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ATMOSFERAS SONORAS NO CINEMA: Elementos sonoros culturais em meio ao Naturalismo e o Hiper-realismo nos filmes Barravento (1962, Glauber Rocha) e Besouro (2009, João Tikhomiroff)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR

MILTON SANTOS

PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

ÁLVARO LIMA RIBEIRO NETO

ATMOSFERAS SONORAS NO CINEMA:

ELEMENTOS SONOROS CULTURAIS EM MEIO AO NATURALISMO E O HIPER-REALISMO NOS FILMES BARRAVENTO (1962, GLAUBER ROCHA) E

BESOURO (2009, JOÃO TIKHOMIROFF)

SALVADOR

2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR

MILTON SANTOS

PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

ÁLVARO LIMA RIBEIRO NETO

ATMOSFERAS SONORAS NO CINEMA:

ELEMENTOS SONOROS CULTURAIS EM MEIO AO NATURALISMO E O HIPER-REALISMO NOS FILMES BARRAVENTO (1962, GLAUBER ROCHA) E

BESOURO (2009, JOÃO TIKHOMIROFF)

Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Leonardo V. Boccia

SALVADOR

2018

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ATMOSFERAS SONORAS NO CINEMA: ELEMENTOS SONOROS CULTURAIS EM MEIO AO NATURALISMO E O HIPER-REALISMO NOS FILMES BARRAVENTO (1962, GLAUBER ROCHA) E BESOURO (2009, JOÃO TIKHOMIROFF) / Álvaro Lima Ribeiro Neto. -- Salvador, 2018.

122 f.

Orientador: Leonardo Vincenzo Boccia.

Dissertação (Mestrado - Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade)

--Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, 2018.

1. Cinema. 2. Som no cinema. 3. Estudos de

cultura. 4. Barravento (1962). 5. Besouro (2009). I. Vincenzo Boccia, Leonardo. II. Título.

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Leonardo Boccia, pelo respeito, apoio e colaboração enquanto orientador neste trabalho.

À CAPES, pela concessão da bolsa de mestrado.

Aos Professores José Roberto Severino e Guilherme Maia de Jesus, por aceitarem contribuir participando da banca de defesa

À Professora Fernanda Martins, pelo cuidado e esmero nas contribuições feitas a este trabalho na etapa de qualificação.

À minha família. Aos meus pais, Isabel e Fabio, primeiro pelo amor, depois pelo imenso apoio e incentivo, e também por me ensinarem a beleza da vida ouvindo a música Acabou Chorare. Aos meus irmãos, Felipe e Marco, que talvez sem saberem, colorem a minha vida. Aos meus avós, Dona Arminda e Seu Garrido, Dona Nilda e Seu Ribeiro, que tive a honra e a sorte de conviver, obrigado pelo amor, pelos carinhos e ensinamentos eternos. À Caroline, a sereia que faz a realidade ser mais fantástica, agradeço pelo incentivo, ajuda e inspiração, também pela paciência mas principalmente pelo amor.

Aos amigos-irmãos, Pedro, Victor, Bruno e Rafael, por termos compartilhados as dúvidas, os erros e os acertos, por termos aprendidos juntos, por termos rido e chorado juntos, sempre juntos.

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RESUMO

O presente trabalho tem como ponto central o papel do som no cinema como criador de sentido, através da representação de elementos sonoros de uma cultura. Para isso, esta pesquisa realiza um estudo conceitual e histórico do cinema, do som no cinema e de suas relações com os estudos da cultura, culminando na análise audiovisual, proposta pelo autor Michel Chion, dos filmes Barravento (1962, Glauber Rocha) e Besouro (2009, João Tikhomiroff). Duas obras cinematográficas que possuem temáticas semelhantes e trabalham, em suas bandas sonoras, com os mesmos elementos sonoros pertencentes à cultura negra pós-diaspórica da Bahia, exercendo, cada uma a sua maneira, papel fundamental na construção fílmica destas duas obras. Dessa forma, este trabalho tem o objetivo de investigar as contribuições do som nos filmes, através de uma análise das representações e transformações desses elementos sonoros culturais, e de que maneira colaboram para entregar significado às sequências fílmicas e aos longas-metragens como um todo. Para isso, esta dissertação se nutre das teorias cinematográficas e dos estudos da cultura, refletindo sobre a linguagem cinematográfica, realizando uma contextualização estético-histórica dos filmes, adentrando nos estudos pós-coloniais e nos processos de identificação, e relacionando esses temas ao cinema e aos filmes escolhidos. Por fim, esta pesquisa foca nas evoluções estéticas e tecnológicas do som no cinema e suas influências na linguagem audiovisual cinematográfica, para então realizar uma análise audiovisual de sequências representativas de pontos chave que constituem estes dois filmes. Portanto, com essa pesquisa o autor visa contribuir para aprofundar o conhecimento acerca das múltiplas possibilidades de uso do som, em específico de expressões culturais sonoras nos processos de identificação no cinema.

Palavras-chave: Cinema; som no cinema; estudos de cultura; Barravento (1962); Besouro (2009)

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ABSTRACT

The present work focuses on the role of sound in cinema as a creator of meaning, through the representation of the sound elements within a culture. For this, the research makes a conceptual and historical study of cinema, sound in cinema and and its relations with the culture studies, culminating in the audiovisual analysis, proposed by the author Michel Chion, from the movies Barravento (1962, Glauber Rocha) and Besouro (2009, João Tikhomiroff). Two cinematographic works that have similar themes and use, in their soundtracks, the same sound elements pertaining to the post-diasporic black culture of Bahia, exercising, each one in their own way, a fundamental role in the filmic construction of both movies. Therefore, this paper aims to investigate the contributions of sound in films, through an analysis of the representations and transformations of these cultural sound elements, and in what way they collaborate to deliver meaning to a film sequences and feature films as a whole. For that, this dissertation rely on cinematographic theories and culture studies, reflecting about cinematographic language, bringing an aesthetic-historical contextualization of the films, diving into the postcolonial studies and the processes of identification, and relating these themes to the cinema and to the selected feature films. Finally, this research focuses on the aesthetic and technological evolutions of sound in the cinema and its influences in the cinematographic audiovisual language, to perform an audiovisual analysis of key points that builds these two films. Therefore, with this research the author aims to contribute to deepen the knowledge about the multiple possibilities of using sound, in specific of cultural sound expressions in the processes of identification in cinema.

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LISTA DE FIGURAS

Fotograma 1 Pescadores como parte do cenário – Barravento (1962) ... 72

Fotograma 2 Aruã como figura central da ação – Barravento (1962) ... 72

Fotograma 3 Capoeiristas como parte do cenário – Besouro (2009) ... 72

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10 1 . ILUSÕES SONORO-VISUAIS ... 17 1.1 . ESCUTA E CINEMA ... 21 1.2 . OS MUNDOS FÍLMICOS ... 29 1.2.1 . O MUNDO DE BARRAVENTO ... 39 1.2.1 . O MUNDO DE BESOURO ... 46 2 . CINEMAS E CULTURAS ... 58

2.1 . BARRAVENTO E BESOURO: diferença, identidade e pós-colonialismo ... 59

2.2 . IDENTIFICAÇÃO NO CINEMA ... 67 3 . ATMOSFERAS SONORAS ... 74 3.1 . O SONORO NO CINEMA ... 75 3.2 . A AUDIOVISÃO ... 86 3.3 . ANALISE AUDIOVISUAL ... 90 3.3.1 . DO NEO AO HIPER-REALISMO ... 92 3.3.2 . RELIGIÃO ... 97 3.3.3 . VIOLÊNCIA ... 101 3.3.4 . TRILHAS SONORAS ... 106 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 114 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 119

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I N T R O D U Ç Ã O

TOQUE DE SÃO BENTO GRANDE DE ANGOLA

Paulo César Pinheiro

Nesse mundo camará Mas não há mas não há Mas não há quem me mande Eu só sei obedecer

Se mandar, se mandar são bento grande É de angola é de angola é de angola De angola de angola de angola Meu avô já foi escravo

Mas viveu com valentia Descumpria a ordem dada Agitava a escravaria

Vergalhão, corrente, tronco Era quase todo dia

Quanto mais ele apanhava Menos ele obedecia

Quando eu era ainda menino O meu pai me disse um dia A balança da justiça Nunca pesa o que devia

Não me curvo a lei dos homens A razão é quem me guia

Nem que seu avo mandasse Eu não obedeceria

Esse mundo não tem dono E quem me ensinou sabia Se tivesse dono o mundo Nele o dono moraria Como é mundo sem dono Não aceito hierarquia Eu não mando nesse mundo Nem no meu vai ter chefia

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INTRODUÇÃO

Reavaliar qual foi o papel do som na história do cinema, para lhe conferir a sua verdadeira importância, não é pura preocupação de crítico ou de historiador, diz também respeito ao futuro do cinema: este evoluirá melhor e será mais vivo se souber retirar melhores consequências daquilo que já se passou.

