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O PAPEL DA EDUCAÇÃO NO APERFEIÇOAMENTO MORAL SEGUNDO KANT

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O PAPEL DA EDUCAÇÃO NO APERFEIÇOAMENTO MORAL SEGUNDO KANT Joel Thiago Klein - UFSM1 Édison Martinho da Silva Difante - UFSM2 A questão da educação não passou despercebida aos olhos do filósofo de Köningsberg. Pelo contrário, para ele “o homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação”. Ela assume um papel extremamente importante na medida em que se relaciona estreitamente com o problema do aperfeiçoamento da humanidade. O grande segredo da perfeição da natureza humana, afirma Kant, esconde-se na educação, mas ela é também “o maior e mais árduo problema que pode ser proposto aos homens”. De fato, “os conhecimentos dependem da educação e esta, por sua vez, depende daqueles”. Desse modo, “cada geração transmite suas experiências e seus conhecimentos à geração seguinte, a qual lhes acrescenta algo de seu e transmite à geração que segue”. Basta o fracasso de uma geração para que todo o processo seja comprometido. Tendo isso como pano de fundo, Kant formula o seguinte princípio pedagógico: “não se deve educar as crianças segundo o presente estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade e de sua inteira destinação”. Frente a esse princípio, poder-se-ia fazer a seguinte objeção: não se estaria a partir dele legitimando uma imposição ditatorial de um modelo educativo que, finalmente, não seria mais do que adestramento? Contra essa crítica, iremos esclarecer e justificar o princípio proposto por Kant, tomando como fundamento outros elementos de sua filosofia.

Palavras-chave: Educação, Kant, Idéia, Moral, Progresso histórico Educação e desenvolvimento humano

A noção de desenvolvimento é pensada na filosofia de Kant em relação ao modelo de um sistema orgânico, segundo o qual as partes de um todo devem crescer de modo articulado e não amontoado. Isto é, o todo pode “crescer internamente (per intus susceptionem), mas não externamente (per appositionem), tal como acontece com um corpo animal cujo crescimento não leva à adição de um membro, mas antes, sem alterar a proporção, torna cada um deles mais forte e mais eficiente para sua finalidade”3. Pressupõe-se, então, um processo no qual uma força formadora interna atua de acordo com o princípio de conformidade a fins. Assim, “‘desenvolver’ significa, em Kant, o processo no qual aquilo que existe em um ser vivo, primeiro apenas enquanto possibilidade (na disposição [Anlage]), se desenvolve gradualmente”4. Vincula-se estreitamente “disposição” e “desenvolvimento”, noções que provêm de um contexto originariamente biológico, característico do século XVIII.

Kant adota, como pano de fundo de sua discussão, a teoria da epigênese ou teoria da pré-formação genérica, segundo a qual o criador do mundo atribuiu a cada espécie

1 Mestrando do Curso de Pós-graduação em Filosofia e bolsista da CAPES; CPF: 003933650-69. 2 Mestrando do Curso de Pós-graduação em Filosofia e bolsista da CAPES; CPF: 910859690-53.

3 KANT, I. Crítica da razão pura. CRP B 861. As citações dessa obra seguirão a paginação da segunda edição

da obra, publicada em 1787.

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determinadas disposições e a capacidade para transmiti-las à descendência. As disposições são e permanecerão idênticas para uma determinada espécie enquanto tal. Qualquer mudança nas disposições acarretaria o surgimento de uma nova espécie. Assim, o que foi criado deve ser necessariamente herdado, sendo também válido o inverso. Um ser vivo não pode desenvolver uma capacidade se esta já não existia nele enquanto possibilidade, isto é, enquanto uma disposição. Essa teoria tem para Kant a vantagem de possuir o menor compromisso possível com hipóteses supra-sensíveis, de modo que todo o restante, após a “criação”, é deixado ao encargo das leis da natureza e considerado como seu produto5.

