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Loucura como doença: a emergência do conceito na modernidade Elizabete Satie Henna* 1

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Loucura como doença: a emergência do conceito na modernidade

Elizabete Satie Henna*1

Em História da Loucura na Idade Clássica, Foucault discorre sobre a mudança de percepção da loucura na transição entre o Renascimento, a Época Clássica e a Modernidade. Ele procura analisar as condições históricas que tornaram possível o aparecimento desse novo discurso sobre o louco, que na modernidade é reconhecido como “doente mental”.

“O estudo sobre o Renascimento tem a função de balizar e clarificar a concepção clássica de loucura e o confinamento do louco em instituições de reclusão. Mas toda a argumentação do livro se organiza para dar conta da situação da loucura na modernidade. E na modernidade loucura diz respeito fundamentalmente à psiquiatria. [...] seu objetivo é estabelecer as condições históricas de possibilidade dos discursos e das práticas que dizem respeito ao louco considerado como doente mental.” (MACHADO, 1981: 57-58).

Foi no final do século XVIII que se iniciou o processo de “patologização do louco”, momento em que surgiu o mito de Pinel. A percepção do louco como doente mental, bem como o surgimento da psiquiatria são resultados de um processo mais amplo, que de forma alguma provém da “descoberta” da “essência da loucura”, mas “à sua progressiva dominação e integração à ordem da razão” (MACHADO, 1981: 58). Foucault analisa tanto os “saberes teóricos”, como as “práticas de internamento” e “as instâncias sociais – família, Igreja, justiça, medicina”, “causas econômicas e sociais” para dar conta de explicar as condições históricas que permitiram o surgimento desse novo modo de pensar a loucura.

No Renascimento, fazendo referência a várias obras plásticas e literárias, Foucault chega à experiência trágica e à consciência crítica da loucura.

“De um lado, haverá uma Nau dos Loucos cheia de rostos furiosos que aos poucos mergulha na noite do mundo, entre paisagens que falam da estranha alquimia dos saberes, das surdas ameaças da bestialidade e do fim dos tempos. Do outro lado, haverá uma Nau dos Loucos que constitui, para os prudentes, a Odisséia exemplar e didática dos defeitos humanos” (FOUCAULT, 2002; 27).

De um lado, com as imagens de Bosch, Brueghel, Thierry Bouts, Dürer teremos representações fantasmagóricas sobre a loucura, é o elemento trágico. De outro, com as obras literárias de Brant, Erasmo e os humanistas, a loucura se revela “em sua medíocre verdade aos

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1 olhos do sábio”, é um discurso que resulta “da consciência crítica do homem” (FOUCAULT, 2002: 24).

Com a consciência crítica da loucura, esta se torna objeto de riso do sábio. A loucura passa a representar o erro humano, a mentira, a fraqueza, o desregramento. Cada vez mais, a loucura passa a ser subjugada pela razão. Foucault descreve no Renascimento um processo de “destruição da loucura como saber que expressa a experiência trágica do homem no mundo, em proveito de um saber racional e humanista centrado na questão da verdade e da moral” (MACHADO, 1981: 61).

Na Época Clássica, com Descartes, a dominação da razão sobre a loucura vai se radicalizar. Se antes a loucura era uma face da razão, seu erro, agora vai simplesmente desaparecer, tornar-se-á “desrazão”. Na busca pela verdade, Descartes faz um exercício de colocar tudo o que já sabemos em dúvida, pois os nossos sentidos podem nos enganar. Assim, podemos nos enganar pelo erro, pelos sonhos, mas e pela loucura? Para Descartes: “Com a loucura, o caso é outro; se esses perigos não comprometem o desempenho nem o essencial de sua verdade, não é porque tal coisa, mesmo no pensamento de um louco, não possa ser falsa, mas sim porque eu, que penso, não posso estar louco” (FOUCAULT, 2002: 46). Então, para Descartes, se um sujeito pensa, ele não pode ser louco.

