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Academic year: 2019

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UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

Faculdade de Ciências e Tecnologia

Secção Autónoma de Ciências Sociais Aplicadas

Ciências da Educação

A APRENDIZAGEM DO CUIDAR E A MORTE

UM DESIGNIO DO ENFERMEIRO EM FORMAÇÃO

Por

Cidália de Fátima Cabra1 de Frias

Dissertação apresentada na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa para obtenção

do Grau de Mestre em Ciências da ~duca~ão/Área Educação e Desenvolvimento

Orientador: Professor Doutor Joaquim Coelho Rosa Co-Orientadora: Mestre Maria dos Anjos Pereira Lopes

Lisboa

(2)

Cada trabalho segue o seu próprio percurso. É um percurso por vezes difícil, outras vezes fácil, mas sempre dependente dos esforços de várias pessoas para além da sua autora.

(3)

RESUMO

A aprendiagem do cuidar e a morte Um desígnio do enfermeiro em formação

Este trabalho de investigação, na área das Ciências da Educação/Educação e Desenvolvimento, enquadra-se numa metodologia qualitativa e tem como linhas orientadoras:

- Compreender como a história de vida do enfermeiro influencia o processo de cuidar a pessoa em fim de vida;

- Compreender como é que os enfermeiros vivenciam o processo de morrer;

- Compreender como o cuidar da pessoa em fim de vida revela a essência do próprio momento de cuidar.

É um estudo que mobiliza como material empírico o conteúdo de oito entrevistas efectuadas a enfermeiros, que exercem a sua actividade profissional no Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo.

Sendo a globalização um fenómeno que obriga a (re)pensar a nossa forma de viver, emerge, neste contexto, uma questão: como (re)pensar a nossa forma de morrer?

Constata-se actualmente que a morte foi transferida do domicílio para o hospital. É no hospital que se proporcionam os cuidados que em casa já não são possíveis, sendo também um local de muitas emoções e onde o processo de cuidar as pessoas em fim de vida deve ser (re)pensado.

Neste contexto, os enfermeiros confrontam-se, frequentemente, com o fim de vida das pessoas, pelo que surge como pertinente a seguinte pergunta de investigação: Como se formam os enfermeiros para cuidar das pessoas em fim de vida, na sua prática profissional?

O trabalho divide-se em três partes:

- Parte I engloba: "Concepções, vivência da morte e formação da pessoa". - Parte I1 evidencia: "O enfermeiro em formação e a vivência da morte". Nesta parte apresentam-se os temas encontrados no trabalho empírico:

- A vida por um fio;

- Uma vida que caminha para o fim; - A vida e a morte uniram-se;

- A aprendizagem do cuidar a pessoa em fim de vida.

No seu conjunto, os enfermeiros aprenderam a cuidar das pessoas em fim de vida em processos de auto-formação e eco-formação.

- Parte I11 considera: "Formação para o cuidar em fim de vida".

(4)

L'apprentissage du souci et la mort Esquisse sur la formation de I' infirmier

Ce travail d'investigation dans le domaine des Sciences de 1'Education et Développement adopte une méthodologie qualitative et prend les lignes d'orientation suivantes:

- Comprendre comment I'histoire de vie de l'infirmier exerce influence sur le processus de soigner la personne en fin de vie;

- Comprendre comment les infirmiers vivent le processus de mourir;

- Comprendre comment les soins prêtés à la personne en fin de vie révèlent l'essence même du souci. Le matériel empirique de cette étude rassemble le contenu de huit interviews d' infirmiers exerçant leur activité professionnelle à 1'Hôpital de Santo Espírito, à Angra do Heroísmo.

La question fondamentale concerne le fait de ce que le moment actue1 do monde nous oblige à (re)penser notre manière de vivre et, par conséquence, suscite la tâche de (re)penser notre manière de mourir?

On constate actuellement que la mort a été transférée du domicile à l'hôpital. L'hôpital est le leiu où I'on procure les soins qui ne sont plus possibles à Ia maison, devenat ainsi un lieu d'émotions où le processus de soigner les personnes en fin de vie doit être (re)pensé.

Dans ce contexte, les infirmiers se confrontent, fréquemment, avec Ia fin de vie des personnes, ce qui nous mène à poser la question d'investigation suivante: comment les infinniers sont-ils fonnés, pendant leur activité professionnelle, pour soigner les personnes en fin de vie?

Le travail est divisé en trois parties:

Partie I: "Conceptions, expérience de la mort et formation de Ia personne"; Partie 11: "L'infirmier en formation et l'expérience de la mort";

Dans cette partie nous présentons les thèmes trouvés dans le travail empirique: - La vie ne tien qu'a un fil;

- Venir à bout de Ia vie; - Vie et mort s'assemblent;

- Apprende à soigner Ia personne en fin de vie. Partie 111: "Formation pour soigner en fin de Ia vie".

(5)

ABSTRACT

The learning process of caring and death A design of the nurse in training

This investigation work, in the Education Science/Education and Development area, fits in a qualitative methodology and has following guiding lines:

- Understand how the life history of a nurse influences the caring process of a person whose life is ending; - Understand how nurses live through the dying process;

- Understand in which way how the caring of a person whose life is ending reveals the essence of that caring moment.

It's a study that mobilizes as empiric material the contents of eight interviews given by nurses, who exercise their professional activity at the Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo.

Being globalization a phenomenon that forces us to think twice about our way of life, in this context, one question is essential: How to re-think our way of dying?

It's a fact that nowadays death has been transferred from home to the hospital. The hospital now provides caring that no longer is offered at home, and it is also a place of severa1 emotions and where the caring of people whose life is ending should be reconsidered.

In this context, nurses are frequently confronted with life ending situations, therefore it is pertinen: to ask the following investigation question: How do we train nurses, in their professional, practice to assist someone whose life is ending?

The work is divided in three groups:

Group I includes: "Conceptions, Experiencing Death and Training of Personnel". Group I1 clearly shows: "The Nurse in Training and the Experiencing Death. The topics of the empirical work are presented in this section:

- Life hanging by a thread; - Life heading towards the end; - Life and death has united;

- Learning how to care for a person in a life-ending situation.

Together, the nurses have learned in self-fonnation and eco-fonnation processes how to care for people whose lives are ending.

Group I11 considers: "Training for caring in a life ending situation".

(6)

INTRODUÇÃO GERAL

1 . A questão da morte humana ... 11

... 2 . Motivações pessoais e profissionais para o estudo 12 ... 3

.

A problemática de investigação 14 4 . A estrutura do estudo ... 18

PARTE I CONCEPÇÕES. VIVÊNCIA DA MORTE E FORMAÇÃO DA PESSOA CAPÍTULO I PERSPECTIVAS DA MORTE NO OCIDENTE Introdução ao Capítulo I ... 21

1 . A morte domesticada ... 2 1 2 . A morte de si próprio ... 24

3 . A morte do outro ... 29

4 . A morte interdita ... 32

Conclusão do Capítulo I ... 36

CAPÍTULO 11 A MORTE NA ACTUALIDADE Introdução ao Capítulo I1 ... 38

1 . O contexto da morte ... 38

2

.

A imagem que temos da morte ... 43

3

.

"A morte mora ao lado" ... 45

4 . A eternidade ... 49

Conclusão do Capítulo I1 ... 53

CAPÍTULO 111 ANÁLISE CONCEPTUAL DO CUIDAR Introdução ao Capítulo I11 ... 54

1

.

O conceito de cuidar ... 54

1.2. Cuidar como ideal moral

...

6 3 2 . O cuidar a pessoa em fim de vida ... 65

2.1. Quem é a pessoa em fim de vida?

...

66

2.2. Os direitos da pessoa em fim de vida

...

67

3 . A dor e o sofrimento ... 69

Conclusão do Capítulo I11 ... 70

CAPÍTULO IV A FORMAÇÃO DOS ENFERMEIROS COMO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE ADULTOS Introdução ao Capítulo lV ... 72

1 . As diferentes interpretações do conceito de formação ... 72

2 . Formação experiencial ... 75

2.2. A auto-formação

...

79

2.2.1 - Os diferentes paradigmas para a formação

...

83

Conclusão do Capítulo lV ... 85

(7)

PARTE I1

O ENFERMEIRO EM FORMAÇÃO E A VIVÊNCIA DA MORTE

CAPÍTULO V

PARADIGMAS DE INVESTIGAÇÃO

Introdução ao Capítulo V ... 91

1 . Paradigma positivistaParadigma construtivista ... 9 1 2 . Opção metodológica ... 93

... 3 . Sujeitos do estudo 95 3.1 Considerações éticas

...