Michel Chion (A Audiovisão. 2011, p. 113)

Algumas pessoas se aproximam e nos organizamos em círculo. O berimbau começa a ser tocado e uma letra começa a ser cantada, os demais ouvem atentos ao instrumento e tentam aprender a canção. Quando a música muda, o pandeiro, posicionado ao lado do berimbau, inicia o seu toque; também é escutado, do outro lado, o som do atabaque; e as pessoas, no círculo, participam ritmando com palmas e respondendo à canção em coro. Uma a uma, as duplas vão se revezando no centro da roda e, não apenas o jogo da capoeira, mas principalmente o seu rito, vai sendo gravado na minha memória.

Durante alguns anos estive (cresci) em meio à roda, ao ritual e aos ensinamentos da capoeira. Depois, durante os anos em que já não estou diretamente ligado à capoeira, basta escutar o berimbau, o pandeiro ou o atabaque, que minha atenção é reivindicada por esses sons. É através dessas sonoridades que são ativadas lembranças; é através dessas sonoridades, gravadas na mente, que posso viajar no tempo e no espaço; é através dessas sonoridades que são invocados conhecimentos, sentimentos e sensações. Portanto foram essas sonoridades que me conduziram até um pensamento sobre uma memória auditiva afetiva. Elementos sonoros pertencentes a uma cultura e que, deste modo, formam parte do repertório cultural de uma pessoa.

Durante os últimos anos estive (cresci) em meio à roda, ao ritual e aos ensinamentos do cinema. Entre os set’s de filmagem e a ilha de edição, foi crescendo a minha curiosidade e encanto pelo som no cinema. A linguagem cinematográfica já era um tema que me chamava a atenção por minha dedicação como montador, e o papel do som (integrante dessa linguagem cinematográfica) como criador de sentido é o que tem movido o meu interesse como pesquisador, montador e desenhista de som. Pois, contrariando a dominação da imagem nos estudos de cinema, concordo com Guilherme Maia de Jesus e Wilson Gomes que preferem afirmar que os filmes são herdeiros, não das representações pictóricas ou da evolução da

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fotografia mas, das muitas formas de se contar histórias. ‘Um livro, um filme ou uma música são elaborados por uma consciência com vistas a desencadear uma série de estados sensíveis e intelectuais em uma outra consciência apreciadora. Como diz Gomes, “significar é sempre significar para um interprete”.’ (JESUS, 2007, p. 103-104)

No cinema, o interprete é o espectador, que contando com as suas experiências e seu repertório cultural, interpreta os estímulos audiovisuais e participa na construção de um significado para o filme. Nesse cenário, o som se posiciona como elemento efetivo na concretização do conceito e na entrega de sentido ao filme. Segundo Andrei Tarkovski (1998), é através do som que o diretor do filme pode enfatizar determinado elemento visual e conduzir as emoções do espectador. Além disso, é também a intervenção do som, compondo a trama fílmica, que influencia o espectador na sua impressão de realidade ou fantasia.

Na Era das telas, a intenção deste trabalho é destacar o que vem das caixas de som, dos alto-falantes, dos amplificadores; sem, contudo, separar imagem e som, pois seguimos a ideia sustentada por Michel Chion de que a combinação entre o que se vê e o que se escuta produz algo inteiramente específico e novo, no qual o som interfere naquilo que se vê e o contrário também é verdadeiro (a imagem interfere naquilo que se escuta), não fosse assim, uma análise do som separado da imagem não englobaria o seu significado dentro do filme.

Por uma questão de lógica, toda teoria de cinema deveria abordar o problema do som do filme. Em geral, isto poucas vezes tem sido o caso. Muito ao contrário, um número surpreendente de teóricos chega alegremente a conclusões acerca da natureza do filme com base apenas nas propriedades aparentes da imagem em movimento. Se isto fosse apenas uma questão de omissão, o problema seria rapidamente corrigido. A rigor, os teóricos se descuidam do som e o fazem conscientemente, propondo o que consideram fortes argumentos a favor de uma noção de cinema baseada na imagem. De fato, alguns destes argumentos atingiram o nível de truísmos, suposições não interrogadas nas quais todo o campo é fundamentado. (ALTMAN apud JESUS, 2007, p. 55)

Sob a compreensão do cinema como representação, um recorte mediado do mundo, concorda-se que o cinema se utiliza de códigos, convenções, mitos e ideologias de uma cultura para criar universos particulares e contar as suas histórias. Considerando que a percepção dos simbolismos que o som carrega consigo não se dá de forma automática e que os significados se estabelecem frente a determinações contextuais (CHION, 2011) – para cada contexto cultural há significâncias particulares – faz-se necessário incorporar os estudos de culturas e dos processos de identificação, e também, a relação do cinema com estes temas, até porque, a possibilidade de experimentação da cultura no cinema se dá, também através do

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campo sonoro, sendo os elementos sonoros culturais intencionalmente organizados pelo realizador e, posteriormente, interpretados pelo espectador.

Tanto a criação de uma representação da realidade, como a sua interpretação e análise, requerem um juízo de valor. Primeiro na concepção dessa representação, o artista avalia o conjunto da obra e sentencia que a mesma está pronta para ser apresentada ao seu público, e depois na compreensão, a partir da interpretação, do espectador. O autor Luigi Pareyson sugere que, mesmo se tratando de coisas diferentes, o juízo de gosto e o juízo de valor operam conjuntamente para que se chegue às conclusões, tanto do artista como do espectador, de que a obra cumpre com certos requisitos, que permitem ao artista (e ao espectador) dar por aprovada e concluída. O autor ainda ressalta que o gosto:

sendo a própria espiritualidade de uma pessoa, ou de um período histórico, traduzida numa espera de arte, um modo de ser, viver, pensar, sentir, resolvido num concreto ideal estético, um sistema de idéias, pensamentos, convicções, crenças, aspirações, atitudes, tornado sistema de afinidades eletivas em campo artístico, não pode, de modo algum, ser excluído do processo de leitura e de crítica uma vez que despojar-se desta bagagem espiritual e cultural seria como privar-se da própria personalidade. (PAREYSON, 2001, p. 242 e 243)

Dessa forma, com base no método de análise audiovisual, que “tem o objetivo de perceber a lógica de um filme ou de uma sequência na sua utilização do som combinado com a imagem” (CHION, 2011, p. 145), o presente trabalho realiza a análise dos filmes Barravento (1962, Glauber Rocha) e Besouro (2009, João Daniel Tikhomiroff). Filmes que foram escolhidos, prioritariamente, por apresentarem semelhanças em suas temáticas, explorarem os mesmos elementos culturais sonoros, e ainda, por utilizarem esses sons de formas distintas, criando assim, duas abordagens sobre o tema e dois universos que se diferem nas suas dimensões de real e de fantasia. Por outro lado, a escolha se deu também pelo caráter pós-colonial dos filmes, pelo esforço em apresentar narrativas por vias diferentes das ensinadas pelos (neo)colonizadores e escapar do discurso único.

