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PENSAMENTO GEOPOLÍTICO BRASILEIRO

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Academic year: 2021

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PENSAMENTO GEOPOLÍTICO BRASILEIRO: TRAJETÓRIA, GRANDES TEMAS E NOVOS DESAFIOS REFLEXÕES POR OCASIÃO DOS 70 ANOS DA ESCOLA SUPERIOR

DE GUERRA

Ronaldo Gomes Carmona* RESUMO

Por ocasião dos 70 anos de fundação da Escola Superior de Guerra (ESG), este trabalho propõe-se a analisar a trajetória do pensamento geopolítico brasileiro, seus grandes temas e autores, visando a uma reflexão sobre uma agenda de pesquisa, tendo em vista sua atualização. Para isso, o texto percorre as bases de formação do território, do Estado nacional e da nacionalidade e apresenta um conjunto de ideias que permitiu grandes transformações no Brasil ao longo do século XX. Nesse contexto, examina-se a trajetória da ESG no que diz respeito à geopolítica brasileira. Avalia os impasses relativos à renovação do projeto nacional, após sua crise e óbices, que se defrontam para o desenvolvimento do projeto de Brasil-potência. Por fim, o estudo apresenta reflexões sobre agenda de pesquisa para o próximo período.

Palavras-chave: Geopolítica. Brasil. Projeto Nacional. Escola Superior de Guerra. 70 anos.

BRAZILIAN GEOPOLITIC THOUGHT: TRAJECTORY, GREAT THEMES AND NEW CHALLENGES REFLECTIONS ON THE OCCASION OF THE 70TH ANNIVERSARY OF THE

BRAZILIAN WAR COLLEGE

ABSTRACT

On the occasion of the 70th anniversary of the founding of the Brazilian War College (ESG), the study of the trajectory of Brazilian geopolitical thought, its major themes and authors, aiming at a reflection on a research agenda with a view to its updating. For this, the text covers the bases of formation of the territory, the national state and nationality and presents a set of ideas that allowed great transformations in Brazil throughout the twentieth century. In this context, we examine the trajectory of ESG with respect to Brazilian geopolitics. It evaluates the impasses related to the renewal of the National Project after its crisis and obstacles that are facing the development of the project of Brazil - power. Finally, the study presents reflections on the research agenda for the next period.

Keywords: Geopolitics. Brazil. National Project. Brazilian War College. 70 years.

* Membro do Corpo Permanente e professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra (ESG). Coordenador do Grupo de Pesquisa Estudos de Guerra (GPEG) e do Grupo de Pesquisa sobre Geopolítica (GP-Geo), ambos no âmbito da ESG. É Mestre e Doutor pelo Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP). Foi chefe da Assessoria Especial de Planejamento (Asplan) do Ministério da Defesa. Contato: carmona@esg.br

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163 PENSAMIENTO GEOPOLÍTICO BRASILEÑO: TRAYECTORIA, GRANDES TEMAS Y NUEVOS DESAFÍOS: REFLEXIONES SOBRE LA OCASIÓN DE LOS 70 AÑOS DE LA

ESCUELA SUPERIOR DE GUERRA

RESUMEN

Con motivo del 70º aniversario de la fundación de la Escuela Superior de Guerra (ESG), el estudio propone analizar la trayectoria del pensamiento geopolítico brasileño, sus principales temas y autores, con el objetivo de reflexionar sobre una agenda de investigación para actualizarla. Para ello, el texto cubre las bases de formación del territorio, del Estado nacional y la nacionalidad y presenta un conjunto de ideas que permitieron grandes transformaciones en Brasil a lo largo del siglo XX. En este contexto, examinamos la trayectoria de ESG con respecto a la geopolítica brasileña. Evalúa los impases relacionados con la renovación del Proyecto Nacional después de su crisis y los obstáculos que enfrenta el desarrollo del proyecto de Brasil-potencia. Finalmente, el estudio presenta reflexiones sobre la agenda de investigación para el próximo período.

Palabras clave: Geopolítica. Brasil. Proyecto Nacional. Escuela Superior de Guerra. 70 años

1 INTRODUÇÃO

“Nesta casa estuda-se o destino do Brasil”. A frase gravada em letras douradas no balcão da entrada de um dos principais prédios da Escola Superior de Guerra (ESG), denominado Juarez Távora um dos locais onde se desenvolvem as atividades de ensino e pesquisa no Forte de São João, na Urca, sintetiza a missão desta Instituição criada há sete décadas, num momento de grandes transformações históricas – o final da Segunda Grande Guerra e o início da Guerra Fria. A ideia, sintetizada na frase, segue válida na época contemporânea, novamente marcada por uma grande disrupção no sistema internacional e nas forças produtivas, reafirmando a atualidade da missão, sobretudo tendo em vista que o destino do Brasil segue defrontando-se com obstáculos consideráveis.

O presente artigo propõe-se a revisitar o desenvolvimento do pensamento geopolítico brasileiro considerando sua relação direta e inequívoca com o destino do Brasil em se tornar uma potência entre as nações; possuindo atributos de potência, contudo, esse destino brasileiro só se realizará se o país tiver uma política (um projeto) voltada a esse fim, removendo óbices e antagonismo que travam o potencial geral da Nação.

Rudolf Kjéllen (1917), professor sueco, que originalmente cunhou o conceito de geopolítica, na virada do século XIX para o XX, definiu os atributos vitais de uma nação que se dispõe a tornar-se potência: espaço, liberdade de movimento e

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coesão interna. Os três temas comparecem com força no pensamento geopolítico brasileiro e permanecem essencialmente atuais.

Por espaço, define-se a dimensão geográfica, o mais estável dos fatores de Poder Nacional. É o Brasil, o 5º maior território do mundo, com 8.515 quilômetros quadrados, atrás de Rússia, Canadá, Estados Unidos e China. A busca de liberdade de movimento refere-se ao grau de autonomia permitida ou almejada, tendo em vista o tamanho da população, disponibilidade de recursos naturais, capacidade industrial, científica e tecnológica, entre outros atributos, que permitam condição de autarquia, no linguajar de Kjéllen (1917). Por fim, o desafio da coesão interna. Everardo Backheuser (1926), o primeiro a difundir as teses de Kjéllen no Brasil, já na década de 1920, remeteu, na epígrafe de sua obra, a Alberto Torres: “o problema da Unidade Nacional é a questão culminante de nosso futuro”.

Os três temas propostos por Kjéllen (1917) são recorrentes na trajetória do pensamento geopolítico desenvolvido no Brasil, como veremos. Assim, a questão do destino do Brasil, tendo em vista suas características nacionais, está indissociada do projeto geopolítico de tornar o país uma potência; o destino, como dissemos, precisa ser construído. Dada as características do sistema internacional, em geral, as nações buscam maximizar seus atributos de poder nacional, esse destino brasílico só se realizará por meio do desenvolvimento de uma política de poder realizada em função das características geográficas.

2 BREVES NOTAS SOBRE A FORMAÇÃO DA NAÇÃO (TERRITÓRIO), DA NACIONALIDADE E DO ESTADO BRASILEIRO

As origens da formação nacional brasileira resultam de uma epopeia civilizatória empreendida pelo português em um momento-chave da história humana, a da transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. Primeiro Estado nacional moderno formado no contexto europeu, Portugal tem em sua gênese a busca por expandir-se para o além-mar, antes a nada por um obstáculo geopolítico: o bloqueio, por povos hostis, do acesso por terra às riquezas do Oriente. Desde suas origens, como Estado, busca contornar, via marítima, à outra extremidade da Eurásia, onde se localizava, no mundo de então, produtos que permitiriam maior prosperidade material da Nação. Também o movia um ideal: a expansão da fé católica pelo mundo.

Iniciam, assim, os portugueses um feito histórico – comparável hodiernamente à conquista do Espaço, dada as dificuldades técnicas-tecnológicas à época para empreender as grandes navegações em escala planetária. Dois reinados visionários, de grandes estadistas – primeiroo de João II, o Príncipe Perfeito, entre 1481 e 1495, e, em seguida, o de Dom Manuel I, o Venturoso, que governou Portugal entre 1495 e 1521 –, permitiram ao pequeno reino estruturar as bases de um verdadeiro Império de dimensões mundiais espalhado por todos os continentes – que, na era atual,

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precisa ser valorizado pela geopolítica brasileira no sentido de que o idioma e o passado comum permitem reconstruir pontes com potencial relevância estratégica em escala mundial.

