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"Mansos como cágados": a companhia do Mucury e os índios

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Academic year: 2021

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UNI VE RSID ADE F E DER AL DA BAH I A

FACUL DADE DE F ILOSO FI A E CIÊ NCIAS HUM AN AS PROG RAM A DE PÓS-GRADUAÇÃO E M CIÊNCI AS SO CIA I S

"M A NSOS COM O CÁ GADO S": A COM PANHI A DO M UCURY E OS ÍNDIO S

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Unive rsidade Fe dera l da Bahia

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

" MANSOS COM O CÁ GA DOS" : A COM PANHIA DO M UCURY E OS ÍNDI OS

Disse rtação apresentada ao Programa de Pó s-Graduação em Ciências Sociais da Uni ve rsidade Fe dera l da Bahia como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais/ Ant ro pologia .

Orienta dor: EDWI N REE SI NK

WENDER SILVEIRA FRE ITAS FE VEREIRO DE 200 8

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BANCA EXAM INA DORA:

Prof . Dr. Edwin Reesink ( Orien tador) Unive rsidade Fe dera l da Bahia

Prof essora Dra. Maria Rosário Gonçal ves de Carvalho Unive rsidade Fe dera l da Bahia

Prof essora Dra. Luisa Elvira Belaunde Unive rsit y of St And rews/ Escócia

Salvador, Bahia Fe verei ro de 2008

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RESUMO

A Companhia de Navegação e Comércio do vale do Mucury funcionou na região nordeste de Minas Gerais nos anos de 1850 e proporcionou significativo avanço na colonização desta região, até então conhecida como "matas do leste" e território de índios "hostis". Este trabalho procura explorar parte da documentação disponibilizada pela própria Companhia do Mucury e esclarecer algo de sua postura "pacífica" no que se refere às relações com os índios. Para tanto, apresentaremos um esboço do contexto em questão destacando as imagens dos índios do vale do Mucuri no século XIX produzidas por historiadores, antropólogos e viajantes, além de apresentar o debate sobre as formas de catequese e civilização dos índios nesse século. Num momento posterior destacamos alguns estudos sobre as relações entre a sociedade brasileira e as sociedades indígenas localizadas no Brasil procurando melhor definir o objeto em nossa análise. Em seguida apresentamos a Companhia do Mucury e "seus" índios a partir dos documentos produzidos pela Companhia, Falas e Relatórios dos presidentes da Província de Minas Gerais e outros textos pertinentes ao tema, destacando as idéias e práticas indigenistas que pretendemos atribuir a essa empresa de navegação, comércio e colonização. Concluímos com algumas considerações sobre o lugar dos índios na documentação analisada e sobre a importância da alardeada benevolência no trato dos índios nos projetos mais amplos da Companhia do Mucury.

PALAVRAS-CHAVE: INDIGENISMO, RIO MUCURI, MINAS GERAIS, SÉCULO XIX, ANTROPOLOGIA.

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AGR ADE CIM E NT OS

Gostaria de expressar minha gratidão àqueles que me estimularam a concretizar este trabalho e que proporcionaram as "devidas condições" para sua realização.

Na Universidade Federal da Bahia, a receptividade, o estímulo, a paciência, a generosidade e confiança dos Professores Edwin Reesink e Maria Rosário Carvalho foram fundamentais. Participar do grupo de Pesquisas sobre os Povos Indígenas do Nordeste (PINEB) e ter a oportunidade de aprender com os Colegas e Professores têm sido uma experiência gratificante. Agradeço a Patrícia Navarro pela disposição em dividir seus conhecimentos sobre os Índios na Bahia, pelas 'histórias de campo' e amizade.

A bolsa concedida pela FAPESB foi fundamental para me estabelecer em Salvador como estudante e me dedicar à pesquisa.

Na Universidade Federal de Minas Gerais os Professores Ruben Caixeta de Queiroz, Léa Perez Freitas e Leonardo Fígoli me iniciaram na Antropologia e mostraram vários caminhos a seguir (e eu nem sei se segui algum...).

Alice Soares Guimarães, Beatriz Filgueiras, Emerson Maciel, Taís Garone, Vinícius Magalhães, Alexandre Farid, Lolinho, Patrícia Bittencourt, Max e Carolina Bastos, Tatiana Frinhani, Germana Arthuzo, Salina Figueiredo, Gilberto Yunes e Daniele Pereira ajudaram de várias maneiras. Obrigado a todos pelo estímulo!

Amélia Cândida dividiu comigo seu refúgio "nas alturas" em todos os momentos em que precisei, sempre com muito carinho e paciência. Sem seu apoio seria mais difícil!

Clara Lourido fez companhia no "exílio voluntário", bebemos bons cafés e falamos de coisas importantes para esta e outras dissertações imaginárias.

Amelinha e Dilbert fizeram companhia mesmo a milhares de quilômetros de distância!

Meus pais e minhas irmãs, sempre respeitosos, pacientes e generosos me deram o mais importante.

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ÍNDI CE

INT RODUÇÃO. . .. .... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... . 8

PART E 1

APRE SE NT AÇÃO DO PROBLE MA. . .. ... .. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... . 12

PART E 2

O V ALE DO M UCURI NO S ÉCULO XIX: UM SÓ OU VÁRIOS PR OJE TOS PARA OS ÍNDIOS? VÁRI OS INDIOS, VÁRIOS AGENTE S DA CO LONIZAÇÃO, DI VERSAS RE LAÇ ÕE S. . .. ... ... ... ... ... ... ... .... ... ... ... .. 30

PART E 3

EL M ARC O TE OR I CO, OU COM O PE NSAR O TR A TO DOS ÍNDI OS NO BRASI L. . . .. ... ... ... ... .. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. 55

PART E 4

OS Í NDIOS NA DOCUME NT AÇÃ O DA COM PANHI A DO MUCURI, N AS FALAS E RE LATÓRIOS D OS PR ESIDENT E S DA PROVÍNCI A DE M INAS

GERAIS E OUTROS D OCUM EN TO S PERT I NE NTE S AO

CONTEXTO. . ... ... ... .. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. 72

CONSI DE RAÇÕE S FINAI S

" MANSOS COM O CÁGA DOS" : A COM PANHIA DO MUC URY E OS ÍNDIO S NO SÉCULO XIX. . . .. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. 101

DOCUMENTOS E SITES

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INTRODUÇÃO

No ano de 2007 foi comemorado o bicentenário do nascimento de Teófilo Otoni com uma ampla programação na cidade que leva seu nome no estado de Minas Gerais, incluindo debates entre os estudiosos de sua biografia, discursos de políticos locais, apresentações musicais, festival gastronômico, desfiles de moda, lançamento do selo comemorativo desse bicentenário1, entre outras atividades. Um evento que deixaria orgulhoso o fundador da antiga Philadelphia (primeiro nome da referida cidade) e desbravador de toda uma região.

A celebração dos 200 anos de nascimento do ilustre político mineiro também propiciou a publicação de alguns documentos da sua Companhia de Comércio e Navegação do vale do Mucuri, bastante oportuna. Tanto pela importância conferida pelos historiadores a essa empresa e seu fundador, quanto por tornar mais acessíveis textos fundamentais sobre o contexto em que atuaram2.

Interessante notar que as referências a esse contexto (o vale do rio Mucuri) são, ainda hoje, relativas a certo "subdesenvolvimento" da região. Não é raro ver na imprensa mineira (jornais e redes locais de televisão) comentários sobre a necessidade de levar o progresso a esta região, ainda tão carente. A recente criação, pelo governo do estado de Minas Gerais, da Secretaria de Estado Extraordinária para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri e do Norte de Minas também indica a persistência desse tema nos discursos oficiais desde, pelo menos, a década de 1830, como pudemos ver nos documentos consultados para a realização deste trabalho.

