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Trinta anos de reflexão eclesiológica: Caminhos, questões e tarefas na recepção do Concílio

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Trinta anos de reflexão

eclesiológica.

Caminhos, questões

e tarefas na recepção

do Concílio

Procurar fazer um balanço, por sucinto que seja, de 30 anos de reflexão eclesiológica exige, obviamente, algumas opções e delimitações perante uma realidade tão ampla e diversificada. Assim, o presente texto visa, numa primeira parte e antes de mais, sublinhar os aspectos mais significativos de ordem metodológico-hermenêutica, naturalmente também com consequências temáticas, que se apresentavam, no início dos anos 80, como dados fundamental-mente adquiridos ou interpelação irrecusável na recepção eclesiológica do Concílio Vaticano II. Numa segunda parte reflectem-se sobre alguns temas que, embora presentes já nos primeiros anos da recepção conciliar, emergiram com particular acuidade sobretudo a partir do início da década de oitenta. Além de se pôr em relevo aspectos da evolução verificada, procura-se aqui também assinalar alguns pontos de tensão e questões pendentes que permanecem. Na sequência disso e em jeito de conclusão, sublinham-se, numa terceira parte, algumas questões e tarefas que vão certamente continuar a marcar a reflexão eclesiológica nos próximos tempos.

}1.3

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1. Aspectos metodológico-hermenêuticos da recepção eclesiológica do Vaticano II

É sobejamente conhecido que há leituras e esquematizações diversas no que respeita a fases de recepção do Concílio, designadamente em termos eclesiológicos1. Também é repetidamente lembrado que a busca de consensos

na aula conciliar, procurando harmonizar posições díspares, conduziu a que, por vezes, os textos finais não sejam totalmente unívocos, falando-se mesmo de duas eclesiologias presentes no Vaticano II2. De qualquer forma, um dado

incontornável é que a primeira metade dos anos 80 significou um novo passo na recepção eclesiológica conciliar, marcada como foi por dois acontecimentos de grande importância, com consequências que iriam determinar algumas linhas de reflexão e de debate nos anos seguintes: em 1983 era aprovado o Código de Direito Canónico e, em 1985, realizava-se o Sínodo Extraordinário dos Bispos para avaliar e fomentar a recepção do Concílio. Motivada também pela passa-gem dos 20 anos do encerramento do Vaticano II, a Comissão Teológica Internacional publicou por essa ocasião um documento sobre temas eclesioló-gicos3.

É sob este pano de fundo que interessa perguntar o que, nessa altura, se poderia dar por adquirido ou constituía interpelação fundamental em termos de critérios de ordem metodológica e hermenêutica na abordagem do mistério da Igreja. Expressam-se assim algumas convicções e orientações que, no início dos anos 80 e a partir daí, poderiam ser consideradas em boa medida como ponto de não retorno em matéria eclesiológica, ainda que nem todos os aspectos mereçam total consenso ou sejam valorizados igualmente pelos diversos autores, em razão de opções teológico-eclesiais diferentes. Sublinho, em breve síntese, oito aspectos principais.

1.1. O sentido do mistério da Igreja como “realidade complexa” divino--humana

Não sendo embora um dado absolutamente novo, é indispensável começar por lembrar a percepção renovada – expressa em Lumen Gentium, nº 8 – da

1Cf. a síntese oferecida por S. PIÉ-NINOT, Eclesiología. La sacramentalidad de la comunidad

cristiana, Salamanca 2007, 91-95.

2Cf., entre muitos outros, M. KEHL, Ekklesiologie, in W. KASPER (ed.), Lexikon für Theologie und

Kirche, 3, Freiburg-Basel-Rom-Wien 1995, 572; S. PIÉ-NINOT, Eclesiología, 28-31. É clássico, ainda

que objecto de discussão, o trabalho de A. ACERBI, Due ecclesiologie. Ecclesiologia giuridica

ed ecclesiologia di comunione nella “Lumen gentium”, Bologna 1975.

3Thèmes choisis d’ecclésiologie. Rapport de la Commission théologique internationale à l’occasion

du XXe anniversaire de la clôture du Concile Vatican II, in La Documentation Catholique 1909 (1986)

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analogia que existe entre a Igreja no seu mistério e o mistério da encarnação do Verbo, pois “assim como a natureza assumida serve ao Verbo divino de instrumento vivo de salvação, a Ele indissoluvelmente unido, de modo semelhante a estrutura social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que a vivifica, para o crescimento do corpo”. A Igreja deve ser vista, assim, “como uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino”. Fruto da iniciativa salvadora de Deus e, simultaneamente, resultado da liberdade humana, na existência da Igreja unem-se a acção divina e a resposta humana4.

A consciência desta tensão entre o dom divino e a acção humana tem consequências em qualquer reflexão eclesiológica: o correcto acesso ao mistério da Igreja só pode ser, como ponto de partida e horizonte adequados, de ordem teológica; mas, por outro lado, não se pode prescindir de elementos empírico--racionais (mormente de tipo sociológico), em ordem a captar a realidade humana da Igreja da forma o mais realista e completa possível. A eclesiologia pós-conciliar sabe que tem de ser elaborada na manutenção consciente da referida tensão, superando, por um lado, o risco do chamado “monofisismo eclesiológico” (uma visão da Igreja que, de tanto acentuar os seus fundamentos divinos e a dimensão espiritual da sua missão, não é capaz de integrar suficiente-mente o seu rosto humano, marcado por limites e pecados) e, por outro lado, o risco do “nestorianismo eclesiológico” (o olhar sobre a Igreja e a consciência que dela se tem separam, não integram devidamente o elemento divino e o elemento humano, a ponto de se permanecer numa visão redutora da Igreja por fixação unilateral nos seus aspectos humanos). A manutenção desta tensão, que atravessa o conflito católico-protestante, tem uma importância nuclear para o equilíbrio teológico de qualquer eclesiologia, com seus inevitáveis reflexos pastorais.

1.2. A Igreja vista à luz da história da salvação

Um segundo dado adquirido na recepção conciliar tem a ver com o caminho apontado logo no primeiro capítulo da Lumen Gentium, que situa “o mistério da Igreja” no contexto e à luz da história de salvação. É sabido como esta perspectiva histórico-salvífica constituiu um dos mais importantes, senão mesmo o elemento mais determinante da renovação eclesiológica operada pelo Vaticano II. Nessa ordem de ideias, as “figuras” bíblicas básicas da Igreja – Igreja como Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo de Espírito – constituem estruturação praticamente indiscutível da reflexão eclesiológica pós-conciliar,

4Para aprofundar o que a autora designa como “modelo heurístico da encarnação”, cf. D. Del

GAUDIO, Il metodo in Ecclesiologia: Problemi e prospettive, in Rassegna di Teologia 49 (2008) 105 ss.

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mesmo que não se possa prescindir de outras metáforas ou ”imagens” para se falar do mistério da Igreja em toda a riqueza e profundidade das suas múltiplas dimensões5.

A Igreja só pode ser integrada no conjunto da experiência crente se for entendida à luz de um diálogo, na história, de Deus com a humanidade. Isso exige a superação definitiva de uma eclesiologia de pendor abstracto a favor de uma reflexão eclesiológica marcada pelo sentido da história de Deus connosco, ou seja, orientada pela perspectiva histórico-salvífica adoptada pela Escritura. Por mais que seja indispensável integrar a dimensão societária numa correcta e completa compreensão da Igreja, ficaram definitivamente postas em causa, na recepção conciliar, quaisquer tentativas – que seriam sempre de retrocesso – de compreensão da Igreja numa perspectiva teórico-ontológica ou numa linha predominantemente jurídico-organizacional (valorizando-se aqui primordial-mente os aspectos territoriais, institucionais ou hierárquicos)6.

1.3. A eclesiologia na tensão entre cristologia e pneumatologia

Na linha dos impulsos conciliares no sentido de uma mais profunda percepção da fundamentação trinitária da Igreja e da relação que existe entre o Espírito Santo e a Igreja à luz do Credo trinitário, tem-se consciência no início dos anos oitenta que era indispensável uma reflexão eclesiológica e uma estruturação eclesial que reconheçam o papel do Espírito Santo em toda a vivência cristã pessoal e comunitária. Dito de outro modo, considerava-se impres-cindível consolidar a superação de um certo “cristomonismo” católico, assente numa visão da Igreja como mero prolongamento do mistério da encarnação, sem inserir consciente e completamente a dimensão pneumatológica na compreensão da Igreja, com todas as consequências que daí resultam tanto em termos teóricos como práticos. “Cristomonista – escreveu H. J. Pottmeyer – pode ser chamada a eclesiologia por causa da sua fundamentação e visão unilateralmente cristológicas da Igreja. O Espírito Santo actua sobretudo pela via hierárquica e na obediência dos fiéis relativamente à hierarquia. O papa é o representante de Cristo, a cabeça visível da Igreja. Da visão cristomonista decorre uma quíntupla ordem de prioridade: a prioridade da Igreja universal sobre a Igreja local, do ministro sobre a comunidade, da estrutura monárquica sobre a colegial, do ministério sobre os carismas e, finalmente, da unidade sobre a diversidade. A isso corresponde uma comunicação de sentido único de cima para baixo”7.

