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Kideiscência e metaprosopagnosia - percursos aparentes

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Academic year: 2021

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ESCOLA DE ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS E DESIGN

Mestrado em Artes Visuais - Intermédia

Dissertação

Kideiscência e Metaprosopagnosia - Percursos Aparentes

Eunice Maria Braz Salvador

Orientador:

Profª Doutora Ana Maria Inácio Godinho Gil

Co-Orientador:

Profº Pedro José Alves Portugal de Andrade

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Mestrado em Artes Visuais - Intermédia

Ramo bidimensional

Dissertação

Kideiscência e Metaprosopagnosia – Percursos Aparentes

Eunice Maria Braz Salvador

Orientador:

Profª Doutora Ana Maria Inácio Godinho Gil

Co-Orientador:

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EPÍGRAFE

Oxalá te caiba o destino de viveres numa época interessante!

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DEDICATÓRIAS

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer especialmente à minha mãe Ema, por todo o apoio e incentivo incondicionais durante todo este trabalho de dissertação, sem os quais não teria sido possível de realizar.

Agradeço também à Professora Doutora Ana Godinho e ao Professor Pedro Portugal, pelas suas orientações ao longo de todo o trabalho, sempre no seio de uma crescente amizade, ao Raúl por todo o seu companheirismo, ao meu pai António o seu forte apoio, à Carla, pelas longas conversas que fazem sempre gerar novos impulsos para continuar a trabalhar e finalmente ao Mateus e ao Lucas, vidas ainda pequenas que fazem suscitar novas grandes vias por aparecer, sempre através do amor.

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RESUMO

KIDEISCÊNCIA E METAPROSOPAGNOSIA – PERCURSOS APARENTES

Este trabalho de pesquisa toma como ponto de partida um trabalho artístico de minha autoria, onde existiu uma apropriação de imagens banais de jornais, livros, revistas, que foram parcialmente apagadas, eliminadas, para fazer surgir novos desenhos e pinturas posteriores. Este processo foi metaforicamente comparado a dois importantes termos, um utilizado em biologia, a deiscência e outro em medicina, a prosopagnosia. Relacionaram-se estes termos com outros não menos importantes para todo o processo teórico-prático, tais como a intuição, a respiração e o momento presente. Desta forma, tentou-se, mas agora através de palavras, recriar as mesmas condições que fizeram surgir as imagens, para recebê-las melhor e ao mesmo tempo, impulsionar a criação de novos desenhos, novas pinturas, novas imagens.

PALAVRAS-CHAVE: Respiração, intuição, momento presente, deiscência, prosopagnosia.

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ABSTRACT

KIDEISCÊNCIA AND METAPROSOPAGNOSIA - APPARENT COURSES

This research work takes as its starting point for an artistic work of my authorship, where there was an appropriation of banal images of newspapers, books, magazines, which were partially erased, removed, to bring up new drawings and paintings later. This process is metaphorically compared to the two important terms used in a biology, dehiscence and another in medicine, prosopagnosia. Terms were related with others no less important for all practical process, such as intuition, breath and the present moment. Thus, we tried to, but now with words, to recreate the same conditions that have brought the images to receive them better and at the same time, promote the creation of new designs, new paintings, new images.

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ÍNDICE

Resumo

I. Introdução 1

II. Materiais e Métodos

Capítulo I - Momento presente – sua influência na experimentação 6 Capítulo II – Kideiscência – uma abertura natural 28 Capítulo III – Metaprosopagnosia – ou quando os rostos desaparecem 50

III. Resultados - Lista de Obras 67

IV. Conclusão 87

V. Biografia 89

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1

I - INTRODUÇÃO

Este trabalho de pesquisa apresentado para a obtenção do grau de Mestre em Artes Visuais – Intermédia, teoriza principalmente sobre duas noções que julguei essenciais no seio do meu não tão recente trabalho: a deiscência, termo empregue em biologia e que designa uma abertura espontânea e natural de um órgão vegetal ou animal, que põe em liberdade o seu conteúdo (do latim dehiscentĭa, particípio presente neutro plural de dehiscĕre, «abrir-se») e a prosopagnosia, termo empregue em medicina quando ocorre uma perda do reconhecimento dos rostos de maneira dominante ou exclusiva (do grego prósopon, «face» + agnosia, «falta de reconhecimento»). Durante a dissertação, relacionam-se estas duas noções com alguns factores que considero cruciais no desenrolar de todo o trabalho teórico-prático desenvolvido: a intuição, o ritmo, o momento presente e a respiração.

No trabalho prático que desenvolvi durante o ano curricular de Mestrado em Artes Visuais – Intermédia, foram recorrentes as imagens como rostos, faces, corpos, desfocados ou literalmente apagados, o que sugeria uma relação metafórica com essa tal perda do reconhecimento dos rostos caracterizada por prosopagnosia. Também numa fase prática do trabalho desenvolvido, são eliminados, raspados, apagados elementos presentes numa imagem para depois fazer surgir uma outra, mais verdadeira, ou pelo menos mais fiel, ao que considero ser a realidade daquela imagem. Deste modo, alteraram-se imagens, muitas delas banais, obtidas de jornais, revistas, livros, para se redesenhar, repintar, motivos já preexistentes. Nesse pintar de novo, fizeram denotar-se algumas características essenciais de todo um trabalho que se vem desenvolvendo há já alguns anos, tais como, a aparente mistura dos motivos paisagísticos com a animalidade, com a figura humana, provocando uma estranheza nos próprios motivos escolhidos. O desconhecimento do próprio rosto, uma perda da própria individualidade, são propostos como factores necessários para um desprendimento de si, uma realização de um verdadeiro encontro ou metaprosopagnosia.

A recente liberdade dos conteúdos anteriormente guardados, sugerida pela deiscência, pareceu-me ser também um factor essencial a abordar nesta reflexão teórica. Nesta dissertação pretende-se tornar ainda mais evidente, e desta vez através das palavras, o quão importante será a existência de uma interacção entre diferentes tipos de coisas, seres, células, substâncias. E ao mesmo tempo a imposição de um ritmo. Uma mistura de seres humanos com organismos orgânicos vegetais, de coisas racionais com outras irracionais, do homem com outros animais, de células com outras células que se mantêm nas suas proximidades e vizinhanças. Daí o termo que iremos aplicar, kideiscência, como simples aberturas existentes nos seres humanos, nas plantas, nos animais, locais donde se libertariam e também aceitariam as mais variadíssimas

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2 substâncias essenciais para uma vida em comum. Também, através das palavras, vai pretender criar um ritmo, o mesmo ritmo invocado no trabalho prático, para construir um corpo que também ele produzisse multiplicidades. Um corpo que propõe interacções entre o pensamento filosófico e a intuição, o orgânico e o inorgânico, o racional e o irracional. Desenhos, pinturas, frases, sempre em formação, mutantemente activos e desequilibrados. Referimo-nos assim a uma construção de um corpo próximo daquele proposto por Deleuze, quando nos fala em “construir um corpo sem órgãos intensivo, Tao, um campo de imanência onde o desejo não carece de nada e, desde logo, já não se refere a nenhum critério exterior ou transcendente.” (Gilles Deleuze, 2007:208).

Deste modo, estrutura-se a dissertação em diferentes partes, de forma a colocar cada um destes aspectos, considerados essenciais no desenvolvimento do trabalho teórico-prático, de forma mais evidente e para assim ser feito um estudo mais minucioso dos temas apresentados.

Numa primeira parte, analisam-se os materiais e métodos utilizados no trabalho prático. Desta forma, tenta-se assim realizar um desenvolvimento conceitual, estético e temático, relativamente ao conjunto de obras desenvolvido durante o mestrado.

Elaboram-se assim dois capítulos diferentes para abordar cada um dos temas, um capítulo que intitula-se Kideiscência - uma abertura natural, onde se relaciona a definição de deiscência, apresentada na biologia, com aberturas gerais donde entram e saem as mais variadíssimas substâncias. Ou seja, na kideiscência as tais aberturas existem nos mais diferentes seres, tais como homens, animais, vegetais e coisas, e por elas se atravessa uma energia, associada à respiração, a que chamámos ki. E um outro capítulo intitulado A Metaprosopagnosia – ou quando os rostos desaparecem, onde surgem propostas para uma nova abordagem ao desconhecimento dos rostos. A prosopagnosia, ou perda do reconhecimento dos rostos, associada a uma mudança, meta, onde esse desconhecimento se torna essencial para um outro (des)conhecimento ou a capacidade de criar, a metaprosopagnosia.