-97

4 . Procedimentos na colheita de dados ... 97

4.1 Instrumento da colheita de dados

... 98

5 . Procedimentos na análise de dados ... 99

6 . Limitações do estudo ... 103

Conclusão do Capítulo V ... 104

CAPÍTULO VI ANÁLISE DOS DADOS Introdução ao Capítulo VI ... 105

1

.

A vida por um fio ... 105

2

.

Uma vida que caminha para o fim ... 118

3 . A vida e a morte uniram-se ... 136

4

.

A aprendizagem do cuidar a pessoa em fim de vida ... 153

Conclusão do Capítulo VI ... 174

.

CONCLUSAO DA PARTE I1

...

176

PARTE I11 (RE)PENSAR A FORMAÇÃO CAPÍTULO VII FORMAÇÃO PARA CUIDAR NO FIM DE VIDA ... Introdução ao Capítulo VI1 180 1 . Formação inicial de enfermeiros ... 180

... Conclusão do Capítulo VI1 187

.

CONCLUSAO DA PARTE I11

...

188

...

CONCLUSÃO GERAL 189 BIBLIOGRAFIA

...

199

ANEXOS

Anexo I . Cartaz para solicitar a participação dos sujeitos no estudo Anexo I1 . Guião das entrevistas

(8)

ÍNDICE DE QUADROS

(9)

ÍNDICE DE FIGURAS

Figura

No

1 . O próprio momento de cuidar

...

62

...

(10)

INTRODUÇÃO GERAL

1. A questão da morte humana

A morte é um facto a viver e como tal faz parte da vida. A vida e a morte não se confundem, tomando-se evidente que nenhum de nós duvida que está vivo e que todos nós reconhecemos alguns sinais de morte, sinais da presença da morte num corpo então feito cadáver (Neves, 1996, p. 8).

Por natureza, o Homem é um ser vivo e é por a morte existir que ele é capaz de criar, pensar e procurar um sentido para a vida. E não se pretende ir aprendendo a morrer, através de uma aceitação gradual da morte como factual, mas antes de a ir interiorizando com uma realidade na vida a que cada Homem atribui um sentido em função da sua existência "determinando o que é a morte para a sua vida (...). A morte é

assim interiorizada pelo Homem; ela torna-se, finalmente, imanente, e assim também humana" (ib., p. 14)

A morte adverte e conduz, sob diferentes interpretações, a muitas questões levantadas pelo Homem: "O que faço neste mundo?", "Qual é o sentido da minha vida?", entre outras. Se assim não acontecesse, a morte só seria analisada na sua realidade última, ou seja, no seu significado mais radical de "cessação", o que implicaria transcendermos absolutamente a vida (ib., p. 10). Desta forma, a morte não poderia ser discutida nem compreendida pelo Homem e a questão do seu sentido não se levantaria.

É comummente aceite que a morte é algo que desconhecemos mas em relação à

qual profundamente não duvidamos: "É como a outra face da lua, nunca a vemos mas sabendo que existe, podemos compreender a face que nos é revelada: a vida" (Louis Vincent Thomas, citado in Marc Augé, 1997, citados em Lalanda, 1996, p. 19). Assim, podemos conceber a morte como um limite: o limite da "lua" ou o limite da vida (ib., p.

19).

(11)

todo, porque a ideia de "não ser7' é tão estranha que achamos impossível assumi-la (Wippler, 1998, p. 17).

Parece que a razão para a nossa inabilidade em encarar o fim de vida é o facto de nos encontrarmos embebidos no nosso sentido de consciência, o que nos conduz à

incapacidade de consentir a ideia de que o vamos deixar para sempre. Não parece tratar- se tanto de não querermos abdicar da vida, mas antes de deixarmos de experimentá-la (ib., p. 17).

É durante a vida que devemos pensar na morte. A vida e a morte surgem ao longo da história do Homem. Fernando Pessoa redigiu: "Se depois de eu morrer quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples, tem só duas datas - a da minha

nascença e a da minha morte: entre uma e outra cousa todos os dias são meus"'.

De facto, todos os dias são nossos. Será que a questão essencial não é a morte da cada um de nós, mas a questão do sentido da vida para cada um de nós? Um dia vamos morrer e isso é indiscutível, pois somos seres vivos até à (nossa) morte. Nesta perspectiva, cada instante deve ser vivido em plenitude e em nada deve ser perturbado pela vivência da morte.

A existência da vida, o seu processo de descoberta, a caminhada que nos leva ao verdadeiro encontro do sentido da nossa existência finita é onde reside a verdadeira reflexão sobre a morte.

Reconhecer a morte, apenas como um facto exterior à vida ou como um acontecimento portador de sentido da vida, é opção de cada homem, sem que a morte deixe de competir entre estes dois modos de ser. Deriva da interpretação que cada um de nós tem da própria vida, da opção pelo afastamentolindiferença ou, então, pela aproximaçãolreflexão à própria morte.

2. Motivações pessoais e profissionais para o estudo

As reflexões sobre a morte sempre nos interessaram e sempre nos despertaram curiosidade na sua compreensão e relevância, enquanto pessoa2 e enquanto profissional. "Ora, é evidente que o adulto tem que construir a sua própria formação com base num

1 Esta citação foi extraída de uma comunicação "A morte da pessoa", apresentada por Daniel Serrão em

Ponta Delgada, a 2 de Março de 1996, in Cadernos ~io-Ética (1996, p. 43).

(12)

balanço de vida (perspectiva retrospectiva e não apenas numa óptica de desenvolvimento futuro" (Nóvoa, 1998, p. 115) e que "a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida" (ib., p. 116).

Em primeiro lugar, tivemos em termos familiares, vivências durante a infância e juventude com familiares doentes crónicos. Em segundo lugar, na nossa vida profissional como enfermeira fomos, frequentemente, confrontados com a morte quer dentro do hospital quer na sociedade. Muitas questões nos foram colocadas quer por familiares quer por amigos: "Como se pode conviver com a morte?", "O que fazer perante a morte?' Todos estes aspectos nos obrigaram a reflectir sobre o processo de

cuidar a pessoa em fim de vida e a reflexão mais profunda veio mais tarde na nossa vida profissional, provavelmente já como docente de enfermagem. Assim, desejámos pensar acerca de questões interpessoais de uma forma mais diferenciada, tomando-nos mais capazes de pensar para além da nossa própria perspectiva, a fim de podermos ver e considerar outras perspectivas e questões acerca da morte.

Profissionalmente, relevamos a experiência que adquirimos no Serviço de Medicina e no Serviço de Urgência onde fomos lidando e cuidando de pessoas em fim de vida e dos seus familiares.

Algumas vezes, interrogámo-nos sobre o porquê da morte desta ou daquela pessoa e tínhamos que "mergulhar para dentro de nós próprios" nos cuidados que prestávamos a fim de consciencializar a individualidade do momento. Muitas vezes, sentimo-nos embaraçados com o momento, mas sempre nos sentimos solidários com a pessoa no seu processo de morrer. Consciencializámos também que a morte da pessoa nos confrontava com os limites da nossa actuação e por isso algumas vezes nos sentimos "desfeitos". Por outro lado, chegámos a ter receio da nossa fragilidade perante a morte do outro, não nos fossemos sentir incapazes de lidar com a pessoa e de não saber como gerir a sua revolta, angústia e, mesmo, a sua aceitação.

Parece haver um contra-senso quando apregoamos o direito à vida e, no fim da mesma vida, remetemos a pessoa ao esquecimento e recusamos a solidariedade a essa pessoa que se confronta com o seu fim. De facto, há que saber aceitar esse fim, visto ser um acontecimento natural, mas aceitá-lo com responsabilidade e dignidade, pois o que dá sentido à vida também deve dar sentido à morte, promovendo a realização pessoal.

(13)

A nossa sociedade mediatiza a morte e não a vive, por julgar-se protegida e porque "quem morre são sempre os outros". Mas como educar para uma sociedade que aprenda a integrar a morte na vida? Se os enfermeiros fazem parte desta mesma sociedade, como aprendem3 a cuidar das pessoas em fim de vida?