5Cf. V. HOFFMANN, Ekklesiologie in Metaphern. Beobachtungen zum ersten Kapitel von Lumen

gentium, in Catholica 62 (2008) 241-256.

6 Cf. J. DORÉ, L’Église à la veille du grand jubilé 2000. Relire Lumen gentium, in La Documentation Catholique 2190 (1998) 876.

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Em termos teóricos, não necessariamente em termos de mentalidades e de estruturação prático-eclesial, assumia-se de forma clara que a perspectiva pneumatológica é fundamental para a eclesiologia, que a Igreja encontra a sua origem fundadora em Jesus Cristo, mas só existe como realização histórica na força do seu Espírito, que é também o Espírito do Pai. Daqui resulta uma tensão que acompanha o viver da Igreja ao longo dos tempos: a relação entre instituição e acontecimento, entre estrutura ministerial sacramental e dimensão carismática, entre elementos estruturantes na fidelidade às origens e a sua concreta configuração no decurso da histórica.

1.4. Igreja entendida dentro de um dinamismo de historicidade

Na continuidade da perspectiva histórico-salvífica, mas também em correspondência com a percepção cultural da historicidade do viver humano e do caminhar na fé, emergiu no pós-Concílio uma nova sensibilidade eclesioló-gica, atenta aos condicionamentos históricos do próprio viver eclesial, necessa-riamente envolvido nas vicissitudes do caminhar histórico da humanidade. Cresceu a compreensão de que a identidade da Igreja só nos é dada em configu-rações limitadas e condicionadas pelas circunstâncias de tempo e de espaço. Elementos estruturais fundamentais só se tornaram realidade perceptível e teologicamente fundada no desenvolvimento histórico da consciência eclesial e da reflexão crente sobre ela.

Esta aquisição de consciência eclesiológica repercutiu-se em vários domínios. Tornou-se possível uma compreensão mais adequada da origem da Igreja no acontecimento Jesus e da fundamentação dos elementos estruturantes permanentes na vida da Igreja – habitualmente designados de elementos de direito divino. Passou a compreender-se melhor o enorme significado que têm na actual realidade da Igreja as consequências da história passada. Igualmente foi possível uma outra atitude na visão do presente, na consciência de que a Igreja vive sempre em determinadas circunstâncias histórico-culturais e que, por isso mesmo, a nossa realidade actual da Igreja não pode ser absolutizada, pois não esgota todas as possibilidades inerentes à identidade e missão da Igreja8. Entendeu-se, na linha dos impulsos conciliares,

que a Igreja só pode ser fiel se viver num espírito de permanente reforma9.

Concomitantemente, assumiu-se a necessidade de se prestar constante atenção aos “sinais dos tempos”, na consciência de que Espírito Santo desafia os cristãos a estarem sempre sensíveis à experiência humana em toda a sua complexidade.

Cf. também G. GRESHAKE, Trinitarische Ekklesiologie als Chance für die Ökumene, in Catholica 64 (2010) 127-129.

8Cf. S. WIEDENHOFER, Das katholische Kirchenverständnis. Ein Lehrbuch der Ekklesiologie,

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1.5. A percepção da Igreja como realidade de mediação (sacramental) A reflexão eclesiológica no pós-Concílio prestou renovada atenção aos dados bíblicos fundamentais, em particular à centralidade que ocupa na vida de Jesus o anúncio e o testemunho do Reino de Deus, o que conduziu a uma percepção mais esclarecida do papel da Igreja no dom da salvação e sua universalidade como oferta de Deus à humanidade. A Igreja não é um fim em si mesma, mas um meio, um sinal e instrumento, é uma realidade de mediação, uma grandeza relacional.

A noção de “sacramentalidade”, redescoberta pelo Concílio, readquiriu assim um significado primordial, pedindo a superação de qualquer eclesiocentrismo inevitavelmente redutor. A Igreja é sacramento – de Cristo e do Espírito – em ordem à salvação do mundo, é um sinal eficaz do amor de Deus presente já agora, mas o plano salvífico de Deus não termina na Igreja, antes tem um horizonte universal, refere-se a todos os tempos e a todos os lugares.

A visão da Igreja numa perspectiva de sacramentalidade tornou-se, pois, um aspecto determinante da eclesiologia pós-conciliar. S. Pié-Ninot, que estrutura a sua recente “Eclesiologia” sobre a dimensão sacramental e mistérica da Igreja, considera mesmo que esta visão não aparece simplesmente como um conceito de Igreja ao lado de outros, mas antes “como uma afirmação em chave de leitura relacional sobre a sua própria ‘ontologia’”10.

1.6. A indispensável dimensão ecuménica da eclesiologia

A recepção eclesiológica conciliar sentiu-se interpelada a assumir como perspectiva indispensável, ainda que nem sempre concretizada em todas as suas consequências, a dimensão ecuménica, seguindo, aliás, o que está programaticamente estabelecido no Decreto Unitatis Redintegratio11e encontrou

confirmação, por parte do magistério, na repetida afirmação da irreversibilidade da orientação ecuménica da Igreja católica. Com o progresso do diálogo teológico ecuménico tomou-se nota, de forma mais precisa, que as questões de ordem eclesiológica desde sempre pertenceram aos principais pontos de controvérsia, estão no cerne do actual debate ecuménico e se apresentam hoje como tarefas decisivas não só para o futuro do ecumenismo como para a própria

9Cf. Unitatis Redintegratio, nº 6; Lumen gentium, nºs 8 e 48. Cf. S. ACKERMANN, “Sancta simul

et purificanda”. Anmerkungen zur Heiligkeit und Sündigkeit der Kirche, in Una Sancta 65 (2010)

234-241.

10S. PIÉ-NINOT, Eclesiología, 184. Sobre a sacramentalidade como princípio hermenêutico da

eclesiologia, cf. 175-210. Cf. ainda B. J. HILBERATH, Im Geist und nach dem Buchstaben des Konzils.

Utopien eines Achtundsechzigers, in Theologische Quartalschrift 190 (2010) 163.

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fidelidade e credibilidade da Igreja de Jesus Cristo. “Na tradição católica, ortodoxa e reformada a Igreja possui, de facto, respectivamente um significado, uma configuração e uma função diferentes: Se a Igreja é compreendida predominantemente a partir da missão e autoridade divinas, do louvor de Deus no culto ou a partir da justificação do pecador, isso tem consequências que vão até à configuração prática e à forma de organização da Igreja. Toda a eclesiologia nos dias de hoje deve enfrentar este escândalo da unidade perdida da fé cristã e este problema das suas diferentes configurações tradicionais. Uma eclesiologia que não fosse ecuménica viria hoje sempre já tarde demais”12. Mesmo que, em

geral, as questões eclesiológicas ecuménicas não constituam os problemas nucleares dentro de uma “hierarquia das verdades” da fé, o facto é que se trata aqui das questões mais incisivas do ponto de vista existencial-prático.

1.7. Igreja interpelada a viver a sua identidade em abertura ao diálogo Não sem relação com o aspecto anterior, a reflexão eclesiológica colocou--se, na recepção do Concílio e em diversos registos, a tarefa metodológica e hermenêutica fundamental de aprofundar o lugar do diálogo no processo de identidade cristã e eclesial e de lhe dar expressão reflectida em diversos âmbitos de referência13. Nesta tarefa de se pensar, estruturar e concretizar como uma

eclesiologia aberta não apenas ao diálogo ecuménico, mas também ao diálogo inter-religioso, ao diálogo com os homens e mulheres do nosso tempo e com o mundo que nos envolve, a eclesiologia acolheu a tarefa de explicitar melhor o papel da Igreja na universalidade da salvação e o contributo que a Igreja, em razão da sua missão de ordem religiosa e nas suas diversas expressões, é chamada a prestar em ordem à humanização deste mundo à luz de Deus.

Nesse sentido percebeu-se que a atitude dialógica não é apenas fruto de condicionantes socioculturais modernos, mas que ela, afinal, brota de algo muito mais profundo, algo que tem a ver com a compreensão de elementos fundamentais da revelação e da fé: desde o próprio Mistério de Deus que é comunhão dialogal à revelação como acontecimento dialógico e à compreensão da Igreja como comunidade dialógica no acolhimento da verdade. A missão da Igreja só pode ser cumprida como testemunho que anuncia a fé numa atitude de diálogo.

12S. WIEDENHOFER, Das katholische Kirchenverständnis, 35. Cf. M. M. GARIJO-GUEMBE, La

communión de los santos. Fundamento, esencia y estructura de la Iglesia, Barcelona 1991, 18.

13Cf., como reflexões recentes, C. MARTÍNEZ OLIVERAS, La Iglesia dialoga con las otras Iglesias.