Paralelamente a estas duas definições, que estudaremos em dois capítulos diferentes, uma outra parece apresentar-se como sendo evidente e que insidiosamente atravessa toda a dissertação, a noção de “momento presente”, relacionado com a respiração e intuição, e a sua importância durante a experimentação num trabalho prático e durante todos os momentos das nossas vidas. Referimo-nos aqui a um momento presente proposto por Daniel Stern, mais precisamente, a “um momento agora, um momento presente que surge de súbito e tem a grande carga das circunstâncias iminentes. Trata-se de um momento de cairós, denso de um estar-no-presente e da necessidade de acção.” (Daniel Stern, 2006:154). Daí ter-se considerado relevante criar um capítulo próprio para este tema, que se irá intitular Momento Presente – sua influência na experimentação.

Em todos os capítulos, procuram-se criar ritmos variados através dos quais se invocará o cerne de cada tema. No entanto, as noções apresentadas inter-relacionam-se entre si, nas diferentes partes e capítulos que constituem a dissertação. Deste modo, em

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3 cada um dos capítulos e em cada uma das partes do trabalho teórico, apresentam-se propostas de multiplicidades entre o racional e a intuição, entre o movimento e o não-movimento. Criar-se-ão duas forças, duas personagens ao longo da dissertação, uma maioritariamente feminina, outra masculina, que dialogam, que se cruzam, que chegam também a misturar-se, ao longo de toda a presente pesquisa. Serão criados também percursos, associados aos ritmos, percursos aparentes para se chegar a qualquer lado, ou simplesmente para não se chegar a lado nenhum. Percursos propostos, mas que poderiam ser outros, uma infinidade de caminhos que se nos apresentam e a importância da intuição perante toda esta diversidade.

Estavam as imagens tão sossegadinhas.

As palavras misturam-se com as imagens. Quando estas sempre lá estiveram. Por vezes quando umas se calam, falam as outras. O silêncio de ambas é que não consigo suportar. Tudo se torna frio, quase petrificado e depois assim se permanece. Sem sabermos o que fazer para sua recuperação, resta-nos o interior. Mas de quê

- de mim, de ti, das coisas

De mim é que não, por favor. Gosto do barulho das cores e do silêncio das coisas, dos cheiros de agora e dos de antigamente também. Falta um abraço. Ou outra coisa qualquer que não precisamos.

Mas não é bem isso que falta. Ainda é outra coisa. Será sempre outra coisa. Desejo-vos a todos. E a um de cada vez. Sabes como se escreve? Como se pinta não, por favor, não podemos rir tanto por não aguentarmos mais. Qual é a tua problemática, perguntam as vozes, a mesma que a tua, nenhuma, ou outra qualquer. Decide tu que isso não importa. O tema, sei lá, diz-me por onde vais. Quero entender-te e isso não será possível enquanto não me entender a mim. Solta-te e vai. Mas devagar. Tudo bem esmiuçado e ficámos sem nada. Querendo sempre alguma coisa.

Dizem que (a pintura) morreu, anunciaram a sua morte para lá deste mundo. Que fazer depois disto, se ela não nos larga. Agarra-se a nós e sem muita força tentamos libertá-la. Daqui começam a nascer coisas, uma vez e outra vez ainda. O que disseram, enfim, não bloqueou nada. Tornou-se antes um incentivo para abrir novos caminhos, ou descobrir caminhos já abertos. Depois chega um que diz novamente:

- Ah, como está morta.

E outro volta-se para o centro. Vai trabalhar. E nasceram coisa lindas porém.

Quero estar lá quando estou mesmo. E ao mesmo tempo, ser outro, serei vós e assim permanecerei. Desprende-te e coloca a intuição ao máximo. Somos

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4 animais, ou deveríamos ser, tu és, bem sei que escolhes sempre o mesmo local para largares a tua urina, por vezes as fezes também. Coça-te. Constrói o teu ninho e depois deixa-te voar. Sem isto não seremos nada. E somos sempre uma vergonha, eu cá sinto. Fazem-se coisas por isso e por outras coisas tornam-se a fazer coisas. Gostava de dizer-te o quanto gosto de ti, amo-te, por isso larguem-nos e fiquem em paz. Ele permaneceu assim bastante tempo, até que foi incomodado de novo. Começou a ter novas idéias e vagarosamente adoeceu. O seu corpo, sentia-o pesado, mas espaço ocupado, nenhum.

Teria desaparecido

Hum, que bom caminhar assim sobre o mundo. Não fossem os pesadelos durante a noite e tudo seria perfeito. Mas esses é que não o largavam, amolestavam-no, faziam-no apodrecer. Com um cheirinho sempre bom, brisa fresca e cerejas flutuantes no poço da avó. Quase sempre eram guerras, batalhas, muitas pessoas muitas. Acorda-me com um beijinho e dir-te-ei o meu segredo.

Segue o teu caminho, constrói o teu canto, ou canta e constrói o teu centro, desconcentra-te, isso é que não e encanta prendido por um fio, desprendido por fio algum. No silêncio iluminar-se-á ao fundo o que não estavas preparado para ver. Larga-o e foge. Amando-o para sempre. Não sei o que fede mais alto, se o amor ou a morte inexistente. Paremos de calcular distâncias.

Imaginemos um todo sem limites, mais ou menos como um grande bicho. Crescerá por vezes, mas também poderá diminuir. Não, não é o tamanho que importa, bem sabemos. A mistura sim. Como é feita, vai por ali, por além melhor não, deixa-te guiar e guia também. E nada disto realmente importa, ou sim, o caminho. Uma harmonia entre todas as coisas, os seres, as plantas, os animais, os objectos, os pedaços delas, elas inteiras, os cheiros, os sabores, reentrâncias por onde passam pedaços do que necessitamos ou por onde eliminamos aqueles que nos incomodam ou aqueles que entram e saem sem darmos conta, essenciais para nós. Aqui chega-nos a deiscência do mundo, dos seres e das coisas. Kideiscência que harmoniza e trará bons presságios para o grande bicho. Se não podemos adivinhar, desejamos. Começou a diminuir até que o grande bicho desapareceu. Realmente não importava para nada, estava lá e não estava, ou melhor, nunca era ele. E com o seu desaparecimento tudo se iluminou – metaprosopagnosia.

Deste modo, também nesta introdução ao trabalho teórico se cria o ritmo que segue a mesma linha de pensamento de toda a dissertação. Começa-se aqui por falar das imagens, quais as relações que estas mantêm com as palavras e com o próprio autor que as concebe. E fala-se da pintura, da sua anunciada morte e seu campo de amplitude para actuação. Posteriormente, fazem-se referências aos temas centrais de todo o trabalho, a intuição, o momento presente, a kideiscência e a metaprosopagnosia.

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5 No estudo sobre o momento presente, recorre-se a autores como Daniel N.Stern, particularmente interessado “nos pequenos acontecimentos momentâneos que compoêm os nossos mundos de experiência”, Mircéa Eliade e os seus estudos sobre o Yoga e essência das religiões. Inter-relaciona-se assim, o conceito sugerido por Stern de momento presente, à respiração apresentada na prática do Yoga, para deste modo, apresentar uma proposta de momento presente durante a experimentação num trabalho prático.

Nos capítulos Kideiscência e Metaprosopagnosia, recorremos a conceitos propostos fundamentalmente por Gilles Deleuze, mas que de variadíssimas formas foram também abordados por outros autores, sendo de destacar, Simone Weil, Giorgio Agamben, Mircéa Eliade, Eugen Herrigel, Peter Sloterdijk e Yukio Mishima.

Finalmente, na última parte do vasto terreno aberto e criado por esta dissertação, retomamos a uma análise concreta das obras, de minha autoria, que foram o fio condutor de toda a pesquisa. Posteriormente, a apresentação dos materiais e métodos invocados na realização das obras, elaboramos uma demonstração dos resultados obtidos na vertente prática do presente estudo. Deste modo, apresenta-se uma lista das obras realizadas, durante os dois anos de Mestrado em Artes Visuais – Intermédia e fazem-se descrições detalhadas relativamente às técnicas utilizadas.

Uma selecção feita destas obras em estudo, será apresentada no dia de defesa da presente tese de Mestrado.