O inicio da colonização portuguesa da parte que lhe tocou pelo Tratado de Tordesilhas na América do Sul – uma diminuta franja territorial correspondente à sua maior área ao atual Nordeste brasileiro –, apresentou inicialmente o desafio de consolidar a ocupação do território e buscar sua expansão. A divisão do mundo, em duas esferas pelo Tratado de Tordesilhas, imporia sua contestação desde o período inicial da colonização. Sobretudo a conquista da Amazônia é capítulo espacial dessa saga, seja por meio da expedição realizada a partir do grande Rio pelas canoas do Capitão Pedro Teixeira, seja pelo movimento territorial realizado pelos Bandeirantes paulistas em sua pioneira marcha ao Oeste. O Tratado de Madrid, de 1750, negociado pelo santista Alexandre de Gusmão, consolida o vasto território, movendo as linhas originais.

Nos três séculos de colonização portuguesa, os enormes esforços da Metrópole, por um lado, e o crescente sentimento nativista por outro, possibilitaram resistir bravamente às invasões estrangeiras que buscavam capturar as partes mais dinâmicas do território, como é o caso do Nordeste brasileiro e sua produção de açúcar pela Holanda, então a principal potência econômica e militar do planeta, no século XVII. Nessa contenda marcada pela enorme assimetria de meios, forja-se o primeiro mito brasílico nas batalhas dos Guararapes, marco inicial de constituição do Exército (Luso) Brasileiro.

A estrutura colonial do Estado português na América, que compreendeu durante longo período duas estruturas de governo – O “Brasil” e o Maranhão –, teve um salto de qualidade com o feito inédito representando pela transferência da Família Real Portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, produto das guerras napoleônicas na Europa. Pela primeira vez, no ambiente europeu, uma Casa Real transplanta-se à Colônia. Demonstração da imensa potencialidade brasílica, desde o século XVII, há debates no âmbito dos estrategistas em Lisboa – entre eles o Padre Antonio Veira, o Marques de Pombal e, depois, o Conde de Linhares –, sobre a possibilidade de transferir a sede do Reino para o Brasil, o que, finalmente, se efetiva no início do século XIX. Com isso, não apenas instituições e uma burocracia se estabelecem no Rio de Janeiro – daquele que, como dissemos, foi o primeiro Estado moderno conformado na Europa -, como surgem diversas instituições militares, científica e de Estado.

O transplante do Estado português ao Rio de Janeiro, e o duplo movimento que caracterizou a independência nacional, combinando ao mesmo tempo transição pacífica e guerras pela Independência – como as da Bahia e a do Piauí-Maranhão (na Batalha do Jenipapo) – conferiram singularidade ao processo de emancipação do Brasil como país independente, sobretudo comparativamente às antigas colônias espanholas. Fundamentalmente, permitiram condições para que o

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Império do Brasil, ao longo de todo o século XIX, mantivesse, com firmeza, intacto o território legado do português. A majestosa peça territorial, que conformou a 5ª nação do mundo em extensão, se consolidaria com a definição das fronteiras físicas no início do século XX, conduzida pelo Barão do Rio Branco.

Conformado o território e o Estado, prosseguia o desafio da formação da jovem nacionalidade e, assim, da identidade nacional. Ao colonizador português, já ele miscigenado, misturou-se o indígena e o escravo africano. Contudo, o processo de miscigenação e amalgamento das três vertentes raciais que deram origem ao povo brasileiro foram incompreendidos ao longo do século XIX, dada a predominância do determinismo geográfico e climático, que “atestava” a inviabilidade do Brasil.

O patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, foi um dos primeiros a enxergar no processo de miscigenação e amalgamento de raças uma virtude para a construção nacional. Mas, contraditado pela visão hegemônica à época, uma espécie de “sociologia do desgosto”, que duvidava da viabilidade da nacionalidade, e, a despeito de derrotada no contexto das ideias, permitiram a Revolução de 1930, que até hoje segue viva contestando a identidade nacional, como veremos adiante.

Ao referirmo-nos a José Bonifácio, não podemos deixar de atribuir a este grande homem uma atinada visão geopolítica – antes do próprio aparecimento da geopolítica como área do conhecimento, o que só ocorreria na virada do século XIX para o XX. A defesa da miscigenação, a ideia de industrialização nacional, a proposta de transferência da capital para o interior do país, dentre outras, marca a visão estratégica alargada de José Bonifácio, tendo em vista estar à frente do tempo histórico em que nos governou. Suas proposições conformam os traços de um primeiro Projeto Nacional proposto ao país.

Ao final do século XIX, as bases constitutivas do Brasil já estavam delineadas, quanto ao território, ao Estado e a nacionalidade. Nas palavras de Moniz Bandeira:

[...] enquanto a conformação definitiva e centralizada de quase todos os demais países da América do Sul, como a República Argentina, só ocorreria durante a segunda metade do século XIX, o Império do Brasil, àquela época, já estava amadurecido como Estado, possuindo um aparelho burocrático-militar capaz de defender e mesmo impor, tanto interna como externamente, a vontade social de suas classes dominantes. Este desenvolvimento político devia ao fato que o Império do Brasil não era um simples sucessor do Estado português. Na verdade, era o próprio Estado português, que se desdobrara numa outra base geográfica [...]. (1998, p. 88).

Assim, estavam dadas as condições para que o pensamento nacional fecundasse e descortinasse novos caminhos para a grandeza nacional.

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3 A BASE DE IDEIAS QUE ECLODIRAM A REVOLUÇÃO DE 1930 E A FORMAÇÃO DE UM CONSENSO PELO DESENVOLVIMENTO

O Brasil esteve, durante a maior parte do século XX, engajado num projeto de transformação nacional que, ao seu término, apresentou resultados expressivos: deixamos de ser uma grande fazenda exportadora de café para transformar-se, em meados dos anos 1980, numa das grandes economias industriais do mundo. A primeira questão que cabe aqui é reconstituir a trajetória e a base de ideias que permitiram o consenso desenvolvimentista1.

A ideia de modernização das Forças Armadas começou a ser gestada ainda na segunda metade do século XIX. Um primeiro ensaio ocorrera na reforma do Exército em 1850, que instituiu critérios meritocráticos para a promoção a oficial. Contudo, a estruturação de Forças Armadas modernas ainda teria que esperar o alvorecer do século XX.

Em um primeiro momento, nas primeiras quatro décadas do Império, o Exército estava fundamentalmente voltado à manutenção da integridade territorial brasileira, ameaçada por inúmeras revoltas oligárquicas ou populares país afora. A tarefa de pacificação nacional, que acabou por alcunhar o Duque de Caxias (“O Pacificador”), revelava-se central nas primeiras décadas do Império.

Além dos problemas internos, outra fonte de tensão vinha de forças que buscavam reconstituir o antigo Vice-Reinado castelhano do Rio da Prata, representado pelo expansionismo argentino de Juan Manuel Rosas, e depois, do caráter ainda mais agressivo do governo paraguaio, a partir da ascensão de Solano Lopez em 1862. Com isso é deflagrada a Guerra do Paraguai (1864-1870), decorrente da ameaça expansionista de Assunção, que, pela primeira vez desde a Independência, punha em risco, por iniciativa exógena, a integridade territorial brasileira. Manter o equilíbrio geopolítico na região do Prata mostrava-se essencial para o Brasil.

A guerra forçou uma mobilização nacional e incremento dos meios e recursos para o Exército. Vitoriosos, o Exército e a Marinha elevaram seu prestígio enquanto instituições nacionais. Contudo, dado o desinteresse do Império em seus estertores em possuir Forças Armadas robustas, levou, após a Guerra, como observa Raimundo Faoro, a desmobilização da Força, que diminui seus efetivos de cerca de 100 mil para 19 mil soldados em 1871.

O prestigio do Exército, por um lado, e a influência de ideias modernizadoras por outro, colocaram grande parte da oficialidade em oposição à decadente ordem

1 Quando nos referimos a um consenso pelo desenvolvimento, nos referimos a uma maioria na sociedade brasileira coesionada em torno da necessidade de aceleração do progresso nacional. Obviamente não desconsideramos a existência de grandes embates com posições anti-industrilização. Neste embate de ideias, por exemplo, marcou época a chamada controvérsia Simonsen – Gudin, entre o industrial paulista Roberto Simonsen e o economista carioca Eugenio Gudin sobre a conveniência de um projeto industrialista.