Boa parte da fama de Teófilo Otoni vem dessa sua iniciativa ousada e pioneira de criar uma empresa de comércio e colonização e do relativo sucesso desse empreendimento,

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que pode ser avaliado pelos eventos que apresentamos acima e pela posição de destaque do município que leva seu nome, centro comercial consolidado do Mucuri. Vários autores destacaram, como veremos, que os planos de Otoni eram ainda mais ousados: não pretendia apenas o comércio, visava também a criação de uma nova província na região incluindo uma parte ao sul do território que hoje pertence ao estado da Bahia e o norte do Espírito Santo. Tudo isso temperado com os ideais liberais que o acompanharam desde sua primeira temporada no Rio de Janeiro e, posteriormente, na sua vida pública como Deputado e Senador, como bem descreve Paulo Chagas (1978), transformando-o em "ministro do povo".

Em poucas palavras, o Teófilo Otoni que chegou ao século XXI merecendo celebrações, tanto da sua vida quanto de seus empreendimentos, é o político e empresário, defensor de ideais liberais, como já dissemos, e das iniciativas privadas (ou particulares) de colonização e exploração comercial de uma região até então inculta. Sua Companhia do Mucuri seria o palco para a realização desse enredo liberal.

Contudo, Teófilo Otoni e a Companhia do Mucury interessam ao trabalho que aqui se apresenta por motivos distintos dos acima citados. Na verdade, o interesse por esses atores e esse palco começou por um aspecto menos abordado, mas não menos marcante, da atuação de Teófilo Otoni e da sua Companhia do Mucury, a saber, suas relações com os índios. Vale notar que na programação das já referidas comemorações do bicentenário de seu nascimento não encontramos nenhum debate ou palestra referentes aos índios no celebrado contexto, assim como a presença indígena na região é considerada "algo do passado", como pudemos perceber em conversa com algumas pessoas nascidas na cidade. De resto, vemos imagens de índios na ilustração do já aludido selo comemorativo dos 200 anos de nascimento de Otoni e em placas de algumas pousadas na estrada que liga a cidade de Teófilo Otoni ao litoral baiano, cuja construção foi dificultada pelos "célebres botocudos" à época de atuação da

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É preciso ressaltar que este trabalho não é sobre os índios. Nosso interesse está na forma pela qual estes eram tratados pelo empreendimento otoniano e nas suas peculiaridades, como veremos.

Este trabalho foi divido em cinco partes, na forma apresentada abaixo.

Partiremos de uma Apresentação do Objeto, na qual expomos o problema que orienta este trabalho, delimitando nosso campo de estudos e esboçando algumas perguntas sobre a especificidade da Companhia do Mucuri em suas relações com os índios do vale do Mucuri no século XIX.

A segunda parte é dedicada a uma apresentação do vale do Mucuri no século XIX, destacando algumas imagens da região, dos índios e dos colonizadores (em suas relações) que se consolidaram nas obras de historiadores, viajantes, antropólogos e que foram forjadas em vários contextos, "entre o gabinete e o sertão" (Monteiro 2001), e amplamente debatidas.

A terceira parte procura apresentar as contribuições da Antropologia feita no Brasil aos estudos das relações entre a sociedade nacional e os povos indígenas e sobre a importante contribuição "indígena" para a construção de um Brasil moderno. Destacaremos as varias faces desse "sistema interétnico" para melhor definir a que nos interessa aqui: a atuação de agentes da colonização nas famosas frentes de expansão, na expressão "clássica" (para alguns já "ultrapassada") de Darcy Ribeiro. O objetivo dessa terceira parte é inventariar ferramentas possivelmente adequadas ao trabalho que tentamos realizar, privilegiando uma bibliografia brasileira sobre este assunto.

Na quarta parte analisaremos a documentação produzida e ou publicada pela Companhia do Mucury, frequentemente assinada por seu diretor-fundador, e outros documentos produzidos por autores externos à Companhia. Pretendemos mostrar, de algum modo, o empreendimento visto "por dentro" e "por fora", incluindo aí referências aos

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documentos oficiais, especialmente as Falas e Relatórios dos presidentes da província de Minas Gerais3. O viés dessa abordagem é, claramente, o das relações da Companhia e de outros particulares com os povos indígenas do vale do Mucuri em meados dos anos de 1800, procurando melhor definir o modelo de ação indigenista posto em prática pela Companhia do Mucuri em suas atividades de comércio, construção civil e colonização e propaganda

A ultima parte, as Considerações Finais, procura articular as idéias centrais da dita atuação indigenista da Companhia do Mucury ao seu contexto histórico e à continuidade das idéias de "integração" de populações indígenas no Brasil, demonstrando a centralidade da ação dos brancos na vida dos povos indígenas e vice-versa4.

Por ultimo, mas não menos importante, é o fato de que este não é um trabalho que pretende o adjetivo "histórico". Retomamos o século XIX para o estudo de um caso que nos pareceu um tanto "fora de lugar" nos estudos do indigenismo e sua história no Brasil. Também deixamos de lado outras questões, como a colonização, que surgem quando se estuda o "mosaico" de interesses e etnias que era o vale do Mucuri no período em questão. O que queremos proporcionar é uma imagem mais clara da Companhia do Mucury como um agente indigenista, "limpando" territórios, "amansando" índios e levando "segurança" ao projeto de colonização das matas do Mucuri. Vale lembrar que essa minha história com o Mucury já vai um tanto extensa se considerar que esta dissertação é o desdobramento de um projeto iniciado na graduação, que resultou em um primeiro trabalho onde fiz as primeiras incursões ao Mucuri.

3

Ver lista de documentos consultados.

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Se falo da transformação/pacificação dos índios é preciso alertar para a "precariedade" desse processo. O trabalho de Isabel Misságia (2006) sobre a revolta dos índios do aldeamento capuchinho de Itambacuri é esclarecedor das dificuldades da "catequese e civilização dos índios". Nessa "revolta" os índios destruíram o

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PART E 1

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Annu ncio-vos com grande contentamento que houve cessação completa das hos ti lida des, e espero que d'ora em diante reine perpetua paz entre os novos habit adores , e os indígenas do Mucury. Essa s cabildas de Índios antropo phagos residentes na cordilh eira da serra das Es meraldas, e de que tão medonha pintura faz em todos os histori adores do Brazi l, os descendentes dos ferozes Abati ras, e Aymorés es tão, s egundo a eloqüente phras e de um de seus caciques, tão mans os como os kágados.

Teófilo Otoni Relatório aos Acionistas da Companhia do Mucury em 1856

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A p roposta deste t rabalho é explo rar a documentação p roduzi da pela Companhia de Co m ércio e Nave gação do Vale do Muc ur y, que fu ncionou em meados do século X IX, destacando as re f erências aos modos de trata mento das populações i ndígena s. Mais que uma mera empresa de comércio e coloni zação, a Cia. do Mucur y dest aca-se no cenário indigenist a do século XI X ao pro po r, por meio de seu fundado r e diretor, Teófilo Otoni, orientações n o sentido de manter contatos ‘pacíficos' com os indí genas da região.

Num c ontext o marcado por guer ras de extermínio, esc ravi zação e aldeamentos f orçado s do s índios, o discurso de Teóf il o Otoni5 e a prátic a indigenis ta atribuí da à sua Companhia destacam-se, a princí pio, como di vergentes do que se entende hoj e como o ordinário naquela regiã o du rante a primeira metade século XI X.

Partindo da historiografia da região que aponta para um contexto de franca hostilidade e interesse em ocupar as terras infestadas de selvagens, encontrar um texto publicado em 1859 (Otoni 2002[1859]) tratando desses selvagens e defendendo uma ação pacífica frente a eles foi, no mínimo, instigante. Relacionar, posteriormente, esse texto a uma empresa privada permitiu antever o trabalho que aqui apresentamos.

A Companhia de Comercio e Navegação do vale do Mucury, sociedade anônima criada pelos irmãos Honório e Teófilo Otoni em 18476 foi um empreendimento que veio incrementar e acentuar o processo de colonização da região Nordeste e Leste de Minas Gerais7.