A Época Clássica também é o período do “Grande Internamento”. Diversas casas de internamento foram criadas no século XVII, e “mais de um habitante em cada cem da cidade de Paris viu-se fechado numa delas, por alguns meses” (FOUCAULT, 2002: 48). Não são casas específicas para os loucos, mas eles também serão internados. Para Foucault, o “grande internamento” é anterior a Pinel e Tuke, ou seja, é anterior à constituição da psiquiatria. As casas eram destinadas aos pobres: de todas as idades, doentes ou não, que viessem espontaneamente ou indicados pelo rei ou pelo judiciário. Davam-lhes abrigo e alimentação.

“A prática do internamento designa uma nova reação à miséria, um novo patético – de modo mais amplo, um outro relacionamento do homem com aquilo que pode haver de inumano em sua existência. O pobre, o miserável, o homem que não pode responder por sua própria existência, assumiu no decorrer do século XVI uma figura que a Idade Média não teria reconhecido” (FOUCAULT, 2002: 56).

Tratava-se de um fenômeno de percepção social, onde o que se intenta é livrar as cidades dos mendigos, vagabundos, etc. Era uma medida para combater a pobreza. Em períodos de crise econômica, era uma possibilidade de retirar das ruas os “sem trabalho”. Mas

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2 em épocas de pleno emprego, tornou-se um alternativa de aproveitar mão-de-obra barata. Foucault lembra que as primeiras casas de internamento surgiram nas regiões mais industrializadas do país. Segundo o regulamento de uma das casas: “Os internos devem trabalhar, todos. Determina-se o valor exato de sua produção e dá-se-lhes a quarta parte. Pois o trabalho não é apenas ocupação: deve ser produtivo” (FOUCAULT, 2002: 67).

Então, se os loucos estão envolvidos no grande internamento, também são obrigados a trabalhar. Não recebiam tratamento diferenciado em relação aos outros pobres, mas distinguiam-se pela “incapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir os ritmos da vida coletiva” (FOUCAULT, 2002: 73). Aliás, a necessidade de oferecer-lhes um regime especial a partir do século XVIII, pode estar ligada a essa incapacidade para o trabalho.

No período que antecede à Revolução, verifica-se um aumento considerável no número de internados. A Salpetrière, por exemplo, em 1690, continha 3.059 pessoas. Em cem anos o número praticamente dobrou, para 6.704. Nesses cem anos o número variou bastante, devido a fatores como a miséria e a repressão no reinado de Luís XV, e até uma diminuição com a recuperação econômica e a guerra na América.

Advém uma crise do “grande internamento”. Antes, em toda a Europa, o internamento era uma resposta à crise econômica. Mas “... a partir de 1770 e durante todo o período de recessão que se seguirá, a prática do internamento começou a recuar; à crise que então se abre não se responderá não se responderá mais com o internamento, mas com medidas que tendem a limitá-lo” (FOUCAULT, 2002: 403). O grande internamento não conseguiu mais evitar a crise econômica. Assim, muda-se a percepção sobre o pobre. Ele se torna fonte da riqueza das nações:

“Porque trabalha e pouco consome, a classe dos necessitados permite que uma nação se enriqueça, valorizando seus campos, suas colônias e suas minas, permite a fabricação de produtos que serão postos à venda no mundo todo; em suma, um povo seria pobre mesmo não tendo pobres. [...] Os pobres formam a base e a glória das nações” (FOUCAULT, 2002: 405).

Então os pobres não podem mais ficar internados, eles devem estar nas cidades, à disposição da produção de riquezas. Então, o pensamento econômico força uma mudança na percepção sobre o pobre:

“Na economia mercantilista, não sendo nem produtor nem consumidor, o Pobre não tinha lugar: ocioso, vagabundo, desempregado, sua esfera era a do internamento, medida com a qual era exilado e como que abstraído da sociedade.