Muitas análises são possíveis para os filmes, e neste trabalho optei por focar nas potências dessas produções cinematográficas, pautando as contribuições criativas e artísticas possíveis de se extrair de cada um desses filmes. Mesmo assim, este estudo não exclui as possibilidades de análises e críticas pertinentes aos dois longas em questão, partindo primordialmente do reconhecimento dos limites do lugar de fala dos diretores e das equipes técnicas (a exceção de atrizes e atores), com nenhum (ou quase nenhum) negra ou negro

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presente; portanto uma representação cinematográfica de uma temática negra sob o olhar de uma equipe de realizadores brancos (que por mais informados e envolvidos que possam ser com as questões do negro, não vivem na própria carne os problemas do racismo). Os mesmos limites do lugar de fala que estou sujeito enquanto autor dessa dissertação, e que tendo presente o fato de ter a pele branca estive atento e me dediquei a falar junto com os negros, e em não assumir os seus lugares e consequentemente falar pelos negros.

Nesse mundo contemporâneo em que o racismo estrutural segue sendo determinante, abordar a temática negra é algo imperativo; e se foi importante o Cinema Novo colocar a temática e o próprio negro na tela, é ainda mais importante, como reivindica o atual Cinema Negro, que os negros possam ocupar cada vez mais os espaços que permitem ter uma câmera na mão e uma ideia na cabeça (além de ter a caneta e o papel para fazer o roteiro, o microfone para gravar o som, plataformas de edição etc.).

Além disso, como dizia, as analises dos filmes podem seguir por muitos caminhos, como pelo viés da crítica ao caráter paternalista da visão marxista de Glauber Rocha em Barravento (1962) ou do interesse comercial do publicitário João Tikhomiroff com o filme Besouro (2009). Entretanto, pela necessidade de fazer um recorte de pesquisa, seguiremos na observação dos pontos que tributam em favor do cinema, do som no cinema e da temática negra.

Com base nesse entendimento, esta pesquisa tem por objetivo investigar as possibilidades e as contribuições do som dentro dos filmes, através de uma análise das representações e transformações de sons culturais e a maneira como contribuem para entregar significado às sequências e aos longas-metragens de forma geral. Um trabalho que busca entender como os mesmos elementos sonoros culturais, em filmes de temáticas similares, são empregados a ponto de adquirirem significados diferentes em cada filme; e ainda, como uma memoria auditiva afetiva pertencente à uma cultura influencia no significado/sentido do filme. Portanto, essa pesquisa visa aprofundar o conhecimento acerca das múltiplas (e das novas) possibilidades de uso do som, em específico pelas expressões culturais sonoras, nos processos de identificação no cinema, através da análise dos filmes citados.

Intrínseco a isso, como comentado mais acima, a intervenção do som num filme influencia o espectador na sua impressão de realidade ou fantasia. De modo que a discussão essencial do cinema entre o real e o reproduzido, que o acompanha historicamente desde o seu nascimento e os surgimentos de estéticas e gêneros cinematográficos, se torna também

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recorrente ao longo desse trabalho, assim como a sua transferência ao campo sonoro cinematográfico ao se tratar das nuanças entre o naturalismo e o hiper-realismo sonoro.

Tema esse que inicia-se já no primeiro capítulo dessa dissertação, a começar pela ideia de ilusão cinematográfica enquanto processo mental; acompanhada pelas reflexões, de um lado dos teóricos formalistas que apontavam para o cinema como uma arte que faz o uso estético da realidade, com liberdade para distorcê-la, e do outro lado, as teorias realistas dizendo que o cinema está para mostrar o mundo tal como ele é. Nesse capítulo intitulado

Ilusões sonoro-visuais, introduz-se também o papel do som na linguagem audiovisual, a partir

das ideias de Michel Chion.

Este primeiro capítulo possui ainda dois subtópicos. No primeiro Escuta e cinema, faz-se uma abordagem filosófica sobre a escuta e descreve-se os tipos de escuta, para então relacioná-las com o cinema, chegando à ideia de montagem sonora – criadora de significados oriundos da relação som e imagem, capaz de despertar sensações no espectador. Depois, em

Os mundos fílmicos, é defendida a ideia de que cada filme cria seu mundo particular, e que

para gerar esses mundos fílmicos os seus realizadores possuem um leque de convenções cinematográficas que podem utilizar – convenções essas que quando combinadas (e repetidas essas combinações em um grupo de filmes) são consideradas como gêneros cinematográficos; nesta parte, observa-se como é utilizado o som em gêneros cinematográficos, algo que, junto aos experimentos do cineasta e teórico Lev Kulechov, conduz à ideia de atmosfera sonora, que define o “clima” de um mundo fílmico; além disso, analisa-se também os gêneros que mais influenciaram os realizadores dos filmes escolhidos, Barravento (1962, Glauber Rocha) e Besouro (2009, João Daniel Tikhomiroff), completando com uma contextualização e análise dos dois longas-metragens.

No segundo capítulo Cinemas e culturas, dividido também em dois subtópicos, há uma aproximação dos estudos da cultura às teorias cinematográficas e aos filmes em si. Em primeiro lugar, aborda-se os dois filmes através das ideias de diferença, identidade e pós-colonialismo, uma forma crítica de contestação e desconstrução (ou reconstrução) das ideologias e normas imperialistas que nasceu da interação entre colonizadores e colonizados, complementando-se com os pensamentos de Paul Gilroy sobre os sujeitos pós-coloniais e as posições-de-sujeito a ocupar nesse não-lugar que denominou Atlântico Negro. E em tempos de identidades fluidas, o segundo subtópico deste capítulo, trata dos processos de identificação, fazendo um paralelo entre os processos de formação do sujeito na sociedade

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(para os estudos culturais e com o apoio da psicanálise) e os processos de identificação do espectador no cinema.

O terceiro capítulo, Atmosferas sonoras, está dividido em três subtópicos para poder explorar as diversas reflexões e características das atmosferas sonoras cinematográficas, e depois partir para uma análise das atmosferas dos dois filmes através de uma análise audiovisual. Primeiro, em O sonoro no cinema, são aprofundados os aspectos da influência do som no cinema e faz-se um acompanhamento das evoluções tecnológicas e as suas possibilidades estéticas. Em seguida, em A Audiovisão, adentra-se nas ideias e no método proposto por Michel Chion que, mesmo sem desassociar imagem e som, estabelece procedimentos metodológicos para a observação das funções e propriedades do som em filmes. No terceiro subtópico, Analise audiovisual, é aplicada a proposta de Chion para analisar as sequências dos filmes escolhidas de acordo com os elementos chave que constituem os mundos fílmicos de cada película e como as atmosferas sonoras se apresentam em cada um desses pontos. Para isso este subtópico é divido de acordo com os pontos chave dos filmes elencados, e no primeiro item, intitulado Do Neo ao Hiper-realismo, destaca-se como as influências dos gêneros cinematográficos refletem nas intencionalidades dos autores, e como os mesmos as transformam em recursos estéticos nos filmes e na construção da atmosfera sonora de cada um dos filmes; no item seguinte, Religião, observa-se como os filmes apresentam abordagens distintas sobre o misticismo e o papel da religião, e como isso é expressado através dos sons nas cenas; no item Violência, trabalha-se com os significados e as representações de violência em determinadas sequências e como os sons criam as suas representações sonoras; e por último, mergulha-se em uma viagem pós-colonial pelas Trilhas

Sonoras, pois o canto das Sereias não cessa nunca, e Ulisses e Orfeu já sabem que “o único

antídoto para a melodia murmurada das Sereias parece ser produzir um som mais encantador do que o delas. As outras opções são sofrer amarrado ao mastro ou resignar-se a não ouvi-las, simplesmente (JESUS, 2007, p. 113).