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Teófilo Benedito Ottoni (Nasceu na Vila do Príncipe (atual Serro) em 27 de janeiro de 1807 e faleceu no Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1869) foi um jornalista, comerciante , político e empresário brasileiro.Foi deputado provincial por Minas Gerais, deputado geral e senador do Império do Brasil de 1864 a 1869 e fundador do município de Teófilo Otoni (Minas Gerais), localizado a 470 quilômetros de Belo Horizonte. Foi um dos principais líderes da Revolução de 1842 em Minas Gerais.Também foi o fundador da Estrada de Ferro

Bahia-Minas, que ligava o norte de Minas ao sul da Bahia.(fonte:

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A implantação dessa Companhia insere-se num contexto de favorecimento dos proj etos que visasse m à coloni zação per manente da re gião, que até o f inal do século XVIII e início do XIX era incipiente. Essa região era considerada “zona tampão” pela Coroa Portuguesa, que procurou mantê -la selvagem e desabit ada, evitando que a mesma servisse de caminho para o contraban do do ou ro extraído na re gião central da Pr ovíncia (Paraíso 1979 ).

O pe ríodo em que a Companhia do M ucury atuou na re gião estaria marcado, se segui rmos o discu rso de Te ófilo Ot oni e al guns histo riadores, po r uma mudança no t rat o das populações indíge nas e por si gnif icativos avanços no processo de colonização (M arcato 1979, Horta 1998, Mattos 2006). As estraté gias de ocupa ção da região até a primeira metade do sé culo XI X def iniam -se em atitudes “hostis” para com os indí genas (guerra j usta declarada aos Botocudos p or Carta Régia em 180 8, aldeamentos compu lsórios em quartéis ou em missões reli gio sas) e, segundo Carneiro da Cunha (1992 ), todos o s proj etos e práticas em relação aos índio s no século XIX visa vam s ua integração po r quaisque r meios. Entretanto, ainda seguin do o discurso de Oto ni, teríamos com a Cia. do Mucur y um “plano pacífico de civil ização”, ou uma nova catequese (Otoni 2002 [1 859] ) que dá, como pretendemos demons tra r, outros mati zes a essa integração inevitável que persegue índios, historiadores e antrop ólogos.

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Apesar da referência a Minas Gerias, vale notar que a atuação e influência da Cia. do Mucury se estendia às províncias da Bahia e Espírito Santo. A isto se soma o projeto de criação de uma nova província que abrangeria parte dessas três (BA, MG, ES) e que, poderia ter em Philadelphia (a cidade que surgiu das atividades na Cia. do

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D e t a l he d o f ol d e r c om a p r o gr a m a ç ã o d os e ve n t os r e l a c i on a d os a o b i c e n t e ná r i o de na s c i m e n t o d o f u n d a d or d a C om p a n h i a d o M u c ur y r e a l i z a d os n a c i d a de d e T e óf i l o O t on i (a n t i ga P h i l a d e l p h i a) n o s e gu n d o se m e s t r e de 2 0 0 7.

É imp orta nte desta car o luga r dado aos índ ios nesse processo de coloni zação. Mesmo antes da ocupação sistemática das “matas do leste” os índios eram vist os como obstáculo a ser superado/solucionado por tal proj eto8.

M ais uma ve z, as figuras de Teóf ilo Otoni e sua Cia. do Mucury se enquadram nessa problemática por uma postu ra 'diferenciad a' no que se refere aos proj etos e soluções apresentados.

Part ind o dessa idéia dos índ ios c omo obstáculo para a col o nização, da caracterização do sé culo XIX como hos til aos selvagens (Carneiro da C unha, 1992) e da p resença constante de ref erências n ova catequ ese dos í ndi os na

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documentação sob re a Cia. do Mucury e Teóf ilo Otoni9, podemos aponta r o obj eto da pesquisa: o entendimento da utilização de discurs os f avorá veis a relações pacíficas com os índi os e di ve rgentes d o que é considerad o usual n o períod o.

Assim, a il ustração que apresen tamos no início desta seção10 é uma b oa ref erência de um dos po ntos do qual se ocupa este trabalho, a saber, o lu ga r de destaque dad o a Te óf ilo Otoni e à Cia. do Mucury na hi storiograf ia como um def ensores dos selvagens e a compreensão dessa postu ra " pró-índio" no context o em que se deu.

Como veremo s, a questão indí gena se tra duz, no decorrer d o século XIX, ora n uma pol ítica in di genista hosti l, ora num vácuo em term o s de o rientação de política indi geni sta, ora em um i ndi genismo ‘empírico’ e ‘ pra gmático ’ (Ma rcato, 1979). É esta últim a postura frente ao s índio s que p rocuramos destacar neste trabalho.

Para trata r da Companhia de Comércio e Navegação do vale d o Mucury e suas relações com sociedades indí genas que ocupa vam essa re gião temos como princi pais f ontes alguns dos textos deixados pelos seu s empreendedo res, documento s admini strati vo s da próp ria Companhia, os Relatóri os e Falas do Presidente da Província de Minas Gerais11; além de trabalhos de historiad ores e antrop ólogos que se ocuparam da temática indígena e da colonização no leste e nordeste de Minas G erais no sécul o XIX e com a p rática e p ol ítica indi ge nista no Brasil.

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Da leitura dos documentos e da biografia de Otoni percebe-se seu lugar central na direção da Cia. do Mucury e na elaboração dos relatórios e outras comunicações produzidas.

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A " Falla diri gida à Assembléa Legisl ati va Provinci al de Mi nas Geraes na sessão o rdinária do ano de 1837 pelo Pres idente da Província Ant ônio d a Costa Pinto" é bastante esclarecedora da situação social e econômica no períod o que antecede a im plantação da Com panhia do Mucur y. Percebemos nesse documento ref erências ao dito " vazio populacio nal" na Pr ovíncia de Minas Gerais e a primeira s olução proposta é a " emigração de braços úteis, prestan tes e afeitos ao trabalho" . Um se gundo procedimento para o aumento populacional (na verdade, anterio r à chegada de imi grantes) se ria o da " Catequese, e civilização dos in dí genas" , título de uma das seções da Fall a de 1837 que transc re vemos a seguir:

" Nossa população receberia um consi derá vel augmento se conse guíssemos ar ra ncar das mattas, e trazer á civilização as hor das Sel vage ns, que por ellas andão errantes, carecidos das primeiras noções, q ue impellem os h omens á f or marem, e suj eitarem-se á uma ordem, e direção regular.

Po r Decreto de 6 de Julh o de 1832 mandou-se cr iar nesta Proví ncia um Colle gio de educação, destinado á inst rucção da mocidade indiana. Este p roj eto seria talve z exeqüí ve l, e van tajoso, se, depoi s de al gumas exper iências, e removida s poder osas dif iculda des, se escolhesse o luga r (. . . ) Para este estabelecimento nenhum l ugar me pa rece mais apro priad o, como as margens do rio Doce, onde já existe o Corpo das Di vis ões, creado pela Carta Regia de 13 de maio de 1808 e cu j o f im pri ncipal é def ender os colo nos, e pr ote ger suas pro prieda des das incursões e hostildades dos indíge nas. Nesta situação não é pos sí vel deixa r de reconhecer- se, que, com quanto os soldados das Divisões, por ignorantes, cor rom pid os, e pouco menos bárb aros que os Selva ge ns, sej ão incapazes de lhes dar exempl os de civili zação, toda vi a, entretendo relações com muito s d'elles, podem cooperar ef ficazmente para os chamar a vi da social. Sendo este o esta do das cou zas, pare ce, que alguns Mi ssio nários, pr ote gid os pelo Corpo das Di vi sões, e auxiliados por aquelles solda dos, que fallão a lin goa d os indí genas, pode rião, uzando mode radamente os recursos da reli gião, e ser vi ndo -se de outr os meio s, que accomodados f ossem á capacidade intellectual desses homens er rantes, colh er os melhores resulta dos, á exemplo dos Jesuítas, que, por ocasião da descobe rta da Amér ica, fizerão das ho rdas de

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Podemos ver pelo exposto acima que a idéia de " catequese" apresentada e defendida pelo presidente da província era um proj eto/ação que envol via vár ios atores de várias esf eras de poder, indo muito além da catequese estritamente religi osa.