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II - MATERIAIS E MÉTODOS

Capítulo I

O momento presente – sua influência na experimentação

A recente mudança de paradigma nas ciências da cognição propõe uma mente que não é uma entidade independente e separada do corpo. Antes, o próprio acto de pensar requer e depende dos sentimentos que emanam do corpo, tanto quanto dos movimentos e acções.(...) O sonho, a livre associação, o momento presente, as sensações ou a expressão física e as acções podem não ser todas vias reais mas são estradas suficientemente boas para penetrar na mente, incluindo o inconsciente e o implícito. (Daniel Stern, 2006:149).

Apesar da dificuldade de pensarmos nos nossos momentos presentes, eles realmente existem e alteram demasiado as nossas vidas. Julgamos aqui importante salientar o quão afastados estamos de um conhecimento sobre as nossa experiências, sobre os nossos momentos presentes, quando é neste preciso momento que estamos a viver.

Na tentativa de uma maior clarificação acerca desses momentos, que acontecem agora, propomos associá-los a um controle da nossa respiração, isto é, se conseguirmos respirar de forma controlada e ritmada, estaremos mais presentes nesses momentos. O controle da respiração, associado a um desenvolvimento das capacidades de atenção e intuição, poderá produzir resultados eficientes para um aumento do conhecimento do momento presente.

Na presente pesquisa, interessa-nos relacionar esse momento presente com a experimentação num trabalho prático artístico. Ou seja, salientar a importância de estarmos realmente presentes durante a expulsão dos gestos, dos pensamentos, das idéias, das palavras, que decorrem numa fase prática do trabalho. Nesses, e em todos os momentos das nossas vidas.

Quero estar lá quando estou mesmo.

Mas é um momento estranho esse, o agora, o realmente presente naquele e neste instante. Uma autêntica estrapada faz-se sentir em nossos corpos, originada pelo tempo e sua invenção. Vai tudo demasiado rápido. Ou lento, tão lento. Nunca estamos lá. Ou poucas são as vezes.

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7 Vestida com uma magnífica orleã, balançava-se por entre as árvores, por entre as estruturas densas de vegetação, sem que nenhum animal a pressentisse. Talvez fosse o cheiro, a sua ausência. Ou o movimento. Na realidade, o balanço existia dentro da estrutura, mas de uma forma inaudivelmente invisível. As Estrígidas continuaram o seu caminho e ela lá permaneceu. Sem que a avistassem. Qual pequeno camundongo.

Do que ela realmente gostava era desse deslocar, daqui para ali, acolá. Ao sentir-se embalada para um lado, para o outro, vivia intensamente ao sabor das suas sentir-sensações. Não interessava o significado daqueles movimentos, apenas a importância do que faziam despertar, a sua verdadeira essência. Nos seus gestos, nos movimentos fluidos e em liberdade, desprendiam-se maravilhosas folhas de cor carmim e tantas outras. À mesma, uma necessidade de parar. Era quando descansava que sonhava com mais intensidade e novos movimentos surgiam inesperadamente. Nunca sentiu necessidade de entendê-los, ou melhor, conhecia-los tão bem que não precisava de falar deles. Queria ser agarrada por uma razão qualquer, empurrada para outro lado, pois neste já poucos pássaros existiam. Os alcatrazes de mãos dadas com os Accipitrídeos, num mundo virado do avesso em que o amor escorria pelos corpos já gastos do pesar.

O que existe de mais belo num vôo de pássaro é manter-nos erguidos, de cabeça e alma. E somos sempre uma vergonha. Queremos alcançá-lo, dançar como ele, mas os teus abraços doem-me devagarinho e são terra demais para um buraco tão pequeno. Morreremos sem saber nada. Ao desejar tanto ar, susteve a respiração para esperar-te, tu que tardas em chegar e não chegas nunca. E da vergonha saem coisas, a procura da redenção da nossa espécie, de todas as coisas que se misturam em ti. Actos falhados mas necessários, dou-te a mão porque não sei fazer mais nada. As palavras entopem-se no momento em que as queres cá fora. Ela continua a balançar-se, maldito movimento que não nos deixa parar, mas o mundo é mesmo assim. Quando de noite olhas para as estrelas, ergue-se uma claridade em ti. O infinito ofusca-nos. Deitamos lágrimas pelas costas, não temos sítio onde dormir. E ela lá continuava, embalada pelo som dos pássaros. [Fig.1].

A figura 1 é uma imagem de uma escultura, feita a partir de ossos de pássaros, maioritariamente de gaivota, que foram pintados a tinta de óleo posteriormente a serem unidos para a construção de uma forma. Esses ossos trabalhados, foram encontrados e colhidos no arquipélago das Berlengas. No entanto, inicialmente, sem essa intenção de mais tarde virem a ser trabalhados.

Aqui, de forma algo concreta, retratamos o que se assemelha ao como esta imagem surgiu. No entanto, pouco saberemos sobre o que verdadeiramente aconteceu durante a fase de experimentação do trabalho prático.

Mesmo que o próprio autor, tente reformular por palavras, o que aconteceu durante o tempo em que foram feitas as obras, ficamos sempre aquém de uma verdadeira realidade. Como refere Stern, “o momento presente contém os elementos essenciais à composição de uma história vivida. Trata-se de um tipo especial de história, porque é vivida enquanto acontece, não quando é posteriormente posta em palavras”.

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8 (Daniel Stern, 2004:73). A história vivida que aqui se fala “é não verbal e não necessita de ser transformada em palavras, embora isso seja possível com alguma dificuldade. As histórias vividas são experiências narrativamente formatadas na mente mas não verbalizadas nem contadas.” (Daniel Stern, 2004:73). No entanto, Stern acrescenta ainda um outro tipo de história, “uma história contada – isto é, uma narrativa – é falar a alguém de uma história vivida”. (Daniel Stern, 2004:73). E neste caso, já estaremos bastante longe do que realmente aconteceu no momento presente.

[Fig.1]

Sem título|Untitled, 2007 óleo/ossos | oil on bones

6 x 8 x 3.5 cm

O que acontece agora, influenciado pelo que aconteceu ontem, pelo que acontecerá amanhã1.Passado, presente e futuro, como única mancha, linha, que ocorre a todo o momento. Nesse momento presente, uma atenção extrema a tudo o que acontece, mas isso não basta. Mais do que o inconsciente, será a consciência um grande mistério. Conforme afirma Daniel N. Stern, “ Talvez o verdadeiro mistério seja a consciência e não o inconsciente. Recordemos que, embora formado intuitiva e implicitamente, o momento presente chega à consciência.” (Daniel N.Stern, 2004:151). Quando é que este ou aquele facto se tornaram realmente conscientes para nós. Não sabia bem por onde ia, mas gostava de caminhar. Tanto gostava que um dia caminhou, caminhou, até se perder novamente. Não era de sítio algum, nem de lugar conhecido. Desconhecia-se a ela e a tudo o que a rodeava. Gostaria de dizer-vos o seu nome, mas nem isso me lembro bem,

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9 Matilde, Emília, não sei bem, um nome doce como esses. É uma brutalidade um nome, a escolha de um.

1 Em resumo, o momento presente nunca é totalmente eclipsado pelo passado nem completamente apagado pelo futuro. Ele retém uma forma própria, ao mesmo tempo que é influenciado pelo que aconteceu antes e pelo que vem depois. Ele determina, igualmente, a forma do passado que é trazida para o presente e os contornos do futuro imaginado. Este triálogo entre passado, presente e futuro ocorre quase continuamente, momento a momento, na arte, na vida e na psicoterapia.

(Daniel N.Stern, 2004:52).

No seu movimento alegre e fluido, os nomes, as cores, as manchas, baralhavam-se, as letras soltavam-se em jeito de mistura e ouvia-se ao longe o tocar do uatapu, à espera do peixe. Mas também este tardava em aparecer. Nomear qualquer coisa é uma brutalidade forte e imperdoável. Permanecer no vazio, se este existisse, mas nunca para ela. Tinha vontade de comer, não sei se o seu corpo, se a sua alma. Mostrava-se insaciada. Por vezes o nome das coisas não se identificam com elas, ou elas com eles, mas aturam-se, carregam-se a ambos e tentam escapar-se. Assim que o sol se põe tenta adormecer mas não consegue. Todos os dias repete o mesmo ritual ao deitar-se, novamente os gestos, os movimentos, a sua paragem, os não-movimentos. À mesma o manter-se acordada, a fluidez do mexer para cá, para lá. Chamam-te e o mundo inteiro se abana. Um presente em forma de amanhã, faz-te sonhar com o que nunca serás e a abantesma que se(te) espreita no vão da janela a rodopiar em tuas mãos livres ao vento. Irás ser tudo isso e muito mais. No passado que agora vives, todos os nomes se libertam em desconhecidos seres que salteiam pelas ruas sujas que pisas com os teus magníficos pés de teatro. Queres viver hoje e não consegues. As pessoas, os locais, os cheiros, nada disto é isto. A morte dos amigos que voa devagarinho agarrada aos teus braços para sempre e eles que voam também sempre e amanhã.

