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A dança das confissões: introdução à oralidade, performance e inscritura em Niketche, de Paulina Chiziane

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM. Igara Melo Dantas. A DANÇA DAS CONFISSÕES: INTRODUÇÃO À ORALIDADE, PERFORMANCE E INSCRITURA EM NIKETCHE, DE PAULINA CHIZIANE. Natal 2017.

(2) Igara Melo Dantas. A DANÇA DAS CONFISSÕES: INTRODUÇÃO À ORALIDADE, PERFORMANCE E INSCRITURA EM NIKETCHE, DE PAULINA CHIZIANE. Dissertação apresentada ao programa de Pósgraduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre com Área de Concentração em Literatura Comparada. Linha de pesquisa: Poéticas da Modernidade e da Pós-Modernidade Orientadora: Profª Drª Tânia Lima. Natal 2017.

(3) Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA. Dantas, Igara Melo. A dança das confissões: introdução à oralidade, performance e inscritura em Niketche, de Paulina Chiziane / Igara Melo Dantas. - 2017. 122f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, 2017. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Tânia Maria de Araújo Lima. 1. Literatura moçambicana. 2. Chiziane, Paulina, 1955. 3. Oralidade. I. Lima, Tania Maria de Araújo. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA. CDU 821(679)-31.

(4) A DANÇA DAS CONFISSÕES: INTRODUÇÃO À ORALIDADE, PERFORMANCE E INSCRITURA EM NIKETCHE, DE PAULINA CHIZIANE. Igara Melo Dantas. BANCA EXAMINADORA. Profª Drª Tânia Maria de Araújo Lima (orientadora) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Prof. Dr. Henrique Eduardo de Sousa (examinador interno) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Prof. Dr. Sávio Roberto Fonsêca de Freitas (examinador externo) Universidade Federal Rural de Pernambuco. Natal 2017.

(5) AGRADECIMENTOS. Gratidão aos poetas que o destino fez-me encontrar sob a forma de professores, em especial, à Tânia Lima e Henrique Eduardo de Sousa. Agradecimento também aos demais professores que compõe o Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que, de alguma forma, contribuíram para o caminhar desta pesquisa. Meu profundo reconhecimento ao professor Sávio Roberto Fonsêca de Freitas por seus escritos sobre a Literatura de Moçambique e por aceitar, enquanto especialista, compor a leitura e a revisão deste trabalho. Agradecimento também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa concedida durante o período em que esta pesquisa foi elaborada. Por fim, agradeço ao meu amor e a todos os amigos e familiares que estiveram junto a mim neste percurso. Gratidão sempre..

(6) Ao meu pai, Metade minha Por tantas e tantas vezes Que tentei recompor sua presença na lembrança Em meio às ausências, mas Que se foi durante o caminhar desses escritos..

(7) Porque cada começo é só continuação e o livro dos eventos está sempre aberto no meio.1 ~ Wisława Szymborska. 1 Última estrofe do poema, intitulado miłość od pierwszego wejrzenia, traduzido por Regina Prybycien como ‘Amor à primeira vista’. SZYMBORSKA, Wisława. Fim e Começo, 1993..

(8) RESUMO. Esta dissertação apresenta um estudo panorâmico acerca da oralidade no romance africano, particularmente, na obra Niketche: uma história de poligamia (2004), da moçambicana Paulina Chiziane, considerada a primeira escritora de seu país a publicar neste gênero. Investigamos a forma sob a qual o corpo da narração articula as três categorias que desempenham um importante papel para a sensibilidade e a percepção do oral no texto escrito: a voz, a letra e o gesto. Pela natureza do corpus escolhido, tal estudo adentrou discussões acerca do papel da mulher enquanto escritora, tecendo interpretações concernentes aos discursos ficcional, histórico e cultural sobre a mulher e associando o espaço da criação artística a um terreno possível de emergir novas formas de representação para o feminino. Os instrumentos que serviram de base para nossas reflexões encontram-se ancorados nas postulações da teoria literária em torno da oralidade, como os escritos de Paul Zhumthor (2000) e Hampaté-Bâ (1980), além das teorias de cunho cultural e pós-colonial de Homi k. Bhabha (2003) e Gayatry Spivak (2010).. Palavras-chave: Paulina Chiziane. Oralidade. Literatura moçambicana..

(9) ABSTRACT. This dissertation presents a panoramic study concerning the orality in African novel, particularly, in the book called Niketche: uma história de poligamia (2004), from Mozambican writer Paulina Chiziane, considered one of the first novelist from her country to publish in this genre. We investigated the form in which the narration embodies and articulates the three categories that features an important role to the sensitivity and the oral perception of the written text: the voice, the letter and the gesture. By the nature of the chosen corpus, such study permeated discussions about the role of the woman as a writer, weaving interpretations concerning the fictional, historic and cultural discourses about the women and associating the space of the artistic creation as a possible territory in which new forms of representation emerge concerning the feminine. The instruments that served as basis to our reflections are anchored in the postulates of the literary theory about the orality, such as the works of Paul Zumthor (2000) and Hampaté-Bâ (1980), as well as the cultural and post-colonial studies of Homi K. Bhabha (2003) and Gayatry Spivak (2010).. Key-words: Paulina Chiziane. Orality. Mozambican literature..

(10) LISTA DE FIGURAS Página 33 - Figura 1: Paulina Chiziane por Douglas Freitas. Página 34 – Figura 2: Malangatana Ngwenya (1969), "Momentos de Festa", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_116107 (2017-10-28).. Página 64 – Figura 3: Malangatana Ngwenya (1962), "O Feitiço", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_115932 (2017-10-28).. Página 70 - Figura 4: (1:18 min) Grupo de Teatro Luarte – Encenando o Niketche. 12 de junho de 2013. Spot disponível em: youtube.com.br. Acesso em: 05 de maio de 2017, às 15h25min. Página 70 - Figura 5: Niketche – O musical. Associação dos Atletas de Dança Despotiva de Maputo. 26 de novembro de 2014. Spot disponível em: youtube.com.br. Acesso em: 05 de maio de 2017, às 15h44min.. Página 83 - Figura 6: Mulheres prisioneiras da Frelimo banhando-se escondidas, no rio (min 51:47). Filme: Virgem Margarida,2013. Direção: Licinio Azevedo. Fonte: youtube.com.br. Acesso em 04 de maio de 2017.. Página 84 - Figura 7: A personagem Rosa, forçada a cavar um buraco que mais tarde será um local para castigos físicos (min 25:19). Filme: Virgem Margarida,2013. Direção: Licinio Azevedo. Fonte: youtube.com.br. Acesso em 04 de maio de 2017.. Página 88 – Figura 8: Malangatana Ngwenya (s.d.), "Sem título", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_116015 (2017-10-28)..

(11) SUMÁRIO. 1 INTRODUÇÃO ........................................................................…................................. 12 1.1 Problema ........................................................................................................................ 19 1.2 hipótese ........................................................................................................................... 21 1.3 Objetivos ......................................................................................................................... 22 1.3.1 Geral .............................................................................................................................. 22 1.3.2 Específicos ...................................................................................................................... 22 1.4 Metodologia ................................................................................................................. ...23 1.4.1 A obra ............................................................................................................................28 1.4.2 A autora e o seu tempo ................................................................................................ 30 2. A Voz ............................................................................................................................... 34 2.1 Considerações sobre o ato de narrar ..............................................................................35 2.2 A oralidade como tradição literária ................................................................................41 2.3 Paulina Chiziane: a voz que canta todos os cantos .......................................................48 3. O Gesto............................................................................................................................ 64 3.1 O corpo é o centro de tudo ........................................................................................... 65 3.2 Narração e ritual: a palavra assume gestos .................................................................... 77 4. A Escrita .......................................................................................................................... 88 4.1 Considerações acerca do romance moçambicano .........................................................89 4.2 Contar histórias, tecer inscritas ......................................................................................92 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................102 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................106 7. ANEXOS........................................................................................................................ 115 ANEXO 1 ......................................................................................................................... 115 ANEXO 2 ......................................................................................................................... 116.