No texto desse d ocu mento a definição da " catequese" parte do proj eto de um colé gio " de educação" para a " mocidade indiana" ; a localização f ísica proposta para esse empreendiment o ed ucacional indí gena coincide com a localização de uma das Di vi sões Mili tar es que foram def ini das pela famosa Carta Régia de 13/08/1808 que declarou guerra just a aos indom áveis índios da re gião n or deste da Província, as m attas ou s ertões do les te. . Essa def iniçã o de " catequese" possui ainda outros elementos que asseguram suas peculiaridades, a sa ber, o u so de militares pouco menos bárbaros que os Selvagens empre gando modera da mente o s recur sos da reli gião em sua missão de " catequizar" e transf orma r em braços úteis esses índios.

À época dessa " Falla" (1837) a col oniza ção do vale do Mucuri ainda era incipiente. Os planos para a re gião se limitavam a uma colônia de degredado s, muito embora as ref erências às ri que zas natu rais da região sej am vistas com o uma pa s mosa fertili dade à espera da mão d o ho mem i ndustrio so. Contu do, a presença indí gena é destacada no texto e considerada útil ao projeto da colônia de degredados: " com poucos Destacam entos seria f ácil conter os degredados, que não poderi am evadir -se, se não pelas mattas ocupadas por Sel va gen s mui deshumanos" (Idem: XXI II ), disse o " bem-humorado" presidente da pro ví ncia.

Segundo Izabel M. de M attos (200 6) , o interesse dos Otoni na exploração econômi ca do vale do Mucuri de veu-se à pe rcepção de que o fluxo

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mi grató rio se direcionava para esta re gião; estimula r o s pionei ros, especialmente colonos europeus, dando -lhes condições para sua f ixação, era o principal obj etivo da Companh ia do M ucur y. (Mattos, 2006:106)

A chegada de imi grantes eur opeus seria, como podemos ve r nos documento s consult ados, a " base" do desen vol vimento re gi onal contri bui ndo para a ‘civilização dos sert ões do leste’ de Minas Gerais. Da per specti va da empresa de col oni zação, era necessário povoar aquelas matas desert as e germanizar o vale do M uc uri. Veremo s à f rente que a i nstalação de colonos alemães no Mucuri tornou-se uma das maiores dif icul dades encontradas pela Cia. do Mucury, sendo citada como uma das causas do f im de suas ati vidades12 [O tema da colonização do vale do M ucuri ap resentou-se, enquanto compulsá vamo s a documentação relati va à Companhia, como mais freqüente que a temática indí gena, que nos inte ressa aqui. P rocu ramos destacar as informações relati vas aos índi os para utiliza rmos e m nossa análise. Toda via, as questões relati vas à col oniza ção se farão presentes de al guma ma neira, mesmo q ue implícita] .

A utili zação de mão-de- ob ra escrava indígena estava fo ra dos planos da Companhia do Muc ury, sendo o usuf ruto da te rra por col onos brasileir os e estran gei ros e as ati vi dades come rciais que daí se desen volve riam o foco desse empreendiment o. O i nteresse nas populações indí ge nas se lim itava a suas ter ras e à utilização de sua mão-de -obra (como alternativa pro vi só ria, é preciso destacar) 13, até a chegada dos braços úteis dos imi grantes.

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Nesse contexto su rge a necessidade de se elaborar estratégias de interação e cuidar da inserção das populações indí genas no p rocesso de expansã o da sociedade nacional. Essa necessida de emer gente (quando relacio nada às populações in dí gena s) será tratada com o indigenis mo ou prática indi genist a, provisoriamente no s termos de Antoni o Carlos Souza Lima: “o conj unto de idéias e ideais (isto é, aquelas idéias elevadas à quali dade de metas a serem atin gidas em termos práticos) relati va s à inserção de povos indí genas em sociedades subsumi das a Estados nacionais, com ênf ase especial na formulação de métodos de tratamento das populações nativas” (Souza Li ma, 1995: 14-15 ).

A impo rtância de uma prática indi genista adeq uada à p roposta de ocupação perma nent e da região é destacada por Marcato (1979), seguindo o modelo de Darc y R ibeiro para caracterizar o tipo de conta to que ocorreu na região (no caso, vê-se a passagem de um contato i ntermitente para um permanente) pro vocado por uma frente de expans ão:

“A empresa de coloni zação dos Ot oni naquele vale demanda va, para ter êxito, a pacif icação de indígenas considera dos até ent ão hostis e arredios e cuj as terras seriam ocupadas por um projeto bastante di stinto da ocupação esporádica até então vi gente nas marge ns do ri o Doce. É por esse moti vo que T eófilo Otoni, de 1847 a 1860, busca praticar um i ndige nismo empí rico e ao mesmo tempo pra gmático, já que a atração e pacificação daqueles Botocud os signif icariam a tranqüi lidad e da empresa e de seus acionistas. Apercebera-se Otoni que os métodos utili zados até então só le va vam ao acirramento das hostili dades entre índios e colonos. ” (Marcato, 1978: 17-8).

Cambraia e Mendes (1 988) def endem que a questão in dí gena e a coloni zação são processos indi ssociá veis quando se pretende entender a expansão colonial que ocor reu no norde ste de Minas Ge rais durante o século XI X. Nas pala vras desses auto res, empre ender a col oni zação para aquelas matas

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si gnifica va, antes de tudo, nega r este espaço vital [ o direto à ter ra, princi palmente], o que, sem dúvida, implicaria um aumento das tensões ent re coloni zado res e indígenas. (Camb raia e Mendes, 1988:138).

Em um t rabalho sob re a política in di genistas no século XI X, Manuela Carneiro da Cunha (1992), caracteriza este século como ‘heterogê neo’ em relação aos regimes políticos (Colônia, I mpério e República Velha) e quant o à ocupação ter ritorial: áreas de colonizaç ão anti ga co nt rastam com f rentes de expansão novas. Est a ‘hetero geneidade ’ marca a prática indigen ista do perí odo, assim def inida e caracterizada pela autora:

" Para caracterizar o século (XIX) como um todo, pode -se dizer que a questão indígena deixou de ser essencialmente uma questão de mão-de- ob ra para se tor nar uma questão de terras. Nas re giões de po voament o anti go, t rata-se mesquin hamente de se apodera r das te rr as dos aldeamentos. Nas f rentes de exp ansão ou nas rotas f luviai s a serem estabelecidas, faz-se largo uso, quand o se o con se gue, do trabalho ind í gena, mas são, sem dú vida, a conquista territ orial e a segurança dos caminhos e dos colonos os motores do p ro gresso. A mão-de -obra indí gena só é ain da f undamental como u ma alternativa local e transitória diante de novas oport uni dades." (Carneiro da Cunha, 1992:1 33 )

O deslocamento do interesse dos coloni zadores pa ra as terras reflete-se num debate sobre a ‘humani dade’ o u ‘animalidade’ dos índios (ou sobre a possi bilidade de ‘ci vilizá -los’) e que política ge ral (ou indi genista) de veria se r adotada:

" Debate-se a parti r do século XVI II e at é meados do século XIX, se devem exterminar os índios ‘bravos, ‘desinf estando’ os sertões- sol ução em geral p ro pícia aos colonos- ou se cumpre ci vili zá-l os e incluí-lo s na comunidade política- solução em geral pr opugnada po r estadi stas e que supun ha sua possí vel inco rporação como mão-de-obra. " (Idem:134)

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os índios do vale do ri o Mucuri, o di scurso e a prática indi genista na re gião durante a atuação da Cia. do Mucuri. Uma primei ra classif icação dos índios ref ere-se a sua capacidade de se adaptar aos moldes civi lizado s:

" Para fins práticos, os índi os de subdi vi dem, no século X IX, em ‘bravos’ e ‘domé sticos ou mansos’, termin olo gia que não deixa dú vi das quant o à idéia subj acente de animalidade e errância. A ‘domest icação’ dos índi os supunha, como em séculos anteri ores, sua sedentarização em aldeamentos, sob o ‘sua ve j ugo das leis’. Na catego ria de índios bra vos, passam a ser incorpo rados os grup os que vã o sendo pro gressi vamente encontrad os e guer reados nas f ro nteiras do Impér io" (Idem:1 36) .

