... Quanenfraquecen-do o Torquato morreu [1946] já tinha acabaenfraquecen-do as festas [...].

Nesse tempo, os Tapuios tinham um certo prestígio aos olhos da população local, que os considerava proprietários de terras, alocando-as às fa-mílias de imigrantes que chegavam na região provenientes da Bahia, Minas Gerais e da Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG), como consequência da política desenvolvimentista articulada por Getúlio Vargas aliada à ocupação dos grandes vazios demográficos.

(12)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 304304304304304

Os Tapuios reuniam também em seus trabalhos coletivos – chama-dos “adjutório” – outros lavradores da região. Estas pessoas com quem, no começo, os Tapuios mantinham uma relação de reciprocidade mostraram-se opostas aos desejos de Torquarto de Barros de transfe-rir a capela, de forma arbitrária, para a sede de sua fazenda. Mas o fazendeiro, mesmo assim, não recuou. Acompanhado de policiais, ele entrou no Carretão, onde humilhou a comunidade, e demoliu a capela. Segundo os Tapuios, após a demolição, Torquato de Barros levou para sua fazenda o sino, o cofre das esmolas, as “vacas da san-ta”11, as telhas e os batentes das portas e das janelas. A imagem de Nossa Senhora do Rosário foi salva pelos Tapuios. Ela foi levada por Simão, sua irmã Catarina, seu irmão Benedito Borges e seu sobrinho Bento Vieira para uma igreja na cidade de Goiás12. Hoje, os Tapuios tentam recuperar a santa e trazê-la de volta ao Carretão13.

Na fazenda de Torquato de Barros, foi construída uma outra capela, e o padre freqüentemente celebrava missas e, até mesmo, a festa de Nos-sa Senhora do Rosário. Segundo uma senhora habitante de Crixás cujo marido era conhecido de Torquato e chegou a participar da ce-lebração de Nossa Senhora do Rosário na sua casa, a festa do fazen-deiro não durou muito tempo, reunindo menos pessoas que a festa organizada pelos Tapuios. Nessa festa, cada um era responsável pelo seu próprio alimento. Essa redução no número dos romeiros se deu em razão da falta de prestígio do fazendeiro, considerado violento com os agricultores da região.

REFLETINDO A PRÁTICA RELIGIOSA DOS TAPUIOS Os dois momentos da continuidade histórica que narramos aqui estão

asso-ciados, respectivamente, ao momento de manutenção e ruptura de uma orientação cosmológica particular. No primeiro momento, os tapuios impõem-se como operadores da figura (sagrada) de Nossa Senhora do Rosário, fetiche em torno do qual se orienta a festa. Po-demos afirmar, em conformidade com Eliade (1963), que a socieda-de tapuia, a partir do momento em que se apropriou da santa - presente do inspetor do SPI - constituiu-se, em grande parte, em torno de sua figura. Isso particularmente se considerarmos, como esse autor, que o sagrado tende a se assentar em uma posição, no tempo e no espaço, central à comunidade que ele está significando. .Tal comunidade o

(13)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 305 305 305 305 305

rodeia, completando-se, assim, o sentido etimológico mais patente do termo “profano” – aquilo que está em frente (pro) ao sagrado (fano). A profanidade se atualiza em torno daquele espaço reservado, interno, no qual se encontra estático o sagrado (imagético) capaz de ordenar as relações sociais e preservá-las das ameaças que a rondam. E isso foi feito enquanto os tapuios eram senhores do símbolo ins-trumental da sua hierofania.

Com a interrupção do tempo ordinário e o início do tempo sagrado da festa religiosa, os tapuios encontravam a oportunidade de, pela inter-cessão de Nossa Senhora do Rosário, demonstrar sua autonomia eco-nômica e social para os moradores da região como também para si próprios. A festa de Nossa Senhora do Rosário articula-se antes com a promoção da ‘elite local’ e a conseqüente manutenção da ordem social vigente que com o modelo da Communitas, que Turner (1974, p. 116-20) descreve inspirado na contribuição de Arnold Van Gennep. Nesse último modelo, a inversão ritualizada de papéis sociais corro-bora a estrutura social vigente. Tal dimensão é fundamental e certa-mente encontrou e encontra ecos na composição social tapuia, mas está ligada mais para uma perspectiva analítica voltada para as dispo-sições de vínculos estabelecidas que para os conteúdos mitológicos, suas imagens e suas exegeses rituais.