(12) 12. 1. INTRODUÇÃO – Aqui existem leões2. Durante muito tempo, houve um costume tradicionalmente difundido no ocidente: o de contar histórias sobre a África. Estas histórias povoam, ainda hoje, a imaginação de muitos. Deste fato, duas inquietações devem ser postas a consideração. A primeira delas, a inegável herança de práticas orais nos povos do ocidente – a Ilíada e a Odisseia são exemplares dignos deste modo de expressão. A segunda inquietação, deve-se a um detalhe igualmente importante: afinal de contas, quem eram os sujeitos que narraram o continente africano para o resto do mundo? Aparentemente simples, estas duas vias indagativas apresentaram-se como um caminho valioso a se percorrer. Apesar de o continente africano ser reconhecido pelos cientistas evolutivos como o berço da humanidade, além de trazer vestígios históricos que datam de períodos anteriores ao paleolítico3, a história da África vem sendo contada, tomando a Idade Média europeia como ponto de partida frequente. Este detalhe pode ser interpretado como resultante das relações comerciais estabelecidas neste período entre os povos africanos e os europeus, através das rotas de comércio na região das Índias Orientais. Sem restrições, o continente passa a ser inserido nas mais diversas representações, seja através de mapas mundi, seja no relato dos navegantes, povoando o imaginário do homem branco diante de seu próprio desconhecimento.. 2 Título em referência a frase latina “Ibi Sunt Leones” que resumia o conhecimento dos escribas a respeito do continente africano, quando representado como uma grande e inominável porção de terra nos mapas antigos. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África / editado por Joseph Ki -Zerbo. – 2.ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010. 3 Paleolítico, refere-se ao 1º período da Pré-História, cerca de 2,5 milhões de anos atrás, em que os antepassados do Homem começaram a produzir os primeiros artefatos em pedra lascada. O cálice e a espada, Riane Eisler, 2001, p.14..

(13) 13 O resultado destas aproximações provocou inúmeras mudanças, sobretudo, na compreensão do que seria a história do continente africano, trazendo uma visão não do que poderia ser o percurso de seus povos, mas daquilo que se pensava que ele deveria ser. Outro detalhe que silenciou ainda mais a possibilidade de uma história digna aos africanos, foi a instauração das colônias de exploração e o tráfico negreiro. Destes fatos históricos catastróficos emergiram esteriótipos raciais, geradores de incompreensão e de desrespeito, tão profundamente enraizados nas culturas, que até hoje ainda há marcas incontestáveis de racismo em, praticamente, todos os países que estiveram sob um contexto de exploração colonial. Marcado pela pigmentação de sua pele, transformado em mercadoria, e destinado ao trabalho forçado, o africano veio a simbolizar, na consciência de seus dominadores, uma essência racial criada ilusoriamente como algo inferior: a de negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história dos povos africanos no espírito de muitos (M’BOW, 1980, p.22) e levou-os a lutar contra esta dupla servidão, tanto econômica, quanto psicológica. Com efeito, ainda hoje há uma certa resistência do ocidente em tornar a voz dos povos africanos como significantes de sua própria história. Dentre as diversas prerrogativas, existe a que punha em xeque a tradição oral no continente como uma fonte contestável, além da quase total ausência de fontes escritas e documentais relativas aos períodos anteriores ao século XVI. Todavia, é necessário reconhecer a tradição oral como a grande fonte de conhecimento africana. Ela atribui a memória humana a importância de transmitir e armazenar a sabedoria necessária para as futuras gerações. Por mais significativa que seja, o caráter documental da escrita cristaliza e sujeita o conhecimento e sua forma de transmissão ao desaparecimento através dos tempos. A memória enquanto recurso fundamental, tem a capacidade de revestir de materialidade o esqueleto do passado, apresentando sob três dimensões o que, com recorrência, é esmagado sobre a superfície de uma folha de papel. Por meio da oralidade, a prática da contação de histórias recompõe o valor das experiências.

(14) 14 coletivas. Numa sociedade de imensa mecanização e individualismos como a nossa, as formas de transmissão do oral, parece-nos, a princípio, qualidades praticamente esquecidas. A exemplo destas histórias contadas a volta da fogueira, temos a fala da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, acerca dos perigos de uma história única 4 sobre um povo. No caso particular tratado pela autora, aparece o continente africano, que fora capturado por discursos e representações que negaram o direito ao passado e à memória de seus povos. Desconstruir esse perigo implica em adotar o que Chinua Achebe, citado por Chimamanda, apresenta como um “equilíbrio de histórias”. Contar outras e novas versões sobre um mesmo acontecimento, uma pessoa, uma cultura, um povo, um país, um continente. Os perigos de uma história única sobre África, pode ser entendido como a violência discursiva à produção da desmemória que corrompe a História dita oficial e provoca o que Anthony Appiah chama de processo de desonra: “a escravidão promoveu essa experiência de desonra aos africanos diante do mundo e de si próprios” (APPIAH, 2012, p.114). No campo das Ciências Humanas e Sociais, bem como o das Letras, cada vez mais pesquisas têm voltado as atenções para o continente africano, enquanto terreno fértil para os mais diversos estudos, entre eles, os concernentes a política, a história, a cultura, a economia, a sociedade. Esta abertura da ciência para novas abordagens investigativas permite não somente uma aproximação produtiva com os povos africanos, mas uma mudança epistêmica dos horizontes científicos de diversas áreas de conhecimento. No esforço de se instituir caminhos possíveis para a democratização e a liberdade de conhecimento acerca deste continente, as universidades brasileiras têm empenhado-se em construir e incentivar estudos sobre África, principalmente depois da criação das Leis 10.639\03 e 11.645\08 5. Política, economia, história, cultura e literatura africanas são temas 4 ADICHIE, Chimamanda. 2009, TEDx. O Perigo de uma história única. <Disponível em: www.youtube.com.br>. Acesso em 4 de junho de 2014. 5 A Lei 10.639/03 altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares. A Lei 11.645\08 modifica a Lei 10.639/03 tornando também obrigatório o estudo da história e da cultura dos.