Segue-se disso que a espécie humana, enquanto tal, é dotada de certas disposições e todos os seus indivíduos, enquanto indivíduos humanos possuem, as mesmas disposições. Claro que elas podem ou não se manifestar nos indivíduos particulares, mas isso dependeria de elementos externos, tal como a sua formação. Tem-se, assim, um cerne a-histórico presente no pensamento de Kant, o qual garante uma unidade à espécie humana e uma estabilidade em seu Telos histórico. No entanto, não menos importante é levar em conta que essa teoria possui para Kant apenas o status de um conhecimento regulativo, isto é, jamais pode ser demonstrada. Ela nos serve apenas como um excelente princípio para a reflexão sobre nós mesmos e nossa relação com o mundo. Kant fala de um princípio subjetivamente necessário.

É evidente que na Idéia de uma história universal com um propósito cosmopolita, de 1784, Kant também compreendeu o desenvolvimento humano na história nesses termos. O seu ponto de partida nesse escrito é o seguinte princípio biológico-teleológico: “todas as disposições naturais de uma criatura estão determinadas a se desenvolver alguma vez de modo completo e apropriado”6. Contudo, no caso particular da espécie humana, o princípio precisa ser adaptado, pois no “homem (enquanto a única criatura racional sobre a terra) aquelas disposições naturais, que tendem ao uso de sua razão, não devem ser desenvolvidas completamente no indivíduo, mas apenas na espécie”7. A faculdade da razão introduz assim um diferencial entre o desenvolvimento dos homens e o dos animais.

“Os animais cumprem o seu destino espontaneamente e sem o saber”8, pois “um animal é por seu próprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a ele tomou

5 Isso também é defendido por Kleingeld (1995, p.127-128).

6 KANT, I. Idéia de uma história universal com um propósito cosmopolita. In: A paz perpétua e outros

opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988, p 23. Na seqüência as citações serão feitas da seguinte forma: Idéia p. xx.

7 Idéia p.23.

8 KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. 4. ed. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: UNIMEP, 2004,

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antecipadamente todos os cuidados necessários.”9 Em outras palavras, as suas disposições naturais podem ser desenvolvidas integralmente em cada indivíduo, na medida em que esse processo é governado pelo instinto. Já, o homem, por outro lado, “tem necessidade de sua própria razão. Não tem instinto, e precisa formar por si mesmo o projeto de sua conduta. Entretanto, por ele não ter a capacidade imediata de o realizar, mas vir ao mundo em estado bruto, outros devem fazê-lo por ele.” Desse modo, “a espécie humana é obrigada a extrair de si mesma pouco a pouco, com suas próprias forças, todas as qualidades naturais que pertencem à humanidade. Uma geração educando a outra”10. Desse modo, o desenvolvimento humano não ocorre biologicamente, mas é um processo pedagógico que precisa ser mediado institucional e culturalmente.

Nesse caso, o desenvolvimento do indivíduo (ontogênese) e o desenvolvimento da espécie (filogênese) são processos inter-relacionados que se restringem mutuamente. Por um lado, a ontogênese retoma a filogênese, isto é, cada indivíduo precisa apropriar-se dos conhecimentos e habilidades adquiridos e conservados pela geração anterior. Senão estaríamos condenados à eterna reinvenção da roda. Por outro lado, a filogênese depende do empenho dos indivíduos para que novos conhecimentos e habilidades sejam produzidos e os antigos preservados. Sem os indivíduos, a filogênese não se realizaria. Por isso, a educação “não poderia dar um passo à frente a não ser pouco a pouco, e somente pode surgir um conceito da arte de educar na medida em que cada geração transmite suas experiências e seus conhecimentos à geração seguinte, a qual lhes acrescenta algo de seu e os transmite à geração que lhe segue”11. Por conseguinte, a educação é vista como um processo histórico infinitamente longo, no qual apenas a espécie pode atingir o seu desenvolvimento completo.

Educação e o direito ao pensamento livre

Um dos textos mais conhecidos de Kant e igualmente um texto emblemático do século XVII: “Resposta à pergunta: que é esclarecimento [Aufklärung]?”, de 1783. Nesse texto, encontra-se a famosa formulação de Kant sobre o espírito do movimento iluminista:

“esclarecimento [Aufklãrung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. Menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e

9 Ped. p. 12.

10 Ped. p.12. Na Idéia (terceira proposição) Kant justifica teleologicamente essa situação afirmando que interessa

mais à natureza que o homem possuísse o mérito de seu progresso do que qualquer bem-estar.