Para este escopo analítico, a contribuição de Eliade (1963) acerca dos rituais é mais pertinente. Considera ele que os povos ditos arcaicos concebem o mundo como um espaço de renovação, e esta se opera por meio da cosmogonia ou de um mito de origem que, para todos efeitos, assume as prerrogativas de um mito cosmogônico. Eliade associa sua análise aos grandes mitos de criação de determinados segmentos étnicos, cuja origem remonta uma anterioridade que só pode ser delineada de for-ma bastante geral pelos grandes movimentos populacionais da ocupa-ção do planeta. Isso nos distancia, em princípio, do caso Tapuio, cuja individuação étnica se reporta aos meados da modernidade. Por outro lado, pode assemelhar-se ao caso dos judeus, cuja cosmogonia como povo não se dá junto com a origem do cosmos propriamente (no gênesis), mas com a passagem da heteronomia para a autonomia (no êxodo). Devemos lembrar, em primeiro lugar, o fato de a população do aldeamento

Carretão, na época da festa de Nossa Senhora do Rosário, constituir um segmento social de relativa proeminência regional, uma vez de-tentor de terras. Em segundo lugar, deve ser destacada, conforme

(14)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 306306306306306

interpretação dos Tapuios, a concessão, por D. Maria I, da titularidade da propriedade das terras do aldeamento, em 1788. Para todos os efeitos, tal fato não redundou em uma autonomia da sociedade do Carretão, ao contrário, o segmento originário que a compôs, em grande parte se evadiu dali na dinâmica própria dos aldeamentos, que impu-nha um etnocídio que não era recebido pacificamente por parte dos indígenas.

A população do aldeamento Carretão como atestam os depoimentos de diferentes autores, sofreu sérios reveses, como fome, doença, trata-mento ofensivo e até perseguição por parte dos empregados do aldeamento. O próprio capitão Xavante do Carretão chegou a confidenciar a E. Pohl14 (1976) os maus tratos que os índios recebi-am no alderecebi-amento e os pesados trabalhos que lhes errecebi-am impostos, além das fraudes praticadas contra eles, como, por exemplo, obrigá-los a entregarem ao diretor da aldeia metade do milho que moíam. A população que representa os Tapuios no início do século XX até o pre-sente é resultado da miscigenação extrema entre os índios remanes-centes do aldeamento original (Xavante, Xerente, Kayapó e Karajá) e, sobretudo, os sujeitos que ali se instalaram posteriormente a esta política de aldeamento, arregimentando para si os signos identifi-cadores daquela espacialidade, seja por casamento ou por mera agre-gação.

Nesse sentido, a presença da festa de Nossa Senhora do Rosário marca a rotinização da identidade tapuia no espaço (do Carretão), mas tam-bém no tempo (gregoriano): para Eliade (1963, p. 58) o ano

s’agit toujours d’un cycle, c’est-à-dire, d’une durée temporelle, qui a un commencement et une fin. Or, à la fin d’un cycle et au début du cycle suivant, ont lieu une série de rituels qui visent la renovation du Monde. [...] cette renovation est une récreation effectuée selon le modèle de la cosmogonie.

O tempo mítico Tapuio vai a ser construído com base em uma cosmogonia: a origem da criação desse povo e de seu território. Ali foi identificado um herói primevo, civilizador, responsável pela criação do aldeamento: a rainha Maria I, de Portugal, a qual, segundo os Tapuios em sua memória mítica, mandou dar as terras aos seus antepassados, por meio de um documento escrito numa pedra de mármore que estaria

(15)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 307 307 307 307 307

no Rio de Janeiro (LAZARIN, 1985). Assim, para os Tapuios, o an-tigo aldeamento Carretão passou a ter um sentido mitológico, sim-bolicamente representado como um mito de origem da comunidade, segundo o qual se deram os acontecimentos marcantes e decisivos para a constituição do tempo presente do grupo. Esses relatos de um passado mítico possibilitam a criação de um modelo de referência, de um paradigma que permite ao grupo situar-se como um povo diferenciado. Há, portanto, nos relatos deste primeiro momento -tempo mítico- uma espécie de déplacement da história em direção ao mito (GODÓI, 1987), uma vez que os dois momentos subseqüentes – o passado recente (“tempo dos velhos”- geração do chefe Simão) e o presente –, sendo historicamente fundados (já que se reportam à vivência pessoal, grupal e dos ancestrais próximos), são eivados por um esfor-ço de atualização do momento mitológico tapuio.