Na infância, as aprendizagens que os enfermeiros adquiriram para lidar com a morte sustentam-se na transmissão de representações precisas do mundo em que vivem, pois, as referências e os critérios dessas aprendizagens são objectivos e universais5.

Assim, a formação que vão adquirindo para cuidar das pessoas em fim de vida, apenas, ocorre em locais específicos - as escolas e as organizações de saúde. A relação

que estabelecem com estes locais, cria oportunidades que levam ao desenvolvimento de estratégias para a sua formação ao longo da vida. Neste contexto, a aprendizagem é

vista como dependente do contexto em que se processa e da experiência que vive, bem como da interpretação que lhe dá. E, quando se torna capaz de percepcionar a sua experiência através de um quadro de referência, torna-se também capaz de atribuir-lhe um sentido.

Naturalmente que se trata de um processo multidimensional de aprendizagens que ocorrem, não só nos contextos formais, mas também em contextos informais, como sejam a família, a sociedade e os órgãos de comunicação social.

3. A problemática de investigação

As atitudes do Homem perante a morte ou são muito lentas ou se situam em longos períodos de imobilidade (Morin, 1975, p. 13). Na maioria das vezes, as suas atitudes são inocentes e condicionadas por um pressuposto que norteia a sua prática: o seu modo da acompanhar a pessoa na (sudnossa) morte. E teima em não olhar a morte de frente, tornando-a num assunto só seu, do qual não quer falar. Na hora da (sua) morte

"Aprender não é somente aprender isto ou aquilo, é descobrir novos meios de pensar e de fazer de outro modo, é partir à descoberta do que poderá ser esse "outro modo"; pelo que hoje em dia arriscaria dizer que o acto de aprender transformado em "acto de investigação" poderá permitir ao aprendente desenvolver a sua criatividade, as suas habilidades, a sua capacidade de avaliação (auto e co-avaliação, valor extraído ou atribuído à...), a sua capacidade de atenção e de presença consciente" (Josso, 1996, p. 84).

Neste trabalho utilizar-se-á aleatoriamente o termo "moribundo" e "pessoa em fim de vida", adulta ou idosa.

Estamos perante o paradigma objectivista, um dos paradigmas contemporâneos da aprendizagem adulta propostos por Mezirow (1996). Segue-se o paradigma interpretativo em que a aprendizagem é

(14)

fica num quarto e o "trabalho ao corpo" é entregue a uma agência funerária: "morra que tratamos de tudo", dizem os "novos senhores da morte" (Lalanda, 1996, p. 30). E embora o Homem desconheça a morte por completo, não duvida que um dia ela chegará e, assim, terá a oportunidade de a admitir enquanto evento pessoal.

Para o Homem moderno, a morte é sempre a dos outros, uma morte alheia, da qual conjectura, apenas, os seus efeitos, mas cuja realidade viverá. E ainda não compreendeu que o mistério não é a morte, mas a sua atitude para com a morte. Tomou em mãos essa atitude, em vez de lhe pesquisa os segredos (Morin, 1970, p. 19).

A única certeza que o Homem tem ao nascer é a de que vai morrer. Durante a vida, tem necessariamente que pensar na morte. É inevitável, porque há uma obrigatoriedade de ter em conta a vida como ponto de partida indispensável para reflectir sobre a morte e isso é o enunciar da cumplicidade entre ambas. O período de tempo que as separa deveria levá-lo a compreender estas duas realidades - a vida e a morte. É na compreensão que tem delas que desenrola a (sua) própria história. O

Homem assumindo a inevitabilidade da morte e não podendo dominá-la, incorpora-a nas novas condições de vida, procurando esvaziar a sua carga dramática, simplificando- a e diluindo-a na vida que, entretanto, vai continuando.

A transferência do local da morte, do domicílio para o hospital, é parte integrante do seu processo de dissimulação. Assim como o nascimento, a morte também deixou de acontecer em família. Esta transferência implica um (re)ajustamento da estrutura hospitalar que, concebida para prestar cuidados tendentes a curar a doença, não encontra, muitas vezes, resposta para as pessoas em fim de vida. Por falta de verbas, de camas e de pessoal, tem tendência para desinteressar-se dos moribundos (Henriques et

al., 1995, p. 11). Desta forma, os profissionais de saúde, nomeadamente os enfermeiros,

sentem-se desarmados perante a angústia das pessoas em fim de vida, com os quais têm dificuldade em estabelecer uma relação de ajuda (Pinto, 1991, p. 14).

É neste contexto que se toma premente a criação de uma interligação entre a aprendizagem do cuidar e a morte, interligação que norteia o presente trabalho.

A problemática da morte e do morrer tem vindo a ser objecto de reflexão, nomeadamente, no que põe em evidência a compreensão da prática do cuidar em enfermagem6.

(15)

Dados os vários constructos teóricos à volta de alguns termos ou expressões, que encontraremos ao longo do estudo, considerámos pertinente definir o que entendemos por sentimentos, emoções, vivências e aprendizagens.

Assim, "o termo sentimento deve ser reservado para a experiência mental e privada de uma emoção, enquanto o termo emoção deve ser usado para designar o conjunto de respostas que constitui uma emoção, muitas das quais são publicamente observáveis" (Damásio, 2000, pp. 62-63). Em termos práticos, não podemos observar um sentimento numa pessoa, embora possamos observar um sentimento em si próprio quando, enquanto ser consciente, tem a percepção dos seus próprios estados emocionais (ib., p. 63).

O termo "vivência", que tende a ser utilizado em vários contextos, quer sejam pessoais, colectivos ou históricos (Mora, 1982), entendemos circunscrevê-lo a uma situação vivida, para seguidamente ser definida como algo repleto de significado que perdura no tempo.

Assim, "vivência" significa "a consciência imediata do objecto (...) a vivência tem sempre um vivido, um resultado prenhe de significado que permanece" (Fidalgo, 1990, p. 556). Portanto, não deverá ser utilizado meramente como uma situação vivida circunstancial, mas sim repleta de significado. Entre o "vivido" e a "vivência" existe um espaço que só pode ser ocupado pela interpretação/significado que a pessoa lhe atribui,

concebendo-a como uma construção de sentido que deve ser compreendida em si mesma.

Também reconhecemos a importância da experiência nos processos de aprendizagem, que se supõe que seja encarada "como um processo interno ao sujeito e que corresponde, ao longo da vida, ao processo da sua auto-construção como pessoa (Canário, 1999, p. 109). Esta forma de conceber a aprendizagem decorre de dois aspectos: o primeiro consiste em atribuir um sentido, "uma vez que o conhecimento não

é um processo cumulativo de informação, mas sim de um processo de selecção, organização e interpretação da informação a que estamos expostos e que depende dos contextos dando origem a perspectivas diferentes" (ib., p. 110); o segundo aspecto decorre da mobilização da pessoa que faz apelo a ela própria, fazendo com que "se utilize a si própria como um recurso" (Charlot, 1997, p. 62, citado em Canário, 1999, p.

110).

(16)

e disponibilidade para cuidar da pessoa em fim de vida. É a partir destes locais que a lógica do cuidar deve ser pensada e colocada em prática (Hesbeen, 2000, p. 6).

Esta perspectiva tem despertado um interesse crescente na enfermagem que, ao longo dos anos, tem mudado de uma orientação dualista, redutora, hipotético-dedutiva para uma orientação holística, intuitiva, fenomenológica7 e baseada na experiência humana, levando a uma mudança nos paradigmas que norteiam as investigações. Daqui advém o paradigma construtivista, "caracterizado por considerar as teorias como forma de tomar a experiência inteligível, procurando o sentido dado à experiência vivida e a compreensão da cultura, podendo gerar hipóteses, seguindo um pensamento indutivo. A metodologia é geralmente qualitativa" (Basto, 1998, p. 24).

A enfermagem tem vindo a adquirir um lugar de destaque na investigação qualitativa e Watson (1988) refere que cada vez mais, existem investigadores a colocarem-se nesta perspectiva e que a enfermagem deve explorar a sua herança, comprometer-se com os seus valores e explorar métodos de investigação consistentes com a sua natureza.

Tendo em conta estas reflexões, procuraremos aprofundar alguns aspectos teóricos que nos ajudarão a delimitar, aprofundar e a contextualizar a problemática deste trabalho que se enquadra numa metodologia de natureza qualitativa.