Ele, robusto e silencioso, avançava nas linhas curvilíneas dos tecidos em volta. Falemos de uma composição da estrutura, mistura de manchas e linhas, formas encontradas e inventadas. As imensas dendrites que o percorriam mantinham-se abertas a receber todas aquelas preciosas informações. São milhares de milhões de neurónios, das mais variadas formas, a detectar o exterior, o interior, de todas as coisas e seres. Nesse movimento fluido e determinado marcaram-se indelevelmente os gestos de um ofício em que se solta a magia dos sopros que ainda estão por vir. O mondongueiro que se instalava nos finais das ruas surgia-lhe como uma figura difusa na calçada e deste modo, permanecia o suficientemente afastado de todos os que dele se aproximavam. A sua respiração era sentida pelas agulhas vizinhas de um andar minucioso e calmo. E nas tarefas mais banais, perdia-se em pensamentos de terras distantes por onde nunca iria chegar a passar. As linhas estreitavam-se nos seus braços e por eles chegavam novas fórmulas para deixar crescer a terra. Mantia-se presente enquanto riscava, mas nunca fora dali o encontraríamos. Os limites esfumados de um ser misturavam-se com os

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10 materiais ainda em construção. Depois chegavam os conselhos caídos sem pedir, respira daqui aqui, mantém-te atento ali e além, está aqui e agora2

. Foi regar as suas plantas e com elas adormeceu.

A respiração pode ser um factor fundamental para se atingir um estado em que poderemos estar verdadeiramente presentes, em cada momento agora das nossas vidas. Ao focalizarmos a nossa atenção na respiração, poderemos desenvolver capacidades como a intuição e a própria atenção. No entanto, mesmo a própria respiração se deve tornar um factor intrínseco nos nossos dias, isto é, a respiração deverá ser ritmada para nem pensarmos nela enquanto ela acontece. Como Mircéa Eliade refere, “trata-se pois de suprimir o esforço respiratório através do prânâyâma: ritmar a respiração deve tornar-se uma coisa automática, para que o yogui possa esquecê-la.” (Mircéa Eliade, 2000:73).

Tentamos aqui relacionar, ao citar Eliade, a respiração praticada durante o Yoga com a respiração e a capacidade de estar presente durante a experimentação no trabalho prático. Propondo assim, uma ligação desta forma de estar presente, à aprendizagem de uma respiração correcta. O que se irá traduzir num aumento das capacidades de atenção e intuição, essenciais num fazer artístico. Ou seja, se o artista conseguir ritmar a sua respiração durante a experimentação, tal como acontece com o yogui quando realiza as suas posturas, asanas, estará assim mais próximo de se manter atento em cada momento presente.

2 A respiração do homem profano é em geral arrítmica; varia quer segundo as circunstâncias, quer segundo a tensão psicomental. Tal irregularidade produz uma perigosa fluidez psíquica e , consequentemente, a instabilidade e a dispersão da atenção. podemos tornar-nos atentos, se nos esforçarmos para isso. Mas o esforço, para o Yoga, é uma «exteriorização». Trata-se pois de suprimir o esforço respiratório através do

prânâyâma: ritmar a respiração deve tornar-se uma coisa automática, para que o yogui

possa esquecê-la.

Ao comentar o Yoga-Sûtra, I, 34, Bhoja observa que «existe sempre uma ligação entre a respiração e os estados mentais». Esta observação é importante. Ela é mais do que a constatação do facto de que, por exemplo, a respiração de um homem furioso é agitada, enquanto a respiração de um homem que se concentra é ritmada e se torna lenta por si própria. A relação entre o ritmo da respiração e os estados de consciência aos quais se refere Bhoja, e que fora sem dúvida observada e comprovada experimentalmente pelos

yoguis desde os tempos mais remotos, serviu como instrumento de «unificação» da

consciência. A «unificação» de que se trata aqui deve entender-se no sentido em que, ritmando a respiração e tornando-a progressivamente mais lenta, o yogui pode «penetrar» - isto é, experimentar com plena lucidez - certos estados de consciência que, no estado de vigília, são inacessíveis, em particular os estados de consciência que caracterizam o sono. O ritmo respiratório de um homem que dorme é mais lento do que o de um homem acordado. Ao realizar, graças ao prânâyâma, o ritmo do sono, o yogui pode penetrar, sem perder a lucidez, nos «estados de consciência» próprios do sono. (Mircéa Eliade, 2000:73).

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11 Sentia-se a sua presença como a de uma brisa fresca marítima e matinal. Despertávamos com e para ela. Lentamente, ladram os cães que não suportam as pedras escuras do caminho. Tão fresca que nos gelava até aos pés, aos ossos. Não suportamos tanta alegria interior, com o risco de contágio que não conseguiremos carregar. Com uma manta pelos ombros, daquelas pesadas e de lã, a avó caminhava no seu jeito de arrastamento. Torna-se difícil carregar tanta vida que se nos espalha nas porosas e sujas entranhas. Sonha com um touro, preto e forte. Não conseguem fugir, aparecem árvores e ramos delas desfeitos em pó de ouro. [Fig.2].

[Fig.2]

Sem título, 2007

[pormenor, página 72]

Na imagem apresentada na figura 2, tal como na imagem anterior, surge-nos uma escultura, neste caso apenas um pormenor, feita a partir de ossos, posteriormente pintada a óleo e onde foi aplicado ao centro uma parte interior em folha de ouro. Esta imagem retrata uma entrada magestosa e acolhedora, num reino escuro mas não menos acolhedor. Simboliza a esperança e coragem necessários para o percurso de caminhos desconhecidos.

Os percursos aparentes serão sempre vários em todos os caminhos que escolhamos, muitas bifurcações aparecem diante dos traços não tão lineares que percorremos. Queremos com isto novamente salientar, a importância da intuição nas escolhas destes percursos e a respiração ritmada, ferramentas que poderão ter bastante utilidade durante todo o caminho.

Ela e as primas que tanto mexeram, para um lado, para o outro, o sangue desfeito de um porco quentinho ainda a morrer e a morrer para sempre nas suas cabeças. Uma composição desgastada pelas cores nauseabundas e traços e manchas em revolta. Os cheiros são as coisas mais difíceis de esquecer, estamos nós distraídos e lá estão eles

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12 a subir por nós acima, a descer por nós abaixo. Até regorgitarmos tudo, embriagados pela noite dentro pálida e triste. O deslize da serpente que não era, demorava-se no caminho. Agora já com madeira polida entre as mãos, tentava segurar-se no tssss tssss feito com o lugar dos pés. A vida é dura e não se amolece com azeite quentinho para os fritos da manhã. Esses ainda os fritava, pão amolecido em ouro, polvilhado de cores escuras e apetitosas. Vai-se daqui sem se saber grande coisa ou nada. E o seu contentamento imarcescível que não se espalha pelo mundo.

Estava mesmo agora aqui quando não sei para onde fui. Olho com certa inveja para a vida despreocupada de certos animais, até assistir à sua morte. Espanta. Os outros e a ti próprio. Vive senão para isto, espanta-te. Para quê caminhar depois de tantos dias terem passado por nós e de vermos incendiarem-se as nossas cabeças. Procuramos um lugar, queremos sempre um lugar, mas nem sabemos a forma que somos. Depois de iniciarmos a construção tudo tem outro sentido. Os símbolos poderosos estão nas tuas mãos. Na busca dos limites do abrigo, vemos cair as pedras ululantes do firmamento e desaba-nos todo o líquido antes guardado em segredo. Inundam-se as terras, as almas e os corpos com elas. Que mundo tão hipócrita e cruel, e tão sólido se tornou. Olhar para as coisas, para os outros, para ti, com curiosidade. As coisas são o que são e tudo o seu

contrário também.