A estrutura da cosmogonia passa por um duplo reconhecimento: o dos pode-res espiritual e temporal (agregados na figura da rainha D. Maria I). A diferença tapuia passou por esses dois crivos, de forma a se assentar vigorosa e diferenciada (mas não isolada) da realidade que a circunda. O fato de a imagem da santa ter sido um presente dos agentes do SPI corrobora o aspecto original da comunidade tapuia na medida em que um signo religioso foi presenteado pelo poder político daquele mo-mento: um signo religioso com poderes religiosos, mas também políti-cos, decorrendo essencialmente daí o interesse do fazendeiro Torquato de Barros por ele. Em termos de comparação, podemos dizer que a tensão existente entre os Tapuios e esse fazendeiro reflete a tensão que existiu entre a religiosidade anti-moderna de D. Maria I e o despotis-mo esclarecido escravista do marquês de Pombal.

O catolicismo tapuio era praticado nos moldes de uma concessão primeva da autoridade religiosa que era D. Maria I. A incursão, citada pelos Tapuios, dos padres Eliezer e Antonio, apoiada por Torquato de Bar-ros, revela uma mudança clara na perspectiva da prática religiosa: a delegação de poder religioso (e político) aos Tapuios era inaceitável. Surge um pré-julgamento da Igreja – e também de uma autoridade civil da região: o fazendeiro, que para os Tapuios “mandava em tudo” – em relação aos indígenas com reputação de ‘impuros’, no que tange o manuseio do ‘sagrado’. A partir daí, os Tapuios, privados de sua santa, não celebraram mais a festa, da qual eles guardam nostalgia. “As velhas [como dizia a Tapuia Mariinha], após perderem a santa,

(16)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 308308308308308

foram enfraquecendo, enfraquecendo lentamente, até morrer. Hoje, tudo isso acabou, não existe mais esta festa alegre. Hoje, só há triste-za e desunião”15.

As reflexões de Durkheim (1977, p. 6) são bem atuais nesse caso analisado:

Frequentemente observou-se que os povos que perdem sua fé religi-osa, não tardam a entrar em decadência. Podemos agora compreen-der de onde vem esta notável coincidência. Para explicá-la não é preciso imaginar que os deuses se vingam dos povos que os esque-cem [...] Posto que os deuses nada mais são do que ideais coletivos personificados, o enfraquecimento da fé testemunha que o próprio ideal coletivo se enfraquece; e ele só pode enfraquecer-se se a pró-pria vitalidade social é atingida. Em uma palavra, é inevitável que os povos morram quando os deuses morrem, visto que os deuses nada mais são do que os povos pensados simbolicamente [...] Para que os deuses exerçam a ação salutar que é sua razão de ser, não é suficiente que eles sejam; é preciso que se creia neles, e que se creia com uma fé coletiva, pois a fé de cada um só pode ser forte se ela é compartilhada por todos.

Sem a festa da santa, os Tapuios “enfraqueceram lentamente”, uma vez que, enfraquecido esse ideal coletivo, de que nos fala Durkheim, a vitalidade social do grupo foi também atingida, acarretando um estado de apatia coletiva. Sem a festa, foram perdendo o elemento simbólico, apropriado da fonte imagético do dominador, como ele-mento tático que deu direção à vida da comunidade. Esta falta de referência afetou os Tapuios durante um período crítico de violên-cia e de invasão de suas terras, o que contribuiu para o desenvolvi-mento de uma consciência subalterna. Esta consciência vai persistir até meados da década de 1980, quando os Tapuios ressurgem no cenário nacional reivindicando seu território e sua indianidade. É oportuno, para esse caso, a afirmação do antropólogo francês, Erny (1991, p. 32), de que

consciences ethniques que l’on croyait endormis depuis longtemps se réveillent brusquement le jour où une population perçoit [...] un moyen pour afirmer son identité et lutter contre une emprise extérieure ou centralisatrice étouffante...

