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<i>Ubirajara</i>: a trajetória de um herói mítico

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UBIRAJARA: A TRAJETÓRIA DE UM HERÓI MÍTICO

Marcos Lúcio de Sousa GÓIS*

O escopo deste trabalho é apresentar uma leitura centrada na

isotopia mítica em Ubirajara, romance indianista de José de Alencar,

enfocando a travessia mítica do protagonista e levando em consideração a

relação entre mito e rito. Assim, procuraremos ressaltar as várias etapas do

ritual de iniciação de Jaguaré ao longo da narrativa alencariana até sua

(con)sagração como Ubirajara. Almejamos, com isso, entender melhor a visão

romântica do índio em Alencar.

UBIRAJARA N A P R O D U Ç A O L I T E R Á R I A A L E N C A R I A N A

Sabe-se que a obra de José de Alencar comporta quatro grandes

divisões, e, dentre elas, destacamos os romances indianistas: O Guarani

(1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874).

De acordo com Silviano Santiago, para uma melhor leitura e

compreensão de Ubirajara, deve-se levar em consideração tanto O Guarani

quanto Iracema, além dos diversos textos que compõem a chamada

"Literatura de Informação" desde A Carta de Caminha. Ainda segundo

Santiago, tais textos, de forma consciente ou inconsciente, ao longo de nossa

história, "vêm definindo ... a oposição entre um cultura européia, invasora e

colonizadora, e uma cultura autóctone, invadida e colonizada." (1984, p. 5).

De fato, em O Guarani, Alencar procura criar um símbolo nacional

para um país recém-independente, enfocando, inclusive, a formação

étnico-cultural do Brasil. 0 elemento indígena e masculino (simbolizando o Brasil),

representado por Peri, funde-se ao branco e feminino (simbolizando a

* Aluno do Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Araraquara - SP.

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Europa), representado por Cecília. Portanto, miscigenação das raças. Em

Iracema,

a mesma tese continua a se desenvolver. Agora, o elemento branco

é

masculino (simbolizando Portugal), representado por Martim, e o indígena é

feminino (simbolizando a América), representado por Iracema:

Ubirajara

dramatiza acontecimentos pré-cabralinos,

enquanto

Iracema

fala das origens da nação brasileira em

linguagem simbólica, e já

O Guarani

se situa num contexto

histórico propriamente feudal, isto é, o Brasil dos

primeiros grandes 'senhores da terra'. Nesse sentido, é

oportuno indicar como a concepção que Alencar tem do

Brasil - como civilização a se afirmar - se dá por uma

constante mistura de elementos heterogêneos, se impondo

como produto final o valor

híbrido.

(Santiago, 1984, p. 5)

Como se pode observar, os dois primeiros romances indianistas de

Alencar desenvolvem-se num período pós-descobrimento. Assim, o elemento

indígena, tanto em

O Guarani

quanto em

Iracema,

relaciona-se com o

branco, base também de nossa cultura. Em

Ubirajara,

por sua vez, há apenas

o índio no período pré-descobrimento. Em outras palavras, a história deste

romance desenvolve-se somente entre povos indígenas, estando ausente o

homem branco. Segundo a crítica literária tradicional, a volta aos tempos

medievais (na Europa), o escapismo no tempo, é uma das características do

Romantismo. O período pré-cabralino no Brasil, presente em

Ubirajara,

corresponde justamente ao que representou a Idade Média em terras

européias. Com isto, Alencar procurou criar um "tempo mítico" em seu

romance.

S Í N T E S E DO F I O N A R R A T I V O

O enredo de

Ubirajara

narra a aventura de um jovem caçador,

Jaguaré, da tribo dos araguaias, que, por estar prestes a ser o chefe de sua

aldeia (e isto já pressupõe um feito heróico), almeja um rival grandioso. Tal

façanha lhe dará um título nobre, passando de caçador a guerreiro, de acordo

com as tradições de seu povo. Nessa procura, encontra Pojucã, "guerreiro

chefe da nação tocantim", a quem desafia para combate. Ambos são

admiráveis do ponto de vista de sua força e coragem. Durante a luta, Jaguaré

("o mais feroz jaguar da floresta") vence e recebe, além do nome Ubirajara

("o senhor da lança de duas pontas"), a glória do guerreiro. Agora guerreiro,

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ele leva o vencido para a tribo araguaia a fim de matá-lo, pois não é permitido

to vencedor escravizar o vencido. Como esposa de túmulo, costume indígena,

o guerreiro vencido recebe Jandira, noiva do vencedor, como mulher, a fim de

transmitir à tribo araguaia o sangue valioso do guerreiro tocantim.