(15) 15 que passaram a integrar os currículos dos professores e dos alunos, tanto na educação básica, quanto nos níveis superior brasileiro. Detendo quatro títulos do prêmio Nobel de Literatura – o escritor Wole Sayinka, da Nigéria (1986), o escritor egípicio Naguib Mahfouz (1988), além dos sul-africanos Nadine Gordimer (1991), e J. M. Coetzee (2003) –, a literatura dos países africanos ainda é pouco difundida entre os leitores de literatura. Entrando, ao desconstruir os olhares estereotipados sobre os africanos, estas literaturas trazem outros horizontes de abordagem e interpretação acerca das relações humanas quando afirmam as potencialidades da memória e da palavra e que tornam a África um espaço composto por uma miríade de sistemas culturais. Ao considerarmos a literatura como importante campo simbólico, esta dissertação insere-se igualmente neste percurso, isto é, como fonte de investigação e de contribuição para uma nova visão das ciências sobre o continente africano e seus povos. No cerne destas questões, aportamos em Moçambique, um país localizado na África austral, banhado pelo oceano Índico, voltado para o oriente. Deste lugar pluricultural, com mais de 67 línguas diferentes, algo em comum aproxima-o da história do Brasil: a língua portuguesa. A partir dela, partilhamos conhecimentos, formas de expressão, nossas histórias, nossa literatura. Da experiência fecunda destas partilhas, deparamo-nos com uma das vozes mais significativas do país atualmente, a escritora moçambicana Paulina Chiziane. Nesse contexto, é importante lembrar que a escrita literária feminina, africana ou não, imergiu em uma zona de profunda exclusão (PADILHA, 2004, p.255), ocupando sempre uma posição subordinada, sendo a mulher, na organização patriarcal, privada de sua própria história e das histórias que modelizam sua própria experiência. A escrita de autoria feminina, particularmente em Moçambique, torna-se representativa para a discussão sobre a oralidade, além da representação de si dentro do território artístico, uma vez que configura. povos indígenas brasileiros e suas colaborações para a formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil..

(16) 16 a relação que a mulher tem com o mundo e, consequentemente, com a sua forma de sentilo e de se posicionar perante a linguagem, a cultura e o poder dominante. O lugar de subordinação da mulher, por vezes discutido pela crítica, aparece, de certa maneira, em desacordo com outras formas de organização das sociedades africanas matrilineares6, como é o caso dos povos macua e dos bantus7, em Moçambique, nos quais o feminino possui papéis representativos (ALTUNA, 1983, p.256). Há, dessa forma um impasse entre as marcas patriarcais do ocidente e as matrizes africanas que trazem a mulher como indivíduo sacralizado por onde as etnias prolongam as linhagens de seus antepassados graças ao poder de gestação. Os processos de colonização interferem, portanto, nessas formas de subjetivação, uma vez que impõe modelos sociais “civilizadores” como forma de controle e de dominação. Por isso, ao se repensar o papel da mulher africana, não se pode deixar de considerar que a rasura, em tal plano simbólico, significa um duplo mergulho no silêncio (PADILHA, 2004, p.255). Ao ressignificar as produções discursivas e enfrentar os sistemas literários de imposição, a literatura de Paulina Chiziane surge, então, como uma literatura transgressora que assinala ao mesmo tempo memória e voz de resistência e que influenciará a outros escritores de seu país. Pensando o contexto pós-colonial de Moçambique, no qual os moçambicanos tiveram que reestruturar profundamente as relações sociais e culturais dentro de suas comunidades, Paulina aparece como uma das vozes femininas contemporâneas mais significativas, e a sua escrita é permeada de dilemas vividos pelas mulheres cotidianamente, o que constitui um terreno propício para o diálogo acerca das questões relacionadas ao gênero nas sociedades ditas pós-coloniais. As narrativas contemporâneas de Moçambique, a exemplo de escritores como Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Lilia Momplé, além da própria Paulina, trazem a 6 DIOP, Cheik Anta. A Unidade Cultural Da África Negra: esferas do patriarcado e do matriarcado na antiguidade clássica. Angola: Pedago, 2014. 7 Grupos etnolinguísticos presentes, desde séc. V d.C., no território compreendido hoje como o país de Moçambique..

(17) 17 representação feminina a permear, cada vez mais, os enredos, mas com uma mudança significativa: de figuras coadjuvantes - remetendo a metáfora da grande Mãe África – as mulheres passam a ser escritas como personagens centrais, portando valores vanguardistas acerca de suas comunidades e reescrevendo o imaginário de suas tradições. Os escritores, de maneira geral, têm dado destaque ao deslocamento da personagem, como uma das formas de representar as mulheres em busca de outros espaços na sociedade. A viagem aparece, portanto, como uma busca de algo perdido ou adiado para a mulher. Essa fuga se concretiza pela passagem da personagem feminina por um posicionamento que se opõe ao espaço opressor. Nesses deslocamentos, percebemos que as questões de gênero ficam mais expostas e abertas a diferentes possibilidades, pois a construção dessa identidade se dá em processos mais difusos e plurais, visto que o sujeito que parte em busca de mudanças aparece dividido, fragmentado e cambiante. Este detalhe é interessante quando observamos que a identidade cultural de uma nação do ponto de vista das mulheres que a constituem não é uma maneira frequentemente analisada, mas porque não? Spivak assinala que as narrativas históricas são resultantes de processos discursivos de negociação8, para compreendermos toda uma situação cultural, social e política de um país, é preciso, portanto, que se permita o espaço para emergir vozes de histórias alternativas ao que é posto oficialmente como identitário. Em Eu mulher, por uma nova visão de mundo, testemunho escrito em 1992 e publicado em meados de 1994, por iniciativa da UNESCO em fase dos preparativos da Conferência Internacional sobre a Mulher, Paz e Desenvolvimento, Paulina Chiziane afirma:. Coloquei no papel as aspirações da mulher no campo afetivo para que o mundo as veja, as conheça e reflita sobre elas. Se as próprias mulheres não. 8 Notas apresentadas pela professora e tradutora brasileira da obra de Spivak, Sandra Regina Goulart Almeida, no ensaio intitulado Apresentando Spivak, prefácio da obra Pode o Subalterno falar? UFMG, 2010. p, 15..

(18) 18 gritam quando algo lhes dá amargura da forma como pensam e sentem, ninguém o fará da forma como elas desejam. (CHIZIANE, 1994, p. 6). A partir dos apontamentos tratados até então, vemos convergir três questões significativas que se inserem nas letras de Moçambique e que se afetam mutuamente: a tentativa de reescrever uma nação, repensando, criticamente, a história colonial que silenciou o projeto identitário e cultural de um povo; as novas formas de colonialidade interna ou externa que emergiram com a história mais recente, no período de pósindependência; além de um novo sentido à visão feminina na literatura contemporânea de Moçambique. Assim, para mergulhar nos silêncios do eu feminino, a partir de uma literatura que migra da oralidade para a escritura, dimensionando tal silêncio e os movimentos para ultrapassá-lo, propomos o estudo da obra Niketche: uma história de poligamia (2004), de Paulina Chiziane. O desejo de ler e adentrar o texto da autora foi orientado pela percepção da singularidade do olhar feminino nos modos como os saberes do mundo se articulam em seu discurso ficcional. O corpus de análise foi escolhido a partir da experiência de leitura da narrativa que influenciou a perspectiva comparatista, as temáticas e o enredo versados nesta pesquisa. Abordar estas questões leva-nos diretamente ao problema a que se dispõe essa dissertação, do qual trataremos a seguir..