(17)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 309 309 309 309 309

A história do contato interétnico dos Tapuios revela que várias formas de resistência se manifestaram ao longo do tempo, notadamente por meio da apropriação de bens simbólicos ofertados/impostos pelo dominador. Tal processo, é cabível repetir, nos remete à contribuição de Certeau quanto à afirmação tática do mais fraco. Para Cereau (2007, p.102),

as táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo – às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, à rapidez de movimentos que mu-dam a organização do espaço, às relações entre momentos sucessivos de um ‘golpe’, aos cruzamentos possíveis de durações e ritmos hete-rogêneos etc.

Portanto, o aparente imobilismo fatalista e a alienação dos Tapuios podem ser considerados como uma tática, enquanto “a arte do fraco”, em-pregado por Certeau. Os Tapuios não só resistiram e enfrentaram as pressões advindas dos fazendeiros para expulsá-los de seu território, como legitimaram a ancestralidade de seu território, embora com novos limites, e mantiveram sua indianidade perante a sociedade nacional. A conquista do território foi sem dúvida um requisito fun-damental para a reprodução e continuidade do grupo. Segundo Bonfil Batalla (1981, p. 26-7), a memória histórica de um território origi-nal desempenha um papel ideológico de primeira importância para os grupos que viram diminuídos seus espaços como efeito da domi-nação colonial.

Quanto a festa de Nossa Senhora do Rosário consideramos que ela se estabelece como um elemento em que tal tensionamento se tornou patente no âmbito do emprego tático de um recurso simbólico do dominador (a imagética religiosa cristã herdada do catolicismo). Se no passado a religião católica serviu como instrumento de domina-ção e de desintegradomina-ção dos ancestrais Tapuios, estes vão se apropri-ar desse mesmo instrumento papropri-ara legitimapropri-ar não só sua indianidade, como sua autoridade diante da sociedade regional. Daí, podemos afirmar que muitas das imposições religiosas acabaram resultando num reforço da individuação étnica dos Tapuios e de muitos povos indígenas.

Várias décadas se passaram desde a realização da última festa até o presente momento. Hoje, os Tapuios procuram realimentar seu universo

(18)

reli-, Goiâniareli-, v. 6reli-, n. 2reli-, p. 293-313reli-, jul./dez. 2008 310310310310310

gioso recuperando e reforçando, no interior da comunidade, práticas que são da Igreja Católica16. A partir da assimilação dessas práticas, os Tapuios não só atribuíram um novo sentido religioso à vida deles como também reforçaram, estrategicamente, os laços com a Igreja Católica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A antropóloga Alba Zaluar (1980:161), ao se referir às festas de santo, afirma que só se pode compreender estas festas quando as interpre-tamos como partes de um sistema de reciprocidade com as divinda-des do cosmos, construído socialmente pelos homens. Nesse sentido, a relação de reciprocidade dos Tapuios com a santa poderia ser ana-lisada no campo da troca de dádivas: a comunidade recebia a prote-ção da santa, garantindo a sua prosperidade, e, em retribuiprote-ção, fazia-lhe a festa, com rezas, oferendas e o compromisso de acolher os romei-ros. A reciprocidade era estendida aos membros da comunidade no sentido de reforçar a solidariedade e a comunicação, atenuando, assim, os conflitos internos do grupo. Essa reciprocidade se expres-sava na redistribuição dos alimentos acumulados durante o preparo da festa pelo chefe Simão Borges em benefício dos peregrinos, se-lando, assim, não só o compromisso e a aliança da comunidade com a santa, mas conferindo visibilidade às relações sociais re-fortalecidas nesse tempo sagrado da festa religiosa, entre a comuni-dade e os fiéis. A festa era, então, um ritual de manutenção, de sociabilidade e de equilíbrio da sociedade. Isso está visível na afir-mação da Tapuia Mariinha de que, com o término da festa, só res-tou “grande tristeza e desunião”.

O principal apontamento possível dessa análise é de que um processo de etnocídio não se restringe à interdição violenta da expressão cultural e da cognição que lhe é subjacente, mas também do espólio da materialidade (terra e objeto sagrado), que atua como ferramenta desta expressão cultural. Se a territorialidade - que a história indica com clareza, com os vários deslocamentos forçados de povos tradicionais - e os objetos mágicos/sagrados são mais familiares à análise antropo-lógica, como podemos perceber no caso estudado, não menos im-portantes são os temas do patrimônio florístico, faunístico e mineral, que munem as representações cosmológicas dos povos ‘tradicionais’.