Definimos, como as suas principais linhas orientadoras as seguintes:

- Compreender como a história de vida do enfermeiro influencia o processo de

cuidar a pessoa em fim de vida;

- Compreender como é que os enfermeiros vivenciam o processo de morrer; - Compreender como o cuidar da pessoa em fim de vida revela a essência do

próprio momento de cuidar.

A pessoa em fim de vida, confrontada com a sua morte, devem ser proporcionadas todas as condições que lhe permitam vivê-la em consciência, como sendo o culminar da sua vida.

Em todo este processo entram os profissionais de saúde, nomeadamente os enfermeiros, os familiares e os amigos, que não se devem demitir das suas responsabilidades, como seja o favorecimento de uma relação de atenção e respeito que sustente a confiança.

7 "O termo significa estudo dos fenómenos, isto é, daquilo que aparece à consciência, daquilo que é dado. Trata-se de explorar este dado, a própria coisa que se percebe, em que se pensa, de que se fala" (Lyotard,

1986, p. 10).

(17)

Neste contexto, sentimos que precisávamos encontrar algumas respostas que fundamentassem o nosso olhar "gratificante" sobre o processo de cuidar a pessoa em fim de vida e, simultaneamente, que nos permitissem compreender as experiências e vivências dos enfermeiros que cuidam das pessoas em fim de vida.

A partir das reflexões que temos vindo a fazer sobre a morte e sobre a relação dos enfermeiros com essa realidade, enveredámos para a nossa pesquisa, direccionando a atenção para uma temática, até há pouco tempo, raramente abordada na sociedade, na formação e na investigação.

Cuidar da pessoa implica a compreensão das suas reais necessidades de pessoa, das suas capacidades e das suas limitações, bem como da aprendizagem, pelo enfermeiro, de cuidar a pessoa em fim de vida.

Julgamos, assim, que a pergunta "Como se formam os enfermeiros para cuidar das pessoas em fim de vida, na sua prática profissional?" se apresenta pertinente como questão de investigação condutora deste trabalho.

4. A estrutura do estudo

Este trabalho está estruturado em sete capítulos. Para uma melhor compreensão do mesmo, decidimos distribuir esses capítulos em três partes.

A Parte I, Concepções e Vivência da morte e Formação da Pessoa, engloba o enquadramento teórico que evidencia a problemática desta pesquisa. Abordamos as perspectivas da morte no Ocidente e a morte na actualidade

. Seguidamente fazemos

referência à conceptualização do cuidar em enfermagem e ao processo de cuidar a pessoa em fim de vida. Um último capítulo desta Parte I é dedicado à formação dos enfermeiros como processo de formação de adultos.

Na Parte 11, O Enfermeiro em Formação e a Vivência da Morte, apresentamos o trabalho empírico e a metodologia. Nele apresentamos os critérios subjacentes à escolha dos sujeitos do estudo, bem como o modo como conduzimos a investigação.

Na Parte

Iü,

(Re)pensar a Formação, pretendemos repensar a formação, isto é,

pretendemos reflectir sobre a formação para o cuidar no fim de vida.

Por fim, apresentamos as conclusões que considerámos mais relevantes.

(18)

PARTE I

(19)

PARTE I

CONCEPÇÕES, VIVÊNCIA DA MORTE E FORMAÇÃO DA PESSOA

No Capítulo I fazemos uma abordagem ao percurso da morte, da Idade Média até aos dias de hoje, em quatro épocas distintas: a morte domesticada, a morte de si próprio, a morte do outro e a morte interdita.

O Homem, ao amedrontar-se com a sombra da sua morte, cada vez mais se vai apegando à vida, aos bens materiais, ao viver de aparências, tornando a sua morte numa miragem. O percurso entre a vida e a morte será o que tentaremos clarificar no Capítulo 11: A morte na actualidade.

Havendo muito a fazer, depois de já "não haver mais nada a fazer" no face a face com a morte, espera-se, na enfermagem, uma prática de cuidar congniente com as necessidades e desejos de uma pessoa que vive o derradeiro momento da vida. Embora saibamos que cuidar a pessoa na sua morte pode ser angustiante, porque nos incomoda e nos confronta com a nossa própria morte, é sem dúvida um momento em que a pessoa se pode revelar um verdadeiro mestre da vida. A partir do momento em que rejeitamos a imagem de "todo poderosos", algo se transforma na pessoa em fim de vida. Mostrar-lhe que estamos sensíveis e afectuosos, que estamos a permitir-lhe que aceite o seu destino, ajuda-nos a consciencializar a oportunidade, que a morte nos dá, de viver a (nossa) vida. É o que pretendemos abordar no Capítulo III.

(20)

CAPÍTULO I

PERSPECTIVAS DA MORTE NO OCIDENTE

Introdução ao Capítulo I

Neste capítulo pretendemos abordar o percurso das concepções da morte e das

práticas, das atitudes e dos ritos no Ocidente, desde a Idade Média até à Actualidade.

Para tal, recorremos a Ariès, historiador contemporâneo que, numa abordagem intuitiva e subjectiva, procurou compreender o percurso da morte. Nesta abordagem, o observador possui vários documentos (artísticos, litúrgicos) e tenta analisar esses documentos, que de outra forma, são ininteligíveis e sem relação entre si.

Sustentados em Ariès, apresentamos as perspectivas da morte em quatro épocas

distintas, em função das atitudes do Homem perante a morte. A primeira é uma

abordagem sincrónica8, que abrange cerca de um milénio - é a morte domesticada. A

medida que o Homem vai tomando consciência da sua individualidade, explica-nos a morte de si próprio, numa abordagem diacrónica9. A terceira e quarta partes estão relacionadas com as atitudes contemporâneas: a morte do outro e a morte interdita.

1. A morte domesticada

Na baixa Idade Média, todos os seres humanos reconheciam a sua condição de mortais e ninguém morria sem ser prevenido, excepto os que morriam de peste ou de outra causa súbita. A advertência era feita por sinais naturais ou por uma convicção e não por uma premonição sobrenatural. Era algo de muito simples, que atravessa os tempos, e que está presente nos nossos dias, pelo menos como uma sobrevivência. De

8 6 6 As novas ciências do homem e a linguística introduziram as noções de diacronia e de sincronia. Como

muitas questões de mentalidade que se situam na longa duração, a atitude perante a morte pode parecer quase imóvel através de períodos muito longos. Aparece como anacrónica. E no entanto, em certos momentos, intervêm modificações, na maior parte dos casos lentas e por vezes imperceptíveis, e hoje em dia mais rápidas e mais conscientes7' (Ariès, 1975, p. 19). A dificuldade para o historiador está em ser sensível às modificações, bem como em não ficar obcecado por elas, para além de não esquecer as grandes inércias que reduzem a dimensão social das inovações. Assim, a abordagem sincrónica pode ser entendida como o estudo de um fenómeno linguístico considerado num determinado tempo, independentemente da sua evolução (ib., p. 19).

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facto, a morte1' era um acontecimento bem simples e ninguém tinha medo dela. A única preocupação residia no facto de não serem prevenidos a tempo da sua própria morte ou, então, de morrerem sozinhos. Quando o moribundo pressentia o seu fim tomava precauções, isto é, aguardava serenamente no leito a sua morte, rodeado dos familiares, amigos e crianças1'. Após fazer uma retrospectiva da sua vida, lastimava-se das injustiças que esta lhe havia proporcionado e de seguida pedia perdão aos companheiros que o rodeavam e que eram sempre em grande número.

Eis que chega a hora de se despedir do mundo e de pensar em Deus. A oração, declamada em voz alta, era constituída por duas partes: na primeira parte, o moribundo confessava a sua culpa pelos pecados cometidos, e resgatava-os por um acto público, pedindo a remissão deles. Na segunda parte da oração, pedia a salvação para a sua alma, não se esquecendo de recomendar a Deus todos os companheiros que o rodeavam. Neste único cerimonial religioso o padre absolvia-lhe os pecados, lia os salmos, incensava o corpo e aspergia-o com água benta. Esta cerimónia era repetida sobre o corpo morto, na sepultura, e recebia o nome de absoute-absolvição.

Ao terminar o ritual, o moribundo aguardava, "jazendo no leito", a sua morte. E esses momentos eram tomados públicos, como uma cerimónia a que o moribundo presidia, conhecendo o seu protocolo. Não havia pressa para que a morte chegasse, mas, também, não havia motivos para que tardasse. Todos os ritos de morte eram cumpridos com simplicidade e sem dramatismos. E assim se morre durante séculos ou milénios, o que ainda hoje se pode observar nalguns meios rurais do nosso país (Oliveira, 1995, p. 18).