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Com a indústria nascente, que tem necessidade de braços, faz parte novamente do corpo da nação” (FOUCAULT, 2002: 405).

Mas e o pobre doente? Ele não tem utilidade econômica. Sua assistência de dará por piedade e solidariedade. Mas será que essa benevolência caberia ao Estado? Essa questão é bastante debatida antes da Revolução. No entanto, a maioria rejeita que esse seja um dever do Estado: “... a maioria rejeita a ideia dessa assistência maciça. Economistas e liberais consideram, antes, que um dever social é um dever do homem em sociedade, e não da própria sociedade” (FOUCAULT, 2002: 411). Pela primeira vez, doença e pobreza se separam. Mas e o louco? A loucura se individualiza. A partir daí, novas questões se colocam: qual é seu lugar? Na prisão? Nos hospitais? Na família? Passa-se a diferenciar o desatino do alienado. Os desatinos deveriam ser libertos após um ou dois anos de internação, segundo circular de Breteuil sobre as cartas régias de internamento. Já os alienados, deveriam ficar internados. Em 1789 a “Comissão de Mendicância da Constituinte”, após a indicação de 5 pessoas para visitarem as casas de internamento, recomenda que os loucos devem ficar num lugar especial, reservado a eles:

As pessoas detidas por demência serão, durante o espaço de três meses, a contar do dia da publicação do presente decreto, de acordo com a diligência de nossos procuradores, interrogadas por juízes nas formas de costume e em virtude de suas ordenações visitadas pelos médicos, que, sob a supervisão dos diretores de distrito, explicarão a verdadeira situação dos doentes a fim de que, após a sentença declaratória de sua condição, sejam liberados ou tratados nos hospitais que para tanto serão indicados” (Decreto de 1790, apud FOUCAULT, 2002: 419).

Mas havia muitas dificuldades para o cumprimento desse decreto. Em primeiro lugar, não havia hospitais especificamente destinados aos loucos. É decretada uma lei em 22.7.1791, que torna as famílias responsáveis por vigiar seus loucos, impedindo que eles fiquem vagando ou cometam alguma desordem. No entanto, para aquelas famílias que não tinham condições de cuidar de seus loucos, chegam vários pedidos ao ministério do interior para que eles sejam internados. Delessart determina então que esses sejam internados em Bicêtre, que acaba se tornando o local para onde são enviados os insensatos. O mesmo ocorre em Salpetrière, para o público feminino.

Assim, para Foucault, a necessidade de haver casas específicas para internamento dos insanos surgiu de uma situação anterior ao aparecimento de Pinel e Tuke:

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“... a desaparição do internamento deixa a loucura sem nenhuma inserção precisa no espaço social; e diante do perigo solto, a sociedade reage de um lado através de um conjunto de decisões a longo prazo, conforme a um ideal que está surgindo – criação de casas reservadas aos insensatos – e de outro, por uma série de medidas imediatas, que devem permitir-lhe dominar a loucura pela força” (FOUCAULT, 2002: 422).

A própria situação social acaba cunhando um valor terapêutico ao internamento dos loucos. Então agora, abre-se caminho para a medicina se aposse dos asilos. Pinel e Tuke respondem a uma demanda da sociedade, simbolizando essa nova era, em que acredita-se que o louco é um doente, pode ser tratado e curado. A loucura passa a ser objeto de conhecimento da ciência. Passa a ser fundamental conhecer a loucura, vigiar todos os seus momentos. Daí passa a ser importante a psiquiatria: “o conhecimento objetivo, ‘científico’ da verdade do homem passa pela consideração do louco, na medida em que é como loucura, como fenômeno patológico, que pela primeira vez esta verdade se objetiva” (MACHADO, 1981: 80). Os mitos de Pinel e Tuke serviriam para legitimar esse processo, criando um “arquétipo do asilo moderno”.