É importante destac ar duas outras categorias de índio s, no s éculo XIX, apresentadas por essa autora e que p ode m ser enten didas co mo desen volviment o do debate acima citado. Às cate gorias ‘b ra vo’ e ‘manso ’ j unta-se uma o utra classificação contra sti va, a saber, o s Tupi e os Guarani, de um lado, e os Botocudos, de outro. Estes já ‘integrad os’ à cult ura e à identidade brasileira (‘mansos’), aqueles ainda vist os com o criaturas da natureza, ‘ bravos ’ o u ‘refratár ios à civili zação’.

“Se essa” (‘bra vos’ e ‘mansos’) “é a classif icação prática e administ rati va, há, no entanto duas categorias de índio s que se destacam por outros crité rios. Há primeiro, os Tupi e os Guarani, j á então virt ualmente extintos ou su postamen te assimilados, que fi guram por excelência na auto-ima gem que o Brasil faz de si mesmo. É o í ndio que aparece como emblema da nova na ção em todos os monumento s, alego rias e caricaturas. (. . . ) É o índio bom e, conven ientemente, é o índio m ort o. A segu nda categoria é o genericamente chamado Botocud o. Esse não só é um índio vi vo, mas é aquele contra quem se gue rreia por excelência nas primeiras décadas do sécul o: sua reputação é de ind omá vel f erocidade. (. .. ) Coi ncidência ou não, os Botocu dos são Tapuia, contraponto e inimigo s dos T upi na história do início da colônia (Idem:136).

(25)

É com essa segunda categoria de índio, o s Botocud os do leste de Minas, que Teófilo O toni e sua Companhia se ‘encontram’ (co mo pr oblema a ser equacionado e resol vido) no proj eto de colonização do vale do Mucuri.

Apesar d os contatos belicosos ent re civil izados e os que vi ria m a ser os Botocudos no século XIX se iniciarem n o século XVI e a primeira notícia sobre o aldeamento destes índios ser de 1602, em Ilhéu s (Pa raíso, 1992), f icaremos restri tos ao século XIX, período de oc upação sistemática da região no qual se insere a Companhia do Mucur y.

O estere ótipo antropóf ago é recorrent e na le gislação e em out ros documento s que trat am dos í ndios do no rdeste de M inas Ger ais, por exempl o, as Cartas Ré gias de 13 de maio e 2 de dezembro de 1808. Nesses textos, outros adj etivos como 'viole ntos', 'trai çoeiros', incapazes de civili zar -se, 'pre guiçosos', ent re out ros, f oram usados na argumentação em favor da repressão sistemátic a e da ‘guer ra j usta of ensi va’ declarada na Carta Régia de maio de 1808.

A rep ressão contra os Botocud os em Minas Gerais f oi reflexo de uma política de ocupação de terras que se definiu a parti r da chegada da Corte Po rtuguesa ao Brasil em 1808.

“Aos nobres falido s e fugid os de Portu ga l seriam concedidas grandes porções de terras em áreas c ontíguas ao Rio de Janeiro, de modo que se transform assem em gran des pro prietá rios n o Brasil. Na tentativa de deslocar elementos da sociedade nacional para o interior, como que cedendo lu gar aos recém-chegados, deu-se i nício a uma política de colonização baseada em incentivos e concessões generosas de terrenos a t odo aquele que se di spusesse a inter nar -se pelas florestas do Leste. Interessava ao governo, principalmente, o desbra vamento, col on ização e nave gação do rio Doce” (Marca to, 1979: 7).

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A pol ítica de ocupação do interio r base ou-se em dois pont os pri ncipais. O primeiro deles, j á citado, é a concessão de incenti vos e pri vi lé gios a quem quisesse se instalar nos vales dos rios da região. O o utro pi lar dessa política é a ga rantia de se gur ança que de veria se r dada aos c olon os em relação aos índios ‘bra vos’ e ‘h ostis’, os B otocu dos. Essas ga rantias de segurança eram, basicamente, os qu ar téis e as colônias mi litares com o a d o Ur ucu, criada para prote ger os inve stim entos da Ci a. do Mu cury de possí veis ataques dos índios. A estru tura física da colônia militar do Ur ucu já estava pre vista na lei 332 que cria a Cia. do M ucury, que previa a sua const rução no ponto em que o Governo (pr ovincial), "de acordo com os Directores da Companhi a, julgar conveniente, e a conservação alli de uma força pol icial de trinta p raças a o menos, des tinada esp ecialmente a proteger os interess es da Compa nhia con tra qualq uer ataq ue dos selvagens"14.

Como destacam Marcato (1979), Paraíso (19 92 e 1998 ), Carneiro da Cunha (1 998) e Dua r te (2002 ), a política de colonização execu tada na área d os Botocudos basea va-se em práticas milita res como a con strução de quartéis e destacamentos para combater os índi os, aldeamento forçado e outras medidas que tinham como pri ncipal objeti vo a oc upação das te rras e o uso provisório da mão-de-obra indí gena em ati vidades essenciais para o desen vol vimento da re gião.

Essa postura ofens iva em relação aos Botoc udos ser ia f ruto da constatação, por par te dos colonos que até então tinham se avent urad o pelo leste de Minas Gera is, de que os ‘métodos b rando s’ tentados anterio rmente não eram ef icazes pa ra p rotege r d os índi os seus inves timento s na re gião. Num

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ní vel mais abstrato, ou num " indigenismo de gabi nete"15, os debates sobre o trato dos índios se dão em outros termos e em outras esferas, como ve remos.

Citando a Carta Régia de 13 de maio de 1808, que declara guerra ofensiva co ntra os botocudos ant rop ófa gos, Marcato (1979 ) resume al guns ponto s imp ortantes sobre a imagem d os índio s no processo que estamos analisando:

1. Os Botocudos ‘entravam’ o desenvolvimento regional e a interiori zação dos migrantes luso-b rasileiros.

2. O modelo de comportamento Botocudo chocava-se frontalmente com o cristão oci dental, constitui ndo -se um pe rigo permane nte a rebeldia desses í ndios e sua determi nação em não se inte grar aos esquemas civili zado s (Marcato, 1979, p. 8).16

Além de definir o aparato militar a ser montado no Leste de Minas, a legi slação procurou ‘apr oximar’ índios e colonos i nvasores e m aldeamentos; aproxi mação de nenhuma maneira ingê nua, sendo voltada pa ra a retirada d os índios das terras qu e ocupa vam e q ue se most ra coerente com o ideal de formação de um " povo b rasileir o" a partir da i ntrodução de colonos eur opeus que fizessem, por m eio de casamentos ‘interétnicos ’, desaparecer o f enótipo indí gena e os comportamentos a ele associados.

Também buscando garantir um cli ma de paz e s egurança aos investimentos na re giã o f oram criados aldeamentos comp ul sóri os dos índ ios que se apresentassem espontaneamente perante as autoridad es. Os índios que resistissem à ação dos soldados e f ossem capturados em combate seriam

(28)

transfo rmados em escravos p or um pe río do de temp o indeter minado (enquanto durasse sua ‘f erocidade’)e as terras que ocupavam seriam t ransformadas em sesmarias e di stribu ídas aos col ono s e comandantes das Di vi sões M ilitares (Paraíso, 1992: 83).

Assim, os Botoc ud os e ou tro s ín dios tidos como " antropófa gos" , " ref ratários" à vida civil izada e aos métodos b ran dos de civilização, eram o entrave ao desen vo lvimento econômico da região. A opção pela guerra ofensiva no início do século XI X p ressupõe a eliminação dos Botocud os, princí pio que é assumido sem maio res const rangimentos, dado seu caráter " irrecuperá vel" . (Par aíso, 1992:83)

Em resumo, a política indi geni sta que marcou a pr imeira metade dos anos de 1800 baseava-se no extermí nio e escravi zação para os índios rebeldes e ‘deculturação’ pa ra os dóceis ou nã o vi olentos Marcat o (1979). Co mo destaca a Autora, a orientação era rep ri mir com vi olência quaisquer ato s de provocação ou de defesa dos Botocudos por meio da guerra j usta.

Essa pol ítica, e a ‘guer ra’ aos í ndi os, perdu ro u até 1831, quando da re vogação da le gisl ação j oanina no pe ríod o Re gencial. A partir de então, transferiu-se pa ra os gove rn os p ro víncias as decisões relativas aos índios e suas terras, e para os capuchinhos italianos a com petência p ara catequizá -los em aldeamentos (Carneiro da Cunha, 1992:138-141).