(19) 19 1.1 Problema. Grande parte da fortuna crítica a respeito da oralidade africana é perpassada por uma figura primordial nas culturas orais: o contador de histórias. Esta figura mítica aparece em todos os estudos sobre a temática e é quase sempre representada como um homem mais velho designado para esta função, considerada de prestígio dentro dos grupos, que detêm o poder da palavra, e sua memória é uma espécie de biblioteca viva que resguarda as histórias que o antecederam. Um dos escritos introdutórios sobre a questão é o texto A Tradição Viva (1980), de Amadou Hampaté-Bâ. Nele, o autor vai traçando as formas de organização social das comunidades através da oralidade. Todavia, o espaço a que o autor explicita sua abordagem é marcadamente islamizado – por se tratar do Mali, o seu país – uma vivência que não se aplica a todos os outros contextos do continente africano. A figura da mulher que desempenha a função de contar histórias acaba, portanto, passando despercebido. Quando as contadoras de história assumem, na contemporaneidade, a função de escritoras e reivindicam, por meio da literatura, um espaço de significação subjetivo dentro de sua cultura, elas tornam a recorrer a sua própria ancestralidade como uma lógica singular e fundante de novas possibilidades tangíveis em relação à invisibilidade e ao silêncio. Relativizando fronteiras culturais em torno do feminino, a ancestralidade apresentada pelas escritoras africanas propõe encruzilhadas – a exemplo da nigeriana Chimamanda Adichie, da angolana Ana Paula Tavares, além da própria Paulina Chiziane, escritora a que trata esta dissertação. O lugar de invisibilidade e silêncio, culturalmente associado a mulher, a partir destas escritoras, passa a ser como um grande campo de significações discursivas a serem analisadas não em função de seus limites, mas como processo emancipatório. Não se trata de criações que apenas tentam reviver ou glorificar uma origem ancestre, mas, sim, um modo de ressignificar estas origens em detrimento do contexto contemporâneo, híbrido e aberto a multirreferencialidade..

(20) 20 Vale salientar que há uma recusa insistente das escritoras africanas de aceitarem suas produções rotuladas enquanto gêneros literários ocidentais, tal como romance, novela, conto, poesia, etc. Todas elas – não somente as mulheres, como também alguns autores preferem nomear-se como contadores de histórias. No caso de Paulina Chiziane, a explicação dada por ela, em diversas entrevistas, é a de que não há, em sua cultura – a etnia chope -, a figura do romancista, nem há em sua língua tradicional uma palavra para romance. O que há, segundo a autora, são contadores de histórias e, por este motivo, ela prefere designar assim o trabalho que exerce com as palavras e as histórias que ouve. Esta posição ideológica em relação a literatura escrita pode ser considerada como um posicionamento subversivo tanto em relação aos rótulos europeus de classificação dos textos em gêneros literários – que, por vezes, inferiorizam as narrativas orais em detrimento das narrativas de registro escrito – quanto ao papel de contadores de histórias como uma herança tratada pela teoria, como abordado sabedoria passada apenas entre os homens de uma comunidade, excluindo o feminino deste percurso de continuação. O romance escolhido para este estudo, Niketche: uma história de poligamia (2004), não é uma exceção. Nele, as personagens femininas são as figuras centrais, assim como em grande parte dos escritos da moçambicana Paulina Chiziane. Não é mera coincidência, portanto, que as mulheres de suas histórias desejem falar de experiências mais íntimas, de impressões, emoções e sentimentos. A temática envolvendo a representação de si mesma está posta. Ao considerarmos a posição engajada da autora, é possível apontar a sua produção literária como uma linha de fuga; um espaço simbólico que faz emergir as angústias vivenciadas pelas mulheres no contexto de Moçambique. A partir deste cenário, é de extrema importância, então, problematizarmos o papel da mulher dentro da tradição oral, além de analisarmos como esta oralidade, sobretudo, os seus recursos expressivos, apresentam-se enquanto processos estilísticos na obra de Paulina Chiziane..

(21) 21 1.2 Hipótese. Profundamente marcada pela oralidade, a literatura moçambicana traz a dimensão gestual da contação de histórias como uma de suas matrizes fundamentais de significação. A proposta de se pensar a oralidade adentrando a literatura escrita de Paulina Chiziane, conduziu-nos, pela própria natureza do texto da autora, a ir em busca de uma oralidade no feminino. Vê-se que entre a palavra escrita e a voz, em meio a narração, cada uma delas possui seus próprios recursos específicos de adequação, tradução e adaptação, de conteúdo, a partir do contexto pelo qual se enunciam. Há ainda o que Paul Zumthor (2000) vai tratar como poética da oralidade. Comparando-a com as práticas escritas, o estudioso aborda a poética do oral como algo que jamais pode ser econômico, o que nos obriga a adotar um exercício interdisciplinar de investigação. O autor aponta ainda as diferenças entre a experiência de leitura individual em contraponto a um contexto de contação, o que insere, no contexto narrativo, a necessária e intensa presença de um corpo vivo em performance, o que, na leitura, ficaria na “ordem do desejo”. A partir de um modo particular de narrar, operado por Paulina Chiziane no romance Niketche: uma história de poligamia (2004), é criado um discurso oral sob a performance de uma contadora de histórias que privilegia o feminino em sua narrativa. Hipotetiza-se, aqui, por conseguinte, que existam marcas estilísticas próprias da oralidade no corpus escolhido, além de lógicas fundantes de uma estética que dialoga com as criações artísticas de outras mulheres escritoras contemporâneas do continente africano..

(22) 22 1.3 Objetivos. 1.3.1 Geral. Objetiva-se, com esta dissertação, investigar o romance Niketche: uma história de poligamia (2004) analisando a forma sob a qual o corpo da narração articula as três categorias que desempenham um importante papel para a sensibilidade e a percepção do oral no texto escrito: a voz, a letra e o gesto.. 1.3.2 Específicos. A fim de acrescer ao objetivo geral proposto, intenciona-se:. . rastrear como as tradições orais se ramificam na literatura contemporânea de Moçambique;. . examinar as relações entre oralidade e escritura na obra de Paulina Chiziane;. . compreender a participação feminina na historiografia literária moçambicana;. . discernir os modos como o texto literário da autora traz a voz feminina para um espaço de poder em contraposição a um contexto de silêncio cultural, social e sexual sobre a mulher;. . propor o diálogo entre o romance Niketche e outras expressões artísticas performáticas, tais como o teatro e o cinema moçambicano;. . investigar como o romance, gênero menos recorrente em África, passa a existir no cenário literário de Moçambique..

(23) 23. 1.4 Metodologia. Esta pesquisa, tendo em vista o objeto de estudo e a problemática apresentada, desenrola-se dentro do amplo espectro das teorias de cunho pós-colonial como base metodológica, uma vez que é necessário o esclarecimento sobre o denso emaranhado histórico e cultural que permeia a literatura de Moçambique. Apesar dos estudos concernentes às literaturas orais apresentarem um manancial interminável de teorias – a fortuna crítica atém-se, sobretudo, ao contexto da Europa Medieval e de esquemas formais sobre a narrativa, entre elas: o conto, a fábula, etc. – Vêse, a partir do Niketche, a possibilidade de desenvolver um estudo analítico de abordagem para além da estética formal do gênero proposto, o que coincidiu, em certa medida, com a atual abertura dos estudos literários em direção a uma ciência interdisciplinar que deixam margem para empréstimos de outras áreas. Interessa-nos, portanto, desenvolver um discurso analítico que revisitasse a possibilidade de diversos enfoques, entrelaçando a crítica literária aos estudos culturais, antropológicos, históricos e etnográficos. Os estudos pós-coloniais nada mais é do que uma ramificação teórica ligada aos Estudos Culturais desenvolvidos ao longo da segunda metade do século XX, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Dentro das proposições dessa abordagem, deparamo-nos com as teorias acerca do hibridismo cultural relativas ao contexto sociocultural do colonialismo de Homi K. Bhabha. Pensando o aporte de Bhabha pelo viés literário, encontramos a prerrogativa de que as literaturas das antigas colônias se pautam numa constante permuta com as antigas metrópoles através de um jogo discursivo de subversão, desconstrução e carnavalização. Sobre essa questão, comenta Pires Laranjeira (1985): só pelo fato de ser escrita em línguas europeias, a literatura africana deriva das sequelas do colonialismo (LARANJEIRA, 1985, p.10)..