Então Foucault descreve duas cenas clássicas as quais “são familiares a todas as histórias da psiquiatria, onde têm por função ilustrar essa era feliz em que a loucura é enfim reconhecida e tratada segundo uma verdade que não tinha sido enxergada durante tanto tempo (FOUCAULT, 2002: 459)”. A primeira cena acontece na sociedade dos Quacres, que oferecia tratamento a seus membros que “tivessem perdido a razão” e não tivessem fortuna para pagar. O Retiro mais parecia uma fazenda. Tuke acreditava que os passeios, as atividades ao ar livre e os trabalhos no jardim e na fazenda produziam um efeito positivo e poderiam levar à cura. Tuke e seus contemporâneos acreditavam que “emoções, incertezas, agitação, alimentação artificial” eram causas da loucura. Por isso, o retorno à vida na natureza poderia trazer a cura. O essencial aqui é perceber o poder que o internamento recebe, como pensam os fundadores do Retiro. Imagina-se no Retiro a cura pode ser encontrada. E é neste mito que podemos encontrar o imaginário da cura que será transmitido para o século XIX: entende-se que o internamento deve “reduzir a loucura à sua verdade”, e esta verdade é o homem naquilo que ele tem de mais inalienável. E o que o homem tem de mais inalienável é “a Natureza, a Verdade e a Moral, isto é, a própria Razão”. Assim, o “desenlace da alienação” é a Razão. A

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5 segunda cena ocorre em Bicêtre e foi “célebre”: Pinel toma a decisão de libertar os loucos das correntes.

“A função médica é claramente introduzida em Bicêtre: trata-se agora de rever todos os internamentos por demência que foram decretados no passado. E, pela primeira vez na história do Hospital Geral, é nomeado para as enfermarias de Bicêtre um homem que já adquiriu certa reputação no conhecimento das doenças do espírito; a designação de Pinel prova por si só que a presença de loucos em Bicêtre já é um problema médico” (FOUCAULT, 2002: 464).

Os valores míticos de Pinel e Tuke se estenderam pela psiquiatria do século XIX. E a figura do médico comandará toda a “experiência moderna da loucura”. Na Idade Clássica, a internação não era uma prática médica, mas moral. Antes ele não tinha espaço no internamento, agora ele comanda. A presença médica parece dotada de um poder que restabelece a ordem moral. Na história da ciência ocidental, será a primeira vez que a medicina do espírito assume tanta autonomia:

“desde os gregos ela não passa de um capítulo na medicina, e vimos Willis estudar as loucuras sob a rubrica das ‘doenças da cabeça’; após Pinel e Tuke, a psiquiatria vai tornar-se uma medicina de estilo particular: os mais obstinados em descobrir a origem da loucura nas causas orgânicas ou nas disposições hereditárias não escaparão a esse estilo. [...] À medida que o positivismo se impõe à medicina e à psiquiatria, singularmente essa prática torna-se mais obscura, o poder do psiquiatra mais milagroso e o par médico-doente mergulha ainda mais num mundo estranho. Aos olhos do doente, o médico se torna taumaturgo; a autoridade que ele emprestava da ordem, da moral, da família, parece ser por ele retirada, agora, dele mesmo” (FOUCAULT, 2002: 500).

O mito de Pinel serviu para legitimar uma nova ciência, a psiquiatria. No entanto, para Foucault, seu nascimento foi produto de condições históricas, econômicas e sociais que vinham se delineando do Renascimento à Modernidade. A loucura agora não seria mais “desrazão”, haveria a possibilidade de cura. O meio social é que afastaria o homem de sua natureza, tornando-o um alienado: “A tese de Foucault aparece claramente: deixando de ser desrazão, a loucura, relacionada à sociedade e considerada perda da natureza, antes de ser doença mental, torna-se alienação” (MACHADO, 1981: 73). A percepção que a sociedade tinha sobre a loucura foi se transformando desde o Renascimento, quando era vista como

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6 “ilusão”; passando pela Era Clássica, quando foi considerada “desrazão”; até a época Moderna, em que passou a ser considerada “alienação”.