A morte provocada pelo touro foi silenciosa, estava ela ao meu lado quando de repente o animal acaricia-lhe o peito com a sua cabeça escura e fria. Silenciosa. Não fosse o sangue a cair no chão, a multidão a aproximar-se de nós, nunca iria entender o que se tinha realmente passado. E nunca entendi. Fiquei espantada ao ver o nascer do sol no dia seguinte. Todos os dias se repetem os seus gestos, mas assisti a demasiados poucos. Prosseguir o caminho, construir outra casa e nunca abrigo nenhum. Vens e vais sozinho e nunca te deixam estar só. Estou-me nas tintas. Larga-me. A solidão é necessária para qualquer coisa e para isto tudo e nada pior do que ela instalada em nós. O ambiente era de festa, daquelas que se repetem, ou que não se repetem nunca, são antes revividas uma vez e outra ainda. O movimento daquela cabeça é inesquecível, o seu olhar lânguido instalado num corpo vivamente cansado. Um preto solto pelas marcas encarnadas do seu interior. Escorriam-se-lhe líquidos pela face perdida no rasto da areia, não sabia gritar. E foi no silêncio que ela caiu.

Tudo isto aconteceu num certo e determinado tempo3

. Mais precisamente, durante as festas religiosas da sua vila natal. Onde, tal como refere Mircéa Eliade na sua obra, O Sagrado e o Profano, “a festa não é a comemoração de um acontecimento mítico, mas sim a sua reactualização”. (Mircéa Eliade, 2006:93).

3 O Tempo sagrado e forte é o tempo da origem, o instante prodigioso em que uma realidade foi criada, em que ela se manifestou, pela primeira vez, plenamente – o homem esforçar-se-á por tornar a unir-se periodicamente a este tempo original. Esta reactualização ritual do illud tempus da primeira Epifania de uma realidade, está na base

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13 de todos os calendários sagrados: a festa não é a comemoração de um acontecimento mítico (e portanto religioso), mas sim a sua reactualização. (Mircéa Eliade, 2006:93). Este tempo da origem de que nos fala Eliade, “é o tempo da cosmogonia, o instante em que apareceu a mais vasta realidade, o Mundo”. E é este tempo que se tenta recriar quando se experimenta, quando se tenta fazer, “a cosmogonia serve de modelo exemplar a toda a «criação», a toda a espécie de «fazer»”. (Mircéa Eliade, 2006:93).

Não conseguimos contar as nossas experiências, pelo menos como realmente as vivemos, e são os bebés que conseguem olhar-te mais segundos nos olhos. Cresces e caem-te pérolas pelo sujo imundo das unhas, saltam-te capacidades quais pulgas pelo caminho. Coças-te e desvias o olhar porque já não aguentas mais, melhor que venham sem rosto algum assim pela noite. Não sabemos quando se instalou a velhice, a partir de que dia começam a tratar-te assim: velho. Chega sem avisar, como tudo passa por ti sem marcações ou avisos. A experiência acontece, estamos ou não lá, pedaços de nós. Verificamos a faca para nos certificarmos que comemos e os comprimidos, esses, engolidos vezes sem conta. Suja de manteiga, mostra-se o nosso estomâgo saciado, mas não sabemos o seu lugar. Talvez exista em nós. Desconhecemo-nos num todo e na soma de quase todas as partes.

Sacode-se o mundo e escorrem borboletas à sua volta. Não sei se predadores ou necrófagos, mas que a comem, comem. Se houvesse algum sentido nisto, falaríamos bem alto no centro da praça. Mas mesmo essa desapareceu. No cimo da colina, lá se instalavam todos os ossos daqueles que tinham sido. Vieram ter-me às mãos, elas foram imediatamente até eles. Guardei-os como jóias, ainda sujos, espalhados de beleza em formas simples. Ouvi-os gritantemente a comunicar. Acolhi-os. Sabia exactamente o que fazer agora com eles, mas surge a frustração causada por um cansaço que se atira para dentro do corpo. Maldita a necessidade de dormir. Novo dia, mesma tarefa, a necessidade de fazer mais e depressa. Isto porque sim. Olha-se para trás e não sabemos bem o que aconteceu. Recordamos qualquer coisa que passou por nós, que passámos por ela, resta-nos desejar de novo. Provavelmente não se repetirá e não estás preparado nem para isso nem para nada. Abre espaços em ti, vazios, zonas brancas ou de outras cores, zonas indiscerníveis. Afinal são predadores que te perseguem. Lepidoptera é uma ordem. E Callophrys rubi nativa daqui. Viajaram de barco e recordou-se toda a sua infância no vaivém de doze ondas.

Retratamos aqui o aparecimento de uma obra, que consiste em pinturas a óleo sobre ossos de pássaros, como já aqui foi referido, maioritariamente de gaivotas. [Fig.3] Esses ossos encontrados numa viagem feita à ilha da Berlenga, foram recolhidos e guardados. Mais tarde, e por um mero acaso, começaram a ser trabalhados em atelier. Foram feitas associações entre os diversos ossos e estabeleceram-se relações directas entre eles, criando assim um universo particular onde se movimentam.

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14 O conjunto de esculturas apresentadas neste presente trabalho, relaciona-se com o momento presente que aqui referimos, uma vez que foi, voltamos a repetir, por um mero acaso, que as esculturas surgiram no seio de um outro trabalho de pintura em curso. Num dado momento presente, houve um desvio de um fazer para outro. Novamente, as noções de atenção e intuição serão cruciais para o entendimento de todo este processo.

O que levou um dado fazer a ser substituído por outro? O que provocou este desvio? Interrogamo-nos assim, acerca do que aconteceu num dado momento presente durante a fase de experimentação no trabalho prático.

Referimos aqui, que esta obra resultou de um mero acaso, mas vale a pena aqui recordarmos o que Bacon disse acerca do acaso, “não há «acaso» senão sendo «manipulado», não há acidente se não for utilizado”. (Gilles Deleuze, 2006:164).

[Fig.3]

Sem título|Untitled, 2007 óleo/ossos | oil on bones

2.5 x 5.5 x 2 cm

Tinhamos gosto ao vê-lo trabalhar. A desenhar, pintar, construir as suas coisas. As suas mãos eram grandiosas rochas, macias e ondulantes. Os pés, pesados, flutuavam nos carreiros de casa, cheios, cheios de ervinhas por cortar. O corpo, tentava ajustar-se às suas extremidades, mas nem sempre lhe pertenciam. E a cabeça, essa, surgia cambaleante e sem espaço definido. Caía onde calhava, ao calhar – sempre o corrigiu, a outra. Mas mesmo a dela não se encaixava assim tão bem. E sempre que falamos, tudo piora. Começa a girar, a girar e nunca sabemos onde irá permanecer em repouso.

Será que conheço aquele rosto? E de repente muitos outros se sobrepoêm. Forma-se uma massa indistinta de corpos, de coisas, riscos, manchas, cores e traços. Parece-se que tudo sai e entra por ali. Um vazio de tudo e um cheio de coisas quaisquer.

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15 Quando olhamos para ele, algo se desfaz, eu cá sinto. No entanto, apresenta aquela sua robustez característica de si. Teimosamente, aproxima-se do seu local e repete os mesmos (aparentes) gestos todos os dias.

Ao afastar-se, ouvem-se os seus passos, mas não conseguimos encontrá-lo. [Fig.4].

E sabes o que diz o chapim, chapim, chapim, chapim.

A imagem da figura 4, apresenta-nos um pormenor de uma pintura, onde surgem apenas as manchas que nos remetem aos pés e pernas de um personagem, agora desfeitos por cores esbranquiçadas e luminiscentes.

Assim se encontra retratada uma ausência da Figura, aparecendo o seu rasto como pista para uma qualquer procura da sua identidade.

[Fig.4]

Sem título, 2009

[pormenor, página 80]

Sabia bem o que queria quando tudo, ou apenas o seu acto de pintar, começou. Mas o como, era a sua grande inquietação. Como fazê-lo. Permanecia imóvel, vazio, distante, mas ao mesmo tempo de uma intensidade que fervilhava em turbilhão. Estava cheio, afinal. Tudo se apresentava naquele movimento, um mistifório entre passado, presente e futuro. E acontecia naquele instante.

Mas que instante seria esse, o tal momento presente4

?

Aí , era necessário estar lá. Qualquer coisa como uma presença verdadeira, algo em estado embrionário, a magia de um nascimento, de um encontro.

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16 E era essa ausência, que o molestava, aos poucos. O definhar por essa incapacidade, a possibilidade de impotência corroía-o. E gravemente ferido continuava os seus dias, ansiosamente à espera de não se ausentar.