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imperial. O mundo vivia então em pleno curso da Segunda Revolução Industrial, que resultara em importantes impactos no pensamento das elites militares. Em especial, os anos seguintes seriam marcados pela influência do positivismo, filosofia política que, em meio a Segunda Revolução Industrial, proclamava a crença no progresso, e no entendimento de regeneração da humanidade pela ciência. O positivismo, nas condições brasileiras, era efetivamente uma ideologia do progresso nacional, apologista da industrialização nacional com base em um governo forte.

Revelou-se crescentemente uma incompatibilidade entre a concepção meritocrática da jovem oficialidade republicana e a estrutura arcaica, fundada em privilégios de grandes latifundiários do Império. Viam os oficiais nas elites bacharelescas do Império as causas do atraso do país.

O descontentamento com a estrutura vigente também aparecia pela manutenção do sistema escravista, levando muitos oficiais a envolvimento na campanha abolicionista. Fato marcante aconteceu em 1887, com a recusa por Deodoro em cumprir a ordem do governo relativa a perseguir escravos fugitivos. Nas palavras do então presidente do Clube Militar, o Exército não se disporia a ser capitão de mato.

A derrubada da Monarquia em 1889 e a instauração da República tiveram como substrato de ideias a modernização do país. Essa plataforma atinge seu auge com esse primeiro intento de implementação de um projeto nacional da Escola Superior de Guerra (ESG) durante o breve e conturbado governo do Marechal Floriano Peixoto (1891-1894), surgido após a deposição de Deodoro. Ao desenvolver um governo ao mesmo tempo popular e nacionalista, Floriano despertou a reação das elites agrárias, “bacharelescas” e liberais.

Destaca-se no florianismo, o projeto de industrialização nacional, defendido com vigor pela figura de Serzedelo Correa, militar nacionalista e ministro da Fazenda. No seu livro Problemas econômicos do Brasil (1903), Serzedelo interage com o pensamento do alemão Friedrich List – teórico do protecionismo econômico e da industrialização –, para defender o projeto de independência econômica.

Ressalte-se,ainda, com Floriano, a luta contra carestia urbana e a nomeação de uma comissão para efetivar a mudança de capital, cujo trabalho – conhecido como quadrilátero de Cruls – foi a base, no fundamental, para a posterior construção de Brasília. Consta também, com força no projeto florianista, o desenvolvimento de vias de comunicação no território nacional e de portos e ferrovias.

O Governo Floriano Peixoto, contudo, em meio a imensas agitações políticas e federativas, não consegue ir além, no fundamental, em seu programa jacobino; acaba por entregar o governo a Prudente de Moraes, cafeicultor paulista, eleito presidente, que iniciaria o período conhecido como República Velha.

Podemos dizer que o Governo Floriano foi o primeiro intento de impulsionar o desenvolvimento nacional, a partir de reflexões estratégicas com nítido sentido geopolítico. Contudo, as condições ainda não se revelariam maduras para sua efetivação.

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O problema da modernização do país em geral, e das Forças Armadas em particular, permanece sobre a mesa nas décadas seguintes. O início do século XX, por exemplo, no tocante a segunda questão, colocou em pauta por parte do próprio Barão do Rio Branco a necessidade de conjugar os seus esforços diplomáticos em torno da definição das fronteiras, maior capacidade militar.

O fechamento da Escola Militar da Praia Vermelha em 1904, expôs as graves deficiências do ensino militar, e de uma Força Terrestre marcada pela polarização entre “tarimbeiros” e “bacharéis fardados”. A cooperação estrangeira, primeiro com a Alemanha, depois com a França – e mais tarde, na Segunda Guerra, com os Estados Unidos –, ajudaria a impulsionar a desejada modernização das Forças Armadas.

Movimento de grande importância foi o envio de três turmas de oficiais à Alemanha, para o curso de Estado Maior, nos anos de 1906, 1908 e 1910. Ressalte-se que, nesRessalte-se momento, era o Exército alemão o mais moderno do mundo, em franca preparação para a Primeira Grande Guerra.

Nestes cursos, por exemplo, a jovem oficialidade entra em contato primeiramente com as concepções de Clausewitz (2010). Grande impacto causará a ideia-força do renomado estrategista prussiano quanto à centralidade da política na arte da guerra. Em outras palavras, podemos encontrar em Clausewitz (2010) a origem da ideia que compete à Nação fixar os objetivos nacionais, por meio da política, cabendo ao Exército fazer a guerra para realizá-los (estratégia).

O retorno dos jovens oficiais leva à reabertura da Escola Militar em 1911, agora no subúrbio carioca de Realengo – buscando um ensino mais propriamente militar, e menos “bacharelesco” –, e à fundação da Revista A Defesa Nacional, como meio de difusão das teses modernizadoras. Os oficiais são conhecidos como jovens turcos, em alusão ao papel modernizador exercido na Turquia pelo Exército de Kemal Atatürk. O Editorial do primeiro número da Revista, publicada em outubro de 1913, sintetiza uma autodefinição da missão desse movimento modernizador da tropa, o qual, pela sua importância, merece aqui uma transcrição dos seus principais trechos:

[...] o escopo dos seus fundadores (d’A Defesa Nacional) não é outro se não colaborar, na medida de suas forças, para o soerguimento das nossas instituições militares, sobre as quais repousa a defesa do vasto patrimônio territorial que nossos antepassados nos legaram e da enorme soma de interesses que sobre ele se acumulam [...] O caso do nosso país apresenta, além disso, algumas características particulares. Se nos grandes povos, inteiramente constituídos, a missão do Exército não sai geralmente do quadro de suas funções puramente militares, nas nacionalidades nascentes, como a nossa, em que os elementos mais variados se fundem apressadamente para a formação de

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um povo, o Exército – única força verdadeiramente organizada no seio de uma tumultuosa massa efervescente – vai às vezes um pouco além de seus deveres profissionais para tornar-se em dados momentos um fator decisivo de transformação política ou de estabilização social [...] É debalde (em vão) que os espíritos liberais, numa justificada ânsia de futurismo, se insurgem contra as intervenções militares na evolução social dos povos: é um fato histórico que as sociedades nascentes têm necessidade dos elementos militares para assistirem a sua formação e desenvolvimento, e que só num grau elevado de civilização elas conseguem emancipar-se da tutela das forças, que assim se recolhem e se limitam à sua verdadeira função. Sem desejar, pois, de forma alguma, a incursão injustificada dos elementos militares nos negócios internos do país, o Exército precisa, entretanto, estar aparelhado para a sua função conservadora e estabilizante dos elementos sociais em marcha – e preparado para corrigir as perturbações internas, tão comum na vida tumultuada das sociedades que se formam. No que diz respeito ao exterior, o problema que nosso Exército tem a resolver não é menos complexo. Vasto país fértil, opulento e formoso, com 1.200 léguas de costas, abertas às incursões do lado do mar; com extensas linhas fronteiriças terrestres do outro lado das quais se agitam e progridem muitos povos também em formação – não seria absurdo admitir a hipótese de que o Brasil viesse um dia a encontrar um sério obstáculo às suas naturais aspirações de um desenvolvimento integral. E nesse dia, que pode estar próximo ou remoto, e sem saber de que lado virá o perigo, que pode vir do Norte como do Sul, do Oriente como do Ocidente – o Brasil não poderá verdadeiramente contar senão com as suas próprias forças, isto é, com a sua organização militar. Mas a questão tem ainda um terceiro aspecto: o Exército, num país como o Brasil, não é somente o primeiro fator de transformação político-social, nem o principal elemento de defesa exterior: ele tem igualmente uma função educativa e organizadora a exercer na massa geral de cidadãos. Um bom Exército é uma escola de disciplina hierárquica, que prepara para a disciplina social; é,

ao mesmo tempo, uma escola de trabalho, de sacrifício e de patriotismo. Um Exército bem organizado é uma das criações mais perfeitas do espírito humano, porque nele se exige e se obtém o abandono dos mesquinhos interesses individuais em nome dos grandes interesses coletivos; nele se exige e se obtém que a entidade homem, de ordinário tão pessoal e tão egoísta, se transfigure na abstração dever; nele se exige e se obtém o sacrifício do primeiro e do maior de todos os bens que é a vida, em nome do princípio superior da pátria [...] Há na história

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171 de nossa pátria a memória de algumas tentativas, que temos feito, no sentido de organizar um Exército regular – tentativas que infelizmente até hoje têm encontrado apenas um sucesso parcial ou relativo [...] É hoje um convicção generalizada tanto no mundo militar como no mundo civil, que o Exército atual não corresponde absolutamente às nossas necessidade, e que o país está completamente indefeso [...]. (A DEFESA NACIONAL, 1913, editorial).