El diálogo: clave conciliar para las relaciones ecuménicas, in Sal Terrae 98, nº 1142 (2010) 143-156;

C. CALLEJA SÁENZ DE NAVARRETE, C., La reconciliación de la Iglesia com la sociedad moderna

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1.8. Uma eclesiologia integradora da pluralidade na unidade

Percebida foi também nos primeiros vinte e cinco anos de recepção eclesiológica conciliar a necessidade de se passar de uma eclesiologia de pendor monolítico a uma eclesiologia integradora da pluralidade na unidade. Em vários registos – desde o lugar dos carismas à sua expressão comunitária, desde a percepção do significado teológico do rosto próprio de cada Igreja local às exigências de inculturação da fé e de expressão da catolicidade da Igreja no nosso vasto mundo – a reflexão eclesiológica experimentou a necessidade de procurar integrar, numa relação positiva e enriquecedora, unidade e pluralidade. Ainda que, naturalmente, este seja um dos aspectos em que permanece uma tarefa ingente a realizar, em boa verdade valeu, como dado assumido em princípio, o reconhecimento de que a inevitável e frutífera tensão unidade-pluralidade é um dado original cristão e que acompanha permanentemente o viver crente, individual e comunitário, ao longo da história 14. A comunhão na

mesma fé e a pertença à mesma Igreja não impedem, pois, antes exigem uma pluriformidade de teologias, de espiritualidades, de expressões litúrgicas, de estruturas comunitárias.

2. Alguns temas e questões centrais nos últimos 30 anos

Traçado este quadro sintético de aquisições e interpelações predominantes de consciência eclesiológica pós-conciliar, importa agora analisar alguns dos principais temas que marcaram a eclesiologia a partir dos anos oitenta, tomando como ponto de partida os dois acontecimentos mencionados no início: a aprovação do Código de Direito Canónico (1983) e a realização do Sínodo Extraordinário dos Bispos (1985). Estes dois acontecimentos, com o seu significado simbólico mas também com algumas opções feitas, tiveram repercussões significativas na reflexão eclesiológica posterior.

Ao dar sedimentação jurídica às grandes orientações conciliares, o Código de Direito Canónico era um passo imprescindível e teve inegável mérito no processo de recepção conciliar. Mas algumas opções tomadas não só não foram pacíficas em termos de reflexão eclesiológica como se revelaram mesmo problemáticas em ordem ao futuro. Por exemplo, a opção pelo termo “Igreja particular” em vez de “Igreja local”, justificada embora pela maior abrangência jurídico-canónica da primeira expressão relativamente à segunda, denunciou à

14Cf. COMMISSION INTERNATIONALE ANGLICANE-CATHOLIQUE ROMAINE (ARCIC II), Le

don de l’autorité. Rapport de la Commission internationale anglicane-catholique romaine (ARCIC II) 1999, in La Documentation Catholique 2204 (1999) nº 21, p. 470.

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partida um problema de fundo quanto à valorização da realidade das Igrejas locais, uma questão que se arrasta até hoje15. Por outro lado, o esforço conciliar

no sentido de se superar a dicotomia “poder de ordem”/”poder de jurisdição” através do uso da expressão mais abrangente e de raiz sacramental “potestas

sacra” não foi suficientemente reconhecido e potenciado na sua novidade16.

Já no que respeita a omissões, a diaconia como função fundamental da Igreja (juntamente com o anúncio do Evangelho e a celebração da fé) não foi adequadamente explicitada e valorizada. Outro exemplo ainda se pode apontar: se se assumem substancialmente os aspectos principais da visão conciliar quanto aos fiéis leigos na Igreja, não se valorizam de modo suficiente aspectos importantes, tais como o significado que pode ter a secularidade na formulação positiva da sua identidade e missão ou o perfil e significado dos ministérios baptismais/laicais17.

Por sua vez, do Sínodo de 1985 resultou como grande síntese e linha de orientação a recepção da eclesiologia conciliar como sendo uma “eclesiologia de comunhão”18. Sem se pôr minimamente em causa a importância nuclear

desta aquisição (inegavelmente, um marco em ordem ao futuro), a opção pelo uso preferencial da linguagem da Igreja como “mistério de comunhão” conduziu também a que se deixasse de certa forma na penumbra a noção de Povo de Deus, que tinha marcado as primeiras reflexões pós-conciliares19. Com isso

pretendeu-se ultrapassar usos abusivos da noção de “Povo de Deus” nalguns sectores eclesiais e âmbitos geográficos: por exemplo, a tendência a usar a

15Sobre a questão terminológica: cf. H. LEGRAND, La réalisation de l’Église en un lieu, in B. LAURET

– F. REFOULÉ (ed.), Initiation à la pratique de la théologie, III/2, Paris 1982, 157-159; ID., La théologie

des Églises soeurs. Réflexions ecclésiologiques autour de la Déclaration de Balamand, in Revue

des Sciences philosophiques et théologiques 88 (2004) 472 s.; J. A. KOMONCHAK, La Iglesia local

y la Iglesia católica. La problemática teológica contemporánea, in H. LEGRAND – J. MANZANARES

– A. GARCÍA Y GARCÍA (ed.), Iglesias locales y catolicidad. Actas del Coloquio Internacional de

Salamanca 2-7 Abril 1991, Salamanca 1992, 562-567; G. GHIRLANDA, Iglesia universal, particular y local en el Vaticano II y en el nuevo Código de derecho canónico, in R. LATOURELLE (ed.), Vaticano II: balance y perspectivas. Veinticinco años después (1962-1987), Salamanca 1987, 636-639.

16Cf. L. GEROSA, L’évêque dans les documents de Vatican II et le nouveau Code de Droit Canonique,

in P. DE LAUBIER (dir.), Visages de l’Église. Cours d’ecclésiologie, Fribourg 1989, 73-89, aqui particularemnte 78 ss ; S. PIÉ-NINOT, Eclesiología, 31, 312 s., 460 s. e 483, com as referências bibliográficas aí mencionadas.

17Cf. S. PIÉ-NINOT, Eclesiología, 303 s.

18“A eclesiologia de comunhão é o conceito central e fundamental do Concílio. A koinonia-comunhão,

fundada sobre a Sagrada Escritura, foi tida em grande honra na Igreja antiga e até aos nossos dias nas Igrejas orientais. É por isso que o Vaticano II apontou no sentido de que a Igreja, como comunhão, seja mais claramente compreendida e mais concretamente traduzida na vida”: Synthèse des travaux

de l’ assemblée synodale, in La Documentation Catholique 1909 (1986) 39.

19Cf., por exemplo, J. RATZINGER, Das neue Volk Gottes. Entwürfe zur Ekklesiologie,

Topos-Taschenbuch – 1, Düsseldorf 1972. É completamente evidente – escreveu J.- M. TILLARD no seu balanço do Sínodo – que a visão da Igreja como Povo de Deus já não tem o tratamento privilegiado que significava o seu lugar no plano da Lumen gentium: El “Informe final” del último Sínodo, in Concilium 208 (1986) 397.

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expressão “Povo de Deus” em contraposição a “Hierarquia” ou até a sua utilização numa linha marcadamente ideológica, a partir da noção sociológica de “povo” (designadamente, em alguns sectores teológicos latino-americanos). Todavia, encetava-se também um caminho que não deixaria de ter alguns riscos e consequências.

2.1. A visão da Igreja como mistério de comunhão, suas consequências e seus desafios

À luz do mistério trinitário que a funda e dos elementos existenciais e estruturais que lhe dão identidade e definem a sua missão, a Igreja não pode deixar de configurar-se como communio, concretizando essa dimensão comunional em todos os níveis da sua existência. Nessa ordem de ideias, o conceito de comunhão revelou-se como uma perspectiva central para a compreensão da Igreja como comunhão de pessoas e de Igrejas locais, possibilitando uma visão mais equilibrada dos diversos elementos fundamentais que a constituem20.

Ao mesmo tempo a noção de comunhão mostrou-se determinante para o progresso na aproximação eclesiológica básica em termos ecuménicos, e isso tanto no que respeita ao diálogo católico-ortodoxo como relativamente ao diálogo com as Igrejas e Comunidades eclesiais do Ocidente. Entre outros aspectos, a compreensão da unidade da Igreja como communio permitiu diferenciar entre a plena communio da Igreja católica e a communio incompleta com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais. Afirma-se num documento do diálogo católico--luterano: “Luteranos e católicos estão de acordo, com base no conceito de ‘communio’ do Novo Testamento e da Igreja antiga, que a Igreja é koinonia/

communio fundada no mistério de Deus Trindade. Isto é ensinado pelas duas

Igrejas, nos ‘Escritos confessionais’ luteranos e no Concílio Vaticano II”21.

Mas, se não há dúvida que estamos diante de um conceito-chave para falar hoje da Igreja, sua identidade e missão, também é claro que não estamos

20J. RIGAL, Le mystère de l’Église. Fondements théologiques et perspectives pastorales, Paris 1992,

249. Cf. ainda W. KASPER, A Igreja como communio. Considerações sobre a ideia eclesiológica

central do Concílio Vaticano II, in Communio 3 (1986) 356-371; ID., A Igreja como sacramento da unidade, in Communio 4 (1987) 404-410; G. GRESHAKE, Trinitarische Ekklesiologie, 127-134; G.