4Momento presente – é o intervalo de tempo em que processos psicológicos agrupam unidades muito pequenas de percepção na mais pequena unidade global (Gestalt) que tem um sentido ou significado no contexto da relação. De um ponto de vista objectivo, os momentos presentes duram de 1 a 10 segundos, com uma média de cerca de 3 a 4 segundos. Subjectivamente, eles são aquilo que experienciamos como um agora ininterrupto. O momento presente é estruturado como uma história vivida a micronível, com um enredo mínimo e uma linha de tensão dramática composta por afectos de vitalidade. Tem, assim, uma dinâmica temporal. É um fenómeno consciente mas não precisa de ser reflexivamente consciente, nem verbalizado ou narrado. É considerado o bloco elementar de construção das experiências de relação. Abstracções como as generalizações, explicações e interpretações, ou os fenómenos de ordem superior como as narrativas, são compostos por estas experiências psicológicas básicas e primárias. Só estas acontecem «agora» e só elas são vividas directamente. (Daniel Stern, 2006:237). Eram os momentos de cairós, “a palavra grega para momento oportuno ou o momento em que alguma coisa nasce” (Daniel N.Stern, 2006:12), que faziam a magia do mundo brilhar mais alto e todos transportavam as suas hídrias a transbordar de cores que se derramavam pelos terrenos descobertos ainda há pouco5. O cheiro da terra molhada mordia-te nos lábios e com ele sonhavas partir ao encontro de coisas quaisquer, encontros fortuitos que te faziam erguer as pequenas vicissitudes agarradas à vida e permanecer em paz com elas. Nesse lugar, antes vazio, aglomeravam-se suspiros doces e tenros à espera do teu desejo. Abandonam-se lugares, peles vestidas e plumagem em cima, o manter um caminhar desinteressado. E nesse caminhar errante, tropeçam seres e coisas e nunca estamos lá, devidamente posicionados para qualquer coisa que se espera, que se deseja. A magia do caminho fortalece o osso da estrutura quase desfeita pelos passos, já não existe centro para se situar no mapa indiscernível de todos os lugares. Em redemoinho, a procura incessante do local desaparecido ou ainda por existir, começar do início. Mas não existem pontos para seguir, linhas ou traços que demarcam o caminho, mantém-te alerta e continua no carreiro, ergue-te matusalém. E o lugar vazio nunca existiu. À mesma, o teu desejo faz-te partir, impulsionador de novos traços e manchas, e já não é o desejo mas novamente a vergonha. Por ela, descais nas ruas ásperas do fazer e ressuscitas nos prédios cinzentos da cidade que te acolheu. Não se é de lugar nenhum, pertence-se ao que marcas como sendo teu e nem daí. Sonha-se com esses momentos, em que qualquer coisa nasce, momentos especiais que ocorrem em momentos presentes.

5 Primeiro, consideramos que o tempo resulta da sensibilidade humana. Ele é uma invenção da mente. Não sabemos nada sobre o tempo das coisas, se é que isso pode ser imaginado. Nas ciências naturais e na gestão dos horários da vida diária, nós usamos a velha perspectiva grega de chronos. Chronos é uma perspectiva objectiva do tempo,

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17 usada não só em ciência como também na maioria das nossas psicologias. No mundo do

chronos, o instante presente é um ponto que se move no tempo, na direcção única do

futuro. Não importa que o seu curso seja considerado uma linha recta, um círculo ou uma espiral: o instante presente avança sempre. E, à medida que avança, ele engole o futuro e vai deixando o passado na sua esteira. Mas o instante presente é, em si mesmo, muito curto: é uma fatia quase infinitesimal fina de tempo, durante a qual muito pouco pode acontecer sem se tornar imediatamente em passado. Não existe, efectivamente, presente. [...] A concepção do tempo dos gregos, cairós, pode ter aqui o seu interesse.

Cairós é o fugaz momento em que alguma coisa acontece, à medida que o tempo passa.

É o nascer de um novo estado de coisas que acontece num momento de consciência. Ele também tem as suas próprias fronteiras e foge, ou transcende, a passagem do tempo linear. Porém, contém também um passado. É um parênteses subjectivo, que se destaca do chronos. Cairós é um momento de oportunidade, quando os acontecimentos exigem acção ou são propícios à acção. (Daniel N.Stern, 2006:29).

O momento presente, tal como o apresentamos nesta pesquisa, é o momento que “experienciamos como um agora ininterrupto”, segundo Stern. Nesse momento presente, surgem pontos, outros momentos a que poderemos chamar cairós, ou “momentos de oportunidade”. (Daniel Stern, 2006:29).

Nesses momentos, as tais capacidades que já referimos anteriormente, de intuição, atenção, estado permanente de alerta, serão importantes para viver esses tais momentos de oportunidade. Não apenas durante a fase de experimentação do trabalho prático, mas em todos os nossos dias. Ao associarmos a capacidade de um corpo atingir uma respiração ritmada, esse mesmo corpo ficará mais apto a reagir com o seu próprio corpo e assim, deste modo, responder activamente de uma melhor forma a estes momentos decisivos. Tentamos deste modo, como refere Daniel Stern, “forçar o chronos a criar um presente suficientemente longo para acomodar o cairós”. (Daniel Stern, 2006:48).

Agora vem o antes, logo a seguir surgirá o depois. Acorrentados e oscilantes. Antes de começar já lá está tanto, tanto, parece tudo6. É necessário agir prudentemente e com extrema atenção. Fazendo o quê, não se sabe bem, determinação aqui, intenção acolá, ao acaso por além. E tudo permanece. A máxima importância das tentativas, o jogar sempre desejando de cada vez obter o máximo de sorte. Não me venham com coisas, pois desde o nascimento que assim é, nasce e renasce sempre com o máximo de sorte. E tudo permanece, sempre cheio, já lá está tanto, tanto. Tu, eu, todos os outros e coisas e seres e nadas também. Estar no presente como condição necessária mas não suficiente e já assim tão insuficiente. Dizem, quem disto entende, que normalmente podes contar até três. Um, dois, três. No máximo até dez7

.

Numa fase de experimentação num trabalho prático de pintura, existe o momento inicial de encontro entre o artista e a tela. Nesse momento, aquela superfície aparentemente branca, aparece povoada de fantasmas, de histórias passadas, de uma imensidade de clichés, dos quais o pintor quer um imediato afastamento. Como afirma

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18 Deleuze, “de facto, seria um erro acreditar que o pintor trabalha sobre uma superfície branca e virgem”. Existem variadíssimas coisas a ele agarradas, que o aborrecem, que o incomodam, “o pintor tem muitas coisas na cabeça, à volta dele ou no seu estúdio. [...] De modo que o pintor não trata de preencher uma superfície branca, mas sim de esvaziar, desimpedir ou limpar uma superfície”. (Gilles Deleuze, 2011:151).

Para haver um afastamento de toda a espécie de clichés, “com os quais é necessário romper”, torna-se crucial que o artista , se mantenha verdadeiramente presente naquele momento, com uma intuição e atenção apuradas. Deste modo, poderá permanecer num estado em que consiga posteriormente criar.

6A pintura moderna é invadida, sitiada pelas fotografias e pelos clichés que se instalam na tela antes ainda de o pintor começar o seu trabalho. De facto, seria um erro acreditar que o pintor trabalha sobre uma superfície branca e virgem. A superfície já está toda ela virtualmente investida por toda a espécie de clichés com os quais será necessário romper. (Gilles Deleuze, 2011:46).

7O momento presente tem uma duração que medeia entre um e dez segundos, com uma duração média que vai de três a quatro segundos. Há três grandes justificações para este intervalo: é o tempo necessário para fazer agrupamentos significativos da maioria dos estímulos perceptivos que emanam das pessoas, é o tempo de formar unidades funcionais dos nossos desempenhos comportamentais e é o tempo que permite que a consciência surja. (Daniel N. Stern, 2006:61).

O seu fato era o mais bonito em toda a sala. Possuía um não sei quê de brilhante, ao mesmo tempo que lhe víamos as suas vísceras. Sempre que se movia, todos os olhares presentes viravam-se naquela direçcão. E no entanto, nada disso interessava para nada. Todos os movimentos dela, eram gerados por coração e alma presentes e era no movimento que residia a sua verdadeira atraçcão.

Centra-te mais nos sentimentos do que nos movimentos. Susurrou-lhe baixinho. Tudo é uma questão de ritmo.