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coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. (KANT, O que é esclarecimento?, In: Textos Seletos, 1985, p.100 )

Apesar de chamar a atenção dos homens para sua própria responsabilidade no diz respeito ao seu aperfeiçoamento, o que ele denomina de saída da minoridade, o objetivo central de Kant no texto é defender e legitimar o pensamento livre. O ser humano, enquanto ser racional, possui o germe para o uso livre do entendimento12. Desse modo, “renunciar a ele [o esclarecimento], quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. O que não é licito a um povo decidir com relação a si mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir sobre ele, pois sua autoridade legislativa repousa justamente no fato de reunir a vontade de todo o povo na sua”13. Impedir o desenvolvimento humano é, para Kant, um crime contra a natureza humana sendo, conseqüentemente, algo ilegítimo.

Kant reclama frente ao soberano o direito do que ele chama de uso público da razão, o qual se distingue do uso privado. O primeiro diz respeito ao direito que qualquer cidadão tem, na qualidade de sujeito racional e conhecedor de um certo assunto, de expor publicamente por meio de obras escritas suas sugestões e críticas às instituições vigentes. Esse uso é aquele no qual o indivíduo pode discutir certos problemas práticos e teóricos com os seus pares, ou expor suas dúvidas e posições ao grande público do mundo letrado. O segundo se refere ao uso que o homem faz de sua razão na medida que ocupa certo cargo ou função a ele confiado. Esse último uso, mesmo sendo estreitamente limitado não compromete o desenvolvimento da humanidade. Inclusive a sua restrição pode ser recomendável, pois do contrário o estado perderia completamente o controle sobre sua política e a ordem pública14. Essa reivindicação de Kant, quanto ao direito do uso público da razão, não é tão alheia à nossa realidade quanto

12 Sobre isso Kant afirma que existe uma “(...) vocação de cada homem em pensar por si mesmo”

(Esclarecimento p.102) e que a natureza “desenvolveu o germe de que cuida tão delicadamente, a saber, a tendência e a vocação ao pensamento livre” (Esclarecimento p. 114-115). A indicação: “Esclarecimento p.xx” corresponde à : “KANT, O que é esclarecimento? In: Textos Seletos, 1985.

13(Esclarecimento p. 110). Também sobre isso: “Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte

em um estado em que se torne impossível para esta ampliar seus conhecimentos (particularmente os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço. E a posteridade está portanto plenamente justificada em repelir aquelas decisões, tomadas de modo não autorizado e criminoso.” (Esclarecimento p. 108)

14 Por exemplo: “seria muito prejudicial se um oficial, a quem seu superior deu uma ordem, quisesse pôr-se a

raciocinar em voz alta no serviço a respeito da conveniência ou da utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas, razoavelmente, não se lhe pode impedir, enquanto homem versado no assunto, fazer observações sobre os erros no serviço militar, e expor essas observações para que as julgue.” (Esclarecimento p. 106)

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poderia parecer à primeira vista, afinal faz apenas alguns anos que o Brasil se desvencilhou de um estado sem direito à liberdade de expressão.

A importância do uso público da razão também é reafirmada noutro escrito, publicado em 1786, intitulado “O que significa orientar-se no pensamento?”. Nesse texto, Kant afirma que

[a] liberdade de pensar opõe-se em primeiro lugar a coação civil. Sem dúvida ouve-se dizer: a liberdade de falar ou de escrever pode nos ouve-ser tirada por um poder superior, mas não a liberdade de pensar. Mas quanto e com que correção

poderíamos nós pensar, se por assim dizer não pensássemos em conjunto com outros, a quem comunicamos nossos pensamentos, enquanto eles comunicam a nós os deles! Portanto, podemos com razão dizer que este poder exterior que retira dos homens a liberdade de comunicar publicamente seus pensamentos rouba-lhes também a liberdade de pensar, o único tesouro que ainda nos resta

apesar de todas as cargas civis, e graças ao qual unicamente pode ainda ser produzido um remédio contra todos os males desta situação.” (KANT, O que significa orientar-se no pensamento?, In: Textos Seletos, 1985, p.92, negritos

acrescentados)15

A partir disso, fica claro como o pensamento livre acaba determinando a própria capacidade de pensar, a capacidade de produzir novos conhecimentos e, conseqüentemente, o processo educativo e o desenvolvimento histórico da espécie humana.