(19)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 311 311 311 311 311 Notas

1 Tapuio não é uma denominação indígena, mas um termo genérico. Trata-se de um

vocabulário de origem tupi que servia para denominar os indígenas que habitavam o interior do Brasil, no início da colonização portuguesa, por oposição aos Tupis, que habitavam o litoral. Uma outra definição, mais atual, é atribuída aos indígenas que já perderam sua referência étnica: mestiço, caboclo, tapuio.

2 Este termo é a denominação dada pelos moradores não-indígenas da região. 3 Não é nosso propósito trazer para esse trabalho a discussão interpretativa sobre o

tema da terra-sem-males travada entre diferentes autores como Hélène e Pierre Clastres, Bartomeu Meliá, Cristina Pompa entre outros.

4 Na década de 1930, essa presença era ainda mais rara, sendo efetuada por meio das

desobrigas. A desobriga é a visita que o missionário católico faz anualmente aos luga-res mais distanciados do sertão para celebrar os sacramentos. A origem da palavra desobriga encontra-se no conceito da obrigação de cumprir os comandos da Igreja prescrevendo a recepção ao menos anual de certos sacramentos. A presença do padre permite, assim, aos fiéis cumprirem suas “obrigações” (eles se desobrigam).

5 É a bênção que os mais velhos invocam sobre suas crianças, seus afilhados e, de uma

forma geral, sobre os mais jovens, que os saúdam, solicitando sua bênção.

6 Infelizmente, o tempo não nos permitiu aprofundar as origens dessa festa no estado

de Goiás, bem como a devoção popular a esta Virgem, considerada patrona dos ne-gros. É nossa intenção continuar a pesquisa, levando em conta que a colonização de Goiás se deu com a contribuição de negros escravos trazidos da África.

7 Não existe unanimidade entre os Tapuios sobre a data mesma da festa de Nossa

Senhora do Rosário. Benedito e Jerônimo afirmaram que era no dia 15 de outubro. Para Mariinha, era no dia 8 de outubro, começando no dia 7 e acabando no dia 9. Segundo Bento Vieira, o mais velho do grupo e hoje falecido, a festa era no dia 12 de outubro. Quando eu perguntei da possibilidade de ele estar enganado com a data, ele respondeu resoluto: “a festa da Santa Aparecida não é no dia 12 de outubro? Então, é o mesmo dia que fazemos a festa de Nossa Senhora do Rosário no Retiro (Carretão)”.

8 Mandacaru era um funcionário do SPI que visitou o Carretão em 1911 e distribuiu

alguns presentes aos Tapuios.

9 Na verdade, a festa era realizada ao redor da capela, pois não comportava todos os

participantes. Era uma pequena capela que servia para guardar as santas e outros objetos religiosos.

10 Tudo indica que estes missionários pertenciam à Congregação dos Claretianos que,

naquela época, era responsável pela assistência religiosa na região de São José do Tocantins.

11Era assim que os Tapuios chamavam as ofertas doadas pelos fiéis na festa da santa,

(20)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 312312312312312

12Segundo Bento Vieira, a imagem da santa foi levada para a igreja da Abadia, que

estava sob os cuidados do zelador da igreja chamado Pedro Pinheiro, sogro do ex-prefeito de Itapaci, Domingos Lacerda. Para outros Tapuios, a imagem foi levada para a igreja São Francisco ou Nossa Senhora do Rosário.

13Em 1998, acompanhamos um grupo de Tapuios que foram procurar essa imagem

nas igrejas da Cidade de Goiás. Diziam que a imagem se encontrava no museu da Igreja da Boa Morte. Lá eles encontraram uma imagem parecida, mas ficaram em dúvida se aquela era mesmo a santa de sua antiga capela.

14Naturalista austríaco que visitou o Carretão em 1819, encontrando uma população

de apenas 227 índios, incluindo as crianças.

15Referindo-se ao tempo dos conflitos agrários no Carretão.