Para Weiner, em “Le geste de Pinel”: The History of a Psychiatry Myth, não há evidências de que o ato de libertar os loucos das correntes tenha de fato ocorrido. Quando chegou a Bicêtre, “em 6 de agosto de 1793 como um médico das enfermarias, Pinel aceitou o tradicional uso de correntes para restringir os insanos violentos como um procedimento normal” (WEINER, 1994: 237). Em “Memoir on Madness”, de 1794, ele mencionou a existência de três insanos que ficaram presos nas correntes de 15 a 55 anos, sem fazer qualquer comentário sobre isso. Foi seu assistente, Pussin, quem libertou alguns insanos das correntes pela primeira vez em 1797, num período em que Pinel esteve fora de Bicêtre. Pinel menciona isso na segunda edição do Treatise, de 1809, dizendo que fez o mesmo, três anos depois. Ambos sabiam que deveriam conter os insanos quando estes estivessem violentos, e quando não utilizavam as correntes, faziam uso das camisas de força. Uma nota do Conselho do Hospital de Paris de 1803 afirmava “que as condições dos insanos em Bicêtre ‘melhorou, mas está longe da abolição das correntes’” (WEINER, 1994: 238). Os contemporâneos de Pinel e Pussin diziam que o primeiro era o teórico, quem refletia sobre o tratamento e as melhorias na instituição; e o segundo era quem primeiro removeu as correntes, ou as substituiu por camisas de força. Para Weiner, se Scipion Pinel tivesse tido acesso a essas fontes, talvez não tivesse publicado seu artigo falando sobre o “gesto libertador” de seu pai. A nova geração de psiquiatras se voltava para o estudo das causas orgânicas das doenças mentais, e a liderança de Pinel na área era contestada. No entanto, a estória escrita por Scipion já estava no meio de poderosos círculos. Assim que Pinel faleceu, Scipion consegue que seja publicada uma nota oficial de elogio, pela Academia de Ciencias. A partir de então, o “gesto de Pinel” foi homenageado também na Academia de Medicina. E o “mito de Pinel” floresceu.

Para Weiner, o “mito” obscureceu quem foi e o que fez Pinel. “Mais do que ninguém, ele foi responsável por transformar a percepção da sociedade francesa da loucura para uma doença que frequentemente podia ser curada em homens e mulheres” (WEINER, 1994: 244). Os fatos não sustentam, mas a lenda de Pinel libertando os loucos das correntes persiste. Duzentos anos depois, Pinel é ainda uma das mais fortes figuras médicas que convencem a sociedade da ideia de ser possível tratar e até curar os loucos.

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7 Em Os delírios da razão: médicos, loucos e hospícios, Magali Engel analisa “as ideias e vivências da loucura” no Rio de Janeiro, de 1830 a 1930, reconstituindo o processo em que a loucura foi sendo transformada em doença mental no Brasil. O marco inicial de sua pesquisa, início do século XIX, se dá num período em que os médicos brasileiros começam a reivindicar para si a responsabilidade sobre a loucura, ou seja, passam a defender a criação de locais específicos, em que os loucos pudessem receber tratamento de especialistas: os hospícios. E o marco final, início do século XX, evidencia os novos rumos tomados pela psiquiatria, com a propagação das práticas preventivas, articuladas em torno de princípios eugênicos.

Para Engel, a noção científica de doença mental foi construída no Brasil através de uma série de “apropriações de imagens da loucura veiculadas pelo senso comum” (ENGEL, 2001: 12). Ao mesmo tempo, o ideário leigo sobre a loucura seria construído por apropriações oriundas dos alienistas e psiquiatras. Até o final do século XIX, a loucura no Rio de Janeiro era um “espetáculo tragicômico”, onde loucura e razão podiam conviver juntas. Os loucos estavam presentes nas ruas do Rio de Janeiro, sendo discriminados, ridicularizados e agredidos; ao mesmo tempo em que eram aceitos, tolerados e protegidos. No início do século XX o “espetáculo do delírio” continua nas ruas, mas o destino dos loucos passa a ser o hospício. Então, nessa transição entre o final do século XIX e início do século XX, assiste-se a um processo de legitimação da psiquiatria no Brasil. E quanto mais o saber alienista se desenvolve, mais abrangente se torna a noção de doença mental.