A primeira importância desse Editorial é que ele nos permite questionar certa interpretação corrente que propõe haver um divisor de águas entre a influência positivista e a ida dos jovens oficiais à Alemanha – talvez na ânsia, nesta falsa narrativa, de colar o positivismo ao “bacharelismo fardado”. Na verdade, o que interessa reter dessa influência na base de ideias, que acabou por eclodir o ciclo iniciado em 1930, é que pela mobilização de recursos e do planejamento estratégico, existe a possibilidade do homem, por meio da ciência e da técnica, superar óbices e antagonismos. Nesse sentido, a influência positivista absolutamente não foi superada com os jovens turcos, ao contrário, legou um dos vetores de pensamento que propiciou a Revolução de 1930 e, depois, a criação da Escola Superior de Guerra (ESG).

Cabe destacar diretamente do Editorial de surgimento d’A Defesa Nacional, a ideia-força que indica que as Forças Armadas, em um país com as características do Brasil – sociedade em formação –, a missão não se resume à função precípua da expressão militar do Poder Nacional, isto é, à defesa da soberania e da integridade territorial. No caso de uma sociedade em construção, também cumpre tarefa relativa à modernização do país, ao seu desenvolvimento. Trata-se do que se tem chamado de “dupla missão” das Forças Armadas no Brasil, dada as peculiaridades nacionais e ao fato de serem instituições nacionais permanentes de Estado. A mesma questão aparecerá com o comandante militar da Revolução de 1930, General Góes Monteiro – estabelecendo o denominando por alguns de Doutrina Góes Monteiro –-, e no “manifesto” de criação da ESG – seus princípios fundamentais –, aos quais adiante voltaremos.

Deve-se ressaltar ainda no Editorial, a necessidade de modernização das Forças Armadas em função de ameaças externas, que podem vir, diz o texto, de variadas latitudes e, portanto, o Brasil precisa constituir capacidade militar dissuasória – “[...] não seria absurdo admitir a hipótese de que o Brasil viesse um dia a encontrar um sério obstáculo às suas naturais aspirações de um desenvolvimento integral” –, sendo esta ideia quase reproduzida literalmente no texto da Estratégia Nacional de Defesa (END) de 2008 e documentos subsequentes.

O desenvolvimento da Primeira Grande Guerra teria impacto considerável no pensamento geopolítico quanto às limitações de levar adiante o projeto de modernização do Brasil sem a existência de uma base industrial forte – inclusive

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para atender a uma relativa independência de material bélico. Assim, temas como a importância da construção de um parque siderúrgico e de uma indústria petrolífera começaram a surgir como problema fundamental para a constituição da expressão econômica do Poder Nacional, isto é, de sua base material. Dessa maneira, a tarefa de modernização do Exército punha no centro as tarefas de desenvolvimento nacional, isto é, de estruturar uma base industrial que permitisse o fornecimento de, ao menos, parte do material e da integração nacional, pela construção de rodovias e ferrovias para a mobilização nacional.

Se a Primeira Guerra interrompeu a cooperação com os alemães, o seu término marcou a chegada da chamada Missão Militar Francesa em 1919 – há exatos cem anos – liderada pelo General Gamelin, que introduziu importantes modernizações na Força Terrestre – talvez a estruturação do curso de Estado-Maior, voltado para a coordenação, o planejamento e a direção geral da atividade militar, seja o maior deles, sendo inclusive um dos dois cursos que deram origem à Escola Superior de Guerra (ESG) (o outro foi o Curso Superior de Guerra - CSG, hoje o Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia – CAEPE).

Os anos 1920 também registraram o desembarque em terras brasílicas das recém – formuladas teorias geopolíticas. O professor Everardo Backheuser, já em 1926, publica A estrutura política do Brasil. Notas prévias, onde pioneiramente discute as ideias de Kjéllen (1917). Backheuser chega a colaborar com a lendária Revista do Instituto de Munique, Zeitschrift für Geopolitik, dirigida por Haushofer.

O ambiente geral do país, na década de 1920, foi marcado por importantes agitações políticas e sociais, a principal delas, as revoltas tenentistas de 1922 e 1924. A própria ação tenentista, inicialmente com uma pauta ligada a moralização da política – tendo em vista a latente putrefação da República Velha oligárquica –, estava ligada a intensas transformações estruturais no país desde a tentativa florianista no início da última década do século XIX. O fim do escravismo, a migração às cidades e a criação de uma classe média urbana criaram mercado interno que possibilitou uma “pré-industrialização” no que diz respeito aos bens de consumo, no qual o país era autossuficiente. A Semana de Arte Moderna em 1922 e a formação do Partido Comunista do Brasil – fruto de um operariado urbano já importante – também são expressões de uma década efervescente.

A eclosão da Revolução de 1930, portanto, é resultante e consequência de um movimento mais amplo de tomada de consciência, pela Nação, da necessidade de acelerar sua transformação. Após sua primeira e limitada expressão institucional – o florianismo –, a ascensão do Presidente Getúlio Vargas marca o início efetivo do que aqui denominamos de consenso pelo desenvolvimento.

Vale visitar o pensamento geopolítico e estratégico da Revolução de 1930, sintetizado por dois personagens militares: o citado General Góes Monteiro e o então Coronel Mário Travassos – os quais, combinados, formam uma espécie de Doutrina Góes-Travassos.

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Góes Monteiro em sua obra A Revolução de 1930 e a finalidade política do Exército (esboço histórico) – numa evolução da doutrina já esboçada no Editorial d’A Defesa Nacional – afirma que:

[...] sendo o Exército um instrumento essencialmente político, a consciência coletiva deve-se criar no sentido de fazer a política do Exército e não a política no Exército. E esta deve repelir, a coices d’armas, todo elemento que, sob quaisquer disfarces, queira induzi-lo a tomar outra direção, do que, como tem acontecido, só poderá resultar a sua divisão, fraqueza e impotência. A política do Exército é a preparação para a guerra e essa preparação interessa e envolve todas as manifestações e atividades da vida nacional, no campo material – no que se refere à economia, à produção e aos recursos de toda a natureza – e no campo moral, sobretudo no que concerne à educação do povo e à formação de uma mentalidade que sobreponha a tudo, os interesses da pátria, suprimindo, quando possível, o individualismo ou qualquer espécie de particularismo. (s/d, p. 163).

Em outro capítulo, denominado As únicas instituições nacionais, Góes Monteiro argumenta que

Não havendo a opinião pública do país se organizado em forças nacionais, restam as forças particulares, que não poderão mais dispor e concentrar em suas mãos os interesses da nacionalidade. Ficam só o Exército e a Marinha como instituições nacionais e únicas forças com esse caráter, e só à sombra delas é que, segunda a nossa capacidade de organização, poderão organizar-se as demais forças da nacionalidade. O Exército e a Marinha são, por conseguinte, os responsáveis máximos pela segurança interna e externa da Nação, precisando para esse fim serem evidentemente tão fortes quanto possível, de modo que nenhum outro elemento antagônico à sua finalidade possa ameaçar os fundamentos da Pátria. Nessas condições, as forças militares nacionais têm que ser, naturalmente, forças construtoras, apoiando governos fortes, capazes de movimentar e dar nova estrutura à existência nacional [...]. (s/d, p. 156-157).

Os trechos acima consubstanciam as bases do que, entre os analistas da questão militar, convencionou chamar-se de Doutrina da Segurança Nacional, e, como explicarão os primeiros manuais da ESG (1974 e 1975), ampliarão a missão da Forças Armadas, como dissemos, em relação a sua função precípua.

Após um chamado à coesão do Exército, com uma defesa da despolitização dos quartéis – fato que só seria efetivamente logrado à esquerda e à direita, após

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os episódios de 1935 e 19382 –, Góes Monteiro retoma a premissa clausewitziana

relativa àorganização da guerra, não como tarefa apenas bélica, mas que envolve todas as dimensões do Poder Nacional – ideia que, anos mais tarde, seria o primeiro item do “manifesto” da ESG em 1949.