Contudo, cada vez menos assistimos a uma morte familiar que contrasta com aquela que tem vindo a predominar e que provoca medo, a ponto de nem ousarmos dizer-lhe o nome.

Um outro aspecto a salientar, aborda a antiga familiaridade com a morte: a coexistência dos vivos e dos

morto^'^.

''A morte, nos vocabulários mais arcaicos, não existe, ainda, como conceito: fala-se dela como um sono, uma viagem, um nascimento, um malefício, uma entrada para a morada dos antepassados ou de tudo isto ao mesmo tempo (Morin, 1988, p. 25). As evidências que têm vindo a ser comprovadas, levam-nos a consciencializar que os povos primitivos, encaravam a morte de uma forma natural, isto é, sem medo "o medo da morte é muito menos pronunciado nos povos arcaicos do que nas sociedades mais evoluídas" (ib, p. 39).

l1 Até ao século XVIII, não há representação do quarto de um moribundo que não inclua crianças.

Actualmente afastam-se as crianças da morte (Ariès, 1975, p. 24).

l2 É um fenómeno novo, desconhecido da Antiguidade pagã e mesmo cristã. É absolutamente estranho

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Apesar da familiaridade com a morte, os povos da Antiguidade temiam a proximidade dos mortos e mantinham-nos "expulsos" deste mundo. Contudo, honravam as sepulturas13 porque temiam o regresso dos defuntos e o culto tinha como objectivo impedir que retomassem à terra e transtornassem os vivos. Sendo assim, a morada dos vivos estava separada da "morada" dos mortos a fim de evitar qualquer contacto e era uma regra absoluta. De facto, a intolerância dos vivos em relação aos mortos levou a que os cemitérios da Antiguidade fossem construídos fora das cidades, ao longo das estradas. Eis porque em Roma era proibido enterrar in urbe, no interior da cidade.

São João Crisóstomo, numa homilia, exortava os cristãos a oporem-se a um novo costume e pouco seguido "vela para que jamais se erga um túmulo dentro da cidade. Se depositassem um cadáver no sítio onde dormes e comes, o que tu não farias! Entretanto, depositas os mortos não onde dormes e comes mas sobre os membros de

rist to"'^,

isto é, nas igrejas (Ariès, 1975, p. 26).

Este costume, denunciado por São João Crisóstomo, devia expandir-se e impor- se mesmo com as interdições do Direito Canónico. Os mortos vão penetrar nas cidades, local de onde estiveram afastados durante milénios. Tudo isto começou, não tanto com o cristianismo mas com o culto dos mártires, de origem africana15.

A partir do século VI, o clero contorna a tradição, levanta o interdito e faz desaparecer a distinção onde se enterrava ad santus, (junto dos santos e próximo da basíiica) e a cidade até então interdita às sepulturas (Ariès, 1977, vol. I, p. 26). Desta forma, a abadia cemiterial e a Igreja catedral deixaram de ficar separadas.

Na Época Medieval, a Igreja era um edifício com um espaço à sua volta. O cemitério era a parte exterior da Igreja; o seu pátio, adro ou atrium, onde os mortos eram enterrados. Nesta época, e mesmo nos séculos XVI e XVII, apenas importava que os ossos ficassem perto dos santos ou na Igreja, junto do altar. O corpo era confiado à

igreja que devia conservá-lo no seu recinto sagrado.

A Igreja e o seu pátio eram locais públicos. O cemitério, para além de ser um lugar de sepultura, serviu também de asilo e foi um local permitido para construir casas. Desta forma, passou a existir um bairro que gozava de privilégios fiscais, ou até mesmo de comércio e diversão. Neste contexto, participavam livreiros, comerciantes e outros e

l 3 OS conhecimentos das antigas civilizações pré-cristãs provêm da arqueologia funerária, dos objectos

encontrados nos túmulos (Ariès, 1975, p. 25).

14 São João Crisóstomo, Opera ... Paris, Ed. Montfaucon, 1718-1738, vol. VIII, p. 71, homilia 74.

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procediam-se a inumações, abriam-se túmulos e levantavam-se cadáveres, ainda não totalmente decompostos, que exalavam odores nauseabundos.

No final do século XVII, aparecem sinais de intolerância, o que contrasta com a acomodação que durante mais de um milénio se verificou com toda a promiscuidade que os vivos toleraram.

O espectáculo dos mortos em que os ossos estavam expostos à superfície nos cemitérios, impressionava os vivos que foram deixando de se sentirem familiarizados com a ideia da sua própria morte.

2. A morte de si próprio

A partir dos séculos XI-XII, iremos encontrar algumas modificações subtis que, lentamente, vão concedendo um sentido dramático e pessoal à familiaridade do Homem perante a morte. Esta familiaridade implicava uma concepção colectiva do destino, pois o Homem estava profundamente socializado com a natureza e a aceitação da morte era uma forma de aceitação da ordem da natureza e, por isso, não pensava em exaltar a morte nem dramatizá-la mas aceitá-la como justa.

Se, no passado, houve uma preocupação com o destino colectivo da espécie, agora a preocupação centra-se no destino particular de cada pessoa. E, o Homem desta segunda Idade Média, começa a aperceber-se da existência de uma série de fenómenos. Seguidamente, apresentaremos alguns desses fenómenos.

A representação do Juízo Final

A representação do Juízo Final foi um dos fenómenos que sofreu grandes mudanças, pois na e s c a t ~ l o ~ i a ' ~ dos primeiros séculos do Cristianismo, o Homem não era condenado nem era submetido a qualquer julgamento17.

Acreditava-se na ressurreição dos mortos (os que pertenciam à Igreja e lhe tinham confiado o seu corpo). Com esta concepção, não havia lugar para uma

l6 A escatologia é uma parte da teologia que se refere às coisas que deverão suceder no fim do mundo (Dicionário Universal da Língua Portuguesa, 1995, p. 603).

17 No sarcófago do bispo Agilbert, pode-se ver num dos lados, Cristo ladeado por quatro evangelistas, isto

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responsabilidade individual, enfim, para uma contagem das boas e más acções. Por outro lado, os maus, "os que não pertenciam à Igreja, não sobreviveriam à sua morte, não despertariam e seriam abandonados ao não-ser" (Ariès, 1975, p. 32). A partir do século XII, a cena altera-se e começa a falar-se dos justos e dos pecadores, por intermédio do julgamento e da pesagem das almas1*. Cada Homem é julgado pelo balanço da sua vida e tudo é anotado no liber vitae, inicialmente concebido como o recenseamento do universo, um livro cósmico. Mas, no final da Idade Média, converteu- se no livro de contas individuais19.

O Juízo Final pode estar ligado à biografia individual, que só acaba no fim dos tempos e não na hora da morte, opina Ariès (1975, p. 33).

Quarto do moribundo

O segundo fenómeno consistiu em suprimir o tempo escatológico entre a morte e o fim dos tempos e em deslocar o Juízo Final para o quarto do moribundo20.

Esta iconografia leva-nos ao modelo tradicional da morte no leito, que descrevemos na morte domesticada. Contudo, há qualquer coisa que perturba a cerimónia: seres sobrenaturais invadem o quarto do moribundo. A Trindade, a Virgem, toda a corte celeste está a um lado da cabeceira do moribundo e do outro lado encontra- se Satanás e o exército dos demónios monstruosos.

Como podemos interpretar este cenário? Será um verdadeiro juízo?

A balança onde são pesados o bem e o mal deixou de servir. Continua a haver o livro, mas o demónio apodera-se dele, triunfante porque as contas da biografia lhe são favoráveis. Deus aparece como testemunha ou árbitro nas duas interpretações que se podem dar e que até se podem sobrepor.

A primeira interpretação é de uma luta cósmica entre as potencialidades do bem e do mal que disputam a posse do moribundo que, estranhamente, assiste. Esta

l8 Nas Igrejas Romanas, continua esculpida nos tímpanos (espaço esculpido, circunscrito por vários arcos

ou linhas rectas), a glória de Cristo, inspirada na visão do Apocalipse. "Mas por baixo aparece uma iconografia nova inspirada em Mateus, a ressurreição dos mortos, a separação dos justos e dos condenados: o julgamento (sobre a auréola de Cristo está escrita uma palavra: Judex), a pesagem das almas pelo arcanjo São Miguel" (Ariès, 1975, p. 32).

l9 Nos séculos XV e XVI, os ressuscitados levam-no pendurado ao pescoço, como um documento de

identificação, ou então como um "balanço" das contas a apresentar às portas da eternidade. Acreditava-se num além da morte, mas proporcionava um complemento de duração entre a morte e o fim dos tempos (Ariès, 1975, p. 33).