GHIRLANDA, La notion de communion hiérarchique dans le Concile Vatican II, in L’année canonique 25 (1981) 231-254. Sobre a noção de “comunhão hierárquica” como fórmula conciliar de compromisso e seu significado, cf. as referências e considerações S. PIÉ-NINOT, Eclesiología, 13, 87-90 e 169 s.

21COMMISSION INTERNATIONALE CATHOLIQUE-LUTHÉRIENNE, Église et justification. La

compréhension de l´Église à la lumière de la doctrine de la justification - 1993, in La Documentation

Catholique 2101 (1994) nº 75, 823. Cf. ainda IB., nº 74, 823; cf. nota 49 do documento. Cf. igualmente H. DÖRING, Die Communio-Ekklesiologie als Grundmodell und Chance der ökumenischen

Theologie, in J. SCHREINER – K. WITTSTADT (ed.), Communio Sanctorum. Einheit der Christen – Einheit der Kirche, Würzburg 1988, 439-469.

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simplesmente diante de um modelo eclesial entre outros. Isto é, a noção de “comunhão” situa-se num registo básico, profundo, de expressão do mistério da Igreja como acontecimento de salvação, tanto na sua dimensão vertical como horizontal. Está em causa a substância da Igreja, o próprio ser da Igreja é comunional. Exprime-se assim “o próprio conteúdo da salvação” como acontecimento de graça, ou seja, comunhão “é a forma que toma esta vida da graça, pela sua própria natureza e por causa da sua origem última na vida trinitária de Deus”22.

O facto de que não se trata de um “modelo” eclesial entre outros (antes, de uma realidade que antecede os modelos de configuração histórica da Igreja), muito menos de um modelo “operativo” linear (donde se deduzissem automaticamente expressões concretas de realização eclesial) significa que o uso eclesiológico desta linguagem necessita de ser precisado e controlado. A utilização da linguagem da comunhão pode obedecer a interesses implícitos não só diversos, mas até contrários: por exemplo, pode ser usada no sentido de uma ideológica democratização da Igreja com base em modelos ou expectativas de ordem sociopolítica, como pode ser vista no sentido oposto de concretização de um tipo de unidade que, precisamente em nome da “comunhão”, exige uniformidade e submissão sem mais. Em consequência – escreve Bueno de la Fuente – a eclesiologia de comunhão “não deve ser vista como uma panaceia ou como receita mágica que regule todos os problemas colocados. Permite, sem dúvida, integrar e harmonizar a complexidade paradóxica da Igreja, mas não pode consegui-lo nem anulando o resto das metáforas nem simplificando ingenuamente as suas possibilidades”23.

Importa reconhecer, pois, que a visão da Igreja como comunhão é, simultaneamente, um dado adquirido da consciência de Igreja do nosso tempo e uma tarefa permanentemente a cumprir. Sobretudo, é indispensável ter consciência de que comunhão, para ser real e efectiva, exige traduções institucionais coerentes, fiéis aos grandes princípios e intuições do Concílio, aos mais diversos níveis em que a vivência da comunhão eclesial é chamada a expressar-se. É fundamental ter em conta que, por mais provisórias que sejam

22J. M. TILLARD, Ecclésiologie de communion et exigence œcuménique, in Irénikon 59 (1986) 201.

Cf. também 206 e 218. Cf. ainda J. E. BORGES DE PINHO, A Igreja: projecto de comunhão solidária, in Humanística e Teologia 15 (1994) 118-121, e a literatura aí indicada. Cf. as afirmações magisteriais contidas em Christifideles Laici, nº 19 e Novo Millenio Ineunte, nº 42.

23E. BUENO DE LA FUENTE, Panorama de la eclesiología actual, in Burgense 47 (2006) 49. Cf.,

sobre as questões relacionadas com a concretização de uma Igreja como comunhão, W. KASPER,

A Igreja como communio, 367; H.-J. POTTMEYER, Kirche als Communio. Eine Reformidee aus unterschiedlischen Perspecktiven, in Stimmen der Zeit 210 (1992) 579-589; M. KEHL, “Communio” – eine verblassende Vision?, in Stimmen der Zeit 215 (1997) 448-456; B. J. HILBERATH, Kirche als communio. Beschwörungsformel oder Projektbeschreibung?, in Theologische Quartalschrift 174

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essas concretizações institucionais, há uma relação necessária, teológica, entre a consciência da comunhão que abre caminho na Igreja e as estruturas, os organismos, as mediações que servem para concretizá-la (não se trata de estratégia, mas de identidade cristã e eclesial!)24.

A não ser assim, há o risco de se permanecer numa visão abstracta-idealista da Igreja, com consequências concretas nefastas. Olhando aqui só para o registo da vida das comunidades cristãs, a linguagem da Igreja como mistério de comunhão não elimina automaticamente estilos de autoridade predominante-mente verticais, visões obsoletas quanto à sacralização e clericalização do poder na Igreja, atitudes incapazes de exercer uma autoridade pastoral partilhada. 2.2. A relevância da percepção da sacramentalidade da Igreja

Como se referiu, a visão da Igreja como sacramento, com uma afinidade fundamental à noção de mistério de comunhão, foi sendo progressivamente reconhecida como elemento fulcral da renovação eclesiológica conciliar25e

impôs-se na reflexão eclesiológica dos últimos anos como perspectiva essencial. De facto, a dimensão da sacramentalidade corresponde à economia salvífica de Deus na sua globalidade e traduz de forma adequada o significado da Igreja como sinal e instrumento do amor de Deus para com a humanidade. Com o conceito de sacramento “deve, pois, ser expressa e dita a estrutura pluridimen-sional da Igreja, que a Igreja é uma realidade complexa, à qual pertence o visível e o escondido, o humano e o divino; na Igreja visível está presente (west) um mistério só compreensível na fé (cf. LG 8). Com a ajuda do conceito de sacramento pretende-se evitar tanto uma visão espiritualista como uma visão naturalista e puramente sociológica da Igreja. Também o visível é essencial à Igreja, também ele pertence à verdadeira Igreja. Sem dúvida, o visível é essencial somente como sinal e instrumento para a própria realidade da Igreja, só compreensível na fé. A estrutura sacramental da Igreja significa assim que o visível na Igreja é o sinal actualizador e eficaz, isto é, o símbolo real da salvação escatológica de Deus para o mundo manifestada em Jesus Cristo”26.

Não se pode ignorar que o discurso eclesiológico católico em termos de sacramentalidade e a centralidade que se lhe atribui mereceu bastantes reservas no campo evangélico e continua a não ser pacífico. Reconheceu-se, é certo, que a introdução da compreensão sacramental da Igreja no Concílio significou um passo em frente em termos de renovação eclesiológica católica27. No entanto,

24Cf. P. CODA, Trindade e Igreja. Uma perspectiva teológico-pastoral à luz da “Novo Millenio

Ineunte”, in Eborensia 14 (2001) 57 s.

25Cf. H. J. POTTMEYER, La Iglesia, misterio e institución, in Concilium 208 (1986) 438 s. 26W. KASPER, Die Kirche als universales Sakrament des Heils, in E. KLINGER - K. WITTSTADT

(ed.), Glaube im Prozess. Christsein nach dem II. Vatikanum, Freiburg-Basel-Wien 1984, 228.

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permanece o receio de que esta linguagem esconda uma quase-identidade entre Cristo e a Igreja, intrometendo um eventual intermediário, inadmissível, entre o Deus justificador e o homem crente. Mais ainda, teme-se o perigo de se conceder uma prioridade à instituição eclesial relativamente ao agir salvador de Cristo. Os avanços conseguidos nos últimos anos no diálogo católico-luterano sobre a justificação pela fé permitem admitir, no entanto, que a diferença existente, manifesta aqui em escolhas teológicas e eclesiológicas diversas, não terá que ser necessariamente uma diferença separadora, antes poderá vir a ser considerada como uma diferença legítima dentro de um consenso fundamental “diferenciado”, como tendências de acentuação diferente dentro de uma diversidade reconciliada28.

De facto e ao contrário do que os referidos receios poderiam indiciar, a noção de sacramentalidade aplicada à Igreja não nos fixa em modelos do passado, antes aponta precisamente para o carácter de sinal e para a dimensão de serviço da Igreja e suas instituições, ou seja, oferece um critério crítico contra qualquer absolutização e autonomização de instituições e estruturas eeclesiais29.

A fidelidade da Igreja passa pela busca de transparência do sinal, pela memória criativa que é capaz de um constante confronto dos seus fundamentos originais com o tempo concreto que lhe é dado viver.

Mais ainda, ao situar a missão eclesial no registo da sacramentalidade a recepção conciliar acerca da relação entre Igreja e salvação superou definitiva-mente a perspectiva negativa, redutora e exclusivista do axioma “fora da Igreja não há salvação”30e apontou estruturalmente para o papel positivo e o carácter

“relativo” (estar em relação a) da Igreja, que está ao serviço da vontade salvífica universal de Deus (1 Tm 2, 4; Jo 3, 6). Falar da Igreja como sacramento, atribuindo-lhe analogamente uma expressão que fundamentalmente pertence só a Jesus Cristo, a vontade salvífica personificada de Deus, o “sacramento

Cf. ainda ID., La sacramentalité de l’Église et la tradition luthérienne, in Irénikon 59 (1986) 482-507; JOHANN-ADAM-MÖHLER-INSTITUT PADERBORN (ed.), Die Sakramentalität der Kirche in der

ökumenischen Diskussion, Paderborn 1983; J. RIGAL, La sacramentalité comme question oecuménique, in Nouvele Revue Théologique 124 (2002) 57-78.