Ubirajara parte em busca de Araci, a mais bela da tribo tocantim,

por quem se apaixonou antes de lutar com Pojucá. Na tribo da linda

caçadora, o "senhor da lança" torna-se "Servo do Amor", fazendo-se servo

para conquistar a confiança de Itaquê, pai de Araci e chefe da tribo tocantim.

Como hóspede e "Servo do Amor", não lhe é permitido revelar seu verdadeiro

nome. Por isso, Ubirajara, "senhor da lança", recebe o nome de Jurandir,

"aquele que veio trazido pela luz do céu". Jurandir disputa a mão de Araci no

"Combate Nupcial" e vence os demais guerreiros. Em seguida, é obrigado a

dizer quem é na verdade. Assim, Jurandir revela que é Ubirajara, chefe da

grande nação araguaia, e conta ainda que obteve o título de guerreiro ao

derrotar Pojucã, que mantém em seu poder. Com esta revelação, os tocantins

declaram guerra aos araguaias, pois Pojucã é filho de Itaquê. "O senhor da

lança de duas pontas" aceita o desafio e retorna à sua tribo a fim de

prepará-la para a guerra. Quando urdia a estratégia de combate, toma conhecimento

que a tribo tocantim planejava combater primeiro os tapuias

1

, uma tribo

inimiga, para depois enfrentar os araguaias. Porém, no conflito entre as

nações tocantim e tapuia, Itaquê fica cego, não podendo mais comandar sua

tribo. Ante essa tragédia, Ubirajara une os dois povos, araguaias e tocantins,

formando uma só tribo: os Ubirajaras. Casa-se com Jandira, índia araguaia, e

com Araci, índia tocantim, fortalecendo ainda mais a aliança e tornando-se o

grande chefe da nação emergente.

A PERSONAGEM U B I R A J A R A ENQUANTO H E R Ó I M Í T I C O

O termo lenda é um dos sinônimos mais usuais para mito. Na

"Advertência", que antecede à narrativa de

Ubirajara,

José de Alencar já

indica ao leitor o caráter lendário da narrativa: "Este livro é irmão de

Iracema. Chamei-lhe lenda como ao outro." (1984, p. 11, grifo nosso). Além

disso, uma vez que a obra gira em tomo das façanhas de um único

protagonista, este já é - em essência - o herói de uma lenda, um herói mítico.

1

Na verdade nunca existiu de fato uma nação

tapuia.

Este termo era utilizado

pelos índios tupinambá para referir-se aos povos que falavam línguas

nao-tupt,

significando "Hngua travada". Assim,

tapuia

é um dos termos da primeira

classificação das línguas indígenas do Brasil (MelattL 1993, p. 33).

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Contudo, antes de interpretar uma personagem como mítica, faz-se n e c e s s á r i o investigar primeiro o significado do termo

mito.

Os mitos, enquanto narrativas, admitem v á r i a s e x p l i c a ç õ e s : podem refletir eventos h i s t ó r i c o s , podem significar a força do cosmos personificado, e podem, ainda, ditar normas de comportamento social numa determinada sociedade. Em geral, s ã o narrativas totalmente fantásticas que, na maioria das vezes, apresentam a ç õ e s , pessoas e fatos e x t r a o r d i n á r i o s , e c o n t ê m algumas idéias populares relativas aos fenômenos históricos (por exemplo, o desaparecimento do rei D o m S e b a s t i ã o , de Portugal) ou naturais, como "deus do t r o v ã o " , "deus do raio", "deus da chuva".