O então Coronel Mário Travassos é o segundo grande nome desta fase da geopolítica brasileira. Escreve duas obras fundamentais. A primeira é Aspectos Geográficos Sul-americanos, publicada em 1931 e, a partir de sua segunda edição, rebatizada como Projeção Continental do Brasil. A obra tem grande repercussão. Pandiá Calógeras, um civil ex-ministro da Guerra, escreve no prefácio aos Aspectos Geográficos: “com a maior insistência recomendo seu estudo aos nossos homens de governo” (1938, p. 27).

O núcleo da importância da contribuição geopolítica de Travassos reside em propor uma manobra neutralizadora da vantagem geográfica de Buenos Aires na multissecular disputa – que vem da rivalidade colonial luso-espanhola –, pela hegemonia sul-americana. Observando que a massa territorial sul-americana é marcada por dois duplos antagonismos – um horizontal, entre o Atlântico e o Pacífico, e outro vertical, entre as bacias do Rio Amazonas e do Rio da Prata –, Travassos propõe aquilo que depois ficaria conhecido, quando adotado pelo governo Getúlio Vargas, como Marcha ao Oeste, visando o heartland sul-americano – fruto da adaptação, por Travassos, da tese mackinderiana –, expresso no triangulo das cidades bolivianas de Cochabamba, Sucre e Santa Cruz de La Sierra.

A segunda obra de Mario Travassos é Introdução à Geografia das Comunicações Brasileiras, de 1942. Nela, a partir da reiteração, já aparecida em Aspectos Geográficos, do tipo misto brasileiro, isto é, do seu caráter de nação anfíbia, defende a integração nacional por meio de vias de comunicação como estradas, portos e ferrovias.

O livro é prefaciado por Gilberto Freyre, já consagrado pela sua excepcional contribuição para a formulação de uma interpretação sobre a identidade nacional, adotada pela Revolução de 1930, com sua obra Casa Grande e Senzala, de 1933. No prefácio ao segundo livro de Travassos, Freyre defende, em concordância com Juarez Távora – líder tenentista de 1922 e, posteriormente, Comandante da ESG –, que “ao Exército toca, no Brasil, a parte mais importante da tarefa enorme de auto-colonização que nos falta realizar”. Em seguida, continua Freyre:

Ao Exército cabe, entre nós, concorrer para a administração de áreas particularmente necessitadas de governos de ação mais livremente construtora na fase, que ainda atravessamos, de incorporação, integração ou reintegração dessas áreas ao sistema brasileiro de cultura. Sistema de características apenas esboçadas e que representa a vitória esquemática, 2 Isto é, a chamada Intentona Comunista de 1938 e o Levante ou Intentona Integralista de 1938.

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175 mas já esplêndida da primeira civilização moderna a vingar nos trópicos. (FREYRE, 1942, Prefácio).

Combatendo as teses deterministas-racialistas, Freyre contesta estrangeiros “por tanto tempo descrentes da capacidade dos povos mestiços (...) para se elevarem, em terras tropicais, a realizações superiores” e critica uma interpretação de uma certa sociologia brasileira pré-1930 que não quer “acreditar nunca na realidade de um tipo de civilização com tantos traços originais e superiores como a luso-brasileira” (1942, p. 12). A importância do prefácio de Freyre, numa obra clássica da geopolítica brasileira, está em desmontar o determinismo geográfico quanto ao clima e ao homem, que proclamava a superioridade dos povos das regiões meridionais em relação aos trópicos, e chegando a influenciar, por exemplo, o mestre Backheuser em sua assimilação – equivocada dada as características brasileiras – das teses ratzelianas.

4 A CRIAÇÃO DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG)

Grande importância terá, para o desenvolvimento do pensamento geopolítico brasileiro, em seguida, a participação do Brasil na Segunda Grande Guerra, com a constituição da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Permeada por feitos heroicos, revelando a grandeza do homem brasileiro, a FEB explicitará, ao final da contenda, a necessidade do Brasil desenvolver um pensamento próprio sobre o problema da guerra em franca evolução.

Cabe revisitar as ideias neste sentido do Marechal Cordeiro de Farias (1981), Comandante da Artilharia Divisionária da FEB na Itália, antes membro da Coluna Prestes e fundador e Comandante, nos seus primeiros três anos, da Escola Superior de Guerra (ESG). Em entrevista publicada em 1981, ano de seu falecimento, Cordeiro de Farias argumenta que as lições da Segunda Guerra para a estratégia brasileira o levaram a substituir a ideia de Defesa Nacional pelo conceito de Segurança Nacional. Afinal, diz ele, o conflito mundial marcou mudança na natureza do conflito, que passou a ser uma guerra total, que não se referia a um embate entre duas Forças Armadas, mas ao envolvimento da população civil, bombardeio de sistemas industriais e sistemas de comunicações, etc. Em suas próprias palavras:

Na Escola Superior de Guerra tratamos de uma nova concepção de segurança interna, que deriva da antiga concepção de Defesa Nacional. A evolução da noção de “defesa” para a noção de “segurança” decorreu, na verdade, do arremate da Segunda Guerra. Foi aí que se começou a perceber que um país em guerra estava globalmente sujeito aos seus efeitos nefastos. E foi por isso que, em 1949, criamos a ESG [...] Criar lideranças civis e militares para enfrentar a eventualidade de um novo

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estilo de guerra não mais circunscrita à frente de batalha e ao palco de lutas, mas transformada em fato total, que afeta a sociedade por inteiro e toda a estrutura de uma nação. Dentro dessa orientação, os civis das mais diversas profissões precisam estar prontos para exercer papeis talvez até mais decisivos que o dos militares na guerra (grifo nosso). (FARIAS, 1981).

Como se vê, a ESG surge, portanto, com a missão de desenvolver uma interpretação brasileira nas mudanças no fenômeno da guerra. Nas palavras de Cordeiro de Farias, “a ESG, como um centro de estudos, não poderia deixar de se ligar profundamente aos alicerces nacionais”.

A Escola, efetivamente, ao longo de sua trajetória, representou um ponto de inflexão para o pensamento geopolítico brasileiro. Teses que haviam sido esboçadas entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, algumas das quais apresentamos anteriormente, seriam agora desenvolvidas na Instituição dentro de um novo método, de trabalho coletivo, que viria a consolidar uma doutrina com pensamento genuinamente nacional.

Criada com cooperação norte-americana inspirada em instituição similar existente naquele país, a ESG, contudo, nunca se caracterizou como canal de difusão de pensamento estrangeiro. É falsa certa interpretação corrente que situa a Escola como americanófila, produto de uma vinculação estratégica do Brasil aos Estados Unidos no início da Guerra Fria – embora, evidentemente, o país tenha sofrido, como veremos adiante, as injunções de um fenômeno mundial: a fratura, sobretudo nas sociedades ocidentais, entre posições ideológicas antagônicas que dividiram o mundo ao longo da segunda metade do século XX.

A análise do “manifesto” de criação da ESG – os Princípios Fundamentais da Escola Superior de Guerra – é chave para compreender sua missão histórica e mesmo contemporânea, tendo em vista sua flagrante atualidade. Redigido, em 1949, por Idálio Sardenberg, à época Tenente-Coronel lotado no Estado Maior das Forças Armadas (EMFA), então sob a direção do General César Obino, sintetizou em sete princípios os desafios da Escola.

O Princípio número 01 define que “a Segurança Nacional é uma função mais do potencial geral da Nação do que do seu potencial militar”. Trata-se, como vimos acima, da compreensão que o Poder Nacional expressa as diversas dimensões de sua existência inclusive a militar. Com isso, cabe ao país o desafio de desenvolver o conjunto dos atributos de Poder Nacional, incluindo sua base material (expressões econômica e científica e tecnológica) e suas dimensões política e psicossocial em combinação com a dimensão militar.

Deste primeiro princípio decorre um corolário que diz que “os órgãos responsáveis pela Segurança Nacional têm o dever de zelar pelo desenvolvimento do potencial geral da Nação”. Aqui, mais uma vez, explicita-se a missão das Forças

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Armadas no que se refere ao desenvolvimento nacional, inaugurando o binômio “Segurança e Desenvolvimento” como vetor fundamental do Projeto Nacional, expressos inclusive nos documentos de Defesa contemporâneos.