28Cf. nesse sentido A. BIRMELÉ, La communion ecclésiale: progrès œcuméniques et enjeux

méthodologiques, Paris 2000, 247-274, em particular 253, 270 e 272.

29Cf. H. J. POTTMEYER, La Iglesia, misterio e institución, 438 s.; S. WIEDENHOFER, Das katholische

Kirchenverständnis, 208 s.

30Como literatura básica para toda esta questão cf. W. BEINERT, Die alleinseligmachende Kirche.

Oder: Wer kann gerettet werden?, in Stimmen der Zeit 208 (1990) 75-85 e 264-278; F. A. SULLIVAN, Hay salvación fuera de la Iglesia? Rastreando la historia de la respuesta católica, Bilbao 1999; J.

RATZINGER, Das neue Volk Gottes, 152-177; J. B. LIBÂNIO, Extra Ecclesiam Nulla Salus, in Perspectiva Teológica 5 (1973) 21-49; P. RODRÍGUEZ, Dimensión universal de la sacramentalidad

de la Iglesia, in Scripta Theologica 14 (1982) 807-828; M. FIGURA, A Igreja “sacramento universal de salvação”, in Communio 13 (1996) 240-252; W. KERN, Ausserhalb der Kirche kein Heil, Freiburg

1979, in ID. (ed.), Disput um Jesus und Kirche. Aspekte – Reflexionen, Innsbruck-Wien-München 1980, 47-57.

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universal da vontade divina de salvação” (J. Dupuis), é precisamente sublinhar que a Igreja não é um fim em si mesma, mas está ao serviço de uma realidade maior, ela é “o sinal explícito de um mistério mais vasto: o da presença gratuita

de Deus a toda a criação e a toda a história”31. Nas suas estruturas e no seu agir

na história, na vida das pessoas e nas suas expressões comunitárias, a Igreja tem por missão específica ser sinal visível e instrumento da vontade salvífica universal de Deus, que encontrou na aliança de Deus com Israel o seu fundamento permanente na história e em Jesus a sua configuração definitiva. “Nela torna-se, portanto, já visível por princípio o que Deus pensou para toda a humanidade: uma unidade e reconciliação que ultrapassam todas as barreiras históricas”32.

2.3. A questão da relação Igrejas locais-Igreja inteira

Uma das questões de maior debate eclesiológico nos últimos trinta anos tem a ver – na expressa recepção do Concílio (particularmente, Lumen Gentium, nº 23 e Christus Dominus, nº 11) – com a valorização da identidade teológica da Igreja local como representação e actualização simbólico-sacramental da Igreja inteira num determinado espaço e com um rosto próprio e o concomitante entendimento da Igreja inteira como comunhão universal das Igrejas locais33.

De um modo geral, a reflexão eclesiológica viu nestes desenvolvimentos a necessidade de se questionar uma eclesiologia de pendor universalista – tal qual ela se focalizou no Concílio Vaticano I numa visão do primado do papa entendido como “soberania” e suportado por uma imagem hierarcológica da Igreja – e de se ir procurando realizar uma eclesiologia da comunhão das Igrejas, em que o primado do bispo de Roma emerge num sentido mais profundamente testemunhal como serviço à unidade da fé e à comunhão de todos os cristãos e de todas as Igrejas locais34. Nessa ordem de ideias, a Igreja universal não deve

ser concebida como uma entidade abstracta, antes apresenta-se como expressão histórica da comunhão entre Igrejas locais eucaristicamente fundadas, e, nesta

31C. GEFFRÉ, Le Christianisme au risque de l’ interpretation, Paris 1983, 204.

32M. KEHL Kirche als “Dienstleistungsorganisation? Theologische Überlegungen, in Stimmen

der Zeit 218 (2000) 394.

33Cf. H. LEGRAND, Une éventuelle relance de l’uniatisme pourrait-elle s’appuyer sur Vatican II

? Quelques enjeux ecclésiologiques de la crise actuelle autour des Églises unies, in Irénikon 66

(1993) 14-22.

34Como lembra H. J. Pottmeyer, a forma como se entendeu no Vaticano I o primado do bispo de Roma

e a recepção dominante desta doutrina em termos teológicos e prático-eclesiais até ao Vaticano II tiveram muito a ver com uma interpretação maximalista e uma prática centralista profundamente enraizadas naquela eclesiologia que se designa, do ponto de vista histórico, como contra-reformadora, do ponto de vista sistemático, como uma consideração unilateral jurídico-societária da Igreja e, na perspectiva teológica, como cristomonista: H. J. POTTMEYER, Die Rolle des Papstums, 121. Cf. também 123.

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perspectiva, “não transcende a comunhão das Igrejas locais; ela é essa comu-nhão”35.

É sabido como a Congregação para a Doutrina da Fé, vendo nalgumas interpretações feitas neste âmbito reduções deturpadoras do verdadeiro sentido da Igreja como comunhão, interveio em 1992 com a Carta Communionis notio. Aí se sublinhava que a Igreja universal é uma realidade ontologica e

cronologicamente prévia às Igrejas particulares. Na perspectiva ontológica aqui

afirmada acentua-se mesmo que a Igreja-mistério una e única precede a criação e dá nascimento às Igrejas particulares como a suas próprias filhas. Assim, a fórmula de Lumen gentium, nº 23 “a Igreja na e a partir das Igrejas (Ecclesia

in et ex Ecclesiis)” deve ser completada com a fórmula “as Igrejas na e a partir da Igreja (Ecclesiae in et ex Ecclesia)”36.

Como é sobejamente conhecido, as questões aqui suscitadas deram origem a um amplo debate teológico, que em todos os seus aspectos e repercussões está ainda muito longe de se poder dizer concluído37. Nesse debate estão em

causa não apenas aspectos de ordem teórica, mas também implicações

prático-35J. A. KOMONCHAK, La iglesia local, 574. Cf. E. BUENO DE LA FUENTE, Eclesiología, Madrid

1998, 102.

36CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre alguns

aspectos da Igreja entendida como Comunhão, in L’Osservatore Romano, 21 de Junho de 1992,

nº 9, p. 3 (347). Cf. A Igreja como comunhão. Recordando a “Communionis notio” da Congregação

para a Doutrina da Fé, in L’Osservatore Romano, nº 30, 25 de Julho de 1993, p. 5 (349). Naturalmente,

nem tudo o que se diz da Igreja universal (por exemplo, a promessa de indefectibilidade da Igreja e de que ela não se afastará da verdade) se pode dizer das Igrejas locais singulares, sem que isso signifique, todavia, que estejamos a falar de entidades que se pudessem separar. Escreve H. Legrand: “No plano escatológico, há evidentemente uma prioridade da Igreja sobre as Igrejas que não é discutida por nenhum teólogo católico: o Corpo de Cristo, a Esposa de Cristo não podem não ser primeiros em relação a esta ou aquela Igreja singular. Mesmo no plano histórico, a fé da Catholica e a sua comunhão é a regra de fé de cada diocese singular. Communionis notio tem toda a razão ao lembrar estas verdades. É introduzindo a ideia de maternidade da Igreja universal em relação às Igrejas particulares que a Congregação para a Doutrina da Fé inova”: H. LEGRAND, Où en est

l’oecuménisme? Quarante ans après la promulgation d’Unitatis Redintegratio, in Istina 50 (2005)

378. Cf. 377-383. Cf. ainda ID., La théologie des Églises-soeurs. Réflexions ecclésiologiques autour

de la Déclaration de Balamand, in Revue des Sciences philosophiques et théologiques 88 (2004)

474-481; ID., L’oecuménisme devient un enjeu pastoral, in Unité des Chrétiens 123 (2001) 36.