16Em uma casa Tapuia, encontramos um oratório talhado em cedro, com figuras

pe-quenas, pintadas, de São José e de Santo Antonio, na face interior das portas. No interior do oratório, havia uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, em gesso; uma imagem de Santo Antonio, talhada em osso; e uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, em madeira, com muitas fissuras.

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 13. ed. Tradução de Ephraim F. Alves. Petrópolis: Vozes, 2007.

CLASTRES, Hélène. La Terre sans mal: le prophétisme tupi-guarani. Paris: Ed. Du Seuil, 1975.

DURKHEIM, Emile. O problema religioso e a dualidade da natureza humana.

Reli-gião e sociedade, v. 2, p. 1-27, 1997.

ELIADE, Mircea. Aspects du mythe. Paris: Gallimard, 1963. ERNY, Pierre. Ethnologie de l’éducation, Paris: L’Harmattan.

GODÓI, Emilia Pietrafesa de. Le travail de la mémoire. Dissertação (Mestrado) – Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 1987.

LAZARIN, R. H. de Almeida. O Aldeamento Carretão: duas histórias. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, Brasília, 1985.

MELIÁ, Bartomeu. A experiência religiosa Guarani. In: MARZAL, Manuel M. et al. O

rosto índio de Deus. São Paulo: Vozes. 1989.

OSSAMI DE MOURA, Marlene Castro. Les Tapuios du Carretão: ethnogenese d’un groupe amérindien de l’Etat de Goiás (Brésil). Tese (Doutorado) – Université Marc Bloch de Strasbourg, Strasbourg, 2000.

(21)

, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 293-313, jul./dez. 2008 313 313 313 313 313

POHL, Johann Emanuel. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, Edusp, 1976.

RADCLIFFE-BROWN, Alfred Reginald. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Vozes, 1973.

RAVAGNANI, Oswaldo Martins. Aldeamentos oficiais goianos. Araraquara, 1987. Mimeogr.

RIBEIRO, Berta Gleiser. O índio na História do Brasil. São Paulo: Global, 1983. TURNER, Victor Witter. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vo-zes, 1974.

ZALUAR, Alba. Milagre e castigo divino. Religião e Sociedade, v. 5, p. 161-187, 1980.

Abstract: the objective of this paper is to analyze the feast of Our

Lady of the Rosary which was celebrated in the 1930’s by an indigenous group called the Tapuio who lived in the Indian settlement of Carretão, which is situated in the townships of Rubiataba and Nova America, Goiás. What distinguished this feast of Our Lady of the Rosary from others that were a part of the religious customs of society of the region was that it was sponsored and organized by the Tapuio themselves. In an area with few priests, this festivity was an important religious and social event that united hundreds of the faithful who came from all over the region. Seeing it as a sign of power, a rancher of the region put a stop to it arbitrarily by demolishing the chapel of the saint and transferring the statue to the headquarters of his ranch. In order to save this powerful image from being further damaged by the rancher, the Tapuios rescued the statue, and took it to a church in the city of Goiás Velho (Old Goiás).

Key words: Feast of Our Lady of the Rosary, Indian settlement Carretão,

Tapuios, reciprocity, cosmogony

MARLENE CASTRO OSSAMI DE MOURA

Referências

Documentos relacionados

the human rights legislated at an international level in the Brazilian national legal system and in others. Furthermore, considering the damaging events already

E, quando se trata de saúde, a falta de informação, a informação incompleta e, em especial, a informação falsa (fake news) pode gerar danos irreparáveis. A informação é

A conceituação do que vem a ser Convenção Coletiva encontra-se no artigo 611 da CLT, (Brasil, 2017): que em síntese define ser a Convenção Coletiva de Trabalho um acordo de

There a case in Brazil, in an appeal judged by the 36ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (São Paulo’s Civil Tribunal, 36th Chamber), recognized

As análises serão aplicadas em chapas de aços de alta resistência (22MnB5) de 1 mm de espessura e não esperados são a realização de um mapeamento do processo

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

Buscando compreender a dinâmica de cada curso da UFJF, nossa pesquisa também tangenciou questões outras que o espaço desta dissertação nos impediu de problematizar, como é o

Nesse sentido, visando discutir essa proble- mática, o presente artigo analisou as concepções sobre SBC, Saúde Coletiva (SC) e SUS a partir dos agentes fundadores e precursores da