Reproduzindo as classificações nosográficas dos alienistas franceses do século XIX, os brasileiros transformavam a loucura “em objeto multifacetado, cujo reconhecimento só seria possível àqueles que tivessem acesso ao instrumental produzido por um saber científico e especializado” (ENGEL, 2001: 124-125). Baseando-se em Pinel, Esquirol e Dubois, o Dr. Silva Peixoto, autor da primeira tese alienista produzida no Brasil, dividiu a alienação em quatro espécies fundamentais: mania, monomania, demência e idiotismo. Ele atribui à doença mental causas morais, sociais e biológicas. Nos anos 60 do século XIX, segundo Engel, emergiram posições menos conciliatórias: a opção pela abordagem materialista da loucura foi defendida pelo Dr. José Luiz da Costa na Academia Imperial de Medicina em 1861. Para ele, “as faculdades intelectuais e morais – especificamente humanas – não poderiam ser vistas como produto exclusivo da alma, uma vez que ‘numerosos e concludentes’ fatos já teriam

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8 demonstrado ‘que o encéfalo é a condição física indispensável para a sua manifestação’” (ENGEL, 2001: 128). Na mesma época, o Dr. Affonso Pereira Pinheiro defende a posição organicista, defendendo que a psiquiatria não é exceção, mas faz parte da patologia geral, há sintomas físicas nessas doenças, por isso o alienista deve sempre se basear em indicações que vêm do organismo afetado. E nas últimas quatro décadas do século XIX ocorre uma verdadeira difusão da abordagem materialista entre os médicos brasileiros. Com a publicação do Traité dês Dégénerescences em 1857, Morel inaugura uma outra tendência unindo hereditariedade, ambiente e declínio racial.

Para Cunha, a teoria da degenerescência foi o referencial teórico que tornou possível a ampliação da atuação do alienismo. Criada nos anos 50 por Morel, a teoria altera os princípios básicos do alienismo de Pinel e Tuke:

“A teoria da degenerescência, formulada por Morel na década de 50, ao assumir uma orientação organogenética e definir uma etiologia da loucura, reverte os fundamentos do alienismo clássico de Tuke e Pinel: a afirmação de que a origem da loucura estava na degeneração, hereditariamente transmitida e definida como ‘desvios doentios em relação ao tipo normal da humanidade’, negava a concepção da ‘doença’ como um ‘erro de julgamento’ ou desvio da razão” (CUNHA, 1986: 25).

A teoria também cria gradações no estado patológico, entre loucura e sanidade, o que não era possível para a “patologia da razão”. Multiplicam-se os temas da psiquiatria para a cidade: a degenerescência é identificada em “práticas anti-sociais”, como: “protituição”, “jogo”, “vagabundagem”. Além disso, as ações dos alienistas não se restringem à “reclusão terapêutica”. Morel cria a “profilaxia preservadora”, identificando focos de degenerescência na cidade. Com essas ações de “prevenção e profilaxia”, abre-se um imenso campo de atuação para a psiquiatria.

Bibliografia

CUNHA, M.C.P. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

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9 ENGEL, M. Os delírios da razão: médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro, 1830-1930).

Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2001.

FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

MACHADO, R. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.

WEINER, D. “Le geste de Pinel”: the History of a Psychiatric Myth. In: MICALE, Mark S. & PORTER, Roy (eds). (1994). Discovering the History of Psychiatry. Oxford University Press. [Part V-Critics of Psychiatry]

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