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interpretação é sugerida pelas gravuras das artes moriendi. Mas lendo atentamente as legendas que acompanham estas gravuras, Ariès (1975, p. 34), salienta que é outra coisa, é a segunda interpretação. Deus e a sua corte estão presentes para averiguarem como é que o moribundo se vai comportar no decorrer da prova que determinará a sua sorte na eternidade.

A sua atitude, num momento fugaz, leva-o a ter a oportunidade de anular os pecados cometidos em vida, se repelir a tentação (rumo ao Céu), ou pelo contrário, anulará todas as boas acções, se a ela ceder (rumo ao Inferno).

A última prova substitui o Juízo Final. Aqui impõem-se duas observações: a primeira prende-se com a aproximação que se dá com a representação da morte no leito e a do julgamento individual de cada vida que, conforme vimos, era uma cerimónia colectiva.

O Juízo, pelo contrário, era peculiar a cada moribundo e ninguém conhecia a sua sorte antes da decisão do juíz21.

A segunda observação refere-se à relação cada vez mais estreita entre a morte e a biografia de cada vida, que se tomou definitiva nos séculos XIV e XV por influência das ordens

mendicante^^^.

A partir de então crê-se que cada moribundo reveja de relance toda a sua vida e, neste momento, dará à sua biografia o sentido definitivo.

Com a Reforma católica, os autores espirituais lutaram contra a crença popular que dizia que não era preciso a pessoa esforçar-se muito para levar uma vida virtuosa, uma vez que a boa morte "conquistava7' todas as faltas cometidas. A iconografia dos séculos XV-XVI mostra essa "arte de bem morrer", que "pressupunha que se resistisse à

tentação do desespero ou do orgulho, bem como o arrependimento sincero dos pecados cometidos" (Feijó et al., 1985 citado em Oliveira, 1999, p. 45). Cada pessoa, individualmente, devia esforçar-se por agir bem. Não se deixou, no entanto, de reconhecer uma importância moral ao moribundo e às circunstâncias da sua morte. Só com a chegada do século

XX

é que esta crença foi rejeitada, pelo menos nas sociedades industrializadas. Seja como for, o Homem procurava atribuir um sentido à sua vida. Se não fosse assim, como seria a vida se não tivesse em conta o céu, o inferno, a ressurreição

...

?

Na iconografia das artes moriendi reúne, na mesma cena, a segurança do rito colectivo e a inquietação de uma interrogação pessoal (Ariès, 1975, p. 35).

22 "São ordens religiosas fundadas no princípio do Século XIII, assim designadas porque viviam

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Le transi (o trespassado)

O aparecimento dos temas macabros e o interesse pela decomposição física, na literatura e na arte, aparecem em simultâneo com as artes moriendi: é o terceiro fenómeno.

A representação da morte com os traços de uma múmia ou de um cadáver era pouco frequente e encontrava-se, sobretudo, na ilustração do ofício dos mortos nos manuscritos do século XV, na decoração das Igrejas e dos cemitérios (dança dos mortos), sendo muito pouco frequente na arte funerária. O horror pela decomposição do corpo em putrefacção é um tema familiar na poesia do século XV. A decomposição torna-se num fenómeno novo e original: é um sinal de ruína do Homem e aplica-se-lhe um sentido profundamente macabro.

Para melhor compreender esse Homem é importante partirmos da noção actual do fracasso, que nos é, por demais, familiar na nossa sociedade. Cada vez mais cedo o Homem adulto toma consciência de que não concretizou muitos dos seus desejos e acompanha-o um sentimento de fracasso. Este sentimento está na origem de um clima de depressão que aumenta nas classes remediadas das sociedade industriais (Ariès,

1975).

Este sentimento era estranho nas mentalidades das sociedades tradicionais, já

não sendo estranho ao Homem rico e poderoso do final da Idade Média. Contudo, entre o nosso sentimento actual de fracasso e o do final da Idade Média, existe uma diferença. Actualmente não estabelecemos nenhuma relação entre os nossos fracassos e a nossa mortalidade. A certeza da morte e a fragilidade da nossa vida são desconhecidas na nossa existência.

No final da Idade Média, o Homem tinha a consciência da sua morte mas tinha uma paixão pela vida (o que hoje mal compreendemos, talvez porque, a nossa vida se tornou mais longa). Assim, podemos retirar algumas conclusões acerca das primeiros fenómenos: o Juízo Final, a última prova das artes moriendi, o amor à vida representados por temas macabros (ib., p. 38).

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si mesmo (Ariès, 1975, p. 38). O fenómeno dos túmulos ou, seja, da individualização das sepulturas, confirma esta tendência.

As sepulturas

Na Roma antiga, toda a gente possuía um local de sepultura e esse local era assinalado por uma inscrição que significava o desejo de conservar a identidade do túmulo e a memória do desaparecido. Por volta do século V vão rareando e, consoante os sítios, desapareceram as sepulturas identificadas.

Os mortos eram abandonados na Igreja, o enterramento ad sanctos. Os cemitérios da primeira Idade Média e mesmo os mais tardios, onde persistiram costumes antigos, são acumulações de sarcófagos de pedra, por vezes esculpidos, mas, regra geral, anónimos.

A partir do século XII, começam-se a reencontrar as inscrições funerárias que, numa fase inicial, eram encontradas, apenas, nos túmulos das personagens ilustres como os santos. No século XIII, estes túmulos tomaram-se mais frequentes e foram associados a efígies23. No século seguinte, reproduzem-se máscaras feitas a partir dos rostos dos defuntos. Algumas personagens ilustres, eclesiásticas ou laicas, são as únicas que tinham grandes túmulos esculpidos. Desta forma, a arte funerária evolui para uma personalização crescente até ao início do século XVII.

Entre os séculos XIIí e XVIII, as placas tumulares (com 20 a 40 cm), continham inscrições que identificavam o morto e encontravam-se aplicadas nas paredes das Igrejas. Até ao século XVIII, constituíram a forma mais corrente de monumentos funerários. Estas placas cobriam inteiramente as Igrejas e traduziam a vontade de individualizar o local da sepultura e de perpetuar a lembrança do morto.

Contudo, as placas tumulares não eram o único meio, nem talvez o mais usual, de perpetuar a sua memória. Os defuntos previam nos testamentos serviços religiosos perpétuos pela salvação da sua alma. Do século XIII até ao século XVII, os testadores ou os seus herdeiros mandavam gravar em placas, de pedra ou de cobre, os termos da doação e os compromissos do cura e da paróquia. Estas placas eram tão significativas como as de "aqui jaz". Independentemente do seu significado, o que importava era que

23 Representação de uma pessoa, imagem (Dicionário Universal da Língua Portuguesa, 1995, p. 537).

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tinham o registo da identidade do morto e não o reconhecimento do lugar onde o corpo havia sido depositado.

Desde o século XI que a morte conquista o Homem, no sentido de ir tomando consciência da sua individualidade, auscultando o mistério que o abrange. Da resignação ao cumprimento da mais evidente lei da natureza, desde a Idade Média, o Homem Ocidental rico, poderoso ou letrado começa a reconhecer-se a si mesmo na sua morte: ele descobriu a morte de si próprio (Ariès, 1975, p. 42).

3. A morte do outro

Vimos que a primeira atitude do Homem perante a morte, a da resignação familiar ao destino colectivo da espécie, podia resumir-se nesta frase: todos nós morreremos. A segunda atitude aparece no século XII, e exprime a importância reconhecida nos tempos ocidentais à existência própria individual, podendo traduzir-se nesta fórmula: a morte de si próprio (Ariès, 1975, p. 43).

A partir do século XVIII, o Homem Ocidental tenta dar um novo sentido à

morte. "Exalta-a, dramatiza-a, quere-a impressionante e dominadora" (ib., p. 43). Simultaneamente, preocupa-se cada vez menos com a sua própria morte e mais com a morte do outro: a morte de quem está próximo, a da pessoa amada ou próxima, atribuindo à morte um sentido romântico e retórico; o outro, cuja saudade e lamentação inspiram nos séculos XIX e XX, o culto novo dos túmulos e dos cemitérios.