Kant aponta ainda dois procedimentos opostos ao pensamento livre, que prejudicam o desenvolvimento humano. O primeiro é o modo de pensar e agir baseado meramente em preceitos e fórmulas tomados emprestados de outrem. Nesse sentido, são especialmente perniciosos à sociedade aqueles “cidadãos que se arrogam o papel de tutores dos outros, e, em vez de argumentos, sabem banir qualquer exame da razão mediante uma impressão inicial sobre os espíritos, por meio de fórmulas de fé impostas, acompanhadas do angustioso temor do perigo de uma pesquisa pessoal”16. Pensar livremente significa para Kant “que a razão não se submete a qualquer outra lei senão àquela que dá a si mesma”17. Desse modo, o segundo procedimento oposto ao pensamento livre é o modo de pensar que não segue as próprias leis da razão. Nesse caso, temos a situação de uma razão que não quer obedecer às leis que ela mesma se dá, o que Kant chama de “exaltação sentimentalista” e os adeptos desta de “iluminação”. Pelo fato do “gênio” fundar sua teoria na existência de uma suposta “iluminação” e não na razão, os seus seguidores, por não se entenderem (“pois só a razão

15 A indicações seguintes: “Orientar-se p.xx” correspondem à : “KANT, O que é esclarecimento? In: Textos

Seletos, 1985.

16 (Orientar-se p. 92 e 94, negritos acrescentados). Também sobre isso: “Preceitos e fórmulas, estes

instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes o abuso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade.”(Esclarecimento p. 102)

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pode comandar a todos”), acabam adotando testemunhos exteriores (as anotações do suposto “gênio”) como sendo os “documentos da verdade”. Nesse caso, petrifica-se a razão e também o desenvolvimento humano, pois se subordina a razão aos fatos, gerando-se superstição.

Três modos de uso da razão

Como já mostramos anteriormente, Kant atribui à espécie humana a capacidade de desenvolver as disposições que dependem do uso da sua razão através do processo de aprendizagem. Esse processo culminaria no desenvolvimento completo das disposições da humanidade. Como aponta acertadamente Kleingeld (1995, p.172), o desenvolvimento das disposições não deve ser compreendido em um sentido estreito de pensamento lógico, mas como formas diversas de racionalidade ou modos de uso da razão.

Podemos distinguir pelo menos três modos de uso da razão, a saber, o instrumental em relação às coisas, o pragmático em relação ao comportamento social e o uso moral da razão. Eles corresponderiam às seguintes três disposições humanas: a técnica, a pragmática e a moral. A meta da disposição técnica é a habilidade, a da disposição pragmática é a prudência e a da moral é a moralidade. Kant chama o processo da primeira de cultivo, o da segunda de civilização e o da terceira de formação moral ou moralização.

O desenvolvimento da “disposição técnica” conduz à habilidade. Kant concebe a habilidade enquanto uma competência instrumental racional para se utilizar de determinados conhecimentos e habilidades práticas18. Entre elas, pode-se mencionar tanto a linguagem e a capacidade de auto-sustento (prover alimentação e segurança), como também os conhecimentos técnico-científicos.

O desenvolvimento da “disposição pragmática” conduz à prudência. A prudência se refere à capacidade social do indivíduo, isto é, com seu comportamento frente às leis e às normas de bom comportamento. Na Pedagogia, Kant afirma que o homem prudente é aquele,na sociedade,é querido e nela tem influência19. Além disso, a formação na prudência prepara o homem para “tornar-se um cidadão, uma vez que lhe confere um valor público. Desse modo ele aprende a tirar partido da sociedade civil para os seus fins como a conformar-se à sociedade”20.

18 Sobre isso ver: KANT, Immanuel. Antropologia em sentido pragmático. Trad. José Gaos. Madrid: Alianza

Editorial, 1991, p. 278-280.