E o ritmo que referimos no nosso estudo, associado à respiração, poderá facilmente ser comparado ao que Edward T.Hall enuncia ao falar-nos de diferentes correntes de tempo e particularmente sobre como a cultura Hopi vive essa experiência do tempo. “Para os Hopi, pelo contrário, a experiência do tempo é mais natural – como a respiração, é um elemento rítmico da vida”8

.

8 Viver, como os Hopi, num eterno presente, e viver o «agora» preparando-se para cerimónias não dá a sensação de que o tempo seja um implacável tirano, nem que seja identificado com dinheiro e progresso, como o é no Ocidente. Para os Ocidentais, o tempo é susceptível de se adicionar, o que os impede de esquecer que ele se escoa. Isto pode, de resto, ser penoso. Para os Hopi, pelo contrário, a experiência do tempo é mais natural – como a respiração, é um elemento rítmico da vida. Assim, os Hopi, tanto

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19 quanto eu sei, nunca se preocuparam em filosofar sobre «a experiência» do tempo, ou a natureza do tempo. (Edward T.Hall, 1996:48).

A transparência do seu corpo, a sua, deixava-nos perplexos. [Fig.5] O que víamos era de uma leveza tal, que se tranformava num dos maiores fardos que poderíamos transportar. Não seria possível carregar semelhante estrutura nos nossos corpos, pelo menos sem uma preparação prévia para tal. E não existia preparação. Assim como não existem tantas, tantas outras coisas, que preciso mesmo delas aqui, agora. E ela não sabia que efectuava tantos estilhaçamentos, ao ficar-nos agarrada, presa por fortes tentáculos inquebráveis, acordados e durante os nossos sonhos, ela lá estava. A coisa que se viu. O que fazer depois disso, o que fazer com isso.

Num trabalho artístico, de pintura, desenho, fotografia, vídeo, ou qualquer outro, existem momentos (quando as coisas correm bem), em que as coisas aparecem naturalmente. Outros em que por muito esforço dispendido, surgem apenas desenhos, pinturas, fotografias, que ficam aquém do resultado pretendido.

Como então reunir as condições necessárias para que esses tais momentos, em que as coisas correm bem, se repitam e sejam constantes durante os momentos de acção. Não saberemos nunca como fazê-lo, mas neste trabalho teórico efectuado propomos enunciar a criação de um ritmo, de uma atenção dada ao momento presente e a um desenvolvimento da intuição, como plataformas para um estado de receber, uma convocação do corpo a uma união com o que se deseja. Sempre através do trabalho e do amor. E nunca sabendo sequer o que se deseja nesse constante desejar.

Na figura 5 surge uma representação de uma transparência de um corpo, de um corpo em fuga, que outrora foi ou tentou ser forte, de um corpo errante, simplesmente o retrato de um corpo de um homem. Como Deleuze refere, citando Francis Bacon, “não sou eu que tento escapar ao meu corpo, é o meu corpo que tenta escapar ele próprio”9

.

9O corpo esforça-se precisamente – ou espera precisamente – por escapar. Não sou eu que tento escapar ao meu corpo, é o corpo que tenta escapar ele próprio por...Em síntese, um espasmo: o corpo como plexo, e o seu esforço ou a sua espera por um espasmo. (Gilles Deleuze, 2011:53).

Uma necessidade de continuar e permanecermos no nosso caminho10. Maldita necessidade, abençoada necessidade. Sempre ansiosamente à espera que se reencontrem, que trabalhem em conjunto, as suas duras e fortes mãos, o seu doce e frágil corpo. Poderão trabalhar mutuamente esses dois, que se separam a todo o instante e não se pertencem. As criaturas surgem por ti acima e de forma verdadeira, tão verdadeira que nenhuma delas possui forma. És cruel de forma quentinha. Tentas comunicar com aqueles que se te assemelham, mas não os consegues encontrar, não consegues encontrar-te. Avança a solidão fria pelos dias que escorrem em ti. Nunca

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20 foste de abraços e fumas um cigarro que se espalha, que te espalha, pelos cantos da sala. Sonhava com ela, entre duas ou três paredes aparecia a criatura que crescia, crescia, entre sons cada vez mais altos e ruidosos, até ao meu acordar. Assustado. Tremendamente assustado. A batalha interminável contra o cliché, a crença e a descrença do exercício, da prática regular. À mesma, o continuar de todos os dias.

[Fig.5]

Sem título, 2009

[pormenor, página 77]

Os momentos presentes sucedem-se uns aos outros e estamos sempre no meio de um caminho, infinito e incessantemente cheio de turbulência. Esta turbulência, definida, no dicionário, pelas leis da Física, como um “estado de movimento irregular de um fluido, tal que a velocidade das diferentes partículas fluidas que passam num ponto pode variar com o tempo em grandeza e direcção”; é o que queremos reduzir para assim alcançarmos percursos mais estáveis durante todo o nosso caminho.

Para diminuir ou ultrapassar esta, chamemos-lhe turbulência ou ruído do caminho, temos que encontrar o nosso centro, o nosso ponto de equilíbrio, sentirmos os nossos corpos e assim conectados com a natureza, permaneceremos de forma mais presente em cada momento diferente.

10 Se é necessário escondermo-nos, se precisamos sempre de assumir uma máscara, não é em função de um gosto pelo segredo que seria um pequeno segredo pessoal, nem por precaução, é em função de um segredo de uma natureza mais elevada, é saber que o caminho não tem príncípio nem fim, que lhe é próprio manter o seu princípio e o seu fim escondidos, porque não pode fazer de outro modo. Ou já não seria um caminho. O caminho só pode existir como tal no meio. (Gilles Deleuze, 2004:42).

A televisão que não se cala, aquele que não a desliga, cores e mais cores entram por ti adentro e saem por ti fora. Faz qualquer coisa com as oferendas que existem em ti,

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21 com o teu tédio, com a tua incapacidade de reagir ao que é exterior. Barulhos brilhantes e viscosos prendem-se de forma forte e dura. Com o dedo polegar fazem-se cruzes e cruzes, pede-se protecção e esquece-se que a palavra, a palavra mata. Ou melhor, pode matar. Ele de tão rude que era manteve-se à espreita por entre os móveis do seu pequeno espaço, ao avistarem-no, fugiam como centopeias lentas arrastadas pelas imagens em movimento que passavam. As crianças corriam pela casa e chamavam-no para sempre. Afinal era doce, e à força de repetir a palavra, curava-se a ele e ao outro. Os cheiros que inundavam o seu corpo eram de desânimo e fraqueza. Lenços esvoaçantes pela casa, levavam brilho ao mais leve dos seres por ele espalhados. Conforme afirma Deleuze “O corpo expande-se na casa (ou um equivalente, uma fonte, um arvoredo). Ora, o que define a casa são os «panos», isto é, as porções de planos diversamente orientados que dão carne à sua armadura”. (Gilles Deleuze, 1992:158). Tinha colocado flores pelos lugares habitados da casa, as suas cores enterneciam e faziam-no caminhar ao longo de toda a mancha. Areias puras faziam-se rebolar em suas mãos graves, silenciosas, e caíam lentamente perto dos cisnes. Nadavam todos juntos, com a alegria dos mares e das coisas soltas.

Ergue-se uma insuportável docilidade nas coisas e desprendem-se dos ramos as hastes que os suportavam ontem e antes. Na noite inocente que teima em sair, ficas ansiosamente desperto com as luzes em ti. Nada se apaga, e relembras o que vives agora como se fosse a primeira vez. Já passaste por tudo e mais ainda. Incendeiam-se os sonhos e surgem bailarinos pela noite que te acariciam. Nos seus movimentos apreendes a cor dos gestos que se balançam e desfibram as tuas tiras de pele já solta. Tentas reconhecer o animal e com ele partir para outro lugar, longípede que te segura ao chão. Nasceu um corpo em ti e teimaste em plantar nas traseiras todas aquelas ervas que não te fazem falta, ao redor e a toda a volta agora, da casa. Vai-se construindo entre aqui e ali, um emaranhar de linhas, de machas e cores que percorrem os espaços antes vazios. A ferocidade com que te moves é sempre maior do que aquela que pensas que trazes contigo e as linhas entram pelas zonas indiscerníveis a que outrora chamaste corpo.