Aristóteles, na Poética, trata o mito como s i n ô n i m o de história, intriga ou fábula, significando " u m conjunto elaborado de elementos selecionados e agenciados, segundo uma ordem verossímil, que se e x p õ e m à diversidade a l e a t ó r i a dos acontecimentos reais" (apud. Costa, 1992, p . 72-3). Para o pensamento aristotélico, o mito exprime e narra o que em verdade é.

Segundo Fernando Bastos, o mito " n ã o apresenta as coisas o u eventos originados, apresenta as origens" (1992, p. 39). J á para o filósofo luso-brasileiro Eudoro de Sousa, em seu l i v r o Mitologia II - história e mito, os mitos n ã o devem ser captados pela R a z ã o . Seus relatos s ã o s i m b ó l i c o s , devendo, portanto, ser captados pela sensibilidade. Assim, os mitos s ã o algo n ã o - r a c i o n a l e não-lógico:

... o mito é linguagem da sensibilidade e da imaginação; que é da sensibilidade e da imaginação que parte do impulso mítico, criador de mitos. Por ora, contento-me com a analogia: o mito está para a sensibilidade como a ciência (generaliter) está para a inteligibilidade (1993, p. 45).

N a r e l a ç ã o mito-homem, é importante que haja o

rito.

Os seres humanos assimilam o sentido de uma a ç ã o p r i m i t i v a e imprescindível a t r a v é s do rito, da referência indireta que se faz do profano e do sagrado numa t r a n s c e n d ê n c i a vivida.

Mito

e

rito

sempre se relacionam de forma estreita e, nessa r e l a ç ã o , entra todo u m sistema social. E m outras palavras, posto que o

mito

t e m uma l i g a ç ã o t ã o p r ó x i m a com o

rito,

t a m b é m e s t á intrinsecamente relacionado à sociedade que o forjou.

... o mito funciona socialmente. Existem bocas para dizê-lo e ouvidos para ouvi-lo. O mito está ai na vida social, na existência. Sua 'verdade', conseqüentemente,

(5)

deve ser procurada num outro nível, talvez, numa outra

lógica. (Rocha, 1985, p. 10)

Os mitos surgem da relação entre homem (sensibilidade), deus

(divindade) e mundo (Natureza), uma relação que poderíamos representar

graficamente da seguinte forma:

deus

(divindade)

MITO

homem mundo

(sensibilidade) (natureza)

E, para o sucesso das narrativas míticas, é fundamental que nelas

haja a presença de heróis com traços universais, arquetípicos. "Os heróis dos

mitos compartilham características universais: bravura, honra, fidelidade e

beleza. Com freqüência muito grande têm nascimentos milagrosos, ou pai

e/ou mãe divinos" (McCall, 1994, p. 74).

Desta forma, percebe-se na caracterização de heróis míticos a

ascendência nobre; a superioridade em relação a outros mortais (é bom

lembrar que os heróis não são imortais por natureza, mas podem alcançar a

imortalidade - a divinização); linhagem divina e humana, poderes

sobrenaturais, etc. Os heróis míticos (como o Hércules greco-romano, por

exemplo) situam-se, por sua complexidade, no limiar entre o humano e o

sobre-humano, entre o natural e o transcendental, entre a realidade e a

supra-realidade.

Os heróis míticos percorrem um longo caminho de provações até

chegar à glória total, inaugurando uma nova era, um novo tempo. Durante

suas respectivas trajetórias, no sentido físico e existencial, os protagonistas

terão que provar que são dignos de sua grandeza (força, coragem, fidelidade,

beleza e honra), vencendo os vários empecilhos do mundo (da Natureza).

Logo, a travessia dos heróis precisa ser acidentada. O percurso deve ser

árduo, pois os vários obstáculos que a Natureza impõe ao herói justificam a

glória que ele alcança.