O segundo princípio da Escola entende que “o Brasil possui requisitos básicos (área, população, recursos) indispensáveis para se tornar uma grande potência”, proclamando, pois, o objetivo nacional nitidamente de natureza geopolítica.

O segundo princípio deve ser lido em combinação com o terceiro, o qual assevera que “o Desenvolvimento do Brasil tem sido retardado por motivos sucessíveis de remoção”, do qual deriva o seguinte corolário: “o Desenvolvimento do Brasil depende da remoção de óbices que o entravam, de modo a se obter uma aceleração do ritmo”. Aqui se expressa claramente o que temos chamado de consenso pelo desenvolvimento, isto é, a ideia-força, que vem de 1930, relacionada à possibilidade de acelerar o desenvolvimento nacional.

Essa diretriz encadeia-se com o quarto princípio, o qual afirma que “como todo trabalho, a obtenção dessa aceleração exige a utilização de uma energia motriz e um processo de aplicação dessa energia”. Trata-se, portanto, da coordenação de energia humana em programas mobilizadores em torno da solução dos grandes problemas nacionais, a partir do “hábito do trabalho de conjunto e o condomínio de uma técnica racional de solução dos problemas”.

O quinto princípio, aliás, acredita que “o impedimento até agora existente contra o surgimento de soluções nacionais para os problemas brasileiros é devido ao processo de aplicação de energia adotado e à falta de habito de trabalho conjunto”. Assim, em conexão lê-se o sexto princípio, que diz “urge substituir o método dos pareceres por outro método que permita se chegar a soluções harmônicas e equilibradas”. Um método de produção coletiva, como Escola, das soluções aos grandes problemas nacionais.

Com isso, o sétimo princípio concluirá que “o instrumento a utilizar para a elaboração do novo método a adotar e para sua difusão consiste na criação de um Instituto Nacional de Altos Estudos funcionando como centro permanente de pesquisas”. Assim retornamos ao núcleo da missão da ESG, com o qual abrimos este trabalho: pensar o destino do Brasil, como uma instituição permanente de pesquisa sobre os problemas brasileiros.

Setenta anos depois, este “manifesto” de fundação da Escola Superior de Guerra permanece atualíssimo.

A ESG sintetizaria o pensamento coletivo desenvolvido ao longo do primeiro quarto de século de sua existência, em um corpo comum e coerente de uma Doutrina sob a forma de um Manual, cuja primeira edição aparece em 1975. Composto por nove capítulos, versa sobre (1) Política Nacional, (2) Expressões do Poder Nacional, (3) Segurança Nacional, (4) Teoria dos Conflitos, (5) Desenvolvimento Nacional, (6) Realidades Contemporâneas, (7) Informações Nacionais, isto é, Inteligência, (8) Logística e Mobilização Nacional e, finalmente, (9) Planejamento Nacional.

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A discussão sobre a influência dos estudos desenvolvidos na Escola sobre o governo nacional é outro tema recorrente no debate geopolítico brasileiro. De nosso ponto de vista, não deve ser superestimado, mas tampouco subestimado. Exemplo: como lembra o Marechal Cordeiro de Farias, no depoimento citado, “o reforço das unidades militares na fronteira da Amazônia é consequência das discussões mantidas na ESG”. Como este, poderíamos citar variadas iniciativas no terreno estratégico que o Brasil levou a cabo a partir de um aconselhamento ao príncipe - função precípua da reflexão geopolítica –, a partir de reflexões desenvolvidas na Escola. Porém esta influência da ESG sobre a Presidência da República irá variar conforme a sensibilidade do governo nacional para os grandes temas estratégicos discutidos na Escola. Especialmente após o advento da Nova República, governos com baixa compreensão da Questão Nacional, por certo, foram buscar seus aconselhamentos em outros centros de pensamento que não o da geopolítica esguiana.

5 A TRÍADE GEOPOLÍTICA ESGUIANA

Por fim, é preciso destacar, que, a despeito do método coletivo expresso na Doutrina presente nos Manuais da Escola, é relevante a contribuição de uma tríade de geopolíticos brasileiros que desenvolveram pesquisa na ESG, marcando um período histórico da evolução do pensamento brasileiro: Golbery do Couto e Silva, Carlos de Meira Mattos e Therezinha de Castro. Não nos propomos, neste trabalho, a fazer uma revisão exaustiva do pensamento dos três autores, já realizada em outros estudos. Contudo, cabe destacar as grandes linhas de cada um deles, com o objetivo de demonstrar a relevância da Escola Superior de Guerra como ponto de inflexão do pensamento geopolítico brasileiro.

O General Golbery servira no EMFA, como Major, por ocasião dos debates sobre a criação da Escola, conduzidos pelo General César Obino. Em março de 1952, já Tenente-Coronel, foi nomeado adjunto do Departamento de Estudos da ESG, na Divisão de Assuntos Internacionais. Permaneceu na Instituição até 1955. A partir das aulas e cursos ministrados, publica, em 1955, Planejamento Estratégico, e, em 1957, Aspectos Geopolíticos Brasil, que, dez anos depois, ganharia uma segunda edição denominada Geopolítica do Brasil, tornando-se um grande clássico do pensamento estratégico brasileiro. Sem dúvida uma parte das ideias de Golbery é datada, fruto do contexto da guerra fria que à época se vivia. Contudo, o núcleo de sua contribuição permanece atual.

É de Golbery a metodologia que definiu a redação das diversas versões do Conceito Estratégico Nacional (CEN), documento que antecede as atuais Política e Estratégia Nacional de Defesa (PND-END). Cabe destacar ainda sua visão geográfica, relativa ao aproveitamento estratégico do território, em especial na superação do isolamento de parte do território nacional em relação ao seu ecúmeno.

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O General Carlos de Meira Mattos é o segundo nome da tríade geopolítica esguiana. Suas três primeiras obras sintetizam sua preocupação em fundamentar o projeto brasileiro de potência. Referimo-nos a Projeção Mundial do Brasil, Brasil: Geopolítica e Destino e A Geopolítica e as Projeções de Poder, todas dos anos 1970. Nestas, sua principal contribuição, em linha com a evolução da geopolítica brasileira e com os Princípios da ESG, foi avançar da proposição continentalista de Travassos para a perspectiva dos interesses brasileiros em escala mundial.

Não se pode deixar de mencionar sua profícua contribuição – plena de consequências – nas obras Geopolítica Pan-Amazônica e, na relação entre a geopolítica e a identidade nacional, em Geopolítica e Trópicos, sua Tese de Doutoramento.

Finalmente, mais não menos importante, está a figura da Professora Theresinha de Castro, originalmente do Colégio Pedro II, onde ministrava a disciplina de geografia. Theresinha teve como mestre Delgado de Carvalho, um dos introdutores da geografia acadêmica no Brasil. Na sua vasta contribuição, cabe destacar sua colaboração para o debate sobre a projeção brasileira em relação ao que denominamos hoje como Entorno Estratégico. Sua Teoria da Defrontação, relacionada à posição do território brasileiro em relação ao Continente Antártico, por exemplo, é tida como a fundamentação que levou o Brasil a sedecidir pela instalação de uma base científica permanente no continente gelado.

6 UMA LEITURA DAS CARACTERÍSTICAS GEOGRÁFICAS DO TERRITÓRIO BRASILEIRO, A PARTIR DE GOLBERY3

Yves Lacoste, em seu clássico La géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre (1976), argumenta que deve se diferenciar a geografia escolástica, do ensino de acidentes e características geográficas, realizada no âmbito escolar, da leitura geográfica feita pelo estrategista. Ao revisitar a leitura da geografia brasileira procedida pelo General Golbery (1967), daremos razão ao argumento do geopolítico francês.

Assim é válido revisitar a configuração geopolítica do território nacional proposta por Golbery, para ele conformada por três grandes áreas:

– uma zona estratégica que denominou de “reserva geral”, composta pelo núcleo central ecumênico a partir do triângulo “altamente vitalizado” de Rio de Janeiro – São Paulo – Belo Horizonte;

– a Oeste, duas zonas estratégicas terrestres, a Amazônica e a Platina, unidas por uma zona estratégica de soldadura que abarca o Mato Grosso (hoje representado por dois Estados: MT e MS), Paraguai e Bolívia;

– a Leste, duas outras zonas estratégicas, ambas de natureza oceânica:

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a do Atlântico centro-norte e a do Atlântico centro-sul, articuladas por outra de soldadura representada pelo promontório nordestino.