(24) 24 O panorama da literatura moçambicana atual, a exemplo de Ungulani Ba Ka Khosa, Suleiman Cassamo, Aldino Muianga, Mia Couto e a própria Paulina Chiziane – estes dois últimos com uma maior projeção dentro e fora do país -, tem mostrado uma forma de representação intercultural que passa a não ser somente um descrição externa, mas sim uma tentativa de representação. Sendo assim, torna-se essencial encarar a criação artística tanto por seu valor estético, quanto por sua forma de reprodução do substrato implícito em seu contexto cultural particular.. A ruptura operada pela literatura pós-colonial e a apropriação do idioma europeu para desenvolver a expressão imaginativa na ficção aconteceram após investigações e reflexões sobre o mecanismo do universo imperial, o maniqueísmo por ele adotado, a manipulação constante do poder e a aplicação do fator desacreditador na cultura do outro. (BONICCI, 1998, p.8). Nas primeiras páginas de O local da Cultura (1998), Homi K.bhabha sinaliza-nos o quanto a pós-modernidade é marcada, entre outras características, pelo fato das fronteiras eurocentradas perderem sua exclusividade e cederem lugar a um alargamento das fronteiras enunciativas, abrindo espaço para outras vozes e outras histórias, muitas vezes dissoantes e mesmo dissindentes (BHABHA, 1998, p.24). As palavras de Bhabha são importantes para ressaltar a preocupação e o cuidado que devemos ter, a partir de um lugar de fala não africano, ao tecer uma análise crítica, sobre o que é posto como tradição dentro da teia cultural de Moçambique, e até que ponto se pode falar de modernidade e pós-modernidade nos espaços pós-coloniais, pensando aqui, também, os questionamentos propostos pelo teórico africano Anthony Appiah em Na casa de Pai (1997), e que fazem parte também das problemáticas de definição em torno da literatura moçambicana.. Estas histórias não têm nada de ficção. E se têm, de certeza, não é o narrador que ficciona. As histórias são aquelas, tal e qual são contadas à volta da lareira, numa noite amendoada de estrelas. As pessoas são aquelas e os.

(25) 25 lugares também. E as tradições, também, são essas. Quero dizer, essas histórias não são minhas, não foram inventadas por mim. Elas resultam do que as pessoas contam-se, entre si, e que, provavelmente, tenham passado de boca em boca. Elas resultam duma leitura atenta das vivências e das crenças (ROQUE, 2016, p.13)9.. Nesta citação, temos a posição de um autor moçambicano sobre a questão em torno da ficcionalidade. Por se tratar de narrativas advindas da oralidade, sendo a oralidade tratada como verdade, há um abismo intransponível entre o real e a ficcionalidade, uma vez que, a partir da fala dos escritores/contadores de histórias, uma coisa não é possível sem a outra. A partir dessas colocações, além do foco proposto por Bhabha, observamos que o romance contemporâneo, em África, segue o sentido inverso do paradigma romanesco “hegemônico” ocidental das últimas décadas, que foge à tradição oral, como Walter Benjamim prevê no ensaio O narrador (1983). O nascimento do romance, como analisou Benjamin, decreta a morte da arte de narrar, pois “o lado épico da verdade, da sabedoria, está agonizando”. Todavia, a contemplação da memória como o objeto que move a narrativa, a experiência como matéria-prima para a criação literária, a alteridade como princípio poético e a influência da tradição oral na literatura moçambicana contradiz a tese de Benjamim na qual a figura do contador ou da contadora de histórias – como, no caso, se intitula Chiziane, autora do romance escolhido como corpus desta pesquisa – sofre um processo de dissolução com o advento do romance moderno. Nesta seção, por conseguinte, apresentam-se e explicam-se o caráter e os procedimentos adotados na pesquisa enquanto argumento desencadeador de reflexões acerca da oralidade no romance Niketche. O método empregue, com base nas teorias expostas até então, percorreu vias singulares graças a própria natureza do corpus: sua 9. Resposta do autor Moçambicano Carlos Rofino Roque quando indagado sobre as suas influências literárias. com relação a prosa romanesca. A relação de autoria é muito parecida com as concepções apontadas por Paulina, o que pode demonstrar de certo modo, uma forma desconstruída quanto a centralidade do poder do autor na criação literária. Revista Literatas. Edição 64. Junho de 2016. Fonte: < http://literatas.blogs.sapo.mz>. Acesso em 15 de junho de 2016, às 11h45min..

(26) 26 potencialidade performática. A escolha por tratar da questão em três grandes eixos temáticos - a voz, o gesto e a inscritura – representam a característica expressa pelo texto de Paulina Chiziane. Capítulo de carácter introdutório, A Voz, traz um panorama geral acerca da tradição oral africana a partir do apanhado teórico sobre cultura da narração no ocidente, o valor da palavra oral e o papel do narrador africano. Detivemo-nos às teorias sobre o narrador e a narrativa como matéria-prima de experiência e ancestralidade propostas por Hampaté-Bâ (1980), Walter Benjamin (1983) e Jan Vansina (2010). Em seguida, apresentamos como essa tradição oral se ramifica em Moçambique e na produção literária de Paulina Chiziane. Consideramos este capítulo necessário para melhor situar o tecido textual moçambicano, uma vez que a história, a cultura, as etnias e os fatores geográficos de Moçambique ainda são informações pouco compartilhadas, mas que se fazem constantemente presentes no lugar de enunciação da literatura que é produzida. Para tanto, utilizamos o conceito deste teóricos acerca da oralidade em diálogo com as leituras críticas de Pires Laranjeira (1996) e Ana Mafalda Leite (2012). No segundo eixo, intitulado O Gesto, propomos uma análise textual dos artifícios enunciativos da escrita literária fundamentada na oralidade, com o intuito investigativo de perceber a maneira pela qual o corpo do contador se mostra enquanto recurso estilístico do romance de Paulina Chiziane. Este é um dos passos mais significativos que o texto dá dentro de nossa análise - em direção aos seus múltiplos jogos de significação. Nesse capítulo, percorremos teorias em torno das performances, entre elas os ensaios críticos do professor Zeca Ligiero (2011), Terezinha Taborda Moreira (2009) dialogando com a teoria elementar de Paul Zumthor (2000), em seu estudo mais recente sobre performance, recepção e leitura. Trata-se de uma proposta ousada, pois adota a sensibilidade e a percepção poética – seguindo os passos das ideias de Zumthor - como parte do método analítico. No terceiro e último capítulo intitulado A Escrita, indagamos o confronto oral/escrito em observação com a atual ficção moçambicana. O romance aparece-nos como.