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A a n á l i s e mítica dessa aventura revela que a a s c e n d ê n c i a nobre dos heróis tem dupla significação: a nobreza tanto pode estar ligada a títulos ilustres (majestade), como t a m b é m à honra, à honestidade, entre outros t r a ç o s positivos de caráter. E m Ubirajara é evidente a a s c e n d ê n c i a nobre da personagem principal:

- ...Camacã revive em t i ; a glória de ser o maior guerreiro cresce com a glória de ter gerado um guerreiro ainda maior do que ele. (Alencar, 1 9 8 4 , p. 32)

- Camacã, t u és o primeiro guerreiro e o maior chefe da nação araguaia. Para a glória de Jaguaré, bastava que ele se mostrasse teu filho no valor como é teu no sangue. (Alencar, 1984, p. 32)

A o declarar que gerou u m guerreiro maior do que ele mesmo, C a m a c ã , pai do protagonista e chefe da grande n a ç ã o araguaia, reafirma a nobreza j á latente no herói. E m outras palavras, Ubirajara pertence por direito à c ú p u l a de sua tribo por ser filho do maior guerreiro araguaia a t é aquele momento. A l é m disso, Ubirajara reconhece a sua p r ó p r i a magnitude ao dizer que é filho no valor, como o é no sangue, do grande C a m a c ã .

Outras c a r a c t e r í s t i c a s s ã o marcantes na vida dos heróis m í t i c o s , entre as quais se destaca a superioridade em r e l a ç ã o a outros mortais. A s citações a seguir relevam a superioridade do herói alencariano: " E u sou Ubirajara, o senhor da l a n ç a , guerreiro invencível que tem por arma a serpente." (p. 27); "Os guerreiros araguaias te recebem por seu i r m ã o nas armas e te aclamam forte entre os fortes." (p. 31).

Declarando-se i n v e n c í v e l e recebendo a d e s i g n a ç ã o "forte entre os fortes", Ubirajara é colocado no ponto mais alto entre os mortais. Essa superioridade v a i a p r o x i m á - l o dos deuses, de tal forma que o herói passa a situar-se no limiar entre o humano e sobre-humano. Essa a p r o x i m a ç ã o s e r á gradativamente fortalecida porque a personagem apresenta a s c e n d ê n c i a divina e humana:

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Mas T u p ã2, (...), emprestou sua força a Jaguaré, o

maior guerreiro que j á pisou na terra. (p. 30)

Os mais velhos dos moacaras acreditaram que o

hóspede era filho de Sumê.

3

(p. 57)

A primeira água em que Jaçanã, sua mãe, o lavou,

quando ele rasgou-lhe o seio, foi a do grande lago onde

Tupã guardou as águas do dilúvio, (p. 54)

Se Tupã emprestou sua força a Jaguaré, significa que há uma certa

afinidade entre a personagem principal e a maior divindade indígena, o deus

do trovão. Os fragmentos acima também deixam transparecer que o herói

Ubirajara tem, mesmo que seja através da crença dos moacaras

4

, uma certa

relação fraternal com outro ser sagrado na cultura dos aborígenes: Sumê, uma

entidade sábia que, como acentua o próprio narrador do romance, "veio donde

a terra começa e caminhou para onde a terra acaba" (p. 50).

A alusão feita a Jurandir (= Jaguaré = Ubirajara) como sendo filho

de Sumê ou como receptor da força de Tupã, além de apresentar um forte

indício de semi-endeusamento do herói, reforça, mais uma vez, que a presença

de deuses, elementos misteriosos, fenômenos do Inconsciente Coletivo, como

"as águas do dilúvio", presentes na maioria das culturas, são acontecimentos

obrigatórios nos mitos.

2 "Designação tupi do trovão, usada pelos missionários jesuítas para designar a

Deus; Tupã" (Ferreira, 1986, p. 1727).

3 "Personagem lendária, que os índios acreditam haver aparecido misteriosamente

entre eles, haver-lhes ensinado a agricultura, e afinal, desgostosa dos homens, desaparecido, com o mesmo mistério" (Ferreira, 1986, p. 1628).

4 Segundo o próprio Alencar, em nota de rodapé, moacara significa: "O dono da

casa, ou literalmente o que fazia a c a s a , e r a a perfeita imagem do patriarca. Ele governava a sua gente; e formava uma sociedade independente, no seio da grande sociedade política, de que era membro e para cuja defesa concorria não só por interesse próprio, mas pela honra da nação" (p. 19). Obs.: Em o Ubirajara, José de Alencar coloca, em notas de rodapé, observações como esta sobre os moacaras, de grande relevância para u m melhor compreensão não só do romance que escreveu, como também para um maior entendimento da cultura tupi.