“Ou seja, trata-se de uma outra pedagogia do visual e do sonoro (…) que nos convida a reaprender a ver e ouvir um filme” (VIEIRA JR., 2008-2011, p. 66).

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C A P Í T U L O 1

VOYAGER Nação Zumbi

voyager

o ouvido em outra dimensão viajei, me liguei

fui ali e voltei sob o signo do som invocando os deuses ancestrais dos pensamentos espirais, maiorais das almas analógicas

às auras digitais

operando nas brechas multidimensionais tais quais as zonas autônomas

da divisão que faz o levante dos temporais matrix, prefix com bics

a sabedoria no meu mix

a ouvidoria atenta na parede falante sussurrando dissonante

plugue-se, ligue-se e vá longe voyager

o ouvido em outra dimensão manifestando e contaminando pelos fones nunca surdos microfones nunca mudos

através das entidades sampleadas que dançam o absurdo

e nos canteiros da galáxia nervosa falando pro ouvido do mundo plugue-se, ligue-se e vá longe

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1 . ILUSÕES SONORO-VISUAIS

Longe de termos um esquema linear que vai da “impressão de realidade” à fé do espectador, o que temos é um processo mais complexo: uma interação entre o ilusionismo construído e as disposições do espectador, “ligado” aos acontecimentos e dominado pelo grau de credibilidade específica que marca a chamada “participação afetiva”.

Ismail Xavier (O discurso cinematográfico, 2005, p. 34)

Um jato de luz invade a escuridão.

No pano fixado na parede, feixes de luz desenham mulheres com vestidos de renda e rodados, colares lhes enfeitam os pescoços e na cabeça, equilibram jarros de flores; num piscar de olhos a luz muda, e agora vê-se um capoeirista que golpeia um guarda e voa de um lado ao outro de uma cachoeira.

Assistir a um filme em uma sala de cinema é mesmo uma experiência de imersão em um outro mundo. Assim como nas outras artes, abre-se um parênteses nas vidas particulares para um mergulho em outras realidades. Uma suspensão temporária, uma transposição para distintas histórias; uma viagem a outros mundos com outras atmosferas.

Uma ilusão1.

Uma tela que amplia ou diminui as dimensões dos objetos da natureza. Um ambiente com tratamento acústico dificilmente encontrado no mundo em que vivemos. A imposição da imobilidade das poltronas e a escuridão, exigem do ser humano, ali inserido, a disposição e o empenho dos seus canais sensitivos da audição e da visão. Ainda assim (e justamente por isso), os feixes de luz e os sons amplificados no cinema alcançaram a similaridade com a dimensão do real, mais do que qualquer outra arte.

Uma relação entre o real e a realidade “re-produzida”, essa última composta por objetos reais em movimento projetados no espaço da tela, que condicionou muitos cineastas e teóricos do cinema a buscarem o aprimoramento dos elementos cinematográficos que remetessem o espectador de cinema à ideia de que estaria tendo uma experiência do real. Dessa forma, esse

1 De acordo com o Dicionário Michaelis o termo ilusão refere-se às seguintes definições: “confusão entre o que uma coisa aparenta ser e o que ela realmente é”; “engano dos sentidos ou da inteligência”; “ação de enganar e iludir”.

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flerte entre “real” e “reproduzido” irá acompanhar o cinema por toda a sua teoria e prática ao longo da história.

As primeiras teorias de cinema surgem focadas nessa relação. De um lado os teóricos formalistas, com as contribuições de Rudolf Arnheim (entre outros) que entende a arte cinematográfica como “um produto da tensão entre a representação e a distorção” baseada, “não no uso estético de algo do mundo, mas no uso estético de algo que nos dá o mundo” (ANDREW, 2002, p. 38); do outro lado, as teorias realistas que dizem que “o cinema existe para nos fazer ver o mundo tal como ele é, para nos permitir descobrir sua textura visual e para fazer com que entendamos o lugar nele ocupado pelo homem”. (ANDREW, 2002, p. 92) Mas na prática, o espectador de cinema se depara com uma redução sensorial do real quando transposto para um equipamento bidimensional e recortado, a tela. Redução essa que é admitida pelo espectador, assim como outras convenções, porque este participa da construção do filme durante a sua projeção, completando as suas imperfeições e fazendo as conexões necessárias para a compreensão da narrativa fílmica – razão pela qual um filme consegue atingir uma dimensão imaginária regida pela percepção das relações entre sons e imagens (CHION, 2011).

A recepção de um filme é muito diferente do estudo ou da teoria sobre a sua construção. A recepção se dá num fluxo, num contínuum temporal que nada tem de palpável, impossível de ser apreendido como um objeto real. É vivência, habita o plano do pensamento, do imaginário, participa de uma subjetividade, portanto, da percepção de cada um (FLÔRES, 2013, p. 82).

Hugo Münsterberg, um dos primeiros teóricos de cinema, já classificava o cinema como um processo mental pois “o filme não existe nem na película nem na tela, mas somente no espírito que lhe proporciona sua realidade”. Ao assistir uma imagem em movimento, o espectador realmente imagina ver o que ela mostra, mas um objeto na tela é apenas luz projetada, o objeto não está ali materializado. Um ilusionismo proporcionado pela capacidade humana de perceber, memorizar e fazer associações, permitindo compreender, por exemplo, que um objeto que diminui de tamanho na tela está se afastando de nós (ANDREW, 2002).

Consentimos em sermos iludidos e adoramos estar sob o efeito da ilusão.

Aceitamos as práticas estéticas do cinema narrativo clássico (o mais difundido dos estilos cinematográficos) que busca de toda forma esconder o processo de construção fílmica do seu espectador. Certos recursos cinematográficos, como a montagem invisível, a narrativa linear, o plano e contra-plano, que, ao serem repetidos se tornaram convenções tanto para os

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realizadores como para os espectadores. A impressão de continuum temporal (incrementada por estas convenções cinematográficas) é fundamental para que o indivíduo imerja na ilusão criada pela narrativa, dando a ideia de que ele participa de uma realidade e não de uma representação (FLORÊS, 2013).

O cinema clássico acolhe o som como um elemento que dará aos filmes um lastro suplementar de realidade, “o advento do cinema sonoro, [...], constituiu um passo decisivo no refinamento do sistema voltado para o ilusionismo e a identificação”. (XAVIER, 2005, p. 35) As características do som agregam à imagem cinematográfica uma maior noção de espacialidade, identificação de massa, peso, tipo de matéria que constitui o objeto da cena; valores informativos e expressivos que enriquecem o representado na tela e que influenciam na impressão imediata e na recordação que o espectador tem de uma sequência audiovisual. Qualidades sonoras que foram definidas por Michel Chion como valor acrescentado pelo som ao cinema (CHION, 2011).

É mais potência à capacidade ilusória do cinema.

Por mais que se tenha consciência de que algumas ações reais não produzem determinados sons com tantos detalhes como nos filmes, essas representações sonoras ajudam a dar ao espectador a dimensão, por exemplo, de quão forte foi um determinado golpe. E por mais distante ou diferente da realidade que seja o conjunto audiovisual exibido, o espectador com o seu desejo por dramaturgias e sua capacidade de fazer associações são fundamentais para tornar a ilusão cinematográfica crível e envolvente (FLÔRES, 2013).

No momento em que se tornou possível a sincronização de som e imagem (ou o fenômeno da síncrese, termo usado por Chion para designar o ponto de fusão entre um fenômeno visual e um fenômeno sonoro) abriram-se as portas do cinema sonoro ao simbolismo; graças à síncrese podem se formar as configurações audiovisuais mais finas e mais espantosas. “Retratar lábios em movimento na tela nos convence de que o individuo assim retratado – e não o alto-falante – pronunciou as palavras que ouvimos.” (ALTMAN apud FLÔRES, 2013, p. 30) Dessa forma, não existe a necessidade de se utilizar a voz dos lábios filmados, há infinitas possibilidades de síncrese para que esses lábios adquiram sentido, seja por uma voz fina ou uma voz grave, ou até mesmo por um elemento sonoro que não faça referência à uma voz humana.