(27) 27 imenso laboratório da narrativa e vem ganhando cada vez mais espaço na história da literatura moçambicana. Por ser um gênero menos recorrente em África, foi preciso discutir e problematizar o papel deste gênero e suas implicações fenomenológicas na estética literária contemporânea do país. Abordar as tendências de uma determinada literatura, induz-nos, de alguma forma, a assumirmos o recinto criativo da palavra como um espaço do qual se pode reconhecer as marcas da vitalidade, da pluralidade, das diversidades estéticas e temáticas (NOA, 2001, p. 21). A participação feminina na composição destas novas narrativas é, igualmente, um fator significativo, de modo que essa escrita rastreia formas de subversão e de resistência frente ao discurso oficial. Para tanto, dialogamos, mais uma vez, com os escritos de Ana Mafalda Leite (2012), além dos críticos e ensaístas Laura Cavalcante Padilha (2002) e Francisco Noa (2001). Dado o pouco conhecimento que geralmente se tem dos escritores moçambicanos, optou-se também por trazer, ao longo do corpo do texto, trechos de algumas obras de modo a criar um diálogo indireto - ainda que ele não tome completamente o foco da dissertação - com outras produções literárias do país. Além disso, compreendeu-se também a necessidade de se compartilhar o enredo do romance, junto com uma breve explanação, mais adiante, acerca do percurso biográfico da autora. Por fim, compondo o anexo dessa pesquisa, apresentamos a transcrição de uma breve e exclusiva entrevista concedida a nós pela escritora Paulina Chiziane em abril de 2017, durante a XII Bienal Internacional do Livro no Ceará..

(28) 28. 1.4.1 A obra. Niketche10: uma história de poligamia, o quarto romance da autora, publicado em 2002 pela Editora Caminho em Portugal, e em 2004, no Brasil, pela Cia. Das Letras, Num relato breve, o romance conta a história dos infortúnios de uma mulher casada, e sua vida solitária ao lado do marido ausente, e de outras tantas mulheres, amantes de seu marido que encontram-se em situações semelhantes à sua. De modo emblemático, a história traz as diferenças histórico-culturais do feminino no espaço ficcional moçambicano, que encena as contradições culturais que demarcam as fronteiras do país. Narrado em primeira pessoa, a personagem protagonista chama-se Maria Rosa ou, para muitos, apenas Rami. Uma mulher moçambicana que vive uma vida baseada nos preceitos cristãos do catolicismo. Ela é casada com Tony, um alto funcionário da hierarquia policial. Constantemente só, Rami empreita uma busca para entender as ausências de seu companheiro e acaba por descobrir vários relacionamentos extraconjugais mantidos em silêncio por ele. Estas outras mulheres são muitas e estão espalhadas por toda Maputo, configurando-se assim, uma poligamia não-declarada. Em quarenta e três capítulos, a protagonista conduz a narração e o tempo da história percorre dias infinitos. No percurso de sua narração, deparamo-nos com as diferenças culturais presentes no país, as marcas de colonialidade, as representações sociais da mulher e os diferentes arranjos de casamentos polígamos e monogâmicos. O casamento é uma temática frequentemente abordada nas histórias de Paulina. Suas protagonistas, de certa maneira, sempre deixam marcas de insatisfação sexual e política em relação ao matrimônio, seja ele polígamo ou não. A maneira como a autora constrói essa crítica literariamente se dá. 10. Dança feminina que envolve os rituais de amor, sedução e erotismo presentes nas tradições dos povos da Zambézia e de Nampula, ambos localizados na parte norte de Moçambique..

(29) 29 por meio do tom confessional dos monólogos que emergem na fala das personagens femininas e, sobretudo, dos relatos de experiência das mulheres mais velhas que aparecem na narrativa. No caso de Rami, essa ancestralidade feminina floresce no discurso de suas rivais, de sua sogra, de sua mãe e de suas tias. Ao dialogarem umas com as outras, inúmeras violências cotidianas aparecem banalizadas e incorporadas às novas relações instituídas. O casamento cristão, supostamente moderno, irrompe em marcas antigas de dominação patriarcal. Rami guia-nos pela complexa realidade social de seu país e sua nação passa a ser narrada por si com um misto de estranhamento e nostalgia. Os rituais de magia, iniciação sexual da mulher e purificação sexual das viúvas aparecem descritos com minúcia pela protagonista. Nesta descoberta, instituições ocidentais e ritos tradicionais se entrelaçam na voz das personagens e nos faz tecer significados múltiplos ao que chamamos de feminino. A escritora, com grande sensibilidade, constrói o seu mosaico narrativo a partir da recuperação de histórias orais ligadas a feminilidade, o que atribui ao seu romance leveza e lirismo. A narrativa explora, portanto, a tematização do signo feminino como forma de apontar para a desconstrução de uma visão hegemônica e opressiva quanto ao lugar social da mulher em Moçambique..

(30) 30. 1.4.2 A autora e o seu tempo. Eu preciso do meu espaço, é por isso que escrevo. Em primeiro lugar eu escrevo para existir, eu escrevo para mim. Eu existo no mundo e a minha existência repete-se nas outras pessoas. E neste caso é um livro que depois será lido. Paulina Chiziane. Faz-se necessário apresentar uma breve explanação sobre a vida e a obra da escritora moçambicana Paulina Chiziane, uma vez que, apesar da intensa produção literária, seus textos ainda são pouco difundidos no Brasil. Paulina nasceu no distrito de Manjacaze, província de Gaza, em 4 de Junho 1955. É uma escritora moçambicana, que apesar de ser identificada como romancista, nunca assumiu esta identidade do gênero literário e intitula-se como uma contadora de histórias longas. Em entrevista, quando indagada sobre o fato de ser a primeira romancista de seu país, Paulina declara:. Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçambicana a escrever um romance, mas eu afirmo: sou contadora de histórias e não romancista. Escrevo livros com muitas histórias, histórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte (CHIZIANE, 2010, p. 2)11.. 11. CHIZIANE, Paulina. Entrevista. Fonte:<kuphaluxa.blogspot.com.br/2010/05/literature-as-andorinhasde-paulina.html.>. Acesso: 25 de janeiro de 2016 às 14h10min..

(31) 31 Iniciou os seus estudos em Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, mas não chegou a concluí-los. Seu envolvimento com as letras, no entanto, ultrapassou a esfera da formação acadêmica e passou a fazer parte de sua vida quando, em 1984, começou a publicar seus contos na imprensa de Moçambique. Na juventude, participou ativamente da cena política de seu país como militante da FRELIMO12. Durante a guerra de desestabilização, Paulina serviu a Cruz Vermelha, o que fez com ela pudesse vivenciar de perto os horrores que uma guerra produz. Deixou, todavia, de se envolver na política para se dedicar à escrita e a publicação de seus escritos. Entre as razões da sua escolha pelo afastamento estava a desilusão com as diretivas políticas do partido FRELIMO no período de pós-independência, sobretudo em termos de políticas ocidentais e ambivalências ideológicas internas, quer pelo que diz respeito às políticas de mono e poligamia, quer pelas posições de políticas econômicas em relação à liberdade e as condições materiais das mulheres de diferentes grupos étnico-linguísticos de Moçambique. Paulina foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz em 2005 em reconhecimento ao seu trabalho de escrita militante pela justiça e pela igualdade, além disso, foi nomeada uma das mil mulheres pacíficas do mundo, iniciativa promovida pelo Movimento Internacional da Paz, One Thousand Peace Women13. Sobre sua produção literária, depois da independência de Moçambique, Paulina publica o seu primeiro livro, Balada de Amor ao Vento (1990) que é apontado pela crítica como o primeiro romance de uma mulher moçambicana. Na sequência, os livros Ventos do Apocalipse, concluído em 1991, só vem ser publicado em 1999, em Portugal, assim como o Sétimo Juramento (2000) e o premiado14 Niketche: uma história de poligamia (2002). Paulina 12. FRELIMO é a sigla para Frente de Libertação de Moçambique. Trata-se de um partido político oficialmente fundado em 25 de Junho de 1962, com o objetivo de lutar pela independência de Moçambique do domínio colonial português. O primeiro presidente do partido foi o Dr. Eduardo Mondlane, um antropólogo que trabalhava na ONU. Desde a independência, em 25 de junho 1975, até o presente momento, todos os presidentes eleitos são representantes deste partido. 13 Organização suíça que proporciona a visibilidade de mulheres que promovem a paz ao redor do mundo. 14 Prêmio José Craveirinha, 2003..