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Para os feitos de u m grande herói, nada melhor que u m c e n á r i o de grande décor e antagonistas à sua altura, de modo que possam servir-lhe temporariamente de empecilho, mas n ã o vencê-lo. Alencar usou as tintas do romantismo para ressaltar a grandiosidade de Ubirajara. N ã o por acaso, proliferam ao longo da narrativa c o m p a r a ç õ e s e m e t á f o r a s que atribuem ao protagonista poderes sobre-humanos. Assim, algumas forças da Natureza, que correspondem aos T i t ã s na mitologia grega, aparecem como u m dos termos das c o m p a r a ç õ e s :

O bramido rolou pela amplidão da mata e foi morrer longe nas cavernas da montanha, (p. 15)

Seu braço é como o corisco do céu; e a sua força como a tempestade que desce das montanhas, (p. 31)

Jurandir não esperou que o peixe desenrolasse a linha. Puxou-o para terra; e levou-o vivo à cabana de Itaquê, onde três guerreiros custaram a deitá-lo no jirau. (p. 59)

S ã o notáveis os poderes que Ubirajara possui. Para que se propague "pela a m p l i d ã o da mata", o rugido da fera (bramido) tem que ser muito forte para vencer as barreiras (principalmente as á r v o r e s ) e i r "morrer longe nas cavernas". A c o m p a r a ç ã o entre o b r a ç o de Jurandir e o corisco (espécie de raio, faísca), e de sua força c o m a da tempestade d á ao guerreiro araguaia uma aura de personagem mítico. Some-se a isso que ele é capaz de fazer sozinho e sem muito esforço, o que três guerreiros s ó realizam com dificuldade, como se lê na ú l t i m a das citações acima. Nota-se, assim, que ao longo da narrativa alencariana, a personagem principal v a i ganhando cada vez mais c a r a c t e r í s t i c a s que lhe atribuem poderes superiores à capacidade dos demais seres humanos. C o n s e q ü e n t e m e n t e , dentro desta v i s ã o de primazia do protagonista, encontram-se t a m b é m u m grande rival, uma grande mulher e uma grande n a ç ã o indígena.

Assim, para deixar de ser J a g u a r é ( c a ç a d o r ) e chegar a Ubirajara (guerreiro), o herói t e r á que encontrar u m rival digno de dar-lhe a g l ó r i a n e c e s s á r i a ao novo título. Por isso, P o j u c ã n ã o pode ser a l g u é m mediano, mas u m antagonista difícil de ser vencido, o que se comprova nos seguintes trechos: "Cada u m dos c a m p e õ e s p ô s na luta todas as suas forças, bastantes para arrancar o tronco mais robusto da floresta." (p. 24); "Seu corpo é a

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serra que se levanta no vale. Nenhum homem, nem mesmo C a m a c ã , o pode abalar." (p. 30).

Entretanto, n ã o basta a J a g u a r é a glória do guerreiro. Para ser completo, precisa encontrar uma esposa que seja t a m b é m gloriosa. Por isso, Ubirajara n ã o teve dificuldades em escolher entre Jandira, "a que fabrica mel", e A r a c i , "a estrela do dia". Enquanto a primeira é a "doce v i r g e m " e n ã o revela nenhuma c a r a c t e r í s t i c a especifica de c a ç a d o r a ou de guerreira em seu c a r á t e r ; a segunda é a "gentil c a ç a d o r a " da n a ç ã o inimiga. O ideal da "mulher pura", virgem, ligado à imagem da deusa e eximia c a ç a d o r a Diana da mitologia greco-romana, fascinam o grande guerreiro araguaia. Desta forma, os detalhes que acentuam as características físico-morais e os feitos de A r a c i d ã o a ela o c a r á t e r de uma mortal divinizada. Para citar alguns exemplos:

A liga vermelha que cingia a perna esbelta da estrangeira dizia que nenhum guerreiro jamais possuíra a virgem formosa, (p. 15)

A caça veio cair aos pés de Jaguaré, atravessado pela flecha certeira da jovem caçadora que a seguia de perto, (p. 16)

Mas a virgem dos tocantins corria como a nambu no deserto, e o caçador conheceu que seu braço nunca a poderia alcançar." (p. 17)

Se para u m grande guerreiro h á sempre u m grande rival e uma grande esposa, nada mais sensato que para u m grande chefe haja uma grande n a ç ã o : "Ubirajara fará a n a ç ã o tocantim t ã o poderosa como a n a ç ã o araguaia. Ambas s e r ã o i r m ã s na g l ó r i a e f o r m a r ã o uma s ó , que h á der ser a grande n a ç ã o de Ubirajara, senhora dos rios, montes e florestas." (p. 91).