19 Ped. p. 26 e 85. 20 Ped. 35.

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O desenvolvimento moral capacita o homem a agir moralmente. A disposição moral é, segundo Kant, a que mais tardiamente é desenvolvida21 e já pressupõe uma certa medida de

habilidade e prudência. A partir do desenvolvimento dessa disposição,o homem passa a viver como um ser livre, autônomo. É por esta capacidade que o homem é capaz de eleger bons fins,isto é, “fins aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, fins de cada um”22. É,a partir disso,que o indivíduo passa a ter um valor absoluto, isto é, um valor por si mesmo e não em relação a qualquer outro fim.

Como observação sistematicamente relevante,pode-se acrescentar aqui que Kant, em sua teoria moral, faz corresponder a cada uma dessas disposições um determinado tipo de imperativo. A habilidade se relaciona com os imperativos de destreza, a prudência se refere aos imperativos hipotéticos, e, finalmente, a moral se refere ao imperativo categórico. Cada um dos três se relaciona de um modo diferente com a vontade. O primeiro é chamado de regras de destreza, o segundo,de conselhos de prudência e o terceiro,de mandamentos (leis) da moralidade23.

Educação moral enquanto um ideal da razão

A partir do que foi mostrado acima,podemos agora discutir o princípio pedagógico formulado por Kant, a saber, que “não se deve educar as crianças segundo o presente estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade e de sua inteira destinação”24. O conceito de “inteira destinação” deve ser compreendido, como vimos anteriormente, como o desenvolvimento integral das disposições naturais humanas, o que só pode ser alcançado pela espécie. Todavia, precisamos ainda esclarecer o significado e a importância da noção de “idéia de humanidade”.

Kant define na Crítica da razão pura a “idéia” como “representação conceitual sem validade objetiva”25. As idéias se “fundam na natureza da razão humana”26, mas não podem determinar nenhum objeto, isto é, elas não podem se referir adequadamente a nenhuma representação sensível. Contudo, as idéias possuem tanto um uso teórico quanto prático. No

21 Sobre isso: “Rousseau não estava enganado ao preferir o estado dos selvagens, se se deixar de lado o último

estágio que a nossa espécie tem ainda de subir. Estamos cultivados em alto grau pela arte e pela ciência. Somos civilizados até o excesso, em toda a classe de maneiras e na respeitabilidade sociais. Mas falta ainda muito para nos considerarmos já moralizados” (Idéia, p. 32); e também no escrito O fim de todas as coisas.

22 Ped. p. 26.

23 Sobre isso ver: KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 125-129. 24 Ped. 22.

25 Kant expõe a sua teoria geral da representação em CRP B376-377. 26 CRP B 380.

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uso teórico,elas servem ao “entendimento como cânone para o seu uso ampliado e coerente, pelo qual, (...) é guiado melhor e adiante nesse conhecimento [de objetos]”27. No seu uso prático, que é aquele que nos importa,as idéias podem servir tanto como fundamento de avaliação do valor ou desvalor moral de uma qualidade, ação ou indivíduo28, quanto servir como causas eficientes de ações29.

Por “humanidade”, Kant compreende aquilo que há de mais perfeito na espécie humana30. “Humanidade” é o contra-conceito de “animalidade”. Enquanto o primeiro se refere a conceitos como “racionalidade”, “maioridade”, “modo de pensar perfeito”, isto é, a uma racionalidade que articule perfeitamente os três modos de uso da razão (o técnico, o pragmático e o moral), o segundo se refere a noções como “selvageria”, “minoridade”, ou simplesmente “não-humanidade”. É importante ressaltar que, para Kant, a idéia de “humanidade” não se vincula a uma racionalidade qualquer, mas a uma racionalidade que segue os princípios de uma “boa vontade”, ou seja, a uma racionalidade moral. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant nos fala de como o autodomínio e a calma na reflexão, por exemplo, poderiam tornar-se muitíssimo maus se fossem as qualidades de um facínora. Desse modo, educar de acordo com a idéia de humanidade significa buscar, além do desenvolvimento da habilidade e da prudência, principalmente a formação moral das crianças. Poderíamos ainda questionar a posição de Kant sobre a rejeição do estado presente da espécie humana como parâmetro pedagógico. Para esclarecer isso, é necessário levar em conta uma característica central de sua filosofia prática, a qual difere diametralmente da filosofia prática empirista. Se, para Kant, no campo do conhecimento teórico “a experiência fornece-nos a regra e é a fonte da verdade”, no campo do conhecimento prático, isto é, “no que concerne às leis morais, a experiência é (infelizmente) a mãe da ilusão; e é sumamente reprovável tirar as leis sobre o que devo fazer daquilo que é feito ou querer limitar a primeira coisa pela segunda”31. “Quem quisesse tirar os conceitos de virtude da experiência e quisesse constituir como modelo da fonte de conhecimento (como muitos realmente o fizeram) (...)