A partir do século XVI (e já no final do século XV), os temas da morte têm um sentido erótico: são temas que carregam um sentido erótico-macabro, mostrando complacência com os espectáculos da morte, do sofrimento e dos suplícios24.

Aqui impõe-se uma ideia que é nova ao invés da familiaridade com a morte encontrada anteriormente. Agora, a morte aparece como uma ruptura e tal como o acto sexual, é cada vez mais considerada como uma transgressão que arranca o Homem à sua vida quotidiana e ao seu trabalho para o lançar num mundo cruel e violento. Esta ideia de ruptura, originária e desenvolvida no mundo dos fantasmas eróticos, vai passar para o mundo dos factos reais e concretos. Desta forma, a morte perde as suas características eróticas ou, pelo menos, são sublimadas e transformadas em beleza: é a morte romântica. Eis a primeira alteração que surge no final do século XVIII.

24 É um fenómeno que não ocorreu no mundo dos factos reais, mas sim no mundo obscuro e extravagante

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A segunda alteração diz respeito à relação entre o moribundo e a família. Do século Xm até ao século XVIII, o moribundo exprime as sua próprias ideias, sentimentos, fé religiosa, apego às coisas, entre outras vontades, através de um instrumento: o testamento. O testamento era um meio onde o Homem afirmava os seus pensamentos e convicções, mais do que um acto de direito para a transmissão da sua herança. Por vezes, o testamento continha cláusulas piedosas (muitas vezes ocupavam a maior parte do testamento), que tinham como objectivo responsabilizar publicamente o executor testamenteiro, o cura da paróquia ou os monges e de os obrigar a respeitar as vontades do moribundo.

Desta forma, o testamento revelava desconfiança em relação aos herdeiros, aos parentes próximos e ao clero.

Na segunda metade do século XVIII, dá-se uma alteração considerável na redacção dos testamentos em todo o Ocidente. As cláusulas piedosas, as designações de sepulturas, as fundações destinadas a missas e serviços religiosos e as esmolas desapareceram e o testamento ficou reduzido àquilo que hoje em dia ainda é: um acto legal de distribuição de fortunas.

As esmolas, as designações das sepulturas, as fundações destinadas a missas e serviços religiosos desapareceram. Esta laicização do testamento representa um sinal de descristianização da sociedade e um ganho de confiança do testador em relação aos parentes, levando-o a delegar alguns dos poderes que exercera até então. Esta nova atitude revela as relações de afecto desenvolvidas no seio da família. Na verdade, o moribundo enfatiza o seu papel no ritual da sua própria morte e os assistentes já não são os figurantes de outrora, passivos e apoiados na oração.

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mesmo durante o século XVIII, o Homem teme não a sua própria morte, mas a morte do próximo, a morte do outro (ib., p. 48).

Estes sentimentos geram um novo fenómeno religioso: o culto moderno dos túmulos e dos cemitérios. Constatámos que na Idade Média os mortos eram entregues, ou antes, abandonados à Igreja que se encarregava de os sepultar e pouco importava o local da sepultura. Já nos séculos XVI e XVII existe a preocupação em situar a sepultura. Contudo, as visitas piedosas ou melancólicas aos túmulos dos entes queridos não se conhecem.

Na segunda metade do século XVIII, o cenário modificou-se. A acumulação dos mortos nas Igrejas ou nos seus pátios torna-se intolerável. O que durou quase um milénio sem incitar reservas é agora objecto de críticas muito duras, por duas ordens de razões. A primeira diz respeito à saúde pública, que fica comprometida pelas manifestações pestilentas e odores vindos das fossas, e a segunda prende-se com os solos das igrejas, a terra saturada de cadáveres dos cemitérios e a exibição dos ossários que violam a dignidade dos mortos.

Neste contexto, a Igreja é acusada de ter "cuidado" da alma e nada ter feito para cuidar do corpo, de ter recebido dinheiro de missas, bem como de se ter desinteressado dos túmulos.

Muitas pessoas preferiram enterrar os seus mortos na propriedade da família, pois pretendiam ter acesso ao lugar exacto onde estava o corpo e esse lugar pertence sem dúvida à família e ao defunto. É assim que a sepultura se converte numa espécie de propriedade com a garantia de perpetuidade e um local onde se vai visitar o familiar ou o ente querido, tendo-se ganho o hábito de a enfeitar com flores. Este hábito, que também perdura até aos nossos dias, ganhou uma maior expressão no "Dia dos Fiéis Defuntos", comemorado a 2 de Novembro.

Este culto aos cemitérios abriu-se ao indivíduo e à sociedade. Já no século XVIII os autores dos projectos dos cemitérios desejavam que estes fossem parques organizados para as visitas dos familiares e, ao mesmo tempo, museus de homens ilustres. Neste final do século XVIII, nasce uma nova representação da sociedade, que se desenvolverá e encontrará a sua expressão, no século XM, pelo positivismo25 de

25 "Sistema filosófico de Comte que se baseia nos factos e na experiência (...), repudiando tudo o que é

metafísico e sobrenatural" (Dicionário Universal da Língua Portuguesa, 1995, p. 1149).

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Comte (Ariès, 1975, p. 51). Admite-se que a sociedade se compõe, simultaneamente, de mortos e de vivos e uns e outros são significativos. A cidade dos mortos é o contrário da cidade dos vivos, ou, mais propriamente que o contrário, a sua imagem, e a sua imagem

internporal. "É que os mortos passaram o momento da mudança e os seus monumentos

são os sinais visíveis da perenidade da cidade" (ib., p. 51).

O culto nos cemitérios continua a ser uma das grandes expressões de solidariedade para com aqueles que deixaram o mundo dos vivos. Tenhamos em conta as visitas aos nossos familiares, amigos e demais pessoas.

Se no início do século XIX, devido à expansão urbana se tentou deslocar alguns cemitérios para fora das cidades, também, é verdade que as mentalidades começaram a mudar, reconhecendo-se a importância deles dentro das cidades. Desta forma, o cemitério reconquistou um lugar na cidade, físico e moral, que havia ocupado na Antiguidade e que tinha perdido no início da Idade Média.

Em todo o caso, assiste-se a uma ruptura nas mentalidades que se activa em meados do século XX e que tem o seu apogeu com a recusa da morte no Ocidente - é a morte interdita.

4. A morte interdita

Desde a Alta Idade Média até meados do século XM, a atitude perante a morte tem vindo a mudar mas tão lentamente que os contemporâneos não se foram apercebendo. Mas, a partir dos anos 30 do século XX, e, de forma vertiginosa nos anos 50, assistimos a uma verdadeira revolução de ideias e sentimentos de tal modo brutal que "a morte, outrora tão presente (...) toma-se vergonhosa e objecto de um interdito" (Ariès, 1975, p. 55). Esta atitude perante a morte começa a ter lugar na segunda metade do século XIX, onde se constata que o círculo de relações do moribundo vai tentar esconder-lhe o seu fim, ou seja, a situação de morte iminente, e a verdade começa a ser

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ocultada; em suma, a verdade começa a criar dificuldades. Havia uma preocupação em esconder a verdade à pessoa em fim de vida, era preciso poupar-lhe a sua "desgraça".

A origem deste sentimento já é conhecida e a intolerância da morte do outro e a confiança renovada do doente no seu circulo familiar, ajudam-nos a compreender esta atitude. Assim, evita-se não só ao moribundo, mas também à sociedade, o incómodo e a emoção demasiado fortes provocados pela agonia da morte em plena vida feliz. Aparentemente, nada mudou nos ritos da morte e ninguém tem a ideia de os alterar, mas começa a esvaziar-se a carga dramática e inicia-se o processo de escamoteamento.

Entre 1930 e 1950 começam a acontecer mudanças, e uma delas é a transferência do moribundo de casa para o hospital. É no hospital que se proporcionam cuidados que não se podem proporcionar em casa e é também um local que deixou de ser um asilo de miseráveis, passando a ser um "centro médico", onde se cura e se luta contra a morte.

Segundo os sociólogos americanos há dois tipos de doentes: os mais tradicionais que evitam deslocar-se ao hospital e assim morrem em casa e os mais modernos, que aguardam no hospital a hora da sua morte, porque se tornou inconveniente morrer em casa (Áries, 1975, p. 63).