A pa rti r dos anos de 1830, com a revoga ção de leis e a desce ntralização das decisões s ob re a política indigeni sta (a go ra também a car go d os governos provinciais), um out ro ti po de frente de expansão e de prát icas indi genist as ti veram lugar nas mattas do les te.

(29)

É nesse novo context o que " surge" a Companhia do M ucury e uma f orma auto declarada ‘não vi olenta’ de se relac ionar com o s índio s. Um indi genism o " empírico e pra gmát ico" (Marcato, 1979), que respo nde às necessidades de uma empresa que não pode se r a valiada apenas em seu aspecto comercial, mas como abr i go de uma variada gama de sonhos de mati zes polí ticos em meados do século XI X (Dua rte, 2002:35), e que tangenciam a temát ica indígena (ou índios de carne e osso) o rientando-a no sentido da f ormação de uma nação e um povo bras ileiro.

(30)

PART E 2

O VALE DO M UCURI NO SÉ CULO XI X: UM SÓ OU VÁRIOS PROJE T OS PARA OS ÍNDIOS? VÁRI OS INDIO S, VÁRI OS AGE NTE S

(31)

Uma ho rda de chines es no meio da flores ta virgem no Bras il! Isto é certamente um fenômeno que me pareceu bastante s ingul ar. Imigrantes europeus, negros e agora até chineses, de três partes estranhas do mundo, e ainda nen hum sinal dos botocu dos!

Robert Avé -Lallema nt Viagem pelo norte do Brasil no ano de 1859

(32)

A historiadora Regi na Horta Duarte (2002 ) obse r va que, em Minas Gerais, a região do vale do rio M ucuri f oi uma das últimas áreas a conhecer o avanço da ci vil izaç ão, não obstante o empenho do G overno Im perial e de particulares em f azer dessa re gião local de exploração econômica e de coloni zação sistemática a partir do século XIX.

Se gu ndo Ma ria H. Paraíso (199 2), uma das razões do ‘i solamento’ da região se ria uma est raté gia da Co roa portuguesa em f azer da área uma " zona tampão" , como vimo s acima. Uma das conseqüências desse abandono colonial - ou f alta de interesse econômico na re gião, ou ainda, interesse em mantê-la desocupada - foi a tr ansf ormação das matas do Leste e Nordeste de M inas Gerais em ref úgio de vári os grupos in dí genas que ali se mantiveram afastados do processo de expansão da sociedade nacional até o ano de 176 0, aproxi madamente. (Paraíso, 1992:415)

Analisando as ‘ima gen s da região’ aos olhos dos colo niza dores l uso -brasileiros, Cambrai a e Mendes (1988) c oncor dam com a explicação de Paraíso (1992) e mostram q ue no século XVI II os sertões d o leste e nordeste minei ro eram área proibida, barrei ra natural ao contraband o, e infestados de índios antropófagos. Se gu ndo esses autores, essa ima gem da região correspo ndia aos interesses re gulad or es e coerciti vos da metróp ole na adm inist ração de sua colônia:

“preocupada essenci almente em garant ir a taxação do ouro tentando minimi zar quaisque r ‘descaminhos ’. No entanto, a constatação da crise [na mineração de ouro], traduzida no termo ‘decadência’, conduz o olha r met ro politano so bre suas colônias, buscando vi slumbra r no va s pe rspecti vas. É ass im que podemos encontra r os primeiros sinais de uma preocupação com a s po ssibil idades de apro ve itamento da re gião. . . ”(Idem:140 ).

(33)

M APA 1

Fonte: Langf ur ( 2005:257)

A partir da segunda metade do sécul o XVII I oco rreram alterações si gnificativas na e conomia minei ra, que passo u a basear-se na pr odução

(34)

As fren tes da expa ns ão17 colonial em Minas Gerai s passa m a ser as bacias dos ri os Je quitinhonha, Pardo, São Mateus, Doc e e Mucuri. As peculiaridades do s cursos desses rios podem ex plicar sua importância nesse momento da econo mia mineira. A hidrog raf ia da regiã o p ossibilito u o uso d os rios com o vias de transporte e a utilização de uma estratégia de ocupação baseada em pequenas po voações r ibeirinhas q ue sur gem como ent repost os comerciais, quartéis e presídios para ga ranti r o aldeamento de í ndios e a segurança das iniciativas de coloni zação da região18.

Out ros núcleos pecu ários e come rciais sur gi ram no final d o século XVIII e início do século XIX nas cabeceiras dos rio s acima ref erido s19. O desen vol vimento desses centro s exi gia a superação de di ficuldades como a presença de populações indí genas ho stis, uma vez que a decadência da atividade mineradora na re gião central de Mi nas Gerais e o p ro cesso de ex pansão territorial le varam a f rontei ra do Imp ério às ter ras ocup adas pelos povos indí genas do Leste de Minas Gerais20, chamados genericament e Botocudo.

Analisando a polític a de ocupação territorial ent re os anos de 1780 e 1839, Cambraia e M endes (198 8) m ostram como o tema da ‘decadência’ da mineração de ouro em M inas Gerais levo u o Im pério a procura r no vas alternati vas de explo ração econômica da colônia:

“Entre 1808 e 1836 o Estado po rtu guês e o nascente Impér io brasilei ro buscara m, através de fo rmas variadas de incenti vos materiais e morais, viabili zar a ocupação da re gião Le ste de M i nas Gerais e sua i nte gração à malha mercantil do Cent ro-sul brasileir o. (. .. ) Durante toda a primei ra metade do século XIX, as tentati vas de expansão da f rontei ra colonial envol veram parcela si gnificati va dos habitantes de Minas Gerais, desestrutur ando violentamente

17

Cf. Darcy Ribeiro, 1967, e sua definição de ‘frente expansionista’.

18

Serviam como rotas de comércio e navegação entre o interior e o litoral. Cf. Paraíso, 1996: 79.

(35)

parte conside rável das comunidades in dí genas que ali se localiza vam. ” (Idem, :138)

A mesma ênfase ne sse processo de expansão do Impéri o é citada po r Duarte (200 2) em s ua int rod ução à reedição de N otícia so bre os selvagens d o Mucuri, de Teófilo Otoni:

“Ganharia f orça na sociedade oit ocen tista a ânsia por trajetos delimitados , seguros e previsí veis, co nf i gu rados como elos en tre pontos bem definidos. Pa ra tanto, multiplicaram -se os esf orços para conhecer esses novos espaços e preenchê- los com um estilo d e vida instituído a parti r de sign os civil izatórios" (Horta, 2002:19).

Como destaca a Autora, a demanda por condições ideais para a movimentação segur a de pessoas, mercadorias e r ique zas, com a conseqüente dif usão de técnicas, maneiras, conheci mentos, costumes e visões de mundo, aparece como uma expressão marcadam ente liberal da sociedade oitocentista brasileira. Contud o, seria " imprescindíve l conside rar as nuances de percepções e atitudes diferentes entre homen s e mulheres, entre os homens brancos li vres e os escravos, entre as camadas da população livre, que para ali se diri giam, formada por pessoas que vi viam em cond ições extremamente di ve rsif icadas, e, tantas vezes, mergulhadas na margi nalidade" (I dem: 18).

(36)

SOB RE VIA JANT E S, HISTO RIA DORE S E ÍNDI OS NO V ALE M UCURI

Uma boa introd ução ao contex to do va le do M ucur i a pa rti r da leitu ra

dos escritos dos via jantes que percorre ram a região n o século XI X é dada po r

Regi na Horta ( 1998 ). A Auto ra procu ra evidenciar iniciat ivas si ngula res e

ori ginais dos índi os conhecidos como b otocudos con tra o avanço da s ociedade

brasileira, ao mesmo tempo em que di z bastante sobre como esses viaj antes

enxergavam os índi os.