A partir disso, o som mostra o seu potencial de significação, para além de uma redundância sonora do que está sendo mostrado na imagem. Segundo Tarkovski, com a

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utilização do som no cinema “a vida registrada em fotogramas pode modificar sua cor, e, em alguns casos, até mesmo sua essência” (TARKOVSKI, 1998, p. 190). Podemos, então, concluir que o som modifica a percepção do espectador sobre a imagem visual. Em um paralelo com o demonstrado pelo efeito Kulechov da montagem – a justaposição de imagens modifica o sentido de cada imagem individualmente de acordo com a associação feita pela montagem, ou seja, a imagem seguinte modifica a interpretação sobre a imagem anterior e o que se tem é o significado do conjuntos de imagens justapostas – também som e imagem, uma vez juntos significam algo diferente de quando separados.

Pela observação desse efeito, Michel Chion (2011) intitulou o seu livro de A

Audiovisão, referindo-se à atitude perceptiva do espectador cinematográfico, no sentido de

não ser possível, nessa combinação que caracteriza o audiovisual, separar as percepções visual e auditiva, já que as duas se influenciam mutualmente. Afinal de contas nós não vemos um filme, mas áudio-vemos ou escutamos-vemos um filme.

1.1 . ESCUTAS E CINEMA

O autor Roland Barthes em seu livro Lo obvio y lo obtuso, inicia o capítulo intitulado El

acto de escuchar com a definição de que “ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar, uma

ação psicológica”2. (BARTHES, 1986, p. 243) Uma distinção que faz referência ao aparelho auditivo (ou canal sensorial) e à atividade mental gerada a partir de estímulos sonoros. Barthes ainda complementa que “escutar é se colocar a disposição de decodificar”3 (BARTHES, 1986, p. 247).

Em A Hermenêutica do Sujeito, Foucault nos apresenta filósofos dos Séculos I e II em seus estudos sobre a escuta. Para Plutarco, a ambiguidade é uma característica fundamental da audição, que ele classifica como o mais pathetikós e o mais logikós dos sentidos humanos. Onde se lê pathetikós podemos ler passivo, pois Foucault segue a sua aula do dia 3 de março de 1982 explicando que na audição “a alma encontra-se passiva em relação ao mundo exterior e expostas a todos os acontecimentos que dele advém e que podem surpreendê-la. Plutarco assim explica: não se pode não ouvir o que se passa ao redor” (FOUCAULT, 2006, p. 403). O

2 “Oír es un fenómeno fisiológico; escuchar, una acción psicológica.” (tradução nossa) (grifo nosso). 3 “escuchar es ponerse en disposición de decodificar” (tradução nossa).

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filósofo grego acrescenta que o próprio corpo físico permite ser surpreendido e abalado pelo que se ouve muito mais do que pela visão ou tato. Não é possível evitar a escuta.

Por outro lado a audição é também o sentido mais logikós, segundo Plutarco. É por este, mais do que por qualquer outro sentido, que se pode receber o lógos4. Chega a cravar que “o único acesso da alma ao lógos é, pois, o ouvido” (FOUCAULT, 2006, p. 404). Essa ambiguidade – logikós e pathetikós – acompanhará o tema em outros textos e períodos, se fazendo presente também nos estudos sobre os tipos de escuta quando Roland Barthes, dezenove séculos depois de Plutarco, os classificou em três categorias.

A primeira escuta é a que acomete a humanos e a animais, trata-se de um alerta, da percepção de índices sonoros. Um ruído que desperta a atenção do animal para algo que se movimentou à determinada distância dele, um tipo de escuta própria das atividades de caça e fuga. O aparelho auditivo “recebe o máximo de impressões e as canaliza até um centro de vigilância, seleção e decisão”5 (BARTHES, 1986, p. 246).

Na segunda escuta o ser humano se distingue do animal por passar a decifrar os estímulos sonoros recebidos através dos órgãos da audição. Se trata de compreender os signos sonoros – “escutamos como lemos, é dizer, de acordo com certo códigos”6. (BARTHES, 1986, p. 246) Para explicar a essência deste segundo tipo de escuta, o autor recorre à capacidade humana de ritmar golpes, o que é anterior à escrita e às figuras rupestres. É graças à produção intencional de um ritmo que “a escuta deixa de ser pura vigilância e se converte em criação” (BARTHES, 1986, p. 246).

Em seus estudos sobre o som Chion também desenvolve definições sobre modos de escuta. Nomeou de escuta causal a (mais próxima da noção de primeira escuta de Barthes) que se ocupa de identificar a causa de um som. O tipo de escuta mais comum e mais influenciável e enganador, pois o reconhecimento da natureza geradora de um índice sonoro dificilmente se faz pelo fenômeno acústico isolado, mas principalmente, pelo contexto em que esse som é produzido. No âmbito do cinema, o autor destaca que essa escuta causal é, com frequência, manipulada através da síncrese, que faz o espectador acreditar, se iludir, de que o

4 logos no grego, significava inicialmente a palavra escrita ou falada — o Verbo. Mas a partir de filósofos gregos, como Heráclito, passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser um conceito filosófico traduzido como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da Ordem e da Beleza (https://pt.wikipedia.org/wiki/Logos).

5 “la oreja […] recibe el máximo de impresiones y las canaliza hacia un centro de vigilancia, selección y

decisión” (tradução nossa).

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som emitido pelos alto-falantes tenha sido causado pelo objeto na tela que compõe a cena; quer dizer, naquele determinado contexto (CHION, 2011).

Quanto à atividade auditiva que não se atêm ao caráter acústico do som, mas sim ao seu significado (a segunda escuta de Barthes), recebeu de Michel Chion a designação de escuta semântica. Refere-se à interpretação que fazemos dos sons. O autor observa que “a escuta causal e a escuta semântica podem exercer-se paralela ou independentemente numa mesma cadeia sonora” (CHION, 2011, p. 29), pois temos a capacidade de perceber simultaneamente o que gera um som e o que o mesmo quer dizer (seu significado).

Além dessas duas, Barthes indica uma terceira escuta, desempenhada pela intervenção do inconsciente. Como uma atividade própria de psicanalistas que fazem uso do traço

pathetikós da audição, Barthes segue os ensinamentos de Freud e sugere uma forma de

escutar que não se preocupe em saber se algo será absorvido ou não pelo lógos nessa atividade. Dessa maneira, antes de que o sujeito que percebe um ruído possa fazer uma interpretação do som pela razão, ele a faz inconscientemente por suas múltiplas sensações (sinestesia); ou seja, entre o alerta sonoro e a compreensão do que aquilo possa significar, estão as sensações despertadas pelo som em contato com a “memória inconsciente” do sujeito. “Um modo de escutar pânico”7 (BARTHES, 1986, p. 255), tendo em conta que alguns autores remetem a origem da palavra pânico ao Deus Pã: que perturba o espírito e enlouquece os sentidos8.

“A escuta se abre a todas as formas de polissemia”9 (BARTHES, 1986, 255).

A passividade auditiva, presente nessa terceira escuta, demonstra ser vantajoso que o ouvido se deixe penetrar sem que a vontade intervenha, e assim, “recolha tudo o que do lógos possa passar a seu alcance” (FOUCAULT, 2006, p. 405), como já afirmara o filósofo Sêneca. Mesmo que não se preste atenção, que não se compreenda uma emissão sonora, alguma coisa sempre permanece; o sujeito queira ou não, “há sempre um certo trabalho do lógos na alma” (FOUCAULT, 2006, p. 405). E tratando das qualidades do traço pathetikós, Plutarco cita a música, a lisonja das palavras e os efeitos da retórica, para afirmar que não há só a vontade de interpretar uma informação sonora, mas também o objetivo de atingir o âmbito do sensível, sendo a audição “evidentemente mais capaz do que qualquer outro sentido de enfeitiçar a alma” (FOUCAULT, 2006, p. 403).