Dentro da travessia existencial do herói, n ã o basta a ele apenas possuir u m grande rival, uma grande esposa o u uma grande n a ç ã o . Ele necessita morrer. A morte d a r á à personagem acesso a uma nova vida, e, c o n s e q ü e n t e m e n t e , a cada vida, uma nova morte. Nas narrativas míticas, a morte assume u m c a r á t e r simbólico, isto é, não se morre em carne e o osso, morre-se para ressurgir n u m novo mundo. Geralmente, a travessia mítica de

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u m herói é marcada por t r ê s mortes aparentes e s i m b ó l i c a s , que configuram etapas de u m ritual de iniciação.

E m Ubirajara, as v á r i a s mortes simbólicas correspondem aos m ú l t i p l o s nomes que o herói recebe ao longo do enredo. O protagonista passa de c a ç a d o r a guerreiro, de guerreiro a "Servo do A m o r " , de "Servo do A m o r " a chefe da n a ç ã o dos Ubirajaras. Assim, a primeira morte ritual acontece quando o protagonista deixa de ser c a ç a d o r para tornar-se guerreiro, ou quando deixa de ser J a g u a r é para tomar-se Ubirajara, efetivando-se a í uma m u d a n ç a de identidade, de faixa e t á r i a e de papel social:

Jaguaré chegou à idade em que o mancebo troca a fama do caçador pela glória do guerreiro, (p. 14)

... Jaguaré d'um salto colocou a mão direita sobre o ombro esquerdo do vencido, e brandindo a arma sangrenta, soltou o grito do triunfo:

- Eu sou Ubirajara, o senhor da lança... (p. 7)

A segunda morte ocorre quando deixa de ser Ubirajara para ser Jurandir, ou de ser guerreiro para ser servo. A s u b m i s s ã o ao pai de A r a c i acentua-lhe a r e s i g n a ç ã o e a firmeza de p r o p ó s i t o s como t r a ç o s positivos de c a r á t e r : " E u sou aquele que veio trazido pela luz do c é u . Chama-me Jurandir." (p. 52); " - Grande chefe do tocantins, Jurandir... veio para servir ao pai de A r a c i , a formosa virgem, a quem escolheu para esposa." (p. 59).

A terceira morte simbólica acontece quando o protagonista deixa de ser Jurandir e volta a ser Ubirajara. Todavia, este regresso s e r á envolto numa g l ó r i a maior: além de pacificador da r e g i ã o , Ubirajara toma-se chefe da a l i a n ç a entre araguaias e tocantins: " A s duas n a ç õ e s , dos araguaias e dos tocantins, formaram a grande n a ç ã o dos Ubirajaras, que tomou o nome do h e r ó i . " (p. 94).

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I araguaia amor Ubirajaras

A r e p r e s e n t a ç ã o gráfica acima representa bem as mortes s i m b ó l i c a s sofridas pelo herói; t a m b é m p o d e r í a m o s chamar de a s c e n s ã o aquilo que o protagonista vivência desde J a g u a r é , passando por Ubirajara (guerreiro araguaia) e Jurandir, a t é chegar ao ápice dos seus feitos h o m é r i c o s como Ubirajara, o senhor dos U b i r a j a r a s . '

Entretanto, o ponto culminante da trajetória m í t i c a de Ubirajara f o i guardado por Alencar a t é o desfecho da narrativa. A o longo do desenvolvimento do enredo, o leitor fica ciente que somente os líderes das n a ç õ e s indígenas eram capazes de envergar u m grande arco de flecha, signo maior de vigor físico e s í m b o l o s de poder entre os índios de uma tribo, na v i s ã o idealista de J o s é de Alencar. Ora, no desfecho do romance, antes de unir as duas tribos e l a n ç á - l a s na guerra contra os tapuias, Ubirajara enverga simultaneamente os dois grandes arcos, araguaia e tocantim. C o m isto, Alencar duplica o herói, o u seja, Ubirajara é duas vezes mais capaz que os antigos líderes das duas n a ç õ e s indígenas, araguaia e tocantim, representadas respectivamente pelas cores vermelha e amarela.