As i niciati vas são apresentadas se guindo os moldes d a chamada

‘etnoh istória’, que procu ra valo ri zar a a ção dos ato res i ndí g enas em contextos

histó ricos. Cont udo, essa autora procu ra evita r uma possí vel ‘ vitim ização’ dos

indí genas e ‘resgate’ de dívidas, como em Marcato (1979 ) e Paraíso (1 992) 21.

No entant o, a perspectiva etnohistó rica é subst ituída por uma abor da gem

um tanto ‘natu raliza nte’ da vida e at uação dos índios em se u meio-ambiente. A

adaptação dos índio s à mata em que viviam, em oposição aos pr oblemas de

várias o rdens enf re ntados pelo s coloni zadores, tem uma explicação que se

aproxi ma de uma história nat ural ou natu ralizante. Vejamos:

" As condições natu rais apresenta vam -se como obstáculos para o conqui stador. Os per nilon gos, o in suportá vel calor, as chuvas to rrenciais em algumas épocas, a dificuldade de arranjar su stento, o ter ro r da em boscada silenciosa do botocudo: a mata se ne ga ao h omem br anco. Talve z nessa dificuldade de adaptação resida o segredo de sua vo racidade em destruí-la.

Em meio à incapacidade em enfrentar tantas intempéries, os narradores, ao a presentarem a mata, surp reendem-se, agudamente invej osos, com a naturalidade com que o botocudo vi ve ali. Desprezando a si mplicidade de seus utensílios e aponta ndo-os com o tecnicamente inferiores, esquecem-se do f ato de o grande instr umento do sel va gem ser seu p róprio corpo e a habilidade desenvol vida, através de sua histó ria, no uso dos seus sentidos, capacitando-o a

(37)

“ler a mata” e fazer dela uma aliada na luta pela sob re vi vência.

Nus, e assim mais preparados para o calor, caminhavam rapidamente, sem suar, atravessa vam a n ado os pontos mais lar gos dos rios, possuíam a pele já esquecida em incomodar -se com galhos pont udos ou espi nhos, “insin uando --se pelas menores b rechas da ve getação”, conseguindo vencer grandes distâncias em um único dia, apresentando imp ressio nante f orça muscular e “capacidade de resistir à fadiga”. Quanto aos mosquito s, um viaj ante como Maximiliano assom brava -se com a facilidade dos í ndios em vib rar rui dosas pancadas em seu próp ri o cor po, a fim de espantá-los, sem maiores sof riment os" (Ho rta, 1998:40 ).

Utili zando relatos dos viajantes Robert Avé -Lallemant ( 1961 ) e do

Príncipe Maximilia no (19 89 ) 22 a Autora apresenta as ações (e não apenas

" reações" ) dos botocudos, vi stas fora das aborda gens acima citadas. Horta f az

uma leitura das ref erências à atuação belicosa dos botocudos, expondo as

opini ões e j uízos d os viaj antes a esse respeito, assim com o aponta para uma

afirmação de Teófilo Ot oni referente a uma suposta postura pacífica dos

botocu dos, fruto de sua nova e pacifica catequese.

Apo ntando uma disposição " estrutural" dos botocu dos à guerra, Hor ta

cita o relato de Avé- Lallemant sobre o en contro en tre um capi tão índio, Poton, e

Teóf ilo Otoni, di ret or da Cia. de Navegação do vale do Mucury, durante sua

passagem pelo referido rio em 1858. O evento narrad o traz aos historiadores uma

perspecti va que a a u tora co nside ra essen cial acerca dos í ndi os botocudos: eles

eram gue rreiros e assim f igu ra vam aos homens brancos. Assim ,

" O Capitão Poton, chef e daquela tribo, recebeu os visita ntes, seguido de vá rio s outros índios nu s. Em seguida, pe go u seu

arco e atirou verticalmente, num lançamento

extraordina riamente alto. Apó s tal demon stração, bateu com a mão espalmada no peito, dizendo em alta voz: Poton, bom, f orte! [“ Pot on, jacj eminuc”]. (Avé- La llemant, 1980: 233, citado por Ho rta, 1998:37 ).

(38)

A tradução para jac jeminuc utili zada po r Otoni em sua Notícia sobre os

selvagens do Mucu ri é diferente da apresentada pelo viaj ante alemão citado por

Ho rta. Se para este a expressão referia-se ao própri o líder in dí gena aludind o a

suas habilidades belicosas, para/em Otoni temo s uma referência a uma

disposição p acífica e submissão consenti da de Poton em relação aos proj etos de

ocupação da região.

Seria preciso, entretanto, procu rar com os lingüistas uma def inição mais

precisa desse termo, lon ge do calor d os ânimos em que as duas pr opostas de

tradução ( se assim podemos def inir o exercício acima citado) foram forj adas.

Po r enquanto, o " Vocabulário Botoc udo" anexo ao Relatório de Ped ro Victor

Renault sob re sua expedição ao vale do M ucuri em 1836 ilumina essa questão ao

traduzi r " JAC JE ME NÚ" como " Estamos em paz ; Pode chegar;Seja bem vi ndo.

Pela mes ma maneira expressa os se ntiment os q ue indi cam benevolência,

amiz ade e harmonia"23 .

Segundo a ar gumentação de Horta, os documentos p rodu zid os pelos

viaj antes seriam mai s propícios a uma te ntati va de reconstituição etnohistórica

do que abo rda gens r elativamente recentes que, escritas a par t ir de uma i nserção

nessa " luta secular" , vêm const ruindo uma tática baseada em ima gens nas quais

predom inam a vitim ização do ín dio e a atribuição de uma culpa à sociedade

ocidental ( Horta, 19 98:37 ). Nessa perspe ctiva, todas as ações dos índi os seriam

movidas pela invasã o de terras e reações ao genocí dio, ou sej a, seriam reações

adaptati vas a um contexto de assimilação inevitá vel dos índios à civil ização

ocidental.

(39)

Haveria, assim, uma contradição entre o status de vítima s dado aos

botocu dos po r cer ta hist ori ografia produzida no s ano s de 1980 e 1 990 e a

selva geria atrib uída a esses mesmos índi os pelos seus contem porâneo s no sécul o

XI X.

Todo s os sinais do que foram o s bot ocudos para seus co nt emporâneos

desaparecem e dão lu gar a índio s q ue precisam ser de alguma f orma

‘resgatad os’. Nas palavras da autora:

" Aparentemente opostas, as imagens construí das pela sociedade ci vili zada e cristã oitocenti st a brasileira - q ue tantas ve zes caracteriza ria o botocu do como mau - e as noções r omanti zadas de um índio apenas violent o quand o molestado pelos brancos, mas genuinamen te bom, são vi sões amalgamadas.

Em primeiro l ugar, como nos alerta uma importante autora, a noção dos í ndio s como vítima do sistema mu ndial capitalista ou da pol ítica destrutiva d o E stado Nacional t raz a permanência da lógica histó rica centrada na metróp ole (M.

Carneir o da Cun ha, 1992:17 ). Em segundo luga r,

predom inam aqui concepções igualm ente cristãs: uma marcada pelas ima gens do pagani smo b árbaro e da guer ra santa (pelas armas, pela catequese), outra apri sionada no sentimento de culpa . Nesse sentid o, preconiza -se a revisão do passado pa ra um a recuperação dos vencidos. O grande alerta ref ere-se ao fa to dos sobre viventes do gen ocídio ainda estarem entre n ós, “e deles podemo s nos aproximar, oferecendo-l hes agora a memória cultural e política de seus antepassados, inscrit a nos nossos arqu ivos" . Predo mina aqui a idéia de uma dívida a ser paga, de um mal realizado pelos brancos a se r sanado, ago ra, novame nte pelos brancos. É o estudioso q uem conclama a restituição da voz ao índio, é ele que luta pelos inj ust içados, é dele que p arte o ge nero so ato de aproximação. Mais uma ve z, o índio deve responder, ser obj eto de uma ação. Em obras que destac am a luta indí gena como resistê ncia, o índio permanece como mera vítima a ser socor rida, como um ser indefeso.