Essencialmente, essa divisão geopolítica segue tendo sua validade no que diz respeito a tarefas pendentes de integração nacional, quando do enfrentamento de nossa condição de “Estado-anfíbio” representada por nossa dupla condição de maritimidade e continentalidade.

A “reserva geral”, se alargada a Brasília, constitui o núcleo político-econômico-demográfico brasileiro. É a área estratégica cuja proteção constitui preocupação essencial para a preservação das bases mais nucleares do Poder Nacional.

À Oeste, nossas fronteiras devem observar a diversidade fisiográfica entre os três sistemas do Brasil e da América do Sul:

- a Amazônia, que demanda tarefas endógenas, relativas à sua definitiva integração ao todo do território nacional e no âmbito regional, de políticas concernentes à Pan-Amazônia;

- o Andino, com suas singularidades, no plano regional, desdobra-se na grande planície central (como zona de soldadura), internamente na vastidão do Centro-Oeste brasileiro e no além-fronteiras, na região que vai da região boliviana de Santa Cruz de La Sierra ao Paraguai;

- finalmente quanto ao sistema Paraná-Prata, que, junto à região Sul do Brasil, sugere política de planejamento estratégico próprio.

Nos três casos à Oeste avulta a questão do acesso brasileiro ao Pacífico, antiga aspiração geopolítica nacional desde Travassos. Recentemente, no âmbito da cooperação com a China, está em tela a proposta de construção de uma ferrovia transcontinental desembocando no litoral do Peru.

Quanto à parte Leste do território nacional, primeiramente, é correta a compreensão da particularidade atlântica com a qual se defronta nosso país. O Brasil tem se oposto, corretamente, às teses expansionistas, propostas a partir de centros de estudos estratégicos de países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que buscam lançar o conceito de “Bacia Atlântica”, desconhecendo a vastidão e a diversidade geográfica, econômica e social do vasto oceano.

O Atlântico centro-sul atende a especificidade de nossa ponte com a África ocidental, parte constitutiva do entorno estratégico atual do Brasil. Tem forte presença geoestratégica do OTAN, através do “cordão de ilhas” de possessão colonial remanescente da Grã-Bretanha e França, do qual se destaca a Ilha de Ascensão e o problema das Ilhas Malvinas. A utilização militar da ilha de Trindade é tema pendente de definição estratégica. Possui grande relevância como rota de comércio.

Já o Atlântico centro-norte – que podemos definir como a região geográfica que, abarcando a Foz do Amazonas, vai da Baia de São Marcos (MA) ao Oiapoque (AP), é, ao mesmo tempo, nossa defrontação geográfica com o hemisférico norte – área geográfica da OTAN – e nossa maior fonte de vulnerabilidade em termos de

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proteção militar naval. Urge o país pôr em marcha a constituição da Segunda Esquadra da Marinha do Brasil em São Luís (MA), como parte decisiva de planejamento de adensamento da presença militar brasileira na sua parte marítima norte. Também em São Luís está outra área geoestratégica de interesse de segurança nacional, o Centro Espacial de Alcântara, cuja utilização mais intensa atualmente se discute no âmbito do Congresso Nacional.

Esta região também vai tomando papel central em termos geoeconômico como rota de escoamento de comércio, sobretudo da produção mineral e agrícola, a partir do sistema multimodal (hidro-ferroviário) que desembocará no Porto do Itaqui. Terá papel crescente tanto no fluxo de comércio para o hemisfério norte, como para a Ásia, com a ampliação do canal do Panamá.

Por fim, cabe examinar o papel do premonitório nordestino, a “zona de soldadura” à Leste, na definição de Golbery. Antes que nada, do ponto de vista estratégico, vale destacar a condição de área de maior proximidade entre a América do Sul e a África, no trecho Natal – Dacar. Desse ponto de vista, urge um forte planejamento do adensamento da presença brasileira no Senegal e nos países vizinhos.

7 OS GRANDES TEMAS DA GEOPOLÍTICA BRASILEIRA

Como síntese, podemos dizer que pelo menos três “metatemas” comparecem com centralidade no pensamento geopolítico brasileiro até aqui apresentado:

a) O lugar do Brasil no mundo. Inicialmente com o problema da obtenção da hegemonia no subcontinente – e, mais recentemente, no entorno es-tratégico. Em seguida, propôs-se a pensar a projeção do Brasil no mundo pela definição do projeto de potência;

b) O binômio Segurança e Desenvolvimento, ou ainda, a centralidade do de-senvolvimento, isto é, da construção da base material do Poder Nacional que sustentasse um projeto de potência. Nessa dimensão, cabe destacar que a criação da ESG melhor posiciona este desafio, ao buscar estruturar um método para o desenvolvimento do potencial nacional;

c) Por fim, a questão da organização do espaço nacional (território), carac-terizado, desde Travassos, como anfíbio e bioceânico. Aqui comparece o problema inicial dos conflitos da Bacia do Prata, da mudança da capital federal, da integração nacional, o problema das fronteiras, da divisão ter-ritorial, e, em especial, a Questão Amazônica. Mais recentemente, como possibilidade de expansão do próprio território nacional, a projeção bra-sileira no Atlântico Sul e na Antártica, além do velho problema geopolítico brasileiro do acesso ao Pacífico.

Ao fim de cinco décadas do que denominamos consenso pelo desenvolvimento, o país entrou numa fase de indefinição quanto ao projeto nacional. Este tema será desenvolvido no próximo bloco.

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8 A CRISE DO PROJETO NACIONAL

O esgotamento do ciclo nacional-desenvolvimentista teve múltiplas causalidades, e revelou nossa incapacidade nacional, por certo, circunstancial, de pôr no lugar um projeto de longo prazo, renovando objetivos e descartando-se daquilo que descartando-se revelou insuficiente. O fato é que, ao fim do consenso pelo desenvolvimento, ingressamos em sucessivos ciclos de estagnação, entremeados por surto de crescimento de curta duração. Sucederam-se as “décadas perdidas”, como ficaram conhecidos os anos 1980 e 1990, e, mais recentemente, o Brasil praticamente colapsou política, econômica e institucionalmente, desde meados de 2013, com a eclosão de manifestações que desestabilizaram o então governo.

Contudo, numa visão mais alargada, podemos dizer que o país perdeu o rumo, em termos de projeto, a partir da crise do consenso desenvolvimentista e a emergência da Nova República.

O fim dos governos militares, já anunciado com a política de abertura e de anistia no final dos anos 1970, fez emergir um condomínio de forças heterogêneas que não tiveram a capacidade de propor uma nova direção ao país. Setores da frente democrática acabaram por combinar uma postura liberal e antimilitarista, que se voltou contra a necessária continuidade com renovação do projeto nacional. A Constituição de 1988 acabou por ser um desaguadouro de demandas represadas da sociedade, que sofrera grandes mudanças nas últimas décadas, mas acabou por formar um todo não harmônico, quase um somatório de direitos e aspirações sem, contudo, um projeto de desenvolvimento que os sustentassem.

A crise do projeto nacional também derivou diretamente do ambiente de polarização ideológica que o mundo vivera, e que, só ao final da década de 1980, viria seu desfecho. O Brasil não ficou imune a esta realidade e experimentou as consequências da Guerra Fria, atingindo sua coesão e unidade nacional. Como expressou em 2018, o então Comandante do Exército, General Eduardo Villas Boas:

Cometemos o erro de, durante a Guerra Fria, permitir que a linha de fratura passasse por dentro e dividisse a nossa sociedade, foi aí que perdemos o sentido de coesão, perdemos essa ideologia do desenvolvimento, sentido de projeto ficamos um país à deriva.4

Nesse longo período histórico, que vai da emergência da Nova República até sua crise atual (aproximadamente três décadas, entre 1988 e 2019), pelo menos três problemas se apresentaram como fortes obstáculos ao desenvolvimento do pensamento geopolítico brasileiro:

4 Seminário “Brasil: Imperativo Renascer!”, Editora Insight, Rio de Janeiro, 23/01/2018. Trechos da Palestra do General de Exército Eduardo Villas Bôas, proferida em 23 de janeiro de 2018, em seminário promovido pela Revista Insigth no Rio de Janeiro.