(32) 32 também publicou contos, roteiros para o cinema, biografias e histórias mais curtas, tais como: O alegre Canto da Perdiz (2008), As heroínas sem nome – memórias de guerra e paz das mulheres em Angola (em parceria com a escrita angolana Dya Kassembe, 2008), As Andorinhas (2009), Quero ser alguém – histórias de crianças soropositivas (2010), Mão de Deus (co-produção com Maria do Carmo da Silva, 2012), Por quem vibram os tambores do além – Biografia do curandeiro Rasta Pita (2013) e Ngoma Yethu – O Curandeiro e o Novo Testamento (2015) o mais recente livro da escritora, elaborado conjuntamente com a curandeira Mariana Martins. Seus textos avulsos aparecem publicados em diversas antologias em Moçambique, Portugal e Brasil. Atualmente, a autora participa de conferências de arte e literatura por todo o mundo e sua escrita, que perpassa diversos gêneros literários, continua a ser adaptada para bailados e peças teatrais em Moçambique, Portugal e Brasil..

(33) 33. Figura 2 – Paulina Chiziane Por Douglas Freitas15. 15. Divulgada em http://homoliteratus.com/paulina-chiziane-uma-voz-feminina-em-africa/. Acesso: 13 de janeiro de 2015..

(34) 34 [capítulo dois]. A Voz. Figura 2 – Momentos de Festa. Malagatana, 1969.. Ouve-se, de tempos imemoráveis, casos de homens condenados à morte que puderam se salvar contando histórias. O poder da voz e a astúcia de quem narra aparece eternizado pela tradição literária numa das vozes femininas mais poderosas do mundo árabe: a narradora Sherazade. Uma mulher que escapa da morte entregando-se ao ato de contar. Num assalto a memória, esta contadora ganha o direito à vida pela fina lâmina da palavra. Este capítulo destina-se a percorrer os caminhos da voz, observando a arriscada e sedutora relação entre o tecer narrativo e o fiar da vida..

(35) 35. 2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATO DE NARRAR. A narração, desde os povos mais antigos, sempre pertenceu a uma esfera ritualística. A narração nasce da memória e da partilha com o outro. É um convite. Um ato que se faz em conjunto. Uma abertura para o sagrado. No princípio era o verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus 16 . O nascimento do universo começa na palavra e na voz do narrador. Contar o céu, o mar, a terra, as chuvas, a natureza, a savana, a floresta e o deserto. Cantar os antigos ensinamentos. Nomear o mundo. Contar histórias até o amanhecer foi uma prática comumente celebrada e disseminada na época dos califas abássidas17. Segundo Malba Tahan, na antiguidade havia narradores por profissão em todo o Oriente, em cada uma das aldeias árabes. Quem sabe por isso narrações infinitas se fazem presentes nas histórias de As Mil e Uma Noites. Na forma de seduzir e entreter os ouvintes, Sherazade, assim como os personagens que existem no instante de sua narração, conscientemente pretendem ganhar tempo, adiar a morte, o que nos leva a verificar os artifícios de uma narração primordial além dos seus efeitos; que afasta o homem do desfecho definitivo da sua existência. Para um mestre das artes de narrar, nem mesmo a morte, o mais profundo embate da experiência individual, representa um impedimento. Ao abranger em si a complexidade da narrativa, seu corpo torna-se gigantesco. Sua existência real transforma-se em algo sublime. Sobre a origem divina da palavra, Amadoul Hampaté-Bá, em Tradição Viva, traz a história da gênese do mundo a partir do olhar de uma comunidade do Mali. Nela, Maa Ngala 18 cria Maa, o Homem, o ser humano que, diferentemente dos outros seres, possuía. 16. Bíblia Sagrada. Novo Testamento, Evangelho de João 1:1. O Califado Abássida foi fundado pelos descendentes do profeta islâmico Maomé, em 750 d.C. 18 Maa Ngala pode ser entendido como a força criadora, o deus do universo. Um ser autocriado que representa a síntese de tudo o que existe e ninguém pode situá-lo no tempo e no espaço. Segundo Hampaté Bâ, aqueles considerados grandes depositários da herança oral são chamados de tradicionalistas. Em algumas etnias como 17.

(36) 36 uma centelha divina dentro de si, a herança espiritual da força que o criou: o dom da mente e da palavra. Como provinha de Maa Ngala para o homem, as palavras eram divinas porque ainda não haviam entrado em contato com a materialidade. Após o contato com a corporeidade, perderam um pouco de sua divindade, mas se carregaram de sacralidade. Assim, sacralizada pela Palavra divina, por sua vez a corporeidade emitiu vibrações sagradas que estabeleceram a comunicação com Maa Ngala. [...] Mas toda essas forças, das quais é herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele. Ficam em estado de repouso até o instante em que a fala venha coloca-las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa segunda, som; e numa terceira, fala. A fala é, portanto considerada como a materialização, ou a exteriorização, das vibrações das forças. (HAMPATHÉ-BÂ, 1980, p. 185). Aos nossos olhos, a perspectiva africana da narração mostra-se como algo mais místico que epistêmico, entretanto, isso nos interessa profundamente. A figura do velho griô19 presente em todo o continente africano aparece em mil facetas: feiticeiro, sacerdote, rei, chefe, ferreiro. Todas estas atribuições apontam para a voz do contador como uma espécie de poder. Ferramenta para a criação da história e a lapidação das palavras. Certamente, aquele que é designado para exercer esta função carrega a memória de sua comunidade. Seu itinerário é reforçar laços. Continuar a história. Talvez emprestar os ouvidos às palavras do contador seja como quem recebe uma bênção divina e a narração. os bambaras e fulanis, o termo escolhido para expressar esta função seria traduzido por “conhecedor”. Para aprofundamentos no tema, consultar HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) Metodologia e Pré-História da África, História Geral da África. Brasília: Unesco, 2010. v.1. 19 Optamos pelo uso de griô por ser o termo mais difundido no Brasil. Ele representa uma variação da palavra de origem francesa griot. Este termo designa a função de poeta, músico, comunicador social, mediador da transmissão oral, dos saberes e fazeres da tradição das nações, famílias e grupos culturais africanos. Esta definição que nos parece pertinente foi sistematizada por Líllian Pacheco, idealizadora da Pedagogia Griô e coordenadora do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô, a partir da discussão coletiva de Griôs e mestres da tradição oral e associações culturais, os quais elaboraram um projeto de lei que disponha sobre a proteção e fomento à transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral no Brasil: o Projeto de Lei nº 1.786, de 2011, também conhecido como Lei Griô..