7 “un modo de escuchar pánico” (tradução nossa) (grifo nosso)

8CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva et al. Rio de

Janeiro: José Olympio, 1993.

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Em todos estes textos a respeito da passividade da audição, a referência a Ulisses, certamente, é uma regra: Ulisses que chegou a vencer todos os sentidos, a dominar inteiramente a si mesmo, a recusar todos os prazeres que se podiam apresentar. Porém, quando costeia a região em que encontrará as Sereias – nada, nem sua coragem, nem seu domínio de si, nem sua

sophrosyne, nem sua phrónesis, podia impedi-lo de ser vítima delas,

enfeitiçado por seus cantos e por sua música. Ele é obrigado a tapar as orelhas dos marinheiros e fazer-se atar ao mastro, tanto sabe que seu ouvir, sua escuta é o mais pathetikós de todos os seus sentidos (FOUCAULT, 2006, p. 403).

Epicteto, outro filósofo visitado por Foucault, lembra que se para falar é preciso uma

tékhne, enquanto que para escutar, se requer uma empeiría (experiência, habilidade

adquirida), que se desenvolva uma familiaridade com as exigências da escuta. E para que seja mais lógica do que patética, é necessária uma postura ativa de escuta, que tem a dupla função de possibilitar a máxima escuta pela tentativa de eliminar as interferências externas e permitir que a alma esteja calma para acolher a informação sem perturbação. “Daí a necessidade de uma atitude, uma atitude física muito precisa e tão imóvel quanto possível”. (FOUCAULT, 2006, p. 412) Uma atitude muito similar à do espectador no cinema, já que imobilidade e silêncio são exigências do ambiente cinematográfico para a melhor experiência fílmica. A bordo desse mesmo barco que Ulisses e Epicteto, Chion grita aos tripulantes:

As consequências, para o cinema, são que o som é, mais do que a imagem, um meio insidioso de manipulação afetiva e semântica. Quer o som nos trabalhe fisiologicamente (ruídos da respiração); quer, pelo valor acrescentado, interprete o sentido da imagem e nos faça ver aquilo que sem ele não veríamos, ou que veríamos de outra forma (CHION, 2011, p. 32).

Outra vez então, nos deparamos com a ilusão, com a escuta pânico que confunde os nossos sentidos e nos manipula a perceber algo novo, particular, impossível de ser apreendido sem o efeito desse ilusionismo. Efeito esse, que advém da consciência das imperfeições realísticas e da própria irrealidade do cinema. Principalmente os cineastas adeptos das teorias formalistas, se utilizam dessas limitações, conduzindo e organizando a visão do espectador pelo enquadramento dado à uma imagem, por exemplo.

“Para cada limitação da percepção natural há um ganho de percepção estética potencial” (ANDREW, 2002, p. 38).

Entretanto, e ao mesmo tempo, os teóricos realistas aparecem como uma contra corrente e uma crítica ao formalismo, argumentando que esses se interessam basicamente pela forma

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artística enquanto os realistas baseiam sua estética material na prioridade do conteúdo de um mundo visível espontâneo, de ocorrências acidentais. De acordo com o teórico Siegfried Kracauer, a função básica do veículo cinema seria “o registro e a revelação do mundo visível ao nosso redor” (ANDREW, 2002, p. 95).

Enquanto realista, Kracauer desenvolveu as noções de realismo e realismo registrado, vindo a considerar que os cineastas mostram as suas visões sobre a realidade, e então, passa a defender “um realismo humano, não de fato, mas de intenção”. (ANDREW, 2002, p. 98) Um dos mais importantes teóricos cinematográficos, André Bazin, se apoia na noção da psicologia de um realismo que “tem a ver, não com a acuidade da reprodução, mas com a crença do espectador na origem da reprodução” (ANDREW, 2002, p. 116). Descartava, assim, a pureza do real cinemático em relação à realidade de fato, mesmo afirmando que a mente do espectador está disposta a eliminar as diferenças entre o real e o reproduzido, e acreditar que o reproduzido é real. Isso é possível porque no cinema não há o objeto em si mas o seu “desenho” real e verificável, como um molde do objeto original. “Somos atingidos psicologicamente por tais desenhos porque eles foram, na realidade, deixados pelo objeto que nos fazem lembrar” (ANDREW, 2002, p. 117).

De forma sucinta, Bazin, entendia que a realidade bruta era a essência do cinema, mas que a matéria-prima não era a própria realidade, mas o seu molde marcado na película (e na tela), e que esses desenhos são compreensíveis pois são os mesmos que temos marcados em nossas memórias. Enquanto para os formalistas, o que constitui a arte do cinema é a transformação da realidade em abstração. Todos condenaram o apelo “cru” à realidade. O cinema se torna arte quando o ser humano molda inteligentemente o material cinemático, e transforma o real (ANDREW, 2002).

Já nas teorias mais contemporâneas, o francês Jean Mitry tenta fazer uma síntese das ideias realista e formalistas. Afirma que esses desenhos que nos fazem lembrar objetos, o que seriam imagens puras, possuem um sentido; e que uma sequência de imagens tem um significado representacional que o cinema constrói, referindo-se ao processo de montagem que interfere diretamente na ordem natural dos acontecimentos (ANDREW, 2002).

Uma diferença crucial da imagem cinematográfica em relação à do mundo real, é que a primeira pode ser trabalhada e ordenada a partir do desejo e intenção do cineasta. E se o cineasta organiza e relaciona as imagens de acordo com a sua vontade, do outro lado, o espectador se esforça em entender porque determinada imagem vem depois de uma primeira, empregando à sequência de imagens algum significado, a partir das relações feitas no seu

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intelecto. Um processo de criação de sentido que se inicia com a intencionalidade das relações criadas pelo diretor de cinema, e se completa nas relações percebidas e desenvolvidas pelo espectador. O teórico formalista Belá Balázs contribui para esse pensamento quando fala de um fluxo de significado que se mantem em paralelo ao fluxo de imagens, “mantendo-as juntas para a criação de um mundo humano e motivado” (ANDREW, 2002, p. 157).

Se considerarmos que a inteligência humana é fruto de impressão, memória e associação, o que permite que o cérebro sintetize e modifique as vivências humanas “através da interpolação de símbolos nas lacunas e confusões da experiência direta” (LANGER, 1989, p. 40); concordaremos com a filósofa Susanne Langer e com o autor de A História Natural da

Mente, em que a atividade essencial do pensamento humano é a simbolização. E nesse

sentido, Mitry entende que em realizações cinematográficas, num primeiro nível, o da percepção, a realidade não pode ser ignorada; e que no segundo nível, o da significação, composto pela sequência de imagens, é o homem:

com seus planos, seus desejos, seus significados, que faz com que esses análogos da natureza se submetam à própria necessidade insaciável de significar. Um novo mundo é criado pelo cineasta com a ajuda e cumplicidade do mundo real dos sentidos. Nenhuma outra arte fez isso (ANDREW, 2002, p. 158).

Nesses novos mundos do simbólico, criados em laboratório (na ilha de montagem e edição) por cineastas, os sons são os encarregados de gerar as atmosferas para esses mundos. Elementos sonoros que propiciam o ambiente particular de cada filme e influenciam o espectador na sua impressão de realidade ou fantasia. Pois “a verdade é que esta arte realista só progrediu por torções ao seu próprio principio e por golpes de irrealismo” (CHION, 2011, p. 48). Truques (técnicas) que se realizam na montagem, onde está, segundo o teórico e cineasta formalista Eisenstein, “o poder criativo do cinema, o meio através do qual as ‘células’ isoladas se tornam um conjunto cinemático vivo” (ANDREW, 2002, p. 53).