37Como é sabido, no debate intervieram inclusivamente o então Cardeal Ratzinger e o Cardeal Walter

Kasper. Cf. J. RATZINGER, L’ ecclesiologia della constituzione ‘Lumen Gentium’, in R. FISICHELLA (ed.), Il Concilio Vaticano II – Recezione e attualità alla luce del Giubileo, Cinisello Balsamo 2000, 66-81, particularmente 70 ss; W. KASPER, A relação entre Igreja universal e Igreja local. Resposta

amigável à crítica do Cardeal Ratzinger, in Brotéria 152 (2001) 27-38; K. McDONNEL, The Ratzinger/Kasper Debate: The Universal Church and Local Church, in Teological Studies 63 (2002)

227-250; M. KEHL, Der Disput der Kardinäle. Zum Verhältnis von Universalkirche und Ortskirchen, in Stimmen der Zeit 221 (2003) 219-232; S. MADRIGAL, A propósito del binomio Iglesia universal

- Iglesias particulars: status questionis, in Diálogo Ecuménico 39, nº 123 (2004) 7-29; J. MARTÍNEZ

GORDO, Eclesiología y gobernación. El debate de J. Ratzinger y W. Kasper sobre la relación entre

la iglesia universal e la iglesia local, in Selecciones de Teología180 (2006) 284-298 [original: Revista

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eclesiais de grande relevo, além de que não se trata simplesmente de uma questão interna católica, mas de uma visão que tem repercussões ecuménicas significativas. Se é consensual falar-se de uma relação de “mútua interioridade” entre Igreja universal e Igrejas locais38, não se interpreta essa interioridade

recíproca da mesma maneira em todas as suas consequências. A ampla maioria dos eclesiólogos e das tomadas de posição ecuménicas (algumas com participação de representantes oficiais católicos) questionam a precedência do universal sobre o local (e vice-versa) e têm-se pronunciado inequivocamente no sentido de uma simultaneidade Igreja inteira-Igrejas locais, dentro de uma eclesiologia da comunhão das Igrejas39. No entanto, as tomadas de posição

oficiais católicas – tais quais se exprimiram, por exemplo, na Carta Apostólica sob a forma de Motu Proprio Apostolos suos ou na Exortação apostólica Pastores

gregis – vão claramente no sentido da reafirmação da prioridade da Igreja

universal sobre as Igrejas locais e do reforçar da ideia de maternidade da Igreja universal face às Igrejas particulares/locais40.

Nessa mesma lógica insiste-se que o Colégio episcopal é uma realidade prévia ao cargo de presidência de uma Igreja particular por parte do bispo, e, paralelamente, não se faz uma integração harmónica da relação do bispo com a sua Igreja local e da sua pertença ao Colégio apostólico41. De certa forma, está

aqui patente a tensão que existe nesta matéria entre concepções eclesiológicas de pendor universalista e opções eclesiológicas mais voltadas para o significado das expressões locais da única Igreja. Ou seja, emergem também aqui, nesta diferente valoração, pressupostos e sensibilidades diversos no modo como se avaliam a tradição e prática eclesiológicas anteriores ao Concílio Vaticano II e os impulsos renovadores nesta matéria trazidos pelo acontecimento conciliar. Mais amplamente ainda, nesta problemática teológica e no debate a ela associado está em causa o próprio modo de entender a relação unidade--diversidade. Percebe-se que é fundamental superar-se aqui uma certa visão

38Cf. JOÃO PAULO II, Le Synode est un signe et un instrument de la communion. Discours aux

cardinaux et à la Curie romaine, in La Documentation Catholique 2021 (1991) 104. G. GRESHAKE,

citando K. Mörsdorf, fala de uma “prioridade ontológica recíproca” Igreja local/Igreja universal:

Trinitarische Ekklesiologie, 131. Cf., sobre toda a questão, 131-135.

39Cf. COMITÉ MIXTE CATHOLIQUE-ORTHODOXE EN FRANCE, La primauté romaine dans la

communion des Églises, Paris 1991, 115; GROUPE MIXTE DE TRAVAIL ENTRE L’ ÉGLISE

CATHOLIQUE ROMAINE ET LE CONSEIL OECUMÉNIQUE DES ÉGLISES, L’Église: Locale et

Universelle, in Irénikon 53 (1990) nºs 21-24, 509 s.; COMMISSION INTERNATIONALE

CATHOLIQUE-LUTHÉRIENNE, Église et justification, nºs 95-104, p. 825-827.

40Daqui resultam consequências de enorme alcance que H. Legrand sintetiza assim : O episcopado

e a sua unidade com o papa vê atribuir-se-lhe uma espécie de anterioridade e de exterioridade em relação ao Corpo da Igreja; os reagrupamentos das dioceses estão privados de estatuto autónomo e são concebidos como emanação do primado; o bispo de Roma corre o risco de tornar-ser um bispo universal. Cf. H. LEGRAND, Où en est l’oecuménisme?, 380-383.

41Cf. Apostolos suos, nº 12; Pastores gregis, nº 8. Cf. H. LEGRAND, La théologie des Églises-soeurs,

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monolítica, com bastante peso tradicional na maneira de pensar católica, a favor de uma visão mais complexa, dentro de uma “lógica sistémica”, na qual não há precedência nem prevalência absoluta da unidade sobre a diversidade42.

Vê-se, pois, como estão aqui envolvidas questões de relevância estrutural e prático-eclesial muito importantes. Questões essas que, em última instância, interpelam o modo de exercício do ministério petrino e a necessidade de um maior equilíbrio que deve ser encontrado na relação entre primado e colegialidade

2.4. Em busca de um maior equilíbrio entre primado e colegialidade Relativamente à busca do referido equilíbrio, há que recordar, antes de mais, que os padres conciliares, com a afirmação da colegialidade episcopal, pretenderam precisamente sair de uma estrutura com tendência monárquica e universalista. Nesse sentido insistiu-se em três pontos: no significado teológico e existencial da realidade das Igrejas locais como presença da Igreja de Cristo numa determinada porção do Povo de Deus (com todas as consequências que isso comporta); no fundamento sacramental que é idêntico para o papa e para os bispos (o episcopado como plenitude do sacramento da ordem); na afirmação da unidade da Igreja católica como comunhão de Igrejas particulares (o bispo é o princípio visível e o fundamento da unidade da Igreja local, do mesmo modo que o bispo de Roma o é para a unidade dos bispos e dos fiéis a nível universal, sendo certo que os bispos são “vigários e legados de Cristo”, não “vigários dos Romanos Potífices” – Lumen gentium, nºs 23 e 27). Os bispos formam juntamente com o papa um colégio, colégio esse que, sempre com papa como sua cabeça e em comunhão com ele, possui a suprema e plena autoridade para a realização da missão da Igreja. A colegialidade episcopal, tendo um fundamento teológico de ordem sacramental, pertence, sem dúvida, à constituição essencial da Igreja43.

Expressou-se assim também a consciência de que é constitutivo para o exercício pessoal do primado que o sucessor de Pedro, certamente na qualidade de sua cabeça, esteja inserido no colégio dos bispos como sucessores dos apóstolos. Na recepção que o Concílio Vaticano II fez do Vaticano I houve, pois,

42“A Igreja inteira, sem ser o resultado da comunhão das Igrejas locais, é a sua própria comunhão,

sendo cada uma porção (e não uma parte) da Igreja católica. Tal é o tipo de lógica sistémica que requer a formulação capital de Lumen Gentium 23 [...]”: H. LEGRAND, Le consensus différencié

sur la doctrine de la justification (Augsbourg 1999). Quelques remarques sur la nouveauté d’une méthode, in Nouvelle Revue Théologique 124 (2002) 50.

43Cf. LG, nº 22; CD, nº 4.“Colegialidade, segundo o que fica dito, é não somente uma afirmação

sobre a essência do ministério episcopal, mas também sobre a estrutura da Igreja em geral. Significa que a única Igreja se constrói das múltiplas Igrejas locais, e significa também, de acordo com isso, que a unidade da Igreja, por necessidade da sua mesma essência, inclui o factor da multiplicidade e da plenitude”: J. RATZINGER, As implicações pastorais da doutrina sobre a

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uma correcção fundamental no sentido de enquadrar melhor o exercício do primado, colocando-o numa relação mútua, intrínseca com a vivência da colegialidade.

As diversas reflexões levadas a cabo nas últimas décadas sobre esta matéria e as opções prático-estruturais que têm sido tomadas conduzem à conclusão de que ainda não se conseguiu articular institucionalmente de forma adequada o múnus do bispo de Roma com o múnus do colégio episcopal no seu conjunto e o de cada bispo na sua Igreja particular. A questão de fundo tem a ver com a visão eclesiológica que se possui e se pratica: uma coisa é dar espaço à colegialidade no quadro de um primado entendido de forma ainda mais ou menos “soberana”, outra coisa – em sentido inverso – é configurar o primado no quadro da colegialidade. Na análise de H. J. Pottmeyer, embora a posição ultramontana não tenha vencido nos textos finais do Concílio Vaticano I, a verdade é que está difundida até hoje a interpretação maximalista desses textos, que tende a compreender a definição do primado de jurisdição do papa unilateralmente no sentido ultramontano44. Na leitura do mesmo autor, esta

interpretação maximalista e o centralismo romano que a tem acompanhado repercutem-se em inúmeros aspectos, e é a este nível que se situam grandes opções de fundo na estruturação interna da Igreja católica no momento presente. A perspectiva de J. M. Tillard expressou-se de modo semelhante: “Resituando o primado, explicitamente, no seio da colegialidade episcopal, o Vaticano II abriu um novo capítulo desta história. Mas para que este capítulo torne crível o primado é preciso que se instaure uma praxis que dissipe os legítimos temores inspirados pelo passado”45.

Uma eclesiologia da comunhão das Igrejas pede, pois, necessariamente também a este nível uma acentuação do carácter colegial em termos de legislação e do modo de administração central para a Igreja inteira46. O múnus

44H. J. POTTMEYER, Die Rolle des Papstums, 91. Cf. também 53.