A casa feita pelo desossar da estrutura ainda tenra, arrasta-se depois para as águas quentes dos banhos em flores. As cores dos cheiros permanecem em ti e continuas a construir cantos, maravilhosas melodias em consagração do território por conquistar. Linhas palpitantes surgem pelas paredes que delimitam o espaço, segue-se com disciplina para se manterem afastadas as tentações ou quaisquer outras coisas desviantes do percurso. Caminha-se à volta de um círculo, com o ritmo entre os nossos passos e vozes, queremos vencer o combate galáctico que se nos evidenciou. Abandonamos o que somos para continuar o caminho, o mais relaxados possível e de uma respiração sincronizada com o mundo, dentro e fora pausadamente até nos esquecermos dela e de tudo11

. Nas mitocôndrias interiores revestem-se de películas de ouro ardente todos os braços que se volteiam para fazer surgir o amor, por cima do azul e do oricalco que ainda embeleza as vísceras do teu ser.

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22 11 O ritmo respiratório obtém-se pela harmonização de três «momentos»: a inspiração (pûraka), a expiração (recaka) e a conservação do ar (kumbhaka). Pela prática, o yogui consegue prolongar consideravelmente cada um desses momentos. Segundo as declarações de Patañjali, o objectivo do prânâyâma é a suspensão tão longa quanto possível da respiração, à qual se chega retardando progressivamente o seu ritmo. (Mircéa Eliade, 2000:76).

Quando anteriormente falámos em conexão com a natureza, referíamo-nos a atitudes bastante simples que poderemos ter, tais como aquelas de que nos fala Eugen Herrigel, citando a definição de Zen proposta por Baso Matsu, “é a consciência diária”, que não é senão “dormir, quando se está cansado e comer, quando se tem fome. No momento em que reflectimos, ponderamos e construímos conceitos, perde-se o inconsciente original, dando lugar a um pensamento”. (Eugen Herrigel, 2007:8).

Através de uma respiração feita correctamente, poderemos encontrar uma forma de mais facilmente nos centrarmos com o nosso próprio corpo, conhecendo-o e respeitando-o, e assim termos relações estáveis com tudo o que envolve.

Desejo-lhe uma «hora» pequenina.

No início não percebi o que seria isto de uma hora pequenina. Um intervalo de tempo como desejo, mas para além disso, determinado. Pequenina. A tender para infinitamente pequenina. Mas como seria isto possível ou porque me desejariam o improvável, perguntava-me.

Depois esqueci. Surgiu um tempo informe, uma massa compacta sem antes nem depois. Não conhecia aquilo, nem sei agora do que se trata. Como se de um cálculo matemático se tratasse, uma adição de sinais positivos e negativos, em igual quantidade, anulando qualquer resultado, qualquer medição. Perfeita dissolução, queda no zero, branco. Teria realmente existido?

Pertencia a um tempo indeterminado ou (a)temporal. Qualquer coisa de sagrado revelou-se naquele gesto de expulsão. E ao mesmo tempo que saíam coisas e coisas, tantas outras entraram. Nessa paragem bruta, ergueu-se a leveza de um ser.

Ai, ai, quero estar lá quando estou mesmo. Mas o que será isto? Sempre a repetir esta coisa. Por vezes falavam com ele, mas como se de surdez se tratasse, permanecia imóvel ali encostado. As mãos, esses velhos penduricalhos, agitavam-se com o vento quase inexistente. Estava cansado, sem saber bem qual a causa para semelhante episódio. O jantar tinha sido tranquilo, a semana toda aliás, nenhuma agitação por ali passara. Mas as veias tinham-se-lhe dilatado e o sangue parecia escorrer devagarinho. Voltaram a soprar-lhe ao ouvido. Aí disse qualquer coisa. Tenho vontade de saltar. Sorriram ao ouvi-lo falar, afinal escutara tudo desde o início, confirmara-se não ser surdez.

As coisas, as formas, as imagens, com suas manchas e traços, apareciam-lhe misteriosamente em mãos, mas não conseguia controlar a sua brutalidade. Era

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23 necessário uma forte comunicação, entendimento entre eles, para não haver uma destruição de tudo em todos. Queria construir, criar o seu lugar, fazer o seu território e nada mais difícil que tudo isto. Qual construção. A natureza afasta-se de ti de forma abrupta, mas julgas pertencer-lhe. A sua abulia generalizada fazia com que esperasse por ela, mas ela tardava em chegar. Qual o seu lugar no mundo, pertence a tudo e tudo lhe pertence. Uma névoa instalada no sentido multidireccional de toda uma cena de animais brutos que não se conhecem, que julgam conhecer-se para sempre. Hoje leu qualquer coisa sobre o leucóptero de asas brancas, uma ave muito branca que chega aos cem anos. Os nómadas costumam dizer, que deus te acompanhe até à idade do abutre. E a natureza és tu. Constrói, constrói, constrói. Um canto, uma casa, um abrigo. Para sair dali logo pela manhã e não se recordar de gesto algum. Fazemos tantas coisas sem nos apercebermos, como estar lá, no momento presente12

?

Durante a fase de experimentação num trabalho prático artístico, assim como em diversos momentos nas nossas vidas, por vezes não estamos concentrados, ou devidamente presentes naquele momento. A sensação que nos ocorre é que parte de nós, uma parte mais física, corporal, se encontra naquele local, enquanto outra permanece a vaguear por outros lugares. Outras vezes, o nosso pensamento está realmente presente mas não conectado com o nosso corpo, porque algures se distanciaram.

Mas nessa fase de experimentação, como em todas as outras, é necessário que nos sintamos totalmente imersos naquele momento, pois só assim poderemos usufruir em pleno daquele momento e da vida de uma forma geral. Queremos assim, criar as condições para receber o cairós, e deste modo tentarmos prolongar os nossos momentos presentes. O que propomos então, nesta primeira parte do nosso trabalho, é relacionar o controle da respiração, definindo-o como uma ajuda ou útil ferramenta, com o aumento do chronos.

Gostaríamos, desta forma, de atingir as condições necessárias para usufruirmos em pleno dos nossos momentos presentes.

12Acontece muitas vezes que só nos sintamos, em parte, no momento presente. Mas em que outro sítio nos encontramos? Por exemplo, podemos estar a tratar de alguma coisa, aqui e agora, mas, ao mesmo tempo, preocupados com algo que aconteceu ontem ou que está a acontecer agora na sala ao lado. Nesses momentos, só se tem um débil sentimento do momento presente, como se uma parte de nós estivesse noutro lugar, num outro espaço temporal. Porém, não há qualquer outro espaço de tempo subjectivo. Continuamos no momento presente, só que há duas experiências (pelo menos) a decorrer em paralelo, como um dueto. Uma delas pode colidir com a experiência de primeiro plano e empurrá-la para o segundo plano, mas não se fugiu do presente. não há fenomenologicamente, qualquer fuga. Pelo contrário, as experiências no presente podem ser polifónicas ou politemporais. (Daniel Stern, 2006:46).

Um caminho, um percurso fortemente indeterminado em que surge o corpo errante, pensante, cheio de coisas acumuladas. Os corpos pesam por isso e por outras tantas coisas. [Fig.6]. Falemos de corpos. A consciência do corpo, a inconsciência do

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24 corpo. Não é indispensável apoiar-nos em alguma coisa, uma fluidez de movimentos que se balançam em ti, em nós. Atiremo-nos pois ao movimento das coisas, misturemo-nos com elas. Os peixes no silêncio da noite fazem barulhos estranhíssimos. São dois, um mais e outro menos laranja.

E tal como se de uma balança se tratasse, surgem corpos em ambos os lados da estrutura, na tentativa de um equilíbrio da própria estrutura ou composição. [Fig.6].

[Fig.6]

Sem título|Untitled, 2007 óleo/ossos | oil on bones

4.5 x 13 x 2.5 cm

Outras vezes estamos concentrados no dia, no mês, no ano, no momento anterior, sem sabermos onde estamos. Fingimos olhar para as coisas, mas uma espécie de aguadilha cobre-nos a vista. Tudo se mistura. O que fazemos com o que fizemos e viremos a fazer. Cansados, soltamos um enorme suspiro inaudível e empurram-nos para longe. Onde será que estivemos? Concentramo-nos na respiração, nos seus altos e baixos, suas oscilações, nada disto chega13

. Insuficiências de hipóteses. Tudo o que escrevemos depois disso não servirá para nada. Por isso, não tentemos chegar a entendimentos. Uma das mais misteriosas imagens de sempre, dificilmente se poderá exprimir aquilo de outra forma. No entanto, uma vontade de dizer qualquer coisinha. Eu cá não tenho.

Referências

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