Enquanto Hollywood dava boas-vindas aos desenvolvimentos técnicos por causa do realismo adicional que proporcionavam aos espectador, Eisenstein procurava subverter o realismo natural do som, da cor e da fotografia tridimensional através da fragmentação ou ‘neutralização’ desses elementos, permitindo-lhes funcionar justapostos em contraponto com os outros elementos do filme (ANDREW, 2002, p. 55).

Na virada das décadas de 1920 para 1930, quando o sincronismo entre som e imagem se tornou possível; os teóricos e cineastas soviéticos, Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov,

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escreveram a “Declaração sobre o cinema sonoro”. Criticavam o caráter naturalista da utilização do som no cinema e propunham o uso polifônico do áudio em relação ao visual. O som deveria ser tratado como elemento de montagem cinematográfica, que introduz novos meios de expressão, não sendo apenas uma confirmação da imagem (EISENSTEIN, 2002a). Algo reforçado pelas ideias de Balázs quando defende que o cinema deve reconhecer o barulho, o ruído, como um de seus elementos; que os detalhes sonoros possam ser isolados do plano visual e organizados de forma objetiva na montagem, e dessa forma, o filme sonoro poderá se erguer como uma nova arte.

Trata-se, desde o nascimento do cinema sonoro sincronizado, de uma infinidade de novos recursos, a partir de então, à disposição da montagem – múltiplas possibilidades estruturais e estéticas de se utilizar o som nos filmes.

A forma mais comum de relacionar o áudio ao visual é pelo som diegético, o que quer dizer qualquer som que emana da história relatada (diegesis), conectado diretamente com o narrado pelas imagens, mesmo quando a causa sonora não está visível na cena, como os ruídos de ambiente, mas que compõem o enredo. Uma outra opção disponível ao montador e ao diretor de um filme é a utilização do som não diegético, que não se incorpora ao espaço-tempo da narrativa, não pertencente àquele mundo apresentado pela imagem; fácil identificá-los quando se percebe que os personagens da cena não escutam esses sons. Uma música pode ser não diegética quando, em uma sequência fílmica, não se pode identificar o seu mecanismo de origem; mas será diegética se na cena aparece uma vitrola com um disco a girar (FLÔRES, 2013).

Recursos de montagem/edição que manipulam o sentido, o significado de uma cena, auxiliando na construção da trama. Sons não diegéticos que podem ser empregados como possibilidade de novos modelos de cinema que não apenas a linguagem da narrativa clássica, como no cinema moderno surgido na década de 60 com filmes de Godard por exemplo, que com seus jump cuts10 e vozes off11, faz parte de um estilo cinematográfico que se coloca em contra a narrativa linear e a continuidade da montagem invisível. Por outro lado, sons diegéticos podem ser usados de modo criativo em um filme narrativo clássico para

10 Estilo de montagem usado por Godard em Acossado, que corta de um plano para o mesmo plano dando uma sensação de salto temporal-espacial.

11 Voz que não está presente no quadro ou na cena, pode se apresentar de várias formas, como o pensamento de uma personagem, uma voz não identificada que cumprindo o papel de narrador etc.

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alcançarem um sentido metafórico do som. Os estúdios de foley12 e a edição digital de som escancaram as possibilidades qualitativas da banda sonora em entregar um aspecto plástico singular à imagem (FLÔRES, 2013).

“Não há limite para o que um signo pode significar” (LANGER, 1989, p. 69).

Com essa ideia de montagem sonora voltamos à capacidade ilusionista do cinema, pois também a noção de fidelidade do som no cinema está associada às noções de representação e

reprodução. Chion considera que quando um som é reconhecido pelo espectador, o mesmo

não se preocupa em saber se este é o mesmo som que seria emitido no mesmo tipo de situação ou de causa na natureza. O importante é que o som represente (traduza, exprima) as sensações associadas a essa causa. Portanto “não existe qualquer razão para que as relações audiovisuais assim transpostas pareçam as mesmas que no real, e nomeadamente que os sons originais

reproduzam sons verdadeiros” (CHION, 2011, p. 79). (grifo nosso)

O autor desenvolve esse pensamento afirmando que a questão da representação sonora está associada à tradução de uma ordem sensorial para outra. Da ordem do tato para a audição, por exemplo. No caso de cenas que mostram algum objeto caindo, os sons exprimem as dimensões de peso e potência, que despertam sensações de violência e dor. E considerando os sentidos como canais, vias de passagem, Chion introduz o conceito de trans-sensorialidade no qual sensações artisticamente organizadas são transmitidas por um único canal sensorial e despertam outros sentidos ao mesmo tempo. Um fenômeno rítmico, por exemplo, que nos chega via olho ou ouvido atinge uma área cerebral associada à motricidade, onde o ritmo é decodificado e pode ser traduzido em movimento (dança). Chion explica que a visão fornece algumas informações que são exclusivamente visuais, como a cor por exemplo; e que o som também tem suas particularidades sensoriais apenas auditivas, como o timbre e o volume. Mas a trans-sensorialidade considera que essas são dimensões minoritárias, que o que há de fato entre os sentidos, é uma troca recíproca. Se trata de admitir ouvir com os olhos e ver com os ouvidos (CHION, 2011).

No entanto, a percepção sensível e complexa provocada pela junção entre imagem e som não é automática; é sim, suscetível a ser influenciada, reforçada e orientada pelos hábitos culturais de quem assiste/escuta. De acordo com Chion, a animação temporal da imagem pelo som não é um fenômeno puramente físico, os códigos culturais são importantes influentes

12 Sons produzidos a partir de variados matérias, gravados em estúdios por profissionais que simulam sonoramente o que é projetado.

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para criar as sensações desejadas. Uma música ou elemento sonoro culturalmente deslocado do seu cenário, pode não surtir o efeito desejado pelo realizador.

Uma participação efetiva das referências culturais de cada pessoa no momento da concepção, e depois, na percepção/interpretação do filme; o que levou Balázs a considerar que as criações fílmicas “não são fotografias da realidade, mas a humanização da natureza, a partir do momento em que as próprias paisagens que escolhemos como pano de fundo para nossos dramas são produtos dos nossos padrões culturais” (ANDREW, 2002, p. 82).

Padrões culturais e históricos dos envolvidos na relação sonora-visual do cinema, que são importantes pilares na construção de mundos fílmicos. Confecção simbólica que se inicia a partir das intenções de seus produtores, e concretiza-se na interpretação de cada espectador: uma viagem particular e subjetiva a partir da imersão nesses mundos fílmicos.

1.2 . OS MUNDOS FÍLMICOS

Via Lactea. Planeta Terra.

No século do cinema seres humanos que tiveram a possibilidade de se entregar ao ilusionismo audiovisual, puderam viajar pelo universo, visitar o passado e o futuro, puderam sonhar, sofrer e sorrir, puderam descobrir o outro e também enxergar a si próprios.

Para entender o mundo criado em cada filme é preciso analisar a sua composição

cósmica. A análise fílmica é uma atividade de destacar materiais que não se percebem

isoladamente em experiência fílmica descompromissada. O analista observa de modo ativo, consciente da ilusão audiovisual, e examina técnica, estética e simbolicamente o filme. E “se considerarmos o cinema como arte, é situar o filme em uma história das formas fílmicas” levando em consideração o contexto histórico em que cada um desses mundos foi gerado (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 23).

Imagem em movimento. Mundo em movimento.

Períodos históricos são períodos de transição; nas palavras do filósofo Lukács, “contraditória unidade de crise e renovação, de destruição e renascimento; uma nova ordem social e um novo tipo de homem surgem no bojo de um processo unificado embora contraditório” (apud XAVIER, 2005, p. 60). Um novo sujeito que na sua ação de representar

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o mundo artisticamente revela a sua “consciência de mundo” e o que há de essencial no momento/movimento histórico da obra fílmica.