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a) Como tentativa de saída dos ciclos de crises, que a rigor nos assola de tempos em tempos desde o início dos anos 1980, revela-se, em geral, a tentativa de copiar soluções exógenas para problemas brasileiros, aliás, nunca adotadas por Nações que atingiram a condição de potência mundial;

b) Questionamento da identidade nacional, em variados e mesmo antagônicos espectros políticos e ideológicos da sociedade brasileira, seja com a remergência de uma narrativa, forte no século XIX, da inviabilidade nacional por nossa composição miscigenada, seja da adoção do racialismo multiculturalista, estranho à natureza de nossa formação social e, em geral, fomentada por décadas por meio de fomento a estas pesquisas por partes de Organizações Governamentais (ONGs) e agências vinculadas direta ou indiretamente a governos estrangeiros. Em seu conjunto, a desconstrução da identidade nacional – alicerçada nas reflexões que vêm dos anos 1930 –, mostra como é frágil nossa coesão nacional;

c) Por fim, as décadas de crise revelaram uma desconstrução da capacidade do Estado de gerir o projeto de aproveitamento do território nacional, de sua integração e coesão, aprofundando passivo geo-histórico nacional. Em pleno século XXI, todavia, o país não se encontra plenamente integrado do ponto de vista físico, e o aproveitamento pleno das potencialidades do seu território ainda não se dá totalmente, seja por incapacidade de planejamento do próprio Estado, seja por objeções exógenas, como nas relativas aos recursos naturais, especialmente os ambientais.

Evidentemente que, nas três décadas em tela, algumas importantes iniciativas de corte geopolítico se destacam, mas estas não formam parte de um projeto e uma estratégia. O fortalecimento da presença na Amazônia com o projeto Calha Norte e a pacificação da relação com a Argentina, ainda no governo Sarney; a criação do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), nos governos Collor-Itamar; o aparecimento das políticas de Defesa e, em especial, a Estratégia Nacional de Defesa de 2008, combinada com iniciativas em relação ao reaparelhamento das Forças Armadas no governo Luís Inácio Lula da Silva, além do surgimento do mecanismo de coordenação entre o Brasil, Rússia, China e Índia (BRICS); no período mais recente, destaca-se o enfrentamento da agenda “ambientalista”- globalista – ainda que esta seja contraditada, pela agenda ultraliberal, estranha à realidade brasileira de centralidade da construção nacional. Assim, os desafios para a recomposição de um projeto nacional com base nos ensinamentos geopolíticos permanecem.

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9 CONSIDERAÇÕES FINAIS: POR UMA AGENDA DE PESQUISA EM TORNO DA RECOMPOSIÇÃO DA “METASSÍNTESE” DA GEOPOLÍTICA BRASILEIRA: O PROJETO DE POTÊNCIA MUNDIAL

A exemplo de outros momentos históricos cabe à intelligentsia brasileira, no âmbito do pensamento geopolítico, desenvolver uma agenda de pesquisa que aponte para sua atualização. A Escola Superior de Guerra (ESG), pelo acervo de ideias e conceitos aqui desenvolvidos nas sete décadas de sua existência, tem um papel fundamental nesse desafio.

Do ponto de vista geopolítico, trata-se de buscar, a partir das características do território – base primária da existência da Nação -, aplicar estes fatores geográficos na formulação de uma política com fins estratégicos. Em outras palavras, na formulação de uma Grande Estratégia. Assim, torna-se necessário compreender a geopolítica como um planejamento de adensamento do poder nacional – tendo em vista o preparo para as guerras –, nas suas multifacetadas dimensões contemporâneas.

Nesse sentido, buscando compor grandes linhas de uma agenda de pesquisa, apresentamos a seguir uma ideia-força e “enunciados” de sete teses a respeito.5

A ideia-força – ou premissa – desta agenda deriva da reafirmação do “destino-manifesto” de um país com as características do Brasil: a grandeza, antes que nada, por imposição geográfica. Como aponta aquele que é o princípio mais importante do “manifesto” de surgimento da ESG: o país “possui os requisitos básicos (área, população, recursos) indispensáveis para se tornar uma grande potência”. Contudo, “o desenvolvimento do Brasil tem sido retardado por motivos suscetíveis de remoção”. Assim, “a obtenção dessa aceleração” do desenvolvimento, “exige a utilização de uma energia motriz e de um processo de aplicação dessa energia”, por meio do planejamento geopolítico da realização das potencialidades nacionais.

Enunciado da primeira tese. O fator espaço e posição (do território) é o ponto de partida na identificação e no planejamento da realização das potencialidades nacionais. Trata-se o território do mais estável dos fatores do Poder Nacional. Na atual fase de sistema de poder mundial, o Estado-Nação, delimitado num espaço geográfico, volta a ter centralidade. Caem por terra falácias pós-modernas quanto a uma suposta desterritorialização da política de poder das Nações. O Brasil, em seu território anfíbio, ocupando a maior parte da América do Sul, é potencialmente bioceânico, derivado de sua continentalidade e maritimidade, e cabe, em sua política de poder, potencializar esta condição. Aliado ao front da África austral,

5 As propostas relacionadas a esta agenda de pesquisa foram inicialmente apresentadas em aula ao Curso de Altos Estudos em Política e Estratégia (CAEPE) da ESG em 24 de agosto de 2018, denominada Sete Teses e uma ideia-força sobre a geopolítica brasileira contemporânea (enunciados).

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abre-se a possibilidade de um projeto do Brasil conformar-se como uma potência meridional tri-oceânica6.

Enunciado da segunda tese. Ao longo do século XX, o Brasil conformou uma Escola e um pensamento geopolítico brasileiro baseado num conjunto mais ou menos convergente de ideias. O momento atual exige esforço interpretativo acerca de suas grandes linhas, como aqui buscamos pautar, procurando nelas identificar seus elementos de continuidade e de renovação - superação, num par dialético para reafirmar e/ou reposicionar objetivos geopolíticos nacionais. Em especial importa resgatar o repositório de ideias formuladas no âmbito da ESG, em seus 70 anos dedicando-se a pensar o Brasil e sua grandeza. Estas ideias seguem fundamentais, no método e conteúdo, para o planejamento da realização do potencial nacional e para a definição dos Objetivos Nacionais Permanentes (ONP) da Nação.

Enunciado da terceira tese. Como vimos neste texto, a relação entre Segurança e Desenvolvimento foi a base de princípios que organizou o longo processo de transformação nacional no século XX. Atualmente, este binômio – Defesa e Desenvolvimento –, segundo nossos documentos de Defesa Nacional, seguem sendo o aspecto central em um país com nossas características. Urge, agora, atualizar este binômio frente aos desafios da revolução cientifica e tecnológica em curso e da exponencialidade da inovação que modificará o processo produtivo e o mundo do trabalho, no que é a Quarta Revolução Industrial. Todas as Revoluções Industriais, aliás, resultaram em alterações na estrutura de poder mundial, e,nesta, não será diferente, como se vê na disputa entre as potências pelo domínio das tecnologias emergentes responsável pelo novo ciclo de acumulação e dinamismo no mundo7. O Brasil precisa, a exemplo do que fazem as nações mais

desenvolvidas atualmente, estruturar uma política industrial liderada pela inovação como centro do desafio para o adensamento da base material do Poder Nacional. Potencialidades nacionais, como a agricultura (potência agrícola), a diversificada capacidade energética (potência energética), a produção de novos medicamentos, a biotecnologia (aproveitamento das potencialidades amazônica) e a busca de maior autonomia tecnológica em equipamentos de Defesa, entre outras, podem constituir vetores de dinamismo da economia nacional numa nova fase de prosperidade.

Enunciado da quarta tese. Segue pendente a integração de amplas áreas do território nacional ao ecúmeno nacional, e, mais amplamente, do território com nosso Entorno Estratégico, através da realização de infraestrutura correspondente. A Questão Amazônica, tema clássico da geopolítica brasileira, é a grande Questão Nacional deste século XXI, uma pendência geo-histórica brasileira, e, dela, os brasileiros devem extrair todas as suas potencialidades. A importância do mare

6 A ideia de o Brasil converter-se numa potência meridional tri-oceânica é formulação proposta pelo Professor Severino Cabral, da ESG, autor do livro Brasil Megaestado - Nova Ordem Mundial Multipolar (2004).

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