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CRP B 385.

28

Sobre isso: “A avaliação da moralidade segundo sua pureza e conseqüências é feita de acordo com idéias (...)”CRP B840. “(...) cada um dá-se conta , quando alguém lhe é apresentado como modelo de virtude, de possuir sempre o verdadeiro original apenas em sua própria cabeça com ele comparando e por ele unicamente avaliando esse pretenso modelo. Tal original é, porém, a idéia de virtude, com vistas à qual (...) todo o juízo sobre o valor ou o desvalor moral é, não obstante, possível somente através dessa idéia (...)” CRP B372.

29 Sobre isso: “(...) idéias tornam-se causas eficientes (das ações e de seus objetos), a saber, no campo ético (...)”

CRP B374. “Consequentemente, a idéia prática é sempre sumamente fecunda e, com respeito às ações reais, incontestavelmente necessária. Nela a razão pura possui até causalidade para produzir efetivamente o que o seu conceito contém” CRP B385.

30 Sobre isso: “(...) idéia do que há de mais perfeito em uma espécie (assim como tampouco o homem é

adequado a idéia de humanidade que ele próprio traz em sua alma com arquétipo de suas ações) (...)” CRP B374.

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faria da virtude um equívoco não-ente, variável segundo o tempo e as circunstâncias e imprestável como regra”32.

Kant atribui à pedagogia, enquanto uma teoria da educação moral, a condição de um nobre ideal “verdadeiro absolutamente”, mesmo que não completamente realizável33. Ela é “o conceito de uma perfeição que ainda não se encontra na experiência”34. É preciso esclarecer essa situação aparentemente paradoxal. Por um lado, Kant reconhece que o homem jamais se tornará santo, pois “(...) de um lenho tão retorcido, do qual o homem é feito, nada de inteiramente direito se pode fazer”35. Por outro, ele nega terminantemente que a idéia de humanidade e a idéia de uma tal pedagogia sejam quimeras.

Desde o início, houve quem acusasse o projeto kantiano de ser apenas um produto da imaginação, uma mera fantasia. Kant rebateu fortemente essa crítica afirmando que não podemos considerar uma idéia como quimera, seja por que até o momento ela não possui realidade empírica, isto é, por não se terem ainda apresentado casos sensivelmente perceptíveis dela, seja por que se interpõem muitos obstáculos à sua realização. Para Kant, “pensar que o que ainda não se conseguiu realizar até agora, por isso, também jamais será possível realizar não justifica sequer a renúncia a um propósito pragmático ou técnico (como, por exemplo, o das viagens aéreas com balões aerostáticos), e menos ainda, no entanto, a um propósito moral que, se a sua realização não for demonstrativamente impossível, se torna um dever”36. Ele oferece ainda o seguinte exemplo: “se, por exemplo, todo mundo mentisse, o dizer a verdade seria por isso mesmo uma quimera?”37. Assim, Kant atribui ao adversário a tarefa de demonstrar que a educação moral é uma fantasia.

Chegamos à seguinte situação: de um lado sabe-se que é impossível que o homem se torne santo e, conseqüentemente, que haja uma pedagogia para tal; de outro, rejeita-se a possibilidade de que as idéias práticas sejam quimeras. Estamos agora perto de compreender a força e a sutileza da concepção kantiana. As idéias práticas podem ser realmente dadas em concreto, isto é, realizarem-se empiricamente, mas apenas parcialmente. Sua realização “é sempre limitada e defeituosa, mas sob limites indetermináveis, portanto, sempre sob a influência do conceito de completude absoluta”38. Em outras palavras, “ninguém pode e deve determinar qual seja o grau supremo em que a humanidade tenha que deter-se e quão