A passagem do quarto do moribundo para o hospital tem a ver com a chamada medicalização da morte, levando as pessoas a acreditarem em milagres. Esta situação levou a que a morte fosse progressivamente banida do horizonte da vida, pois, "o avô velhinho e doente que dantes se via morrer "naturalmente", em casa, (...) vai morrer no hospital" (Rosa, 1985, p. 93). A morte no hospital é sintoma do seu afastamento temporal, uma vez que a esperança de vida aumentou, afastando-se no tempo a iminência da morte e, recuou-se na sua data provável porque cada ano ganho contra a morte é, na perspectiva da vida, um afastamento extraordinário (ib., p. 63).

Se, no final do século XVIII, a família desfrutara da confiança do moribundo, nos nossos dias, a família e o moribundo encontram-se alheias às circunstâncias da morte que, entretanto, passou para as mãos da equipa de saúde, "os senhores da morte". Por sua vez, estes controlam-na e esforçam-se para que a pessoa aceite a sua própria m ~ r t e ~ ~ e que também seja tolerada ou admitida pelos familiares (Ariès, 1975, p. 57).

Uma morte aceitável é aquela que será admitida e tolerada pelos sobreviventes. Contudo, é uma morte que desencadeia, nos sobreviventes, emoções fortes e são

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precisamente estas emoções que deverão ser evitadas, quer no hospital quer na sociedade em geral. Desta forma, os sobreviventes só têm direito a emocionarem-se em privado. Por sua vez, ao moribundo jamais compete despertar no pessoal de saúde a insuportável sensação de morte iminente, levando-o a fazer de conta que não vai morrer, pois "o novo costume exige que morra na plena ignorância da sua morte" (ib., p. 148).

Eis a transfiguração do cenário da morte, que durante séculos, ou até mesmo milénios, tão pouco tinha mudado.

Actualmente, as cerimónias fúnebres são entregues aos novos profissionais da morte, isto é, às agências funerárias, que se encarregam de realizar a cerimónia de uma forma discreta, evitando-se emoções. Assim, as condolências à família tendem a ser suprimidas no final do enterro.

As manifestações de luto, como o envergar vestuário negro, também estão em vias de extinção, pois os sobreviventes já não adoptam uma aparência muito diferente da de todos os dias.

Nos dias de hoje, um desgosto desregrado não inspira piedade mas aborrecimento; é uma manifestação de desarranjo mental. No seio da família evita-se exteriorizar a dor, a fim de não impressionar as crianças.

Desta forma, procura-se ignorar a morte, abolindo os seus sinais aparentes, e abandona-se tudo o que lhe diz respeito, tudo o que pode ameaçar a própria felicidade. E assim o morto cada vez menos é visitado e, em países como a Inglaterra, a incineração está a tornar-se uma prática dominante de "sepultura". Esta parece ser a melhor prática para fazer desaparecer e anular tudo o que possa restar do corpo: é o fim27. Por outro lado, a peregrinação é excluída.

Apesar de tudo o que temos vindo a dizer, a morte continua a ser muito sentida no seio da família. O que mudou foi o direito de o confessar e de o demonstrar. O que outrora era obrigatório, agora tornou-se proibido.

No século XX, a morte tomou-se num tabu, substituindo o sexo. No passado, as crianças assistiam à morte do avô, em redor da sua cabeceira, assistindo à cena do adeus. Actualmente, recebem explicações de ordem sexual, desde muito cedo, mas quando o avô morre, "os grandes" ocultam-lhe a verdade, dizendo que o avô "foi para Jesus". E refugiado em fantasias, vai crescendo e contribuindo para o interdito da morte.

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É possível que esta atitude perante a morte, isto é, o interdito da morte, tenha nascido nos Estados Unidos no início do século XX, a fim de preservar a felicidade (Ànes, 1975, p. 59).

Nos nossos dias, existem semelhanças entre uma parte da atitude Americana perante a morte e a da Europa iluminada do século XVIII. Assim como nessa época, os enterros eram cumpridos segundo a tradição. Os embal~amamentos~~ dos cadáveres (técnica que foi uma tradição Europeia, abandonada no século XIX), continua presente nos Estados Unidos, sendo ainda hoje uma prática muito comum. De facto, é possível compreender a prática do embalsamamento, uma vez que existe quase uma recusa generalizada em admitir a morte.

Por outro lado, a morte tomou-se objecto de comércio e de lucro. Não se vende bem o que não tem valor por demasiado familiar, nem o que provoca medo ou pena, salienta Ariès (1975). Para vender a morte é necessário tomá-la desejável e, neste contexto, surgem os vendedores da morte, que têm como missão, desde o final do século XIX, ajudar os sobreviventes enlutados a regressar à vida normal29.

Por esta razão, o luto deixou de ser um tempo necessário imposto pela sociedade; torna-se mórbido e, como tal, é preciso ser abreviado e eliminado.

Com esta perspectiva, vemos nascer e crescer as ideias que levarão ao interdito actual, assente no desmoronamento do puritanismo, numa cultura urbanizada, dominada pela busca da felicidade ligada à do lucro, e um crescimento económico rápido (Ariès,

1975, p. 62).

Apesar de os Americanos, e aqui reside a sua originalidade, ansiarem transformar a morte, disfarçando-a e sublimando-a, não a querem ver desaparecida, pois isso implicaria o fim do lucro.

Apesar do velório ao morto ser cada vez mais escamoteado na Europa, ele persiste com a visita ao cemitério e a veneração aos túmulos. Por isso, ao público, bem como aos vendedores da morte, a ideia da incineração é repudiada, porque faz desaparecer muito depressa os restos do morto. Contudo, parece que, entre nós, a prática de incineração vem aumentando, pelo que a "Câmara Municipal de Lisboa tem desenvolvido acções no sentido de uma maior divulgação desta prática, de acordo com a

28 "Não se trata de embalsamamento destinado a impedir a putrefacção do corpo, mas de um processo de conservação temporária para prolongar por algum tempo a aparência da vida (...) característica do

american way of death (Ariès, 1975, p. 62).

29 São OS doctors of grief (vendedores da morte) que têm esta missão tal como os padres e os médicos

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sensibilidade da população perante as inquietações que a percepção da morte produz". Assim, tem em conta que a prática de incineração não é apenas uma medida de economia de espaço (Godinho, 1997, p. 4, citado em Oliveira, 1999, p. 76).

Ariès (1975, p. 63) acrescenta que é talvez pelo facto de a sociedade americana não ter aceitado na totalidade o interdito da morte que mais facilmente pode contestá-lo. Desta forma, aparece um número cada vez maior de publicações americanas, escritas por sociólogos e psicólogos, que se ocupam da morte na sociedade actual e, particularmente, nos hospitais. Nestas publicações não constam as condições dos funerais e do luto, porque estas são consideradas satisfatórias. Em contrapartida, os autores ficaram impressionados com a solidão com que se morre nos hospitais. O morto perdeu o lugar que a tradição lhe havia concedido durante milénios, para agora, o círculo médico e familiar preocupar-se com a sua morte, mas sendo mais como objecto de uma decisão voluntária deles próprios; é uma decisão vergonhosa e clandestina.

Esta literatura activa o discurso em redor da morte e ameaça o interdito, mas apenas no local de onde é originária e onde encontrou os seus limites, porque, noutras sociedades contemporâneas, o interdito mantém-se ou alastra o seu império. Também na Europa, concretamente, em Portugal, começa a aparecer nos media a forma como se morre nos hospitais portugueses. Verificamos uma preocupação crescente com a prática de cuidados paliativos, que nasce de uma necessidade sentida pelos profissionais de saúde de prestar cuidados às pessoas em fim de vida, numa unidade exclusivamente direccionada a estas pessoas e onde exista a preocupação em proporcionar-lhes um ambiente em que se sintam confortados.

No entanto, a ideia da morte parece muito esquecida e só em alguns lugares nomeadamente os meios rurais, onde ainda prevalecem costumes populares e práticas sociais enraizadas, é que a morte é familiar. É o caso de algumas localidades do Noroeste de Portugal (Feijó et al., 1985 citado em Oliveira 1999, p. 58).

Conclusão do Capítulo I

Em jeito de conclusão poderemos referir que explicitámos as perspectivas da morte desde a Antiguidade até à Època Actual.

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FIGURA  No  1  -  Dinâmica  do  processo  de  cuidar:  inclui  enfermeiro-pessoa  numa  relação  transpessoal
FIGURA  No  2  -  Temas

Referências

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