Finalmente, o herói inaugura uma nova era: "Desde esse dia nunca mais u m tapuia pisou as margens do grande rio." (p. 93).

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CONCLUSÃO

A análise empreendida neste trabalho revela algumas c a r a c t e r í s t i c a s do protagonista de Alencar que nos permitem chegar a algumas c o n c l u s õ e s . A primeira delas diz respeito à classificação da personagem principal: Ubirajara é, sem d ú v i d a , uma personagem plana e mítica. De fato, Alencar visou criar u m herói que fosse p r o t ó t i p o de beleza física e de virtudes, n ã o se preocupando, portanto, em dar a ele uma d i m e n s ã o psicológica. A s s i m sendo, nota-se que o autor de Ubirajara seguiu a receita do romantismo ufanista, que objetivava a c r i a ç ã o de símbolos nacionais a t r a v é s de heróis. N ã o é por acaso que a palavra herói aparece com muita freqüência ao longo do texto.

A segunda c o n c l u s ã o a que se chega refere-se ao tempo e ao e s p a ç o na narrativa alencariana. A o lado de u m tempo cronológico, dado pelo encadeamento das a ç õ e s a t é o c l í m a x do romance, Alencar optou por criar u m tempo mítico em detrimento de u m tempo psicológico. Esse procedimento justifica-se na medida em configura uma das caraterísticas do romantismo nacionalista: a fuga da realidade e do presente para tempos remotos, h e r ó i c o s e, c o n s e q ü e n t e m e n t e , míticos. D o mesmo modo, de forma coerente, a par de u m e s p a ç o social bem definido (o enredo desenvolve-se entre povos indígenas), Alencar abre m ã o do e s p a ç o psicológico para dar vez ao e s p a ç o mitológico. Tempo e e s p a ç o literários em Ubirajara s ã o , por assim dizer, efetivamente romanescos, ou seja, produto da i m a g i n a ç ã o literária r o m â n t i c a , que tende para o venturoso.

Finalmente, a terceira c o n c l u s ã o é relativa ao p r ó p r i o título deste estudo: Ubirajara é, indubitavelmente, u m herói mítico. Vale a pena tecer aqui algumas c o m p a r a ç õ e s entre o mito alencariano e mitos gregos para a fim de se compreender o ufanismo exacerbado do autor.

A o c o n t r á r i o dos heróis da mitologia grega, que eram antropomorfizados e, por isso mesmo, apresentavam as mesmas qualidades e defeitos dos seres humanos, Ubirajara é divinizado. E m outros termos, o h e r ó i de Alencar assemelha-se mais a u m deus do que a u m simples mortal.

Os deuses, semideuses e heróis na mitologia grega c o m p õ e m u m conjunto complexo e significativo de explicações n ã o s ó para a cosmogonia como t a m b é m para a trajetória e o comportamento humano. Nos mitos helénicos, forças c ó s m i c a s e naturais, elementos estelares e terrenos coexistem e tecem relações que explicam, pela força dos mitos e obliquamente, u m a série de fenômenos que escapam ao racionalismo humano. N a narrativa de Alencar, ao c o n t r á r i o , as i n ú m e r a s referências a elementos estelares e a forças

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da natureza s ã o recursos dos quais se valeu o autor para acentuar a grandiosidade do herói por ele criado.

De certa forma, José de Alencar endossou o " m i t o do bom selvagem", de Rousseau: "o homem é bom, a sociedade o corrompe". Ele idealizou em Ubirajara o herói, o índio brasileiro em toda a sua grandiosidade.

R e f e r ê n c i a s b i b l i o g r á f i c a s

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Referências

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