(37) 37 seja, de alguma forma, uma maneira de abençoar os ouvintes. A fala, como infere o próprio Hampaté-Bâ, torna-se o agente ativo da magia africana. O narrador, nesta perspectiva, permeia uma visão cosmogônica do universo e da natureza. A imagem onírica da palavra ligada aos elementos da terra e da água, das marés, das chuvas e dos rios representa fluxo, movência, ciclo e renovação. A relação que une o narrador africano com o seu ofício rústico pode ser, de certa maneira, percebida nos apontamentos de Walter Benjamin no ensaio, O Narrador. Nele, o autor traz a figura do narrador como uma espécie de artífice da fala e ressalta ainda que as pessoas que detinham a experiência na arte de narrar exerciam socialmente funções ligadas à natureza, o que fez o autor dividir os tipos de narrador em duas famílias:. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. Quem viaja tem muito o que contar, diz o povo. E com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário e o outro pelo marinheiro comerciante. (BENJAMIN, 1987, p.199). As considerações sobre a tradição oral na cultura europeia e os narradores arquetípicos, em O Narrador, são construídas a partir de uma análise em torno da obra do escritor russo Nikolai Leskov, que tem sua produção literária voltada ao universo oral de seu país e é tomado por Benjamin como um narrador ideal que estaria em vias de extinção no mundo moderno. A partir de sua ótica, Walter Benjamin apresenta o narrador em contraponto à figura prototípica do homem moderno que desdenha de suas tradições e busca o completo domínio da natureza. Para o autor, o ato de narrar é colocado como um dom artesanal de comutar experiências coletivamente, por meio da comunicação do contador com seus ouvintes. A figura dos narradores arquetípicos da tradição europeia é apresentada por Benjamin a partir desses dois grandes grupos: o camponês sedentário e o.

(38) 38 marinheiro comerciante. O desenvolvimento de uma rede de transmissão oral europeia e o aperfeiçoamento dessa prática pode ser atribuído ao sistema corporativo medieval que permitiu a interação entre os grupos e a difusão das histórias. Todavia, narrar, de modo algum, seria um produto exclusivo da voz. O contador de histórias compartilha com os interlocutores um profundo conhecimento acerca de suas raízes locais, além de referências sobre lugares distintos num acervo de memórias múltiplas assimilada à sua própria vivência. A narrativa nunca encerra em si mesma. Narrar é um ofício artístico e o grande transmissor da narrativa é, antes de tudo, o corpo humano. O lugar no qual as percepções e a sensibilidade do Ser concebem significâncias ao mundo e suporta seus efeitos. A narrativa floresce num meio artesanal; é lapidada sem pressa e sem pretensões de entregar-se inteiramente. Por isso, ao pensarmos na oralidade e em tudo o que ela representa, precisamos compreender a palavra falada não apenas como um meio de comunicação cotidiano entre as pessoas, mas também como uma espécie de preservação da herança do conhecimento humano. Grande parte das civilizações africanas são civilizações apoiadas no valor da palavra falada, onde a ligação entre o homem e seu discurso é mais fidedigna. Compenetrar-se num mundo oral, em que “dizer” é o mesmo que “ser”, parece, a princípio, uma atitude aparentemente desajustada para os acostumados ao mundo da mentalidade cartesiana, repleto de evidências escritas. Adentrar a um tema que envolve a tradição oral africana requer novas atitudes investigativas, mais lentas e fruídas, além de um contínuo retorno a fonte, uma vez que a memória coletiva das civilizações está contida no tecido oral das culturas. Por isso, primeiramente, devemos nos emaranhar nos modos de pensar da sociedade oral antes de tentar, a qualquer custo, compreender e interpretar suas tradições a partir de um ponto de vista alheio a sua forma de conduta. Parte da existência de quem narra instala-se no conteúdo da narrativa que flui de sujeito a sujeito por milênios, transmitido sempre de boca a ouvido. Uma das funções primordiais de um mestre contador é a de ponte entre o passado e o presente, e é sob a perspectiva de intercâmbio de experiências que as histórias coletivas formam um conjunto.

(39) 39 virtual e conseguem ser conservadas como a memória viva da comunidade. É preciso ainda complementar a ideia acerca do narrador africano, uma vez que a imagem do griô em África está vinculada a algo sacralizado e a comunidade lhe atribui poderes místicos incontestáveis. Tratando das funções desempenhadas pelo narrador, Frederico Fernandes, em A voz e o sentido: poesia oral em sincronia, afirma:. O narrador, ao atualizar o arquétipo, desempenha uma tripla função na cultura oral: narra, é o performer sensível ao auditório, já que incorpora a voz da comunidade; ouve, troca experiências com outros narradores e absorve as histórias que lhe contam; e cria, torna-se o responsável por construir um sentido para o que ouviu, bem como por atualizar isso com significantes e significados diferenciados. (FERNANDES, 2007, p. 56). Para a tradição oral africana, a matéria e o espírito são indissociáveis. Essa visão particular em torno do real poderia se configurar como uma filosofia africana, visto que, a arte, a espiritualidade, a ciência, a historicidade dos sujeitos e todos os aspectos de sua existência aparecem relacionados entre si e demonstram modos singulares de pensar o mundo. O produto dessa tradição é, por conseguinte, a constituição do homem, de sua humanidade e transcendência. Mesmo não havendo a sistematização do conhecimento nos moldes do cânone ocidental, a responsabilidade com a palavra e a valorização do ato de narrar evidencia o poder da memória no legado cultural africano continuamente reelaborado como herança coletiva de suas nações. Há ainda uma indagação fundamental para a essência destes apontamentos: afinal, o que pode ser compreendido como tradição oral? Não é simples tentar responder a esta questão. Devido à pluralidade de aspectos relativos à oralidade, é delicado agarrar-se a um conceito que englobe todos os seus sentidos. Uma definição mais abrangente propõe que a tradição oral pode ser compreendida como uma mensagem transmitida de uma geração para outra, distinguindo-se da tradição escrita em seu caráter verbal e em sua forma de transmissão. Deste modo, o que pode ser concebido como corpus pertencente à tradição oral inclui diversas formas de agenciamentos que vão muito além do testemunho e do.

(40) 40 depoimento, tanto vivenciado quanto inconsciente. Segundo aponta Jan Vansina (2010)20, tal formulação não implica nenhuma limitação diante do que se pode apreender enquanto tradição oral, dado que pode se incluir crônicas e genealogias de sociedades segmentárias que conscientemente pretenderam descrever acontecimentos passados e são fontes fundamentais para a história das ideias e dos valores contemporâneos da coletividade. Para nos auxiliar nos percursos deste estudo que se seguem, fica uma abertura para o universo da voz ancestral, na fala de um griot mandinka21 que diz: As palavras muito antigas São como as sementes Você as semeia antes das chuvas A terra é ressecada pelo sol A chuva vem molhá-la A água da terra penetra nas sementes As sementes se transformam em plantas Então, desenvolvem as espigas de milho Assim você, a quem acabo de dizer as Palavras Muito Antigas, Você é a terra Eu planto em você a semente da palavra, Mas é preciso que a água de sua vida penetre na semente Para que a germinação da palavra tenha lugar. (CAMARA, 1982, p.8). Nos estudos africanos das mais diversas áreas do conhecimento, a palavra dos griôs terá sempre valor insubstituível, mesmo que essa oralidade não tenha sido ainda suficientemente explorada em razão de seu complicado exercício de interpretação. Ainda assim, as abordagens contemporâneas já sinalizam a necessidade de se buscar novos modos de análise, mais aprimorados para se extrair o potencial imprescindível que reside na palavra oral, monumento vivo da cultura africana.. 20. VANSINA, Jan. A tradição oral e sua Metodologia. In: História geral da África, I: Metodologia e pré história da África / editado por Joseph Ki -Zerbo. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010, p. 142-166. 21 Palavras de um griô mandinka reproduzidas por Sory Camara, 1982, p. 8. Tradução publicada em artigo por Celso Sisto Silva..

Referências

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