45J. M. TILLARD, La primauté romaine “… jamais pour éroder les structures des Églises locales»),

in Irénikon 50 (1977) 301. Particularmente interessantes neste contexto são as reflexões de Joseph Ratzinger, no já referido texto datado de 1965: “Há sinais de que a doutrina da colegialidade dos bispos imporá várias e importantes modificações nas formas de apresentação do primado: não suprime a doutrina em si, mas faz com que se apresente com todo o seu significado central e teológico. Talvez assim possa vir a tornar-se compreensível para os irmãos ortodoxos. O primado do Papa, segundo isso, não pode entender-se como monarquia absoluta, como se o bispo de Roma fosse o monarca ilimitado dum estado centralista e sobrenaturalmente concebido, chamado ‘Igreja’. Significa antes que dentro da rede das Igrejas que estão em comunhão entre si e sobre as quais assenta a única Igreja de Deus, existe um ponto fixo de união, a sedes romana, para a qual tem de se orientar a unidade da fé e da ‘communio’“: J. RATZINGER, As implicações pastorais, 36 s.

46Cf. H. J. POTTMEYER, Die Rolle des Papstums, 107. Quanto a toda esta questão da relação entre

primado e colegialidade dos bispos, com especial incidência no papel das Conferências Episcopais, cf. J. R. QUINN, Réflexions sur la papauté. Conférence de Mgr. John Quinn, in La Documentation Catholique 2147 (1996) 930-943; ID., Die Reform des Papstums, Freiburg-Basel-Wien 2001; UN GRUPPO DI VESCOVI USA, Collegialità e conferenza episcopale, in Il Regno 40, 17 (1995) 562-569;

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do sucessor de Pedro é também serviço à colegialidade dos Bispos e, por sua vez, a colegialidade efectiva e afectiva dos bispos é um importante auxílio ao serviço primacial do bispo de Roma. Tem faltado – não só, mas também a este nível – um reconhecimento e um desenvolvimento mais explícitos e coerentes do princípio da sinodalidade, ou seja, do exercício da autoridade em comunhão. “A interdependência mútua de todas as Igrejas – salienta um documento do diálogo católico-anglicano – é constitutiva da realidade da Igreja tal como Deus a quer. Nenhuma Igreja local inscrita na Tradição viva pode considerar-se como auto-suficiente. Formas de sinodalidade são, pois, necessárias para manifestar a comunhão das Igrejas locais e sustentar cada uma na sua fidelidade ao Evangelho”47.

Neste contexto de reflexão, é cada vez mais perceptível a necessidade de aperfeiçoar as expressões práticas da colegialidade episcopal, antes de mais a nível universal. Neste domínio a forma como se tem concretizado a instituição “Sínodo dos Bispos”, como expressão pós-conciliar privilegiada e mais evidente da colegialidade dos bispos, como modalidade concreta de a comunhão dos bispos com o papa se exercer, levanta questões no que respeita à autoridade efectiva que possui e à eficácia prática da sua realização48.

A relação entre colegialidade “afectiva” e “efectiva” é igualmente um aspecto em que que há ainda importantes clarificações e amadurecimentos a fazer – o pensamento doutrinal oficial sobre esta matéria foi reafirmado ultimamente na Exortação Apostólica Pastores Gregis49–, na consciência de que a referida

diferenciação pode ser insuficiente para se darem respostas pastoralmente adequadas e lúcidas aos desafios que se colocam nas diversas situações da

H. LEGRAND, O papado ao serviço da comunhão das Igrejas. Enjeu das Igrejas locais para a

catolicidade da Igreja, in H. N. GALVÃO e outros, Igreja e ministérios. Semana de Estudos Teológicos da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 1995, 123-142; R. R. GAILLARDETZ, An Ecclesiology of Communion and Eclesiastical Structures. Towards a Renewed Ministry of the Bishop, in Église

et Théologie 24 (1993) 175-203; P. C. BARROS, Colegialidade episcopal no Vaticano II, in Perspectiva Teológica 37 (2005) 199-224; D. COGONI, Collegialità e primato nella teologia cattolica

contemporanea, in Studi Ecumenici 23 (2005) 13-47; B. MALVAUX, Un débat toujours actuel: le statut théologique des conférences ds évêques, in Nouvelle Revue Théologique 123 (2001) 238-253; H.

LEGRAND – J. MANZANARES – A. GARCÍA Y GARCÍA (ed.), Les conférences épiscopales.

Théologie, statut canonique, avenir. Actes du Colloque International de Salamanque, Paris 1988 ;

H. TEISSIER, Las Conferencias Episcopales y su función en la Iglesia, in Concilium 208 (1986) 447-456.

47COMMISSION INTERNATIONALE ANGLICANE-CATHOLIQUE ROMAINE, Le don de l’autorité,

nº 37, p. 473. Cf. S. MADRIGAL, Vaticano II: Remembranza y actualización. Esquemas para una

Eclesiología, Santander 2002, 323-337.

48Cf. a este propósito W. KASPER, Katholische Bistümer in Russland. Bemerkungen zur Diskussion

um das Verständnis des kanonischen Territoriums, in Stimmen der Zeit 221 (2003) 527 s. Cf. ainda

G. ROUTHIER, Le synode des évêques: un débat inachevé, in G. ROUTHIER – L. VILLEMIN (dir.),

Nouveaux apprentissages pour l´Église. Mélanges offertes à Hervé Legrand, Paris 2006,

269--293.

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vida da Igreja. Neste contexto situam-se particularmente os problemas relaciona-dos com o estatuto teológico e jurídico das conferências episcopais: é redutor pensar que se trata aqui apenas de questões de funcionamento e utilidade práticos. Em causa está a possibilidade de uma assunção comum de responsabilidades e de posicionamentos dotados de alguma autoridade a nível da comunhão local/regional das Igrejas.

Importa lembrar aqui que a preocupação de salvaguardar o lugar e a responsabilidade próprios do bispo na sua diocese, sendo embora teologica-mente legítima e indispensável (o papel e a autoridade próprios do bispo na presidência da sua Igreja local tem a ver com algo que pertence à estrutura essencial da Igreja), não pode ser absolutizada, ao ponto de não admitir qualquer confronto com as exigências incontornáveis da colegialidade episcopal (no fim de contas, da comunhão eclesial). A relativização do magistério doutrinal das conferências episcopais50acarreta consigo inibições e atrofiamentos pastorais

bem como limites e incapacidades de inculturação a nível local/regional. Pode haver assim o risco de tudo ser pensado sobretudo dentro do binómio “plena autonomia do bispo na sua diocese – relação directa a Roma, ou seja, à cabeça do Colégio”, sem se valorizar suficientemente a inserção do Bispo nas indispensáveis expressões de comunhão a nível de instâncias intermédias supra-locais51.

O debate sobre a busca de equilíbrio entre o exercício do primado e as diversas expressões de colegialidade, com base na legítima autonomia das Igrejas locais/regionais, prossegue. A distinção entre serviço de Pedro e centralismo da Cúria Romana merece uma reflexão aprofundada, pois o exercício do ministério de Pedro não é necessariamente equivalente a centralismo e curialismo52. Corre-se, por vezes, o risco de uma uniformidade exagerada e

de uma intervenção controladora sobre novas realidades em gestação, esquecendo que a verdadeira unidade não pode deixar de integrar legítimas e indispensáveis diversidades. O grau de autonomia das Igrejas locais/regionais é uma questão a clarificar ainda melhor em termos teológicos e práticos: estas necessitam, por razões teológicas da sua própria identidade eclesial e em ordem

50Cf. Apostolos Suos, nº 20; Pastores Gregis, nº 63.

51Cf. a este propósito H. LEGRAND, L’oecuménisme devient un enjeu pastoral, 35; L. VILLEMIN,

Les provinces ecclésiastiques et la théologie de l’Église, in G. ROUTHIER – L. VILLEMIN (dir.), Nouveaux apprentissages, 185-204 ; I. NDONGALA MADUKU, Églises régionales et catholicité de l’Église : quelques enjeux ecclésiaux et ecclésiologiques pour les Églises d’Afrique, in IB., 229-244;

W. KASPER, Nochmals: Der theologische Status der Bischofskonferenzen, in Theologische Quartalschrift 168 (1988) 240.

52“Uma coisa é o poder de jurisdição real, efectiva, do Papa sobre toda a Igreja, outra coisa é a

centralização do poder. O primeiro é de direito divino, o segundo é o efeito de circunstâncias humanas”: Mgr. BENELLI, Les rapports entre le Siège de Pierre et les Églises locales, in La Documentation Catholique 1644 (1972) 1072.

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ao testemunho do Evangelho nas circunstâncias culturais concretas em que se inserem, de espaços de liberdade para configurarem a vivência comunitária da fé num determinado contexto e para responderem mais adequadamente aos desafios da sua própria situação.

2.5. A relação sacerdócio comum/ministério ordenado e o papel dos fiéis na vida e missão da Igreja

À renovação da consciência do laicado e seu lugar na vida da Igreja na sequência do Concílio Vaticano II sucedeu, já antes mas sobretudo a partir dos anos 80, um movimento de duplo sentido: por um lado, registou-se um incremento da presença e acção de Movimentos e Associações laicais, num processo reconhecido progressivamente, mesmo em termos magisteriais, como sinais da presença e actuação do Espírito no nosso tempo53; por outro lado,

os impulsos positivos de uma teologia do laicado resultantes da visão conciliar, com a sua insistência na dimensão da secularidade, não encontraram o desenvolvimento que se esperava e seria desejável quer no âmbito da reflexão teológica quer em termos de estruturação prática eclesial e de corresponsabi-lidade efectiva por parte do comum dos fiéis.

De um modo geral tem de se reconhecer, quanto a este último ponto, que o incremento da consciência e da responsabilidade laicais em termos de linguagem não foi acompanhado por um amadurecimento teológico suficiente e consistente da identidade cristã laical nem por uma configuração estrutural adulta do seu papel na vida da Igreja. O desenvolvimento dos elementos positivos de uma teologia do laicado encontraram uma dupla barreira, não obstante a importância e o mérito das reflexões contidas na Christifideles laici: à dificuldade de dar expressão positiva específica à identidade laical54

associaram-se uma linguagem abstracta de comunhão – que tendeu a favorecer, na prática, a manutenção das situações estabelecidas – e o receio de confusão entre as novas possibilidades de responsabilidade laical na Igreja e o excercício do ministério sacerdotal55. A fragilidade de uma visão assente no binómio

53Cf. C. GARCÍA FERNÁNDEZ, De la “teología de los laicos” de Lumen Gentium a los “movimientos

eclesiales” posconciliares, in Burgense 48 (2007) 45-81; L. NAVARRO, I nuovi movimenti ecclesiale nel Magistero di Benedetto XVI, in PONTIFICIA UNIVERSITÀ SANTA CROCE (ed.), Inaugurazione anno accademico 2008-2009, Roma 2009, 19-37.

54Cf. E. BUENO DE LA FUENTE, Panorama de la eclesiología actual, 54; B. SESBOUÉ, N’ayez pas

peur! Regards sur l’Église et les ministères aujourd’hui, Paris 1996, 115 ss.

55Como claro indício disso cf. CONGRÉGATION POUR LE CLERGÉ (et al.), Instruction sur quelques

questions concernant la collaboration des fidèles laïcs au ministère des prêtres, in La Documentation

Catholique 2171 (1009-1020. Cf. a análise de B. SESBOUÉ, Los ministerios pastorales en la Iglesia.

A propósito de la Instrucción “Algunas cuestiones acerca de la colaboración de los laicos en el sagrado ministerio de los sacerdotes (de 15 de Agosto de 1997), in Sal Terrae 87 (1998) 333-347.

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comunidade-ministérios como fundamentação teológica do lugar específico dos fiéis cristãos na Igreja ficou patenteada na própria dificuldade (mesmo assim, não de todo justificada) de delinear autênticos ministérios laicais nas três dimensões fundamentais do viver da Igreja (e não apenas no âmbito litúrgico). Não se teve suficientemente em conta que, quando se pretende caracterizar a vocação específica dos fiéis leigos dentro da vocação comum de todo o Povo de Deus, é indispensável ter consciência de que estamos diante de uma especificidade que não assenta em elementos exclusivos, mas que se exprime, antes, em indicativos de uma acentuação própria, extremamente diversificada, aberta à dimensão carismática da vida cristã e, sobretudo, capaz de perceber e ajudar a concretizar a secularidade laical como elemento teologicamente identificador do ser Igreja ao serviço deste mundo e sua configuração à luz do Evangelho56.

A caminho dos 50 anos do início do Concílio, várias razões apontam no sentido de ser indispensável continuar a reflectir em termos teológicos e a agir numa linha prática, também no âmbito jurídico-canónico, neste domínio da identidade laical e sua corresponsabilidade na vida da Igreja: a situação actual dos cristãos leigos continua a ser, em muitas situações, marcada ainda por sinais de menoridade (por responsabilidade própria e alheia); o significado teológico que a existência laical tem para a missão da Igreja não está a ser devidamente explicitado e concretizado; não se pode subestimar o peso proveniente das consequências de mentalidades passadas que persistem; a totalidade real e diversificada das inúmeras existências cristãs laicais na vida da Igreja não pode esgotar-se – nem teologica nem praticamente – na questão dos ministérios57,

mas é indispensável avançar-se decididamente neste campo.

Nesta ordem de ideias e reconhecendo a importância do sensus

fidei/consensus fidelium sublinhado em Lumen Gentium, nº 12 (um dos

elemen-tos mais importantes da reflexão eclesiológica conciliar), há que dar todo um outro lugar eclesiológico e prático ao Povo de Deus no seu conjunto, e dentro dele aos fiéis leigos, no testemunho vivo da verdade da fé. Lê-se num documento do diálogo teológico católico-anglicano: “O Povo de Deus é como tal o portador

56Isto é, não se trata de um mero dado sociológico, mas de uma realidade com sentido teológico,

enquanto realização vocacional significativa para a Igreja e para o mundo. Escreve S. PIÉ-NINOT: “Pode caracterizar-se, em síntese, a teologia conciliar descrevendo o laicado como ‘uma condição sacramental de serviço, uma dimensão carismática de liberdade, um testemunho evangelizador no mundo e uma pertença eclesial de corresponsabilidade’”: Eclesiología, 305.

57Concretamente, a linguagem dos “ministérios” pode ser, está a ser utilizada com frequência de

forma profundamente equívoca: ou pretende designar algo de específico na Igreja (e, nesse caso, tem um sentido restrito, que deve ser valorizado) ou é usada amplamente em relação ao laicado como sinónimo de serviço ou função decorrente da vocação baptismal, o que nada esclarece quanto ao problema teológico de fundo e, sobretudo, terá provavelmente efeitos contraproducentes do ponto de vista pastoral.

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da Tradição viva. Nas mudanças de situações que colocam ao Evangelho novos desafios, o discernimento, a actualização e a comunicação da Palavra de Deus são responsabilidade de todo o Povo de Deus. O Espírito Santo opera através de todos os membros da comunidade, servindo-se dos dons que concedeu a cada um para o bem de todos”58. Há todo um dinamismo activo e criativo de

consciência e corresponsabilidade laicais que está ainda bem longe de ser posto em prática, dando mais espaço à dimensão carismática da vida da Igreja. 2.6. Igreja católica em relação com outras Igrejas e Comunidades eclesiais Uma aquisição conciliar de extraordinário alcance traduziu-se na consciência de que a Igreja de Jesus Cristo “subsiste” na Igreja católica, mas não se identifica pura e simplesmente com ela59, ou seja, exprimiu-se desta forma

o reconhecimento de que a realidade eclesial não se esgota no espaço visível da Igreja católica, mas é mais ampla do que esta60. Dito ainda de outro modo, a

convicção de que, em termos sacramentais-institucionais, a Igreja católica possui a plenitude dos meios da salvação não significa a pretensão de uma posse de verdade exclusiva, antes reconhece-se que há “elementos de santificação e de verdade” presentes noutras Igrejas e Comunidades eclesiais, as quais não são destituídas de significado em ordem à salvação (Unitatis Redintegratio, nº 3). Por conseguinte, tem de reconhecer-se que pode haver na vida de outros cristãos e comunidades cristãs expressões de maior fidelidade ao Evangelho do que na própria Igreja católica.

A novidade deste posicionamento em termos de definição da identidade católica (um caso de verdadeiro desenvolvimento dogmático) é de tal ordem que ainda hoje está por fazer a recepção plena, em todas as suas consequências, da transformação de mentalidade que aqui se pressupõe e exige. E, estando sujeita à disputa sobre a mais correcta interpretação do texto conciliar, esta é certamente uma questão que, nas suas exigências de clarificação teórica e prática, vai continuar a ser objecto de reflexão e debate ainda por muito tempo61.

Referida embora expressamente ao âmbito ecuménico, manifesta-se aqui

58COMMISSION INTERNATIONALE ANGLICANE-CATHOLIQUE ROMAINE, Le don de l’autorité,

nº 28, p. 472.

59Cf. Lumen Gentium, nº 8. Cf. F. A. SULLIVAN, El significado y la importancia del Vaticano II de

decir, a propósito de la Iglesia de Cristo, no “que ella es”, sino que ella “subsiste en” la Iglesia católica romana, in R. LATOURELLE (ed.), Vaticano II : balance y perspectivas. Veinticinco años después (1962-1987), Salamanca 1987, 607-616, aqui 607; P. RODRÍGUEZ, P. – J. R. VILLAR, Las “Iglesias y Comunidades eclesiales” separadas de la Sede Apostólica Romana, in Diálogo Ecuménico – 40 años del Decreto Conciliar Unitatis Redintegratio. Evocación histórica y perspectiva de futuro, 39, nºs 124-125 (2004) 537-623, aqui 612. Cf. S. WIEDENHOFER, Das katholische Kirchenverständnis, 249.

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