32 CRP B371, (negritos acrescentados). 33 Ped. 17.

34 Ped. 17 (negrito acrescentado). 35 Idéia, p. 29.

36 Teoria e Prática p.277. 37 Ped. 17.

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grande seja a distância que necessariamente reste entre a idéia e a sua execução, justamente porque a liberdade pode exceder todo o limite que se queira atribuir-lhe”39. Portanto, conceber a educação como sendo orientada pela idéia de humanidade significa pensar em um processo infinito de melhoramento da espécie humana. Um processo ao qual ninguém pode previamente estabelecer barreiras. A educação deve ter os pés no presente, mas os olhos num futuro distante, pois do contrário, condena-se a espécie humana a vagar irracionalmente através da história. Por isso, “não se pode pensar algo mais prejudicial e indigno de um filósofo do que o apelo vulgar a uma experiência pretensamente contraditória, que simplesmente não existiria se no tempo oportuno fossem encontradas aquelas instituições segundo as idéias e se no seu lugar conceitos rudes justamente por terem sido tirados da experiência não tivessem frustrado toda a boa intenção”40.

Frente a esse panorama conceitual, Vicenti levanta o seguinte questionamento:

Ao definir a natureza humana pela moralidade, e ao tomar esta última como finalidade de toda educação, não estaríamos arriscando justificar uma prática educativa que se assemelharia finalmente a uma empresa de adestramento, sob o disfarce de impor pela disciplina uma moralidade não obstante estranha no estágio atual da humanidade? (VICENTI, 1994, p.71)

Se investigamos um pouco a teoria moral de Kant, vemos que tal crítica não procede. A própria noção de moralidade exclui por si só uma tal educação mecânica. A moralidade requer a ação de um sujeito autônomo e não domesticado. Agir de maneira autônoma implica agir segundo máximas boas, isto é, não basta que o sujeito apenas escolha bons fins, mas ele, através do seu próprio pensamento e avaliação, também precisa aprender a distinguir entre o que é desprezível e o que é bom em si mesmo, sem precisar apelar a uma autoridade externa à sua própria razão. A moralidade exige uma educação raciocinada.

***

A teoria pedagógica de Kant traz poucas contribuições concretas sobre como o professor deve proceder em sala de aula. Além disso, as poucas considerações nesse sentido podem ser inclusive criticadas e rejeitadas. Contudo, a verdadeira contribuição pedagógica de Kant não foi mostrar como o educador deve agir, mas em mostrar o que ele deve buscar. Kant não quis propor uma teoria pedagógica sobre os procedimentos educacionais (claro que ele teceu algumas considerações e ofereceu alguns exemplos), mas o seu verdadeiro interesse foi estabelecer a meta de todo o processo pedagógico, a formação de sujeitos morais autônomos e o conseqüente aperfeiçoamento moral da espécie.

39 CRP B 374 (negritos acrescentados). 40 CRP B373.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DALBOSCO, Cláudio Almir. “Da pressão disciplinada à educação moral: esboço sobre o significado e o papel da pedagogia no pensamento de Kant”. In: Educação e sociedade, Campinas, v. 25, n. 89, Set./Dez., 2004: (1333 – 1356).

KANT, Immanuel. Antropologia em sentido pragmático. Trad. José Gaos. Madrid: Alianza Editorial, 1991.

KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isso pode ser correto na teoria mas não serve para a prática. Trad. Christian Hamm. (Manuscrito do tradutor)

KANT, Immanuel. Textos seletos. 2. ed. (Edição bilíngüe) Trad. Raimundo Vier e Floriano de Sousa Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985.

KANT, Immanuel. Schriften zur Anthropologie, Geschichtsphilosophie, Politik und Pädagogik. Vol. XI e XII. Org. Wilhelm Weischedel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. In: Os pensadores (Kant I). Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. In: Os pensadores (Kant II). Trad. Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. 4. ed. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: UNIMEP, 2004.

KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988.

KLEINGELD, Pauline. Fortschritt und Vernunft: zur Geschichtsphilosophie Kants. Würzburg: Königshausen und Neumann, 1995.

VICENTI, Luc. Educação e liberdade: Kant e Fichte. Trad. Élcio Fernandes. São Paulo: UNESP, 1994.

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