Um trem chegando à estação. Os operários saindo da fábrica.

A imagem em movimento foi uma grande invenção, mas desde o século XVII imagens projetadas por um foco de luz eram acompanhadas por vozes e efeitos sonoros. A partir de 1894, quando os irmãos Lumière na França e Thomas Edison nos Estados Unidos desenvolvem aparatos de gravação e reprodução de imagem em movimento, até 1905 (alguns estudiosos apontam 1904, outros 1906), durante a fase chamada de cinema de atrações, a maioria dos filmes eram compostos por apenas um plano: os produtores se dedicavam a filmar planos individuais, os rolos com cada plano eram vendidos separadamente, e o exibidor controlava a ordem (e também a velocidade) em que os planos seriam projetados. Durante os seus primeiros vinte anos de existência, “por estar misturado a outras formas de cultura, como o teatro, a lanterna mágica, o vaudeville e as atrações de feira, o cinema se encontraria num estágio preliminar de linguagem” (COSTA, Flávia, 2006, p. 22).

As “costuras” entre planos começam a ser experimentadas na fase que se conhece como período de transição, entre 1905 e 1915. Quebra-cabeças narrativos que intentam construir histórias autoexplicativas que dispensem a figura do “apresentador” da lanterna

mágica. Com isso os filmes passam a ter uma maior duração e o cinema passa, de um sistema

colaborativo de produção, a se organizar de forma mais industrial com divisão de trabalho, definindo as especificidades das várias funções que envolviam a produção e exibição dos filmes. Em decorrência dessa organização, as formas de como costurar os planos, enquanto novas estruturas narrativas, que primeiramente podiam deixar os espectadores ainda confusos, passam a ser repetidas seguidamente nas produções fílmicas desse período de transição e vão se tornando convenções de uma linguagem exclusivamente cinematográfica. Esse é o momento (mundo em movimento) em que há um desenvolvimento de técnicas de filmagem, iluminação, encenação e montagem (COSTA, Flávia, 2006).

“André Malraux [...], aponta o corte dentro da cena como o ato inaugural da arte cinematográfica” (XAVIER, 2005, p. 29).

Nos Estados Unidos da América, David W. Griffith desenvolveu uma montagem pautada em paralelismos, implantando uma forma narrativa que evoluiria até a montagem invisível do cinema clássico. Além de alternar entre diferentes linhas de ação, o que pode criar suspense e emoção, o estadunidense também usou a montagem paralela para conseguir

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diferenciações dramáticas, desenvolver psicologicamente os personagens e sugerir julgamentos morais. Através de contrastes marcados entre bons e maus, exploradores e oprimidos etc., a montagem manipula as linhas narrativas relacionando-as com as motivações dos personagens, e assim, invoca o espectador a tirar conclusões morais sobre a trama e os personagens (COSTA, Flávia, 2006).

Georges Méliès levava o público à viagens oníricas na França e os estúdios franceses ampliavam as possibilidades de rotas de viagens por filmes dramáticos, históricos e comédias para além das películas de truques mágicos. Mas com sua moralidade polarizada e pela defesa da ordem social, o melodrama foi o tipo de filme que mais dominou a cena do começo do século XX (COSTA, Flávia, 2006).

“Depois de outubro, não veio a bonança. Entre 1917 e 1920, as ainda não consolidadas repúblicas socialistas soviéticas mergulhavam numa dura guerra civil. No olho do furacão, os futuros protagonistas do cinema, [...] começavam suas carreiras nas fileiras do Exército Vermelho” (SARAIVA, 2006, p. 109). Lev Kulechov e Dziga Vertov eram colegas de trabalho na produção de noticiários cinematográficos para os fronts de batalha e os trens de propaganda. Sergei Eisenstein largou os estudos de engenharia para organizar espetáculos teatrais para os soldados.

Kulechov era um empirista. De suas experiências já conhecemos o principio da justaposição: da relação e influência mútua entre planos combinados que resulta no significado de um conjunto. Mais ainda, o soviético desenvolveu as ideias de “geografia criativa” e de “corpo cinematográfico”. Seguindo os princípios de continuidade do cinema norte americano – regra do eixo, campo e contra-campo, continuidade (sentido) do movimento –, planos são filmados com atores em locações diferentes e, quando montados na ilha de edição, alcançam a abstração do espaço real compondo então um espaço fílmico, uma “geografia criativa”. Ou seja: lugares diferentes, filmados em momentos distintos, que pela justaposição desses planos e seu significado de conjunto adquire a concepção de um novo espaço, exclusivamente cinematográfico. Algo parecido é demonstrado na sua outra experiência, na qual foi possível esculpir, durante a montagem, um “corpo cinematográfico” composto por planos de diferentes mulheres reais (SARAIVA, 2006). E para sedimentar essas ideias podemos retornar à ideia defendida por Münsterberg quando afirma que o filme em si não existe nem na película nem na tela de projeção, o filme só existe na mente de quem o assiste; então tratam-se de experimentações e descobertas que contribuem para o ilusionismo audiovisual.

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É nesse tipo de pensamento que nos apoiamos para explorar a ideia de mundo fílmico, de que cada filme constrói um mundo particular. Pois se é possível a construção de um espaço e um corpo cinematográfico, podemos concordar que o conjunto de recursos da linguagem cinematográfica opera para transportar o espectador a um mundo fílmico, no qual se desenrolará um enredo com esses corpos cinematográficos habitando e se relacionando nesse

espaço fílmico. Um mundo concebido num cosmos cinematográfico, com regras e limitações

próprias do cinema, mas que é atravessado pelo (e atravessa o) mundo real; mundo que faz do mundo real (ou dos desenhos que o mundo real nos deixa, como vimos antes) a sua matéria prima; onde é preciso que uma atmosfera determine o “clima” de cada um desses mundos, em que nos atrevemos a dizer que essa camada de ozônio é constituída por vibrações acústicas, ou seja, onde a atmosfera é sonora.

Com muita polêmica e contraditório, na virada da década de 1930, o surgimento do cinema sonoro foi um passo importante para refinar o sistema de ilusionismo do cinema e tornar esses mundos ainda mais críveis. Agora, não só vemos pelos múltiplos planos bem construídos pela fotografia, como também escutamos a “entonação” que exprime a emoção da voz, os ruídos que entregam corporeidade à imagem (na relação causa-efeito sonoro) e as peças musicais, que então puderam ser completamente controladas pelos realizadores (COSTA, Fernando, 2006; XAVIER, 2005).

O estabelecimento efetivo de uma relação espaço-tempo propriamente áudio-visual. Para a construção de um ambiente “natural” característico da decupagem do cinema clássico, a dimensão sonora é uma substancial contribuição. O som ampliou os limites do quadro filmado (ações fora de quadro, vozes em off...), possibilitou uma melhor percepção da dimensão de distância dentro do plano; auxiliou na coesão da continuidade das ações no mesmo espaço fílmico (principalmente quando filmados em lugares diferentes): a manutenção dos ruídos de um ambiente entre um plano e outro indica que a ação continua naquele mesmo lugar e no mesmo momento continuo; e por outro lado, o som contribui também para deixar claro, por descontinuidade, quando ocorre uma mudança de um local (espaço) para outro e de um momento (tempo) para outro (CHION, 2011).

De tal modo que imagem e som, podem então, serem considerados como elementos integrantes de mesmo nível na linguagem cinematográfica, e torna-se limitada a proposta de um cinema formado por imagem e mais alguns acessórios. Pois “construir um espaço-tempo através da combinação de imagens define um tipo de trabalho, enquanto que construí-lo através de imagens e sons é algo qualitativamente diferente” (XAVIER, 2005, p. 37). A

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