“Encont ramo-nos, aqui, num terren o escorre gad io, pois se alguém é visto sob o si gno da fr agili dade, pode-se perf eitamente concluir que ele de ve ser prote gido e gu iado,

(40)

Horta se gue destacando o caráter guerrei ro dos bo tocudos, ainda a parti r

das leituras das narrativa s do p ríncipe de Maximiliano e do médico Avé

-Lallemant ( 1961), c oncluindo pela astúcia e natu reza guerre ira dos botocudos,

" perfeitamente af eitos e adaptados ao ambiente e mest res no seu uso bélico" .

Se gundo a Autora, a natureza belicosa dos botocud os reflete-se tanto nos ataques

aos brancos int rusos quanto nas disputas vi olentas das quais participa vam com

outros grupos indí genas24. Assim, a natureza guerreira desses índio s não se

manifestaria apenas aos a gentes da col oni zação da re gião. P or o utr o lado, as

van tagens tecnol ó gic as dos brancos, como as armas de fogo, só teriam eficácia

contra os índios qua ndo util izadas em uma ação tática baseada na mesma lógica

dos botocu dos, a surpresa (H orta, 1998:5 0).

Dessa f orma, o aprimoramento das técn icas de guer ra pelos brancos a

partir da adoção de estraté gias i ndíge nas fez com que os ataq ues dos civilizados

aos botocudos atingi ssem alto s níve is de eficiência. Co ntudo, o remédi o

mostr ou -se muito f orte e, como destaca a Autora, causou contrové rsias permiti u

um outr o posicionamento f rente ao problema:

" Ao entrarem nas matas, os soldados recrutados para o ser viço de ir ao encalço dos índios leva vam pól vora, chumbo, uma f aca, rapadura, farinha e carne seca para doze dias. Servind o-se do s guias, andavam à noite, buscando os locais em que o s í ndios d ormiam. Ti veram que aprender, para isso, a serem leves no anda r, silenciosos no cerco, evitan do os porcos do mato amarrados pelos botoc udos nas imediações de se us abri gos. Ali permaneciam quietos, escondidos. Ao amanhecer, avança vam e m círculo so bre os índio s. Iam à f rente os que usavam o gibão d ’armas. M omento de matar ou morrer. Dispa ra vam nos índi os ain da adormecidos, aos primeir os tiros estabelecia-se “gran de conf usão, com berro s e exclamações, homens e mulheres e crianças morto s pelos seus fero zes perseguid ores, sem distinção de sex o ou idade (. . . ) A cr ueldade dos soldados nesses ataques excede a tudo quant o se possa ima gina r”.

(41)

M uitas vezes, os próprio s soldad os mutil avam os corpos dos inimi gos mor tos: em 1816, após um cerco vi to rioso no vale do rio Doce, cortaram as orelhas dos botocu dos mortos e enviaram ao governador, na Vila de Vitória" (Horta, 1998: 50-51 ).

Os métodos de extermínio q ue passaram a ser empregados, como o

exposto acima por Regi na Horta a pa rt ir d o relato do Prí ncipe Maximiliano,

fariam com que o ‘ espírito civilizad o’ se indi gnassem com a equiparação da s

ações dos agentes d e colonização às ações daqueles pobres selva gens, que não

conheceriam outra forma de responde r à brutalidade:

" Se no imaginário branco, os botocudos apareciam matando os ini mi go s, f azendo suas carnes em tiras, cozinhando-as o u assando -as, espetando suas cabeças em estaca, chupando seus ossos e os pe ndurando pelas árvores, num clima de f esta, com cantos e danças, o homem branco culpará os seus iguais que se aproxi marem desta imagem dos bot ocudo s. Se inicialmente mandavam-se soldados, a partir dos anos 184 0

seriam en viados capuchinhos e di retores de índios,

respo nsáveis de velar pela ordem nos aldeamentos e pelo avanço da ci vili zação e do cristiani smo nas matas" (Horta, 1998: 51).

Tal mudança de atitude não é explorada pela Autora, que prefere

associá-la a um ref lexo da imagem ne gativa e preconceituosa dos botocudos

como elementos ref ratários à ci vili zação: " Os civili zad os acusaram os Bot ocudos

de não conhecerem a dif erença entre o bem e o mal. E será o peso dessa

polari zação moral uma valiosa g uia nos discursos civiliza dores e

cristiani zado res em luta contra a vio lência exercida pelos conqui stado res

brancos" (Idem: 51).

A adoção de u ma catequese leiga, como a apregoada por Teóf ilo Oto ni,

(42)

inequí voco da conf issão de um er ro que t raz a redenção pela i nversão da pos tu ra

adotada inicialmente.

Em out ro trabalho, sobre os viaj antes estrangeiros n o vale do M ucuri n o

século XIX, Horta ( 2002 ) analisa dois temas recorrentes n os relatos produ zidos:

a presença indígena e a exuberância das matas. Esses dois temas são vi stos pel os

viaj antes e pela historiad ora como cha ve para a compreensão do processo de

coloni zação do ref erido Vale, uma vez que ambos resu mem os principai s

obstáculos para a realização do intento.

A partir da leitura dos relatos de Prí ncipe Maximiliano, do naturalista

Au guste de SaintHilaire, do Barão de Tschudi e do polê mico Robert Avé

-Lallemant25, Regina Ho rta destaca a produção das imagens dos índi os. Como

lembra em outr o tra balho (Ho rta, 1998 ), os relatos f oram pr oduzid os a parti r de

inf ormações obti das entre índios qu e mantinham contatos constantes ou

freqüentes com os agentes da coloni zação26. Isto é, os dados são ‘recolhi dos’

entre índio s que se relacionavam com as frentes de expansão e que não poderiam

ser con side rados (numa vi são mais 'conservadora' de i dentidade) como o

selvagem genti o nã o af eito à civili zação, conforme a opinião consa grada à

época.

A obra do viaj ante Johann Eman uel Pohl (19 76 ) que esteve no Brasil entre os anos de 1 81 7 e 1821 é de gran de interesse pa ra o tem a deste trabalho. A seção que desc reve sua via gem pelo ri o Jequitinhon ha, via São Mi guel, a Salt o Grande e à Aldeia do Alto dos Boi s tra z referências impor tantes sob re o processo de coloni zação dessa região. Muito embora esse autor não tenha se

25

Esse viajante, fundamental na história da Companhia do Mucuri, será analisado mais detidamente adiante.

26

(43)

dedicado ao vale do M ucuri, oferece dados que po dem aj udar a compor um quadr o mais preciso dessa região antes do período de atuação da Cia. do Mucury. Logo no i nicio da seção ded icada ao Jequitinho nha, os esf orços go ver namentais e a ação de particulares objetivan do a ocup ação dessa região, fruto de incenti vos fiscais e pecuniários p or parte dos go ve rnos são destacados.

Ao contrári o de out ros auto res, como Robert Avé -Lallemant, Pohl não é tão mal-h umorado e tão descrente: enxerga belezas nos rios e na f loresta, fazendo cre r que as iniciati vas de coloni zação (por particulares) ti ve ram algum sucesso. E diz:

“A re gião t ornou -se maravi lhosa de fato, especialmente pelas muitas e bem instaladas f azen das que de vem a sua multiplicação não só à fertilidade do solo como também à circunstancia de ter o governo dado a cada colono meia légua quad rada de t erreno com i senção de impo stos po r 1 0 anos. Este t ipo de f azenda tem o no me de Roça Gran de. ”(Po hl, 1976:337 ).

Quanto aos i ndí ge nas, a descrição de Po hl é bastante interessante por deixar ent rever q ue os contatos ent re os c olonos e os índ ios se davam de manei ra relati vamente in tensa, mas ainda (e como q uase sempr e) sem uma real integração do s índio s ao sistema re giona l. Ao nar rar seu p ri meiro encon tr o com os botocud os di z:

“Desperto u- nos a m aior compai xão a feia conf ormação e o desasseio do corpo daqueles i nf elizes seres q ue, ago ra pacificados, vi viam nas matas vi zinhas e que, a troco de escassa alimentação, trabalha vam duramente nas roças próximas durante to do o tem po que o sol permanecia no céu. Todo s esses botocu dos já eram batizados e conheciam a cruz (. . . ). Mas ainda não haviam aband ona do todas as demais peculiaridades. . . ” (Idem